(por Keith J. Taylor)
“Viena era a
única ilha cristã num mar de infiéis. Noite após noite, os homens observavam o
horizonte em chamas, onde os akinjis ainda assolavam a terra agonizante. Ocasionalmente
chegavam informações do mundo exterior, trazidas por escravos que escapavam do
acampamento turco e entravam às escondidas na cidade. As notícias eram sempre
de um novo horror. Na Alta Áustria, menos de um terço dos habitantes continuava
vivo. Mikhal Oglu estava se superando. E as pessoas diziam que era evidente que
o homem com asas de abutre estava à procura de alguém em particular. Os
assassinos sob seu comando lhe traziam cabeças de homens e as empilhavam na sua
frente; o akinji procurava entre as pavorosas relíquias e antão, aparentemente
em cruel desapontamento, liderava os seus demônios a novas atrocidades”.
(Robert E.
Howard – “A Sombra do Abutre”)
Suleyman o
Magnífico, chamado pelo próprio povo de Kanuni, o Legislador, Rei dos Reis, o
Possessor dos Pescoços dos Homens, A Sombra de Alá Distribuindo Paz na Terra,
diante dos infelizes e inadequados muros de Viena em 1529, estava capaz de ainda
receber outro título: o Apoplético com Frustração. As tropas de Viena, quatro a
cinco vezes menores, não foram destruídas diante do ataque do exército de
Suleyman. O exército turco! O maior da terra! Sem dúvida, o mais bem
organizado, ele também ostentava a melhor artilharia e talvez os melhores
sapadores. Sua habilidosa, móvel e ousada cavalaria leve era temida por todos,
exceto os cossacos. Suas principais unidades de infantaria – os janízaros, os
fanáticos escravos-soldados do Sultão –, eram as mais fortes e severamente
disciplinadas, desde as legiões romanas. A vantagem turca não era meramente
numérica.
Mas Viena
resistia, sob o comando destemido do Conde Salm, um soldado experiente de 70
anos. Metade dos dias de outubro havia se passado. A promessa de Suleyman, de
tomar seu café-da-manhã nos muros da cidade no final de setembro, não se
cumpriu, com uma pilhéria zombeteira dos defensores. Tanto os ataques externos
quanto traição interna haviam falhado.
E mais: até
mesmo os janízaros, “o terror de seus inimigos, e freqüentemente de seus
mestres”, haviam começado a ceder. Um exército, até mesmo de janízaros, marcha
até onde agüenta. Suleyman havia esperado que Viena caísse rapidamente. Por
essa razão – e também porque trazer provisões, através dos pântanos que cobriam
a Europa Oriental em 1529, era muito difícil –, as rações ficaram escassas.
Tropas de janízaros, à beira de um motim, estavam propensas a demonstrar isso,
ao emborcarem as grandes caldeiras de comida em meio aos seus acampamentos. Nem
conseguiram obter comida no devastado país da Áustria. Mikhal Oglu e seus
akinjis haviam sido, de forma sangrenta, um pouco eficientes demais. Outros
suprimentos, como agasalhos, eram poucos, a estação chegara atrasada e o tempo
estava mortalmente frio. Além disso, o exército havia feito três grandes
ataques, e o Alcorão não exigia mais dos Fiéis, em defesa ou ataque.
Robert E.
Howard, como de costume, fornece uma sucinta e vívida imagem verbal da
situação. “Suleyman instigava os seus homens de maneira tão implacável quanto
se ele fosse o pior inimigo dos turcos. A peste espreitava entre eles, e os
campos devastados não produziam alimento. Os ventos gélidos sopravam do alto
dos Cárpatos, e os guerreiros tiritavam dentro das leves vestimentas orientais.
Durante as noites congelantes, as mãos das sentinelas enregelavam nos
mosquetes. O solo ficou duro como sílex e os sapadores labutavam debilmente com
ferramentas embotadas. A chuva caía misturada com granizo, transformando a
planície do lado de fora da cidade num charco enlameado, onde cadáveres podres
transmitiam doenças aos vivos”.
O comando – e
os janízaros, com a promessa de pilhagem e do pagamento imediato de mil aspros
a cada soldado – concordaram em fazer mais um ataque com toda ferocidade às
muralhas remendadas, reparadas e cambaleantes de Viena. Se falhasse, eles
teriam de suspender o cerco. Suleyman prometeu, como Howard relata, “Trinta mil
aspros ao primeiro homem que escalar as muralhas!”.
Gottfried Von
Kamlbach lutou como um demônio, na brecha próxima à Torre Karnthner. Ele lutou
continuamente com sua enorme espada de duas mãos, enquanto “rostos desvairados
se erguiam rosnando diante dele” e “uma figura esguia como uma pantera se movia
e golpeava, a princípio aos risos, praguejando e com uma ou outra canção nos
lábios, mas depois em silêncio sombrio”. De uma forma ou de outra, era a luta
final, como Gottfried e Sonya sabiam. No final, exausto e semi-consciente, com
os pés dormentes, Gottfried foi puxado da brecha pelas mãos de Nikolas Zrinyi,
que lhe disse para ir dormir, pois os turcos haviam sido derrotados. “Pelo
menos, por enquanto”.
Gottfried
cambaleava pelas ruas de Viena, aturdido por um golpe de espada que lhe havia
partido o elmo durante a luta. Bebendo um copo de vinho (sua eterna fraqueza)
que lhe fora oferecido, ele foi golpeado por trás pelos traidores da cidade e
aprisionado. Um mercador armênio e seu filho – os homens que haviam explodido
uma mina dentro da sitiada Viena – planejavam entregá-lo a Mikhal Oglu.
Felizmente para Gottfried, Sonya Ruiva o encontrou a tempo, “seu rosto
contraído e desvairado... as botas rasgadas, as calças de seda salpicadas e
manchadas de sangue”. Ela derrubou o pai com a pistola vazia, e quase
estrangulou o filho. A esta altura, já era a terceira vez em que ela salvara
Von Kalmbach da morte certa. Em fúria impiedosa, estava prestes a estourar os
miolos de Rhupen diante dos olhos do pai dele; mas, quando ela carregou a
pistola, eles foram interrompidos pelos sinos da catedral de Santo Estevão.
Eles não haviam tocado desde que o cerco começou.
“- Os sinos de
Santo Estevão! – gritou Sonya. – Badalam pela vitória!”.
Era verdade. O
último grande ataque da décima quarta havia falhado como os outros. Os oficiais
turcos, inclusive o Vizir Ibrahim em pessoa, haviam empurrado os soldados até
as muralhas com açoites e cimitarras. Nem sequer uma brecha recém-aberta no
Portão Karnthner pela explosão de duas minas – a brecha na qual Gottfried e
Sonya estiveram lutando – foi suficiente para entregar a cidade aos atacantes.
O heroísmo dos defensores não foi quebrado. Dois homens – um português e um
germano que haviam brigado e resolvido lutar num duelo pela manhã – preferiram
enfrentar os turcos lado a lado, até ambos ficarem feridos – um com o braço
esquerdo despedaçado, e o outro com o direito incapacitado. Eles protegeram o
lado um do outro e continuaram lutando até morrer, com sua disputa esquecida. O
Conde Salm, quase às duas horas da tarde, foi atingido por uma pedra cadente,
atirada por um canhão turco. Ela lhe despedaçou o quadril. Na sua idade, ele
não conseguiu se recuperar do ferimento, o qual racharia até um homem jovem, e
morreu meses depois. Mas ele havia vencido. “Não estava escrito que o turco
deveria reinar além do Danúbio”.
Gottfried e
Sonya podem ser fictícios. A coragem e resolução dos defensores da vida real –
Salm, Roggendorf, Phillip o Palgrave, Bakics, Zrinyi e Hagen – não foi menos
incrível que a deles. E Mikhal Oglu também não era fictício, vale lembrar. Nem
suas atrocidades.
O primeiro
cavaleiro de São João e a primeira jovem cossaca (tenho certeza de que ela era,
embora Robert E. Howard não diga isso para seus leitores) podem permanecer como
símbolos da defesa de Viena. De “um teto caído e despedaçado”, olharam os frustrados
turcos se preparando para a retirada. Um último horror ainda estava para ser cometido,
no entanto. Desmontando acampamento, os janízaros fizeram enormes fogueiras com
suas cabanas, sua pilhagem restante e os suprimentos que não conseguiram carregar
com eles, toda e qualquer bagagem desnecessária, e então lançaram seus prisioneiros
– aqueles que não conseguiam andar, os velhos e as crianças – para dentro das fogueiras
urrantes. Os que não haviam sido queimados foram despedaçados ou empalados. Até
mesmo Gottfried, que tinha visto sua porção completa de trabalho terrível, ficou
pálido.
“O Dia do
Juízo Final pela manhã”, ele murmurou atônito.
Sonya, ao ver
Mikhal Oglu no meio do exército turco, cuspiu pragas borbulhantes contra ele:
“aquele bastardo, que fez da Áustria um deserto! Com que facilidade as almas
das pessoas assassinadas pairam sobre seus malditos ombros alados!”.
Ela então
concebeu uma idéia, e desceu correndo com Gottfried até seus dois prisioneiros
traidores. Deixaram de ver “Nikolas Zrinyi e Pavle Bakics atravessarem os portões
a cavalo com seus homens esfarrapados, arriscando a vida em sortidas para
resgatar prisioneiros”. Enquanto isto acontecia, Sonya ofereceu aos armênios
suas vidas, se o pai, com seu filho como refém, levasse uma mensagem para
Mikhal Oglu. O pai do jovem, Tshoruk, fez como lhe foi mandado. Encontrou o
Abutre e disse a ele que Gottfried “caiu do cavalo, enquanto cavalgava com os
couraceiros para atacar a retaguarda, e está com uma perna quebrada na cabana
abandonada de um camponês, a uns cinco quilômetros para trás... Na companhia
apenas de sua amante Sonya Ruiva e de três ou quatro lansquenês, que se
embebedaram”.
O Abutre
mordeu a isca. Na verdade, ele pulou atrás de uma chance de readquirir os
favores de Ibrahim, que ficara mais que ofendido com o fracasso de Mikhal Oglu
em lhe trazer a cabeça de Gottfried. “Para um homem de posição inferior,”, como
Howard nos conta, “isso poderia significar a forca”. Provavelmente seria.
Levando vinte homens, Mikhal Oglu deu a volta, enquanto “o vento soluçava
lúgubre nos galhos sem folhas”. E cavalgou até uma armadilha que Gottfried e
Sonya haviam feito, anunciada pelo rugido de cinqüenta canhões atirando ao
mesmo tempo.
Não foi dessa
forma que Mikhal Oglu realmente morreu. Entretanto, ele não sobreviveu por
muito tempo ao cerco de Viena. Howard escreveu, numa carta a Lovecraft em 3 de
novembro de 1933:
“Muito
obrigado pelos elogios que fez sobre os contos em Magic
Carpet. ‘Becos de Escuridão’ não é um grande conto, mas
eu realmente gosto de ‘A Sombra do Abutre’. Tentei seguir a História o mais
fielmente possível, embora eu tenha mudado a verdadeira data da morte de Mikhal
Oglu. Ele só foi morto mais ou menos um ano depois, na ocasião de uma invasão
tardia à Áustria, na qual o akinji foi emboscado e destruído por Pavle Bakics”.
Bem, um dos
heróis da defesa de Viena finalmente o pegou, o que é justiça. E comprimir os
acontecimentos num período mais curto, para tornar a estória mais rápida e
dramática, é um artifício comum. Shakespeare fazia isso o tempo todo. Além
disso, e importante para contar a história, isso dá à cena final um impacto
maior, quando Suleyman celebra o que ele proclama ser uma “vitória” em Istambul. Aqueles
poucos que não leram “A Sombra do Abutre”, e que não querem que lhe estraguem a
surpresa, devem parar de ler aqui.
Suleyman havia
anunciado que “os austríacos se rendendo e implorando por perdão de joelhos”,
ele os deixará na posse de sua fortaleza. Todo o esplendor e magnificência do
Sublime Sultão estão em
exposição. Presentes são distribuídos. Estrangeiros gostam de
maravilhas. Suleyman relembra de suas grandes vitórias, e reflete que “os
homens esqueceriam que um punhado de cáfaros desesperados, protegidos por
muralhas apodrecidas, bloqueou-lhe a estrada para o império”.
Então, chega
um presente trazido por “um cavaleiro da guarnição de Adrianópolis”. Aberto
diante do Sultão, ele contém um bilhete: “Ao Sultão Suleyman, ao Vizir Ibrahim
e à vadia Roxelana, nós, que assinamos nossos nomes abaixo, enviamos um
presente como sinal de nossa imensurável estima e bondosa afeição”, com as
assinaturas “Sonya de Rogatino e Gottfried Von Kalmbach”. E, ao ver o que o
pacote contém, Suleyman sente “sua pretensa noção de triunfo” abandoná-lo. “Sua
glória transformou-se em ouropel e pó”.
Eu me
perguntei, numa postagem anterior, se Roxelana sabia que a lutadora ruiva Sonya
era sua irmã. Deveria saber. Roxelana estava tão mergulhada nas próprias intrigas,
as quais de qualquer modo se centralizavam no harém, que ela devia saber de
tudo o que ocorria. Deve ter entendido o que a insolente missiva de Gottfried e
Sonya dizia, palavra por palavra; e “Sonya de Rogatino”, para não mencionar o
insulto “vadia”, não poderia lhe deixar dúvida.
Roxelana
provavelmente não contaria ao seu marido, o Sultão, que a mulher que enviara
tal afronta, agora uma companheira do germano que o havia ferido em Mohacs, era
sua irmã! Ela provavelmente deve ter desejado Sonya, e a identidade de Sonya, enterradas
numa sepultura anônima. E o Sultão Suleyman deve ter jurado matar Gottfried
novamente, com mais força do que nunca.
Gottfried e
Sonya, totalmente conscientes disso, decidiram deixar a Áustria e seguirem em
direção aos reinos ocidentais da Europa, sem dizer para onde iriam. O que aconteceu
depois com a relação deles é um pouco ambíguo. Um lansquenê germano havia dito
a Gottfried, no início do Cerco de Viena: “Ela não é manceba de homem algum”.
Aquilo provavelmente era verdade. Na ocasião. O traiçoeiro Tshoruk havia se
referido a Gottfried “e sua amante Sonya Ruiva”, mas aquilo poderia ter
refletido sua própria crença, e não a verdade. Entretanto, podemos considerar
que Robert E. Howard, que criou o par, conhecia exatamente a situação. Uma de
suas cartas a H. P. Lovecraft, datada de 6 de março de 1933, incluía a frase:
“Eles podem não parecer reais para os leitores; mas Gottfried e sua amante
Sonya me parecem mais reais do que qualquer outro personagem que já criei”.
Sonya, sem
dúvida, gostou de sua bravura e espírito guerreiro. Mas parte da atração parece
ter sido um sentimento meio exasperado, meio protetor, de que aquele grande
beberrão precisava de cuidados. Ela disse a ele, após arrastá-lo para fora do fosso
vienense, quando meia dúzia de turcos o perseguia com aço pronto e afiado:
“Vejo que precisa de uma pessoa mais sábia, para manter vivo esse corpanzil”.
Quando Gottfried, perplexo, exclamou “Mas pensei que você me desprezava!”,
Sonya retrucou: “Bem, uma mulher pode mudar de opinião, não?”.
Creio que isso
deixa as coisas bem claras.
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
A Seguir: Sonya Lisowska e Gottfried von Kalmbach – Parte 2