A Cidadela Escarlate

Por Robert E. Howard,
Originalmente publicado em janeiro/ 1933


1)

Aprisionaram o Leão na planície de Shamu,
Lhe ataram os membros com correntes de ferro,
Gritaram em voz alta ao som das trombetas:
“O Leão está finalmente enjaulado!”.
Ai das cidades às margens do rio e da planície
Se o Leão volta a espreitar alguma vez!
(Balada antiga)


Apagava-se o clamor da batalha; os gritos de vitória misturavam-se aos lamentos dos mortos. Os caídos cobriam a planície, como as folhas depois de uma tempestade de outono; o sol poente lançava seu resplendor sobre os capacetes brilhantes, sobre cotas-de-malha trabalhadas a ouro, os peitorais prateados, as espadas quebradas e as dobras dos estandartes de seda, lançados em meio às poças escarlates. Os cavalos jaziam em pilhas silenciosas, e seus cavaleiros vestidos de aço tinham os cabelos manchados de sangue. A seu redor, estavam os corpos destroçados dos arqueiros e lanceiros, que usavam jaquetas de couro e gorros de aço.

Os homens faziam soar uma fanfarra de triunfo na planície, e os cascos dos cavalos dos vencedores pisoteavam os corpos dos vencidos, enquanto as linhas de batalha convergiam, como os raios de uma brilhante roda, para o local onde o último sobrevivente continuava realizando uma luta desigual com a morte.

Naquele dia, Conan, rei da Aquilônia, tinha visto o melhor de sua cavalaria destroçado. Havia cruzado a fronteira sudeste da Aquilônia com cinco mil cavaleiros até chegar a Ophir, onde encontrou seu antigo aliado, o rei Amalrus de Ophir, enfrentando-o junto com as hostes de Strabonus, o rei de Koth. Percebeu a cilada tarde demais. Fez tudo o que podia fazer um homem com cinco mil cavaleiros contra os trinta mil cavaleiros, arqueiros e lanceiros que serviam aos conspiradores.

Lançou-se com seus cavaleiros armados, sem arqueiros nem soldados de infantaria, contra as tropas atacantes; viu os cavaleiros das forças inimigas, em suas brilhantes cotas-de-malha, caindo diante das lanças, destroçou uma parte de seus inimigos, até que os atacantes finalmente cercaram-no. Os arqueiros shemitas de Strabonus causaram estragos entre seus homens, junto com seus cavalos, enquanto os lanceiros kothianos arremessavam-nos ao solo. Finalmente, as forças de Conan foram vencidas porque seus inimigos superavam-nas em número.

Os aquilonianos não fugiram; morreram no campo de batalha, e, dos cinco mil cavaleiros que acompanharam Conan para o sul, nem um só saiu vivo da planície de Shamu. E agora o rei estava à espreita entre os corpos dilacerados de seus homens, a apoiava as costas contra uma pilha de homens e de cavalos mortos. Os cavaleiros ophirianos, protegidos por cotas-de-malha douradas, faziam seus cavalos saltarem por cima dos cadáveres, para atravessar de uma estocada à figura solitária, e vários shemitas de barba negra, assim como alguns cavaleiros kothianos de pele escura, encontravam-se a seu redor. Ouvia-se o som metálico do aço, que crescia em intensidade. A figura do rei se sobressaía por cima da de seus inimigos, enquanto atacava com a ferocidade de um animal selvagem. Em seguida, se viram cavalos sem cavaleiro, e a seus pés havia uma pilha de corpos despedaçados. Seus atacantes recuaram ofegando.

Agora via-se os chefes conquistadores cavalgando em meio às fileiras de seus homens. Ali estava Strabonus, de rosto largo e escuro, e olhos astutos; Amalrus, esbelto, traidor e perigoso como uma cobra, e Tsotha-Lanti, magro como um abutre, vestido com roupas de seda, de olhos negros e brilhantes. Contavam-se lendas sombrias sobre este feiticeiro kothiano: as mulheres de cabelos aparados das aldeias do norte e do oeste assustavam suas crianças mencionando seu nome, e os escravos rebeldes eram mais rapidamente submetidos do que com o chicote, se lhes ameaçasse vendê-los a Tsotha-Lanti. As pessoas diziam que ele tinha uma biblioteca cheia de livros de magia negra, encadernados com a pele de suas vítimas humanas, e que traficava com os poderes das trevas nos escuros sótãos de seu palácio, entregando jovens escravas em troca de segredos infernais. Ele era o verdadeiro soberano de Koth.

Contemplava, com um sinistro sorriso no rosto, como os reis freavam seus cavalos a uma distância segura da taciturna figura que erguia-se por cima dos mortos. Até o homem mais valente recuava ao ver o brilho assassino que brotava dos ardentes olhos azuis, os quais despontavam por baixo do capacete. O rosto escuro e cicatrizado de Conan queimava de ódio; sua armadura negra estava despedaçada e manchada de sangue; sua enorme espada estava vermelha até a empunhadura. Naquele momento, havia desaparecido todo rastro de civilização; ali havia um bárbaro enfrentando seus vencedores. Conan era um nativo da Ciméria, um montanhês feroz e taciturno, originário de uma terra escura e nublada do norte. Sua vida e suas aventuras, que o levaram até o trono da Aquilônia, haviam transformado-se em lenda.

Os reis mantinham distância, e Strabonus chamou seus arqueiros shemitas para lançarem flechas sobre o inimigo; seus capitães haviam caído como grãos maduros diante da espada do cimério, e Strabonus, avaro de cavaleiros assim como de riquezas, estava furioso. Mas Tsotha balançava a cabeça.

- Peguem-no vivo.

- Isso é fácil de falar! – grunhiu Strabonus, preocupado com a possibilidade do gigante de malha negra abrir caminho em direção a eles – Quem pode capturar vivo um tigre devorador de carne? Por Ishtar, que ele é muito superior a meus melhores espadachins. Me custou sete anos e montanhas de ouro para treiná-los, e ali estão, todos mortos. Eu disse, arqueiros!

- Não! – respondeu Tsotha, descendo do cavalo e lançando uma gélida risada – Ainda não se deu conta que meu cérebro é mais poderoso que qualquer espada?

Passou através das filas de lanceiros, e estes recuaram atemorizados, temendo tocar-lhe a túnica. Os cavaleiros emplumados também lhe abriram caminho. Logo saltou por cima dos cadáveres e aproximou-se do rei. Os homens olhavam em silêncio, prendendo a respiração. A figura de malha negra erguia-se, ameaçadora, acima do homem magro de túnica de seda, brandindo a espada manchada de sangue.

- Ofereço-lhe a vida, Conan. – disse Tsotha, com sorriso cruel nos lábios.

- E eu lhe ofereço a morte, feiticeiro. – grunhiu o rei, empunhando a espada com todas as suas forças.

O golpe feroz poderia ter partido o peito de Tsotha em dois. Mas o feiticeiro aproximou-se de Conan com a rapidez de um raio, e apoiou a mão aberta no antebraço esquerdo do bárbaro. A arma do gigante retorceu-se e este caiu pesadamente ao solo, imóvel. Tsotha riu em silêncio.

- Levantem-no e não temam; as presas do leão estão fechadas.

Os reis aproximaram-se e observaram, atônitos, o leão caído. Conan jazia inerte, como um homem morto, mas mirava-os com os olhos arregalados, cintilantes de fúria e desespero.

- O que fez com ele? – perguntou Amalrus, nervoso.

Tsotha mostrou um enorme anel, de aspecto estranho, que trazia no dedo. Apertou os dedos da mão, e viram, assombrados, um dente de aço que surgia de dentro do anel, como a língua de uma serpente.

- O anel foi introduzido no suco do lótus púrpura, que cresce nos pântanos, assolados por fantasmas, do sul da Stygia. – respondeu o mago – Produz uma paralisia temporária em qualquer pessoa que o toque. Acorrentem-no e coloquem ele numa carroça. O sol está se pondo e já é hora de nos colocarmos a caminho de Khorshemish.

Strabonus virou-se para seu general, Arbanus.

- Regressaremos a Khorshemish com os feridos. Só nos acompanhará uma tropa da cavalaria real. Você deve dirigir-se, ao amanhecer, à fronteira aquiloniana, para sitiar a cidade de Shamar. Os ophirianos lhe darão víveres para o percurso. Nos reuniremos com você, assim que possível, com reforços.

As hostes empreenderam a marcha em direção às pradarias que estavam próximas ao campo de batalha, com os cavaleiros cobertos de aço, os lanceiros, os arqueiros e os ajudantes de campo. Os dois reis e o feiticeiro dirigiram-se à capital de Strabonus sob a noite estrelada, rodeados pelas tropas do palácio e acompanhados por uma longa fila de carroças, carregadas de feridos. Numa dessas carroças ia Conan, rei da Aquilônia, acorrentado, com o amargo sabor da derrota na boca e, na alma, a fúria cega de um tigre aprisionado.

O veneno, que havia paralisado seu poderoso corpo, não tinha os mesmos efeitos em seu cérebro. À medida que carro no qual viajava atravessava as pradarias, sua mente pensava obsessivamente na derrota. Amalrus enviara um emissário implorando-lhe ajuda contra Strabonus, porque, segundo dizia, estava destruindo suas terras ocidentais, que eram como uma cunha entre a fronteira da Aquilônia e o vasto reino de Koth. Havia solicitado apenas mil cavaleiros e a presença de Conan, a fim de animar seus desmoralizados soldados. Conan o amaldiçoava mentalmente. Num gesto generoso, havia trazido cinco mil homens, ao invés dos mil que o traidor lhe pedira. Cavalgou de boa-fé pra Ophir, e ali foi atacado pelos supostos rivais, que haviam se aliado contra ele. Provavelmente, trouxeram todo um exército para pegar a ele e a seus cinco mil homens.

Uma nuvem vermelha cobria seus olhos; suas veias estouravam de fúria, e as têmporas latejavam aceleradamente. Em sua vida, ele nunca havia sentido ira e desespero tão grandes. Com seu olho mental, viu diferentes cenas de sua vida, nas quais ele aparecia em diversas situações: como um bárbaro vestindo pele; como mercenário, com capacete de chifres e cota-de-malha; como corsário numa galera com proa em forma de dragão, a qual abria um caminho rubro de sangue e pilhagem ao longo das costas do sul; como capitão de exércitos vestidos com armaduras de aço lustroso; como rei, sentado num trono dourado, com o estandarte do leão pairando no alto, e multidões de cortesãos e damas enfeitados e ajoelhados. Mas, vez ou outra, o movimento da carroça lhe devolvia o pensamento à sua situação atual, e punha-se furioso pela traição de Amalrus e a magia de Tsotha. Os vasos de suas têmporas estavam a ponto de explodir, e os gritos dos feridos enchiam-no de uma feroz satisfação.

Cruzaram a fronteira de Ophir antes da meia-noite e, ao amanhecer, vislumbraram as brilhantes torres de Khorshemish, destacadas contra o horizonte tingido de vermelho. Por cima delas, erguia-se a sombria cidadela, que parecia uma mancha de sangue no céu. Era o castelo de Tsotha. Uma estreita rua de mármore, protegida por enormes portas de ferro, levava até a colina onde estava situado, dominando a cidade. Os declives da colina eram escarpados demais para que um homem pudesse chegar ao castelo por outro caminho, que não fosse o de mármore. Das muralhas da cidadela podia-se ver as pequenas ruelas da cidade, as mesquitas, os minaretes, as tendas, os templos, as mansões e os mercados. Também se podia ver o palácio do rei, no centro de um enorme jardim cheio de árvores frutíferas e de flores, adornado com lagos artificiais e fontes prateadas. Por cima do palácio, erguia-se a cidadela, como um condor que espreita sua presa.

As enormes portas da cidade abriram-se com um ruído metálico, e o rei entrou em sua capital, rodeado por seus lanceiros, ao som de cinqüenta trombetas. Mas não havia muita gente nas ruas, nem lançavam flores ao conquistador. Strabonus havia chegado antes das notícias a respeito da batalha, e o povo, dedicado às suas ocupações do dia, ficou boquiaberto ao ver o rei de volta com um pequeno contingente, e não sabiam se ele voltava como vencedor ou como vencido.

Conan, a quem estavam passando os efeitos da paralisia, ergueu a cabeça do fundo da carroça para admirar a beleza da cidade, à qual o povo chamava A Rainha do Sul. Havia pensado em visitá-la algum dia, à frente de um esquadrão, com o estandarte do leão tremulando ao vento. Mas, ao invés disso, entrara acorrentado, sem armadura e jogado dentro de uma carroça, feito um escravo. Riu em voz alta diante da ironia da situação, esquecendo por um momento de sua fúria, mas, para os nervosos soldados que conduziam o carro, sua risada lhes soou como o grunhido de um leão despertando.


2)

"Brilhante casca de uma mentira desgastada; fábula do direito divino...
Recebeste em herança suas coroas, mas o sangue foi meu preço.
Por Crom, que não venderei
O trono que consegui com sangue e suor
Por vales cheios de ouro, nem a ameaça do Inferno!"

(A estrada dos reis)


Numa habitação da cidadela, com tetos abobadados, de frisos e portas cheios de estranhas jóias escuras, tinha lugar um estranho conclave. Conan da Aquilônia, com o corpo coberto de sangue seco, estava diante de seus captores. De ambos os lados dele, havia uma dúzia de negros enormes, usando machados. Diante dele estava Tsotha e, sobre os divãs, encontravam-se Strabonus e Amalrus, vestidos de seda e ouro, cobertos de jóias e cercados por jovens escravos que lhes serviam vinho em taças de safira. Em forte contraste com esta cena estava Conan, sério, manchado de sangue, quase nu, com grilhões nos membros e os olhos azuis cintilantes sob a negra cabeleira. Dominava a cena, transformando em falsidade a pompa dos conquistadores, devido à vitalidade de sua óbvia personalidade, e os reis, apesar de seu orgulho e do esplendor, eram conscientes disso e sentiam-se desconfortáveis. Apenas Tsotha permanecia imperturbável.

- Vamos falar abertamente de nossos planos, rei da Aquilônia. – disse Tsotha – Queremos expandir nosso império.

- De modo que querem meu reino, porcos. – grunhiu Conan.

- E quem é você, senão um aventureiro que se apossou de uma coroa que não lhe pertencia, bárbaro vagabundo? – respondeu Amalrus – Estamos dispostos a oferecer-lhe uma compensação adequada...

- Compensação? – perguntou Conan, rindo abertamente – O preço da infâmia e da traição! Acreditam que, porque sou bárbaro, vou vender meu reino e sua gente em troca de minha vida e do ouro sujo de vocês? Hah! Como se apoderaram de suas coroas, você e o porco moreno que está a seu lado? Seus pais lutaram e sofreram, servindo-lhes a coroa em bandejas de ouro. Eu lutei por aquilo que vocês receberam por herança, sem mover um só dedo... exceto para envenenarem algum irmão.

“Estão sentados sobre divãs de seda, bebem o vinho que o povo faz com o suor do rosto e falam sobre o direito divino da soberania... Hah! Eu cheguei ao trono desde o abismo da barbárie e, nessa ascensão, derramei meu próprio sangue com a mesma generosidade com a qual derramei o dos outros. Se algum de nós tem direito de governar os homens, por Crom, este sou eu! De que forma vocês demonstraram ser superiores a mim?

“Eu encontrei a Aquilônia nas mãos de um porco como vocês... um homem que poderia remontar-se em sua árvore genealógica a mil anos atrás. O país estava dividido por causa das guerras dos barões, e o povo clamava pela supressão dos impostos. Hoje, nenhum nobre aquiloniano ousa maltratar o mais humilde dos meus súditos, e os impostos são mais baixos que em qualquer outro lugar do mundo.

“E vocês? Seu irmão, Amalrus, domina a parte oriental de seu reino e te ameaça. E seus soldados, Strabonus, agora mesmo estão sitiando os castelos de uma dúzia ou mais de barões rebeldes. Os habitantes de seus reinos sentem-se esmagados por impostos tirânicos. E querem saquear o meu... Hah! Se ousassem me soltar, eu cobriria o chão com seus miolos!”.

Tsotha esboçou um sinistro sorriso ao notar a ira dos reis.

- Tudo isso, mesmo que seja verdade, nada tem a ver com o assunto que nos ocupa. Nossos planos não são assunto seu. Sua responsabilidade termina quando você assinar o pergaminho, no qual consta a abdicação em favor do príncipe Arpello de Pellia. Lhe daremos armas e um cavalo, e cinco mil lunas de ouro, além de uma escolta que lhe acompanhará até a fronteira oriental.

- Deixar-me largado onde estava, antes de ir à Aquilônia para servir em seus exércitos, só que com o peso de haver ganhado o nome de traidor! – disse Conan, com uma risada que parecia o uivo intenso de um lobo – Arpello, heim? Já suspeitava desse carniceiro de Pellia. Nem sequer sabem roubar e cometer pilhagem franca e honestamente, sem que precisem de um pretexto, por mais estúpido que seja? Arpello diz ter algumas gotas de sangue azul, e vocês o utilizam como desculpa para o roubo, e como sátrapa, através do qual poderão governar. Primeiro, lhes verei no inferno.

- Você é um tolo! – exclamou Amalrus – Está em nossas mãos e podemos tirar-lhe a coroa e a vida quando quisermos!

A resposta de Conan não foi muito majestosa, mas típica do homem cuja natureza bárbara não havia sido anulada por sua cultura adotiva. Cuspiu no rosto de Amalrus. O rei de Ophir levantou-se de um salto e lançou um grito furioso, ao mesmo tempo em que buscava sua espada. Logo, empunhou seu sabre e correu em direção ao cimério, mas nesse momento Tsotha interveio.

- Espere, Majestade; este homem é meu prisioneiro.

- Afaste-se, feiticeiro! – gritou Amalrus, furioso ao ver o brilho arrogante nos olhos do cimério.

- Para trás, eu disse! – rugiu Tsotha, irado.

Logo tirou a mão de sua manga e lançou uma chuva de pó ao rosto crispado do ophiriano. Amalrus deu um grito e recuou, cobrindo os olhos com as mãos. Sua espada caiu ao chão e ele desabou sobre o divã, enquanto os guardas kothianos observavam a cena, impassíveis, e o rei Strabonus bebia de um gole o conteúdo de sua taça de vinho, com mãos trêmulas. Amalrus abaixou as mãos e sacudiu a cabeça violentamente.

- Fiquei cego. – grunhiu – O que você fez, bruxo maldito?

- Foi apenas um gesto para que você soubesse quem manda aqui. – respondeu Tsotha, fazendo cair sua máscara de dignidade, revelando sua verdadeira personalidade maligna – Strabonus aprendeu a lição... agora você aprenderá a sua. O que lancei nos seus olhos não era mais que um pó, que encontrei numa tumba stígia... e, se eu voltar a fazê-lo, ficará cego pelo resto de sua vida.

Amalrus encolheu os ombros, esboçou um sorriso e tomou de novo a taça de vinho para dissipar seu medo e ira. Como bom diplomático que era, recuperou rapidamente a compostura. Tsotha voltou-se para Conan, que havia se mantido imperturbável durante toda a cena. Diante de um gesto do feiticeiro, os negros pegaram o prisioneiro e puseram-no atrás de Tsotha, que ia à frente do grupo, e que saiu do salão, entrando num sinuoso corredor, com mosaicos no chão e paredes adornadas com tecidos dourados e prateados, de cujo teto abobadado pendiam turíbulos que enchiam o corredor de nuvens perfumadas. Logo entraram num corredor mais estreito, com paredes de jade e azeviche, de aspecto sinistro e sombrio, que terminava numa porta de cobre adornada por uma caveira humana. Na porta, havia um homem gordo e repelente com um molho de chaves pendurado no cinto; tratava-se do principal eunuco de Tsotha, chamado Shukeli, sobre quem contavam-se histórias terríveis. Aquele homem havia substituído as paixões humanas normais por uma paixão bestial pela tortura.

A porta de cobre levava a uma escada estreita, que parecia afundar no próprio interior da montanha sobre a qual a cidadela fora construída. O grupo desceu pelas escadas e parou em frente a uma imponente porta de ferro. Evidentemente, esta não levava ao ar livre, embora fosse construída para suportar o peso de um aríete. Shukeli a abriu e, quando o fez, Conan notou a inquietação dos gigantes negros que guardavam-na; Shukeli também parecia um tanto nervoso ao observar a escuridão que havia do outro lado. Além da enorme porta, havia outra barreira, feita de grandes barras de aço. Esta estava fechada por uma engenhosa tranca, que só podia ser acionada do lado de fora. Ao colocá-la em funcionamento, a grade introduzia-se na parede. Os homens entraram num extenso corredor, cujo chão, paredes e teto abobadado pareciam esculpidos na rocha sólida. Conan se deu conta de que estava muito abaixo do nível do solo. A escuridão comprimia-se contra as tochas dos guardas, como se fosse uma coisa viva e sensível.

Prenderam o rei numa argola que havia no muro de pedra. Logo puseram uma tocha, num nicho acima da cabeça, de modo que se viu rodeado por um tênue semicírculo de luz. Os negros queriam partir; sussurravam entre eles e olhavam aterrorizados a escuridão. Tsotha disse-lhes para saírem e eles se apressaram em cumprir a ordem, como se temessem que a escuridão pudesse assumir uma forma palpável e atacá-los pelas costas. Tsotha virou-se para Conan, e o rei percebeu, com certo desassossego, que os olhos do feiticeiro brilhavam na penumbra, e que seus dentes pareciam as presas de um lobo, que resplandeciam com branco fulgor em meio às sombras.

- Adeus, bárbaro. – disse o feiticeiro em tom de zombaria – Preciso ir a Shamar, para presenciar o cerco. Dentro de dez dias, estarei no seu palácio, em Tamar, com meus guerreiros. Quer que eu diga algo às suas mulheres antes de eu arrancar suas delicadas peles, com as quais farei pergaminhos onde registrarei os triunfos de Tsotha-Lanti?

Conan respondeu com um insulto cimério que faria estourar os ouvidos de um homem comum, mas Tsotha esboçou um sorriso e saiu. Conan viu sua figura de abutre através das grossas barras, enquanto ele punha a grade em seu lugar, e logo ouviu o ruído da porta exterior ao fechar-se. Depois reinou o silêncio


3)

O Leão vagava pelas salas do inferno; por seu caminho cruzavam as lúgubres sombras de muitas formas ignotas... de Monstros com as goelas abertas. A escuridão tremeu com gritos e uivos quando o Leão vagou pelas salas do inferno.
(Balada antiga)


O rei Conan verificou a argola e a corrente que o prendiam. Tinha os membros livres, mas sabia que não podia romper os grilhões. Os elos da corrente eram da grossura de um dedo, e estavam unidos a uma faixa de aço que haviam colocado ao redor de sua cintura. O peso dos grilhões teria matado um homem mais fraco que ele. Os elos que sustentavam a faixa e a corrente eram tão grossos que nem sequer um martelo pesado conseguiria amassá-los. A argola atravessava a parede e estava presa do outro lado.

Conan praguejou, e sentiu medo ao contemplar a escuridão que havia ao redor do semicírculo de luz. Os temores supersticiosos, típicos dos bárbaros, que abrigava na alma, não haviam sido erradicados pela lógica da civilização. Sua primitiva imaginação enchia a escuridão subterrânea de figuras sinistras. Além disso, a razão lhe dizia que não haviam levado-o ali simplesmente para mantê-lo preso. Seus captores não tinham razão alguma para perdoar-lhe a vida. Haviam levado-o àquele buraco para que morresse lá. Amaldiçoou a si mesmo por ter recusado sua oferta, mesmo que sua obstinada hombridade sentisse repugnância diante da idéia, e ele sabia que se o colocassem novamente na mesma situação e tivessem dado outra oportunidade, sua resposta seria a mesma. Não venderia seus súditos a um carniceiro. E, no entanto, só havia pensado em si mesmo ao conquistar o reino. É assim que funciona, às vezes, o instinto de responsabilidade de um soberano, mesmo que se trate de um saqueador com as mãos manchadas de sangue.

Conan lembrou da última e abominável ameaça de Tsotha e grunhiu, furioso, pois sabia que não se tratava apenas de uma fanfarrice. Para o feiticeiro, os seres humanos tinham o mesmo valor que um inseto para um naturalista. Pensou nas suaves mãos brancas que haviam acariciado-o, nos lábios vermelhos que haviam beijado os seus, nos alvos e delicados seios que tremeram sob seus ferozes beijos quentes, e cuja pele, branca como o marfim e rosada como uma pétala fresca, seria arrancada... Dos lábios de Conan, brotou um lamento furioso, tão aterrador e inumano que, se alguém o tivesse escutado, assombraria-se com horror, por vir de uma garganta humana.

Seus próprios ecos causaram-lhe um estremecimento e fizeram-no pensar, mais uma vez, em sua situação. O rei observou atemorizado a escuridão que o cercava e pensou nas histórias que ouvira sobre a cruel necromancia de Tsotha. Sentiu um rio gelado percorrer-lhe a espinha dorsal, e deu-se conta de que aquela devia ser a Sala dos Horrores da qual falava a lenda. Aqueles eram os calabouços e túneis nos quais Tsotha levava a cabo seus horríveis experimentos com seres humanos, experimentos bestiais e diabólicos nos quais arriscava, como um blasfemo, os elementos básicos da própria vida, diante de todos. Os rumores diziam que o poeta louco, Rinaldo, havia visitado aqueles fossos e que o feiticeiro havia mostrado os horrores que realizava, e que as monstruosidades que se mencionavam no terrível poema A Canção do Fosso não eram simples fantasias de uma mente enferma. A cabeça do poeta fora despedaçada, na noite em que o rei lutava para salvar sua vida dos assassinos que o menestrel louco havia conduzido ao palácio, mas as palavras da sinistra balada ainda ressoavam nos ouvidos do rei, enquanto ele se encontrava ali, acorrentado.

Só a idéia dos horrores aos quais aludia a balada, gelava-lhe o sangue. Pareceu ouvir um ruído, e todo o corpo ficou tenso, em atitude alerta. Uma mão gelada tocou-lhe a espinha dorsal. Tratava-se do inconfundível som de escamas deslizando suavemente sobre a pedra. Um suor frio encharcou-lhe o rosto quando vislumbrou, além do semicírculo de luz, uma forma vaga, enorme e espantosa, a qual não via nitidamente. Se aproximava dele balançando, e uns olhos amarelos cravaram-se nos seus. Lentamente, a coisa enorme e asquerosa com cabeça em forma de cunha tomou forma diante de seus olhos arregalados; da escuridão surgiram uns anéis cobertos de escamas, e logo percebeu o réptil mais asqueroso que vira em sua vida.

Era uma serpente enorme, com 24 metros de comprimento, cuja cabeça era maior que a de um cavalo. Suas escamas brilhavam com fulgor gelado na penumbra. Certamente, tratava-se de um réptil nascido na escuridão, mas seus olhos eram malignos e enxergavam claramente. Agitou seus gigantescos anéis diante do prisioneiro, e a enorme cabeça agitou-se a alguns centímetros de seu rosto. Sua língua bifurcada quase tocou-lhe os lábios, e o odor fétido lhe provocava náuseas. Os enormes olhos amarelos lançavam faíscas ardentes, e Conan os mirou com a expressão de um lobo encurralado. Lutou desesperadamente contra o louco impulso de agarrar-lhe o pescoço com as mãos e destroçá-lo. Sendo muito mais forte que um homem civilizado, havia quebrado o pescoço de uma serpente píton numa luta demoníaca na costa stígia, em sua época de corsário. Mas este réptil era venenoso, e tinha enormes presas de 30 centímetros de comprimento, curvadas como cimitarras. Destas, pingava um líquido incolor, o qual ele soube instintivamente que significava a morte. Poderia quebrar-lhe o crânio com os punhos, mas sabia que, se fizesse o menor movimento, o monstro o atacaria com a rapidez de um raio.

Não foi por um processo de raciocínio lógico que Conan ficou imóvel, porque a razão poderia ter lhe dito – já que estava condenado de qualquer modo – que incitasse a serpente a atacá-lo para acabar de uma vez. Foi o cego e sombrio instinto de preservação que fê-lo permanecer rígido como uma estátua de ferro. O enorme réptil se erguia, e a cabeça encontrava-se muito acima da sua, enquanto o monstro observava a tocha. Uma gota de veneno lhe caiu sobre a perna nua, e sentiu como se uma adaga incandescente tivesse cravado-se na sua carne. Relâmpagos vermelhos de dor sacudiram o cérebro de Conan, mas este continuou imóvel; não moveu um só músculo, nem piscou, apesar da dor que lhe causava o ferimento, que deixou-lhe uma cicatriz para o resto de seus dias.

A serpente se aproximou dele, como se tentasse certificar-se de que a figura que havia ali, imóvel como um morto, estava viva. Então, súbita e inesperadamente, a porta exterior soou com um ruído metálico. A serpente, como todas as de sua espécie, afastou-se com incrível rapidez, apesar de seu tamanho, e desapareceu pelo corredor.

A porta se abriu e a grade estava corrida; viu-se uma enorme silhueta escura, destacada contra o brilho das tochas. A figura entrou e, quando aproximou-se, Conan viu que se tratava de um negro gigantesco, nu, que trazia uma enorme espada numa mão e um molho de chaves na outra. O negro falava no dialeto da costa, e Conan respondeu na mesma língua; havia aprendido-a em sua época de corsário nas costas de Kush.

- Há muito que eu queria encontrá-lo, Amra. – disse-lhe o negro, chamando-o pelo nome com o qual conheciam-no os kushitas de sua época de pirata... Amra, o Leão.

O escravo esboçou um sorriso quase animal, mostrando seus dentes brancos. Os olhos brilharam-lhe com fulgor avermelhado à luz das tochas.

- Me arrisquei muito pra vir vê-lo! Veja! As chaves dos seus grilhões! Roubei-as de Shukeli. O que me dará por elas? – perguntou, agitando as chaves diante dos olhos de Conan.

- Dez mil lunas de ouro. – respondeu rapidamente o rei, com uma esperança no coração.

- Não é o bastante! – respondeu o negro, gritando, com feroz alegria em seu rosto de ébano – Não é o bastante, tendo em conta o risco que corro. Tsotha é capaz de enviar seus monstros para que me devorem, e se Shukeli se der conta de que roubei-lhe as chaves, me pendurará do... bom, o que me dá?

- Quinze mil lunas e um palácio em Poitain. – ofereceu o rei.

O negro lançou um grito e pôs-se a dar saltos de alegria.

- Mais! – pediu a gritos – Ofereça mais! O que me dará?

- Cão negro! – disse Conan, com um véu de fúria nos olhos – Se eu estivesse livre, te quebraria o pescoço! Por acaso Shukeli enviou-lhe para cá, pra que você zombasse de mim?

- Shukeli não sabe nada disto, homem branco. – respondeu o negro, estirando seu grosso pescoço para olhar fixamente nos olhos de Conan – Lhe conheço há muito tempo, quando eu era chefe de um povo livre, antes que os stígios me vendessem a esses povos do norte. Não se lembra do saque de Abombi, quando seus lobos do mar nos atacaram? Você matou um chefe diante do palácio do rei Ajaga, e o outro chefe fugiu. Meu irmão foi o que morreu, e eu fugi. Exijo que pague com sangue, Amra!

- Se me libertar, lhe darei seu peso em ouro. – disse Conan, com um grunhido.

Os olhos cintilaram, e os dentes brancos brilharam como os de um lobo, à luz das tochas.

- Sim, cão branco, você é como todos os de sua raça, mas, para um negro, o ouro jamais pode substituir o sangue. O preço que exijo é... sua cabeça!

O eco destas últimas palavras, pronunciadas a gritos, ressoou no calabouço. Conan ficou tenso, apertando inconscientemente os grilhões, com uma sensação de repugnância diante da idéia de morrer como uma ovelha. Naquele exato momento, viu uma vaga sombra espantosa, movendo-se na escuridão.

- Tsotha jamais saberá! – disse o negro, rindo como um demônio, demasiadamente cego de triunfo para se dar conta do que estava ocorrendo a seu redor, demasiadamente cego de ódio para notar que a Morte balançava às suas costas – Ele não entrará neste fosso até que os demônios tenham destroçado seus ossos. Terei sua cabeça, Amra!

O negro separou as pernas, que pareciam colunas de ébano, e empunhou sua enorme espada com as duas mãos. Naquele momento, a gigantesca sombra que havia às suas costas deu um salto, e a cabeça em forma de cunha golpeou com uma força tão grande que o impacto ressoou em todos os túneis. Da boca do negro não surgiu um único som, apesar dos lábios grossos se afrouxarem de dor. Conan viu que a vida escapava pelos grandes olhos negros, com a mesma rapidez que se apaga uma vela. O enorme corpo do negro caiu ao chão, e a coisa o envolveu com seus anéis brilhantes. Pouco depois, Conan ouviu o ruído de ossos quebrados. Então, algo fez seu coração bater aceleradamente. A espada e as chaves caíram das mãos do negro e foram parar quase aos pés do cimério.

Conan tentou se abaixar para recolhê-las, mas a corrente era curta demais. Quase afogado pelas batidas de seu coração, estirou um pé e agarrou as chaves com os dedos; depois levantou o pé e pegou-as com a mão, abafando com dificuldade um grito de alegria feroz que aparecia instintivamente em seus lábios.

Depois de manusear rapidamente as fechaduras, ficou livre. Recolheu a espada do chão e olhou a seu redor, onde não havia mais do que escuridão. Conan dirigiu-se para a porta aberta. Deu alguns passos e chegou à soleira. Uma risada aguda ressoava no fosso, e a grade voltou a seu lugar de uma vez. Através desta, viu um rosto demoníaco... Shukeli, o eunuco, havia seguido o rastro das chaves que lhe foram roubadas. Certamente, não viu a espada que o prisioneiro tinha na mão. Conan soltou uma blasfêmia e atacou com a rapidez de uma cobra; a enorme espada passou entre as barras, e risada de Shukeli transformou-se num grito de agonia. O obeso eunuco inclinou-se para diante, como que fazendo uma reverência a seu assassino, e caiu ao chão com as mãos gorduchas apertando as vísceras que saíam-lhe do abdômen.

Conan grunhiu com selvagem satisfação, mas continuava prisioneiro. As chaves não serviriam para abrir a fechadura, que só podia ser acionada do lado de fora. Tocou as barras e viu que eram duras como a espada; se tentasse cortá-las, só conseguiria destruir sua única arma. Mas notou umas marcas dentadas nas grades de ferro, como de uns dentes extraordinários, e perguntou-se, com um estremecimento, que monstros terríveis haviam tentado forçar aquelas barras. Só podia fazer uma coisa: buscar outra saída. Pegou uma tocha e avançou pelo corredor, de espada em punho. Não viu nenhum rastro da serpente, nem de sua vítima, a não ser uma enorme mancha de sangue no chão de pedra.

O cimério avançou sem fazer o menor ruído na escuridão, moderada apenas pela luz oscilante de sua tocha. Caminhou com cuidado, observando cuidadosamente o chão, para evitar cair em algum poço. De repente, ouviu o pranto dilacerante de uma mulher. Acreditou que se tratasse de outra das vítimas de Tsotha. Amaldiçoou o feiticeiro mais uma vez e voltou para um túnel menor e mais úmido, seguindo o som que chegava a seus ouvidos.

Este se fez cada vez mais nítido à medida que avançava. Levantou a tocha e viu uma silhueta nas sombras. Chegou mais perto e parou de repente, horrorizado ao ver a massa. Parecia um polvo, mas seus tentáculos disformes eram curtos demais, e seu corpo como uma gelatina repugnante. Por cima da massa gelatinosa, despontava uma cabeça semelhante à de um sapo, e ficou petrificado de asco e de horror quando se deu conta de que o pranto vinha daqueles lábios repugnantes. O ruído transformou-se numa risada abominável, quando os enormes olhos do monstro posaram nele, e aproximou-se movendo o corpo trêmulo.

Conan recuou e fugiu pelo túnel, não confiando em sua espada. A coisa poderia ser feita de material terreno, mas se estremecia ao vê-la, e duvidava que sua espada pudesse danificá-la. Durante um breve espaço de tempo, ouviu a coisa agitar-se às suas costas e dar uma risada terrível. O aspecto inconfundivelmente humano de seu riso deixava-o louco. Era a mesma risada que ouvia dos grossos lábios das mulheres lascivas de Shadizar, a Maldita, quando as moças cativas eram despidas no leilão público. Por meio de que artes infernais Tsotha deu vida àquele ser antinatural? Conan tinha a estranha sensação de estar vendo uma blasfêmia contra as leis eternas da Natureza.

Correu em direção ao corredor principal, mas, antes de chegar a ele, cruzou um cômodo quadrado, na encruzilhada de dois túneis. Quando chegou à sala, viu que havia um pequeno vulto no chão; então, antes que pudesse fugir, seu pé tocou em algo macio, e caiu de bruços ao solo. A tocha escapuliu de sua mão, e apagou-se ao tocar o chão de pedra. Conan levantou-se, meio atordoado, e tateou na escuridão. Seu senso de orientação estava confuso, e sentia-se incapaz de determinar em qual direção estava o corredor principal. Não procurou a tocha, já que não havia meio de voltar a acendê-la. Suas mãos encontraram a boca de vários túneis, e escolheu um ao acaso. Nunca soube por quanto tempo caminhou pelo túnel, mas, subitamente, seus sentidos bárbaros avisaram-lhe do perigo, e parou repentinamente.

Invadiu-lhe uma sensação semelhante à que havia experimentado uma vez, diante de um profundo precipício na mais absoluta escuridão. Aproximou-se engatinhando da borda do abismo e roçou, com a mão estendida, o contorno do poço, em cujo interior o chão do túnel parecia submergir abruptamente. As paredes eram viscosas e úmidas ao tato, e pareciam descer às profundezas. Alongando um braço nas trevas, mal conseguiu tocar, com a ponta da espada, a beirada oposta. Poderia cruzá-lo em um pulo, mas não tinha sentido fazê-lo. Havia errado de túnel, e a galeria principal estava às suas costas.

Enquanto estes raciocínios ocupavam sua mente, uma ligeira corrente de ar, um vento indefinido vindo do interior do poço, agitou-lhe a cabeleira. Tentou convencer-se de que aquele poço, de algum modo, entrava em contato com o mundo exterior, mas seu instinto lhe dizia que algo antinatural estava ocorrendo. Não estava simplesmente na parte interna de uma montanha; estava ainda mais abaixo, bem abaixo das ruas da cidade. Como era possível, portanto, que um vento de fora submergisse nas entranhas da terra e soprasse depois para cima? Uma tênue vibração acompanhava a misteriosa corrente, como o bater de tambores longínquos. O rei da Aquilônia sentiu um calafrio.

Lançou-se para trás, erguendo-se, e, ao fazê-lo, algo emergiu de dentro das águas do poço. Mas Conan ignorava o que fosse. Não conseguiu ver nada na escuridão, mas uma estranha presença se fazia sentir com força indubitável... uma inteligência invisível e intangível que pairava de forma maligna no ambiente. Deu meia-volta e retornou pelo mesmo caminho que havia percorrido ao vir. À distância, se via um tênue brilho vermelho, e dirigiu-se a ele. Quando ainda o acreditava distante, bateu a cabeça numa parede sólida, e ali, a seus pés, encontrou a origem do brilho: sua própria tocha, com a chama apagada e um rescaldo avermelhado na ponta. Levantando-a cuidadosamente do chão, soprou, e a chama brotou de novo. Um suspiro de alívio escapou-lhe dos lábios. Estava novamente na sala onde os dois túneis se cruzavam, e voltava a orientar-se. Depois de localizar o túnel pelo qual dirigira-se à passagem principal, encaminhou-se para lá e, ao fazê-lo, a chama oscilou violentamente, como se uns lábios invisíveis tivessem soprado sobre ela. Sentiu novamente uma presença e levantou a tocha para iluminar toda a moradia. Não viu nada e, no entanto, percebeu que algo invisível e incorpóreo flutuava no ar, deslizando como uma lesma e murmurando crueldades que, embora inaudíveis, ele percebia de forma instintiva. Agitou furiosamente a espada e sentiu como se houvesse rasgado teias de aranha. Um gélido horror invadiu seus sentidos e ele fugiu do túnel, enquanto sentia um hálito fétido e quente em suas costas nuas. Ao adentrar a passagem principal, já não percebeu presença alguma, fosse visível ou invisível. Esperava ver-se atacado, a qualquer momento, por seres diabólicos que emergissem da escuridão, com poderosas garras e dentes afiados. Nos túneis não reinava o silêncio. Das entranhas da terra, partiam em todas as direções sons que pareciam vir de um mundo de loucos. Ouviam-se risinhos maliciosos, gritos de demoníaco regozijo, uivos de dar calafrios e, numa ocasião, a inconfundível gargalhada de uma hiena que degenerava numa série de palavrões e blasfêmias. Ouviu passos furtivos e, nas entradas dos túneis, percebeu fugazmente o ir e vir de silhuetas indefinidas, monstruosas e disformes.

Era como se tivesse descido ao inferno... a um inferno resultado da mente de Tsotha-Lanti. Mas aqueles seres indefinidos não entraram na passagem principal, embora Conan percebesse, com toda clareza, o ávido som de sucção de lábios salivantes e o fulgor de olhos famintos. E, em seguida, soube a quem pertenciam. O som de algo que deslizava às suas costas deixou-o petrificado, e ele adentrou de um salto as trevas de um túnel lateral, apagando, ao mesmo tempo, a tocha. Mais além, na galeria, ouviu à grande serpente, que arrastava-se pesadamente devido a seu recente e horripilante festim. Bem próximo a ele, escutou o choramingar de algo que fugia atemorizado entre as sombras. Era evidente que a galeria principal constituía o domínio de caça da enorme serpente, e que os demais monstros respeitavam seu terreno. Para Conan, a serpente era um horror menor, comparado com o resto dos horrores que espreitavam-no; quase sentiu um sinal de simpatia, ao lembrar da coisa gotejante e viscosa que havia emergido do poço. Ao menos era algo terreno; era a morte rastejante, mas só ameaçava com o extermínio físico, e não psíquico e espiritual, como os outros horrores.

Uma vez que o monstro atravessava a galeria, o cimério prosseguiu seu caminho, o qual considerava seguramente distante, soprando a tocha para que a chama se reavivasse. Mal havia percorrido um trecho, escutou um gemido quase inaudível, que parecia vir da boca negra de um túnel próximo. Embora os instintos lhe indicassem precaução, sua curiosidade fê-lo dirigir-se ao túnel, mantendo no alto a tocha, que já não era mais que um pequeno toco. Estava preparado para enfrentar qualquer coisa, mas a cena que apareceu diante de seus olhos deixou-o boquiaberto.

Diante dele, estendia-se uma ampla moradia, da qual um dos extremos fora transformado em jaula, através de uma série de barras que, a pouca distância umas das outras e presas entre o chão e o teto, encontravam-se seguramente fixas no chão de pedra. Em seu interior jazia uma figura, e Conan pôde ver, à medida que se aproximava, que tratava-se de um homem – ou da réplica exata de um homem –, atado com os aros de uma densa parreira que parecia brotar da sólida pedra do chão. Seus galhos estavam recobertos de folhas estranhamente pontiagudas, e de uma profusão de botões intensamente vermelhos... não o vermelho resplandecente de pétalas naturais, mas uma cor rubra lívida e antinatural, uma espécie de perversão do mundo vegetal. Seus galhos retorcidos enroscavam-se em torno do corpo nu e dos membros do homem, como que abraçando e cobrindo de beijos ansiosos a sua carne intumescida. Um grande botão de flor cobria-lhe a boca. De seus lábios entreabertos surgiu um gemido natural e animal; a cabeça agitava-se como que presa de uma dor insuportável, e os olhos miravam Conan fixamente. Mas não havia sinais de inteligência neles; seu olhar era vítreo e vazio como o de um idiota.

Repentinamente, o botão rubro se abriu e suas pétalas estatelaram-se contra os lábios doloridos do homem. Os membros do infeliz se retorceram de angústia; os aros da planta tremiam como que em êxtase, vibrando em toda sua extensão. Ondas de matizes mutáveis faziam sua cor tornar-se mais escura, mais maligna.

Conan não entendia o espetáculo que apresentava-se diante de seus olhos, mas sabia que contemplava algum tipo de horror. Homem ou demônio, o sofrimento do cativo comoveu seu coração impetuoso. Procurou o meio de entrar e encontrou uma pequena porta entre as grades, fechada com um pesado cadeado. Abriu-a com uma das chaves que trazia e entrou na jaula. Naquele momento, as pétalas dos botões pálidos estenderam-se como a cabeça de uma cobra, os aros se contraíram ameaçadoramente e a planta inteira se agitou e subiu até ele. Não se tratava do cego crescimento da vegetação natural. Conan percebeu uma inteligência perversa e misteriosa; a planta podia vê-lo e seu ódio se sentia, como que emanado em ondas quase palpáveis. Aproximando-se com cautela, mirou as raízes da planta: um talo repulsivamente flexível e mais grosso que sua própria coxa. Enquanto as longas pétalas se dobravam em sua direção com um murmúrio, Conan brandiu a espada e, de um só talho, cortou o tronco. Logo, o infeliz se viu violentamente lançado para um lado, enquanto a grande parreira se agitava e emaranhava-se como uma serpente cuja cabeça fora cortada, girando até transformar-se numa bola disforme. As pétalas se debatiam e retorciam violentamente, as folhas vibravam como castanholas, e as pétalas abriam e fechavam continuamente; finalmente, os galhos se estenderam, flácidos, e as cores vívidas empalideceram e ficaram opacas, enquanto um líquido branco e malcheiroso gotejava do talo decepado.

Conan contemplava, fascinado, o espetáculo, quando repentinamente um ruído às suas costas o fez dar meia-volta com a espada erguida. O homem recém-libertado estava de pé, observando-o. Conan o olhou, estupefato. Seus olhos já não pareciam meras conchas vazias e sem expressão num rosto esgotado. Escuros e meditabundos, resplandeciam de vida e inteligência, e a expressão de imbecilidade havia desaparecido de seu rosto, como se fosse uma máscara. Tinha a cabeça estreita e bem formada, e a fronte alta e majestosa. O porte do homem era aristocrático, o que fazia-se evidente, tanto em sua figura alta, magra e esbelta, quanto em suas mãos e pés de reduzido tamanho. As primeiras palavras que disse foram estranhas e surpreendentes.

- Em que ano estamos? – perguntou, falando em Kothiano.

- Hoje é o décimo dia do mês Yuluk, do ano da Gazela. – respondeu Conan.

- Yagkoolan Ishtar! – murmurou o estrangeiro – Dez anos! – Passou a mão pela testa e sacudiu a cabeça, como que para livrar seu cérebro de teias de aranhas – Ainda vejo tudo confuso. Depois de um vazio de dez anos, não se pode esperar que a mente comece a funcionar imediatamente com clareza. Quem é você?

- Conan, no passado, da Ciméria, e hoje rei da Aquilônia.

Os olhos do outro indicaram surpresa.

- Fala sério? E Namedides?

- Estrangulei-o em seu próprio trono, na noite em que tomei a cidade real. – respondeu Conan.

Uma certa ingenuidade na resposta fez com que os lábios do estranho se contraíssem.

- Perdão, Majestade. Eu deveria tê-lo agradecido o serviço que me prestou. Sou como um homem que desperta repentinamente de um sono mais profundo que a morte, e cheio de pesadelos mais terríveis que o próprio Inferno; mas sei que me libertou. Diga-me, por que cortou o talo da planta Yothga, em vez de arrancá-la pela raiz?

- Porque aprendi, há muito tempo, a evitar o contato de minha carne com aquilo que meus sentidos não compreendem. – respondeu o cimério.

- Fizeste bem. – acrescentou o estrangeiro – Se conseguisse arrancá-la, encontraria, agarradas às suas raízes, coisas que nem mesmo sua espada conseguiria vencer. As raízes de Yothga brotam do próprio Inferno.

- Mas, quem é você?

- O povo me chamava Pelias.

- Como! – gritou o rei – Pelias, o bruxo; o rival de Tsotha-Lanti, que desapareceu da terra há dez anos?

- Não exatamente da terra. – respondeu Pelias, com sorriso irônico – Tsotha preferiu me manter vivo, com grilhões mais firmes que o ferro oxidado. Me trancou aqui, junto com esta planta diabólica, cujas sementes viajaram pelo cosmo negro de Yag, O Maldito, para não encontrar terreno mais fértil que a corrupção, infestada de vermes, dos solos do Inferno.

“Eu não conseguia lembrar de minha magia, nem das palavras e símbolos de meu poder, pois esta coisa maldita me abraçava e sorvia meu espírito com suas carícias repugnantes. Sugava o conteúdo de minha mente dia e noite, deixando meu cérebro tão vazio quanto uma jarra de vinho quebrada. Dez anos! Que Ishtar nos proteja!”.

Conan não soube o que responder e continuou segurando o pequeno toco da tocha, com a espada baixa. Era evidente que o homem estava louco e, no entanto, não havia rastros de loucura nos estranhos olhos escuros que repousavam tão seguramente sobre ele.

- Diga-me, o bruxo negro está em Khorshemish? Mas não, não precisa responder. Meus poderes começam a despertar de sua letargia, e percebo em sua mente uma grande batalha e um rei aprisionado à traição. E vejo Tsotha-Lanti, cavalgando sem descanso para o Tibor com Strabonus e o rei de Ophir. Melhor. Minhas artes estão recém-despertas, ainda frágeis demais para enfrentar tão rápido a Tsotha. Preciso de tempo para recuperar as forças e voltar a utilizar meus poderes. Vamos sair deste inferno.

Conan fez soar seu molho de chaves com desalento.

- A grade da porta exterior está fechada com uma tranca que só pode ser acionada do lado de fora. Sabe se há outra saída nestes túneis?

- Só uma, que nenhum de nós ousaria usar, ao ver que conduz pra baixo, e não pra cima. – disse Pelias, rindo – Mas não importa. Vamos ver essa grade.

Dirigiu-se à galeria, com os passos inseguros de que não utilizara as pernas durante muito tempo, mas, pouco a pouco, seus membros foram recuperando a firmeza. Caminhando atrás dele, Conan disse, inquieto:

- Há uma maldita e gigantesca serpente, arrastando-se por este túnel. Andemos com cuidado, a não ser que nos metamos sua própria boca.

- Lembro muito bem dela – respondeu Pelias, com tristeza –, sobretudo tendo em conta que fui obrigado a contemplar como ela engolia dez de meus acólitos, que lhe foram servidos como banquete. É Satha, a Velha, o animal favorito de Tsotha.

- Tsotha escavou estes abismos sem outra finalidade senão abrigar seus malditos monstros? – perguntou Conan.

- Ele não os escavou. Quando a cidade foi fundada, há três mil anos, já existiam, nesta montanha e em seu redor, as ruínas de uma cidade antiga. O rei Khossus V, seu fundador, edificou um palácio na montanha e, ao construir as adegas e os porões, chegou até uma porta murada. Depois de derrubá-la, descobriu estas passagens, tal e qual nós vemos agora. Mas seu grão-vizir encontrou um fim tão terrível neles, que Khossus, tomado pelo terror, mandou fechar a entrada de novo. Disse que o vizir caiu num poço, mas mandou preencher as adegas, e mais tarde ele mesmo abandonou o palácio. Construiu outro nos arredores da cidade, que também abandonou aterrorizado ao descobrir, numa manhã, um mofo negro espalhado pelo chão de mármore de seus aposentos.

“Depois partiu com toda a corte à parte oriental do reino e mandou erguer uma nova cidade. O palácio da montanha deixou de ser utilizado e logo transformou-se em ruínas. Quando Akkuto I restabeleceu as glórias perdidas de Khorshemish, ele construiu uma fortaleza aqui. A Tsotha-Lanti foi encomendada a tarefa de construir a cidadela escarlate e abrir, outra vez, o caminho para essas passagens. Qualquer que tenha sido o destino do grão-vizir de Khossus, Tsotha o evitou. Não caiu em nenhum poço, embora tenha descido a um, do qual saiu com uma estranha expressão nos olhos, a qual nunca o abandonou.

“Eu já vi esse poço, mas nunca tentei buscar a sabedoria que abriga. Sou bruxo, e muito mais velho do que os homens imaginam, mas também sou humano. No que diz respeito a Tsotha, dizem que uma dançarina de Shadizar dormiu perto demais das ruínas pré-humanas da montanha de Dagoth e despertou entre os braços de um demônio negro; daquela união ímpia, nasceu um maldito híbrido a quem os homens chamam Tsotha-Lanti”.

De repente, Conan gritou e lançou-se para trás, puxando seu companheiro. Diante deles, erguia-se a silhueta branca e resplandecente de Satha, e seus olhos brilhavam com um ódio perpétuo. Conan contraiu todo o corpo para tentar um ataque desesperado... arremessar o lenho ardente contra aquele rosto diabólico e acertar-lhe um golpe certeiro com a espada. Mas a serpente não o fitava. Por cima de seu ombro, parecia contemplar o homem chamado Pelias, que permanecia com os braços cruzados, sorrindo. E, nos enormes olhos frios e amarelos da besta, o ódio foi dando lugar a um intenso pavor... foi a única vez em sua vida que Conan viu aquela expressão nos olhos de um réptil. Deixando atrás de si um redemoinho como o que é produzido por um forte vendaval, a grande serpente desapareceu.

- O que ela viu para se assustar tanto? – perguntou Conan, olhando inquietamente o seu companheiro.

- Os seres com escamas vêem coisas que escapam aos olhos dos mortais. – respondeu Pelias enigmaticamente – Você vê meu disfarce carnal, mas ela viu minha alma nua.

Um calafrio percorreu as costas de Conan, e ele se perguntou se, depois de tudo, Pelias seria um homem ou, simplesmente, outro demônio dos abismos, com máscara humana. Cogitou a conveniência de trespassar com a espada o corpo de seu companheiro sem maiores hesitações. Mas, enquanto o pensava, chegaram à grade de ferro, que destacava-se contra o brilho das tochas que havia do outro lado. O corpo de Shukeli ainda permanecia despencado contra as barras e coberto de sangue escarlate.

Pelias riu e Conan escutou sua gargalhada com desagrado.

- Pelos quadris ebúrneos de Ishtar! Quem é nosso porteiro? Ninguém mais, ninguém menos que o próprio Shukeli, o nobre Shukeli, que pendurou meus homens pelos pés e arrancou-lhes a pele a tiras, enquanto soltava grandes gargalhadas! Está dormindo, Shukeli? Por que está tão rijo? E por que sua barriga gordurosa está aberta de cima a baixo, como a de um porco temperado?

- Está morto. – sussurrou Conan, inquieto ao escutar tão cruéis palavras.

- Vivo ou morto – riu Pelias –, nos abrirá a porta. – E, dando uma vigorosa palmada com as mãos, gritou: – Levante-se, Shukeli! Saia do inferno e levante-se do chão sanguinolento! Abra a porta a seus amos! Levante-se, eu lhe digo!

Um espantoso gemido ressoou nos túneis. Conan sentiu seu corpo coberto de suor frio e os cabelos arrepiados de pânico. O corpo de Shukeli começou a mover-se lentamente, estendendo suas mãos grossas num gesto infantil. A risada impiedosa de Pelias cortava o ar, como um machado de sílex, enquanto o corpo do eunuco tentava endireitar-se, agarrando as barras da grade. Conan observou como seu sangue virava gelo e a medula dos ossos, água; os olhos arregalados de Shukeli estavam vítreos e vazios, e da grande abertura em sua pança, as entranhas lhe pendiam flácidas até o chão. Os pés do eunuco emaranhavam-se nas suas próprias tripas, enquanto mexia no cadeado, movendo-se como um autômato. Quando o cadáver começou a se mover, Conan havia pensado que, devido a algum azar imprevisto, o homem estivesse vivo. Mas não era assim. Estava morto... e o havia estado durante muitas horas.

Pelias atravessou tranqüilamente a porta aberta, e o cimério lançou-se antecipadamente atrás dele, suando muito e fugindo daquela figura horrível que apoiava-se, cambaleante, contra a grade que mantinha aberta. O bruxo passou sem olhar para trás e Conan o seguiu, tomado de horror e náuseas. Não tinha dado uma dúzia de passos, quando uma pancada surda o fez dar meia-volta. O cadáver de Shukeli jazia imóvel aos pés da grade.

- Já cumpriu seu dever e o Inferno o leva de novo. – ressaltou Pelias, satisfeito, fingindo não notar o tremor que sacudia o poderoso corpo de Conan.

Conduziu-o escada abaixo, através da porta de bronze adornada com a caveira que coroava a escadaria. Conan segurava firmemente a espada, esperando a aparição de um tropel de escravos, mas o silêncio reinava na cidadela. Atravessaram o negro corredor e chegaram à galeria que os turíbulos perfumavam com seu perene incenso. Seguiam sem ver ninguém.

- Os escravos e os soldados estão alojados na outra parte da cidadela. – disse Pelias – Esta noite, com seu senhor ausente, estarão se embriagando com vinho ou com suco de lótus.

Conan olhou por uma janela em forma de arco, com parapeito dourado, que se abria sobre um enorme terraço, e gritou uma maldição, surpreso, ao ver o azul-escuro do céu salpicado de estrelas. O sol acabava de nascer quando fora lançado às entranhas da terra, e, naquele momento, passava da meia-noite. Não percebera quanto tempo havia permanecido sob a terra. De repente, sentiu sede e uma fome feroz. Pelias o conduziu a uma moradia, de cúpula dourada e chão de prata, cujas paredes de lápis-lazúli estavam cheias de portas.

Com um suspiro de satisfação, o bruxo despencou sobre um divã de seda.

- Sedas e ouro novamente. – disse, com um suspiro – Tsotha pretende estar além dos prazeres da carne, mas é meio demônio. Eu sou humano, apesar de minhas artes negras. Gosto da comodidade e do bom vinho... e dele Tsotha se valeu para me capturar. Me surpreendeu, indefeso por causa da bebida. Pelo peito de marfim de Ishtar! Enquanto falo dele, o traidor está aqui! Amigo, sirva-me um trago... espere! Esqueci que você é um rei. Eu lhe servirei.

- Ao inferno! – grunhiu Conan, enchendo uma taça de cristal e estendendo-a para Pelias; depois, erguendo a jarra no alto, lançou um bom gole à boca, emendando o suspiro de satisfação do outro.

- O cão sabe o que é um bom vinho. – disse Conan, limpado a boca com as costas da mão – Mas, por Crom, Pelias! Vamos ficar aqui, sentados, até que os soldados acordem e nos cortem o pescoço?

- Não tema. – respondeu Pelias – Quer saber o que houve com Strabonus?

Uma faísca azul brilhou nos olhos de Conan, e o cimério apertou o punho de sua espada com tanta força, que os nós dos dedos embranqueceram.

- Que vontade tenho de me encontrar com ele! – murmurou.

Sobre uma mesa de ébano havia um globo de cristal, grande e resplandecente. Pelias o pegou.

- O cristal de Tsotha. Um brinquedo para crianças, mas útil quando há tempo para ciências maiores. Olhe pra ele, Majestade.

Colocou-o sobre a mesa, diante dos olhos de Conan. O rei viu abismos, envoltos em nuvens, que tornavam-se cada vez mais profundos e extensos. Lentamente, as nuvens e a bruma foram se dissipando para darem lugar a uma paisagem familiar. Via-se grandes planícies que acabavam num rio largo e tortuoso, atrás do qual o plano se transformava numa cordilheira de montanhas com pouca altura. Na margem setentrional do rio, erguia-se uma cidade murada, protegida por um fosso que desembocava em ambas as extremidades do rio.

- Por Crom! – exclamou o cimério – É Shamar! Esses cães sitiaram-na!

Os invasores haviam cruzado o rio, e seu acampamento se distinguia na estreita planície, que separava as montanhas da cidade. Seus guerreiros pululavam em torno das muralhas, e a lua faiscava em suas cotas-de-malha. Das torres choviam flechas e pedras; os soldados recuavam uma e outra vez, e logo voltavam a avançar. Conan soltou uma blasfêmia e, nesse exato momento, a cena mudou. Entre a névoa densa, apareciam os altos minaretes e as cúpulas douradas da cidade de Tamar, onde reinava a desordem. Viu os cavaleiros de Poitain vestidos com armaduras, seus mais leais partidários, a quem havia deixado para cuidarem da cidade. Estavam atravessando as portas, em suas montarias, vaiados e insultados pela multidão que se juntava nas ruas. Viu saques e lutas, homens armados com a insígnia de Pellia no escudo, dominando as torres e passeando pelos mercados. E, por cima de tudo, como um quadro fantasmagórico, contemplou o rosto escuro e triunfante do príncipe Arpello de Pellia. Logo, as imagens se desvaneceram.

- Malditos sejam! – exclamou Conan – Meu povo se volta contra mim, enquanto dou as costas...!

- Não exatamente. – respondeu Pelias – Ouviram dizer que você morreu. Crêem que ninguém pode protegê-los dos inimigos externos, nem da guerra civil. Naturalmente, recorrem ao nobre mais poderoso para evitarem os horrores da anarquia. Não confiam nos homens de Poitain, pois se recordam de outras guerras. E Arpello está próximo, além de ser o príncipe mais poderoso do reino central.

- Quando eu regressar à Aquilônia, ele não será mais que um cadáver decapitado, que apodrecerá no Campo do Traidor. – disse Conan, fazendo os dentes rangerem.

- Mas antes que consiga chegar à capital – lembrou Pelias –, talvez Strabonus o tenha feito. Ou pelo menos seus cavaleiros terão devastado seu reino.

- Certo! – Conan percorria a moradia a passos largos, como um leão enjaulado – Mesmo com o cavalo mais rápido, eu não conseguiria chegar a Shamar antes do meio-dia. E, uma vez ali, eu não faria mais do que morrer junto com meu povo quando a cidade cair, o que ocorrerá em, no máximo, dois dias. De Shamar a Tamar, há cinco jornadas a cavalo, embora se mate os corcéis de exaustão pelo caminho. Antes que eu pudesse chegar à capital e reunir um exército, Strabonus estaria derrubando suas portas. Formar um exército vai ser um verdadeiro inferno... ao ouvirem os rumores de minha morte, meus malditos nobres terão ido aos seus condenados feudos. E, já que o povo expulsou Trocero de Poitain, não há ninguém que possa conter os anseios de Arpello de apoderar-se da coroa... e do tesouro da coroa. Deixará o reino nas mãos de Strabonus em troca de um trono de marionete e, quando Strabonus der as costas, ele tramará uma conspiração. Mas os nobres não o apoiarão, e Strabonus terá uma desculpa para anexar o reino sem mais explicações. Por Crom, Ymir e Set! Se eu tivesse asas para voar como um relâmpago a Tamar...!

Pelias, que continuava sentado, tamborilando a mesa de jade com os dedos, ficou repentinamente em suspenso e levantou-se, como que guiado por um propósito determinado, ao mesmo tempo em que repetia para Conan seguí-lo. O rei obedeceu, submerso em pensamentos melancólicos, e o bruxo o levou para fora da moradia, por umas escadas de mármore e ouro que conduziam ao pináculo da cidadela, a sua torre mais elevada. Era noite, e um forte vento soprava do céu estrelado, agitando os cabelos negros do cimério. À distância, brilhavam as luzes de Khorshemish, aparentemente mais remotas que as próprias estrelas. Pelias se mostrava ensimesmado e reservado, em comunhão com a grandeza fria e inumana dos astros.

- Há criaturas... – disse Pelias – não apenas na terra e nos mares, mas também no ar e nos confins do céu, seres que moram afastados da terra e ignorados pelos homens. No entanto, para aqueles que se atêm às palavras do Senhor e aos Sinais e ao Conhecimento que subjacem nelas, não são malignos nem inacessíveis. Observe e não tema.

Ergueu as mãos para o céu e proferiu um longo e misterioso chamado, que pareceu reverberar interminavelmente no espaço, e logo diminuiu de intensidade e se desvaneceu, mas sem chegar a morrer totalmente, como se tivesse ido alojar-se cada vez mais longe, em algum ponto inimaginável do cosmo. No silêncio que se seguiu, Conan encontrou um repentino bater de asas sobre sua cabeça e recuou assustado, quando uma criatura semelhante a um morcego pousou junto a ele. Pôde ver como seus olhos grandes e calmos contemplavam-no à luz das estrelas. As asas descomunais deviam medir uns doze metros. Mas viu que não era um pássaro nem um morcego.

- Monta e parte. – disse Pelias – Ao amanhecer, estarás em Tamar.

- Por Crom! – exclamou Conan – Será isso tudo um pesadelo, do qual despertarei no meu palácio, em Tamar? E o que será de você? Não posso lhe abandonar à própria sorte, entre tantos inimigos.

- Não se preocupe comigo. – respondeu Pelias – Ao amanhecer, o povo de Khorshemish saberá que tem um novo senhor. Não hesite em aproveitar o que os deuses lhe enviaram. Voltaremos a nos ver na planície de Shamar.

Cheio de dúvidas, Conan montou no lombo rugoso do animal e agarrou-se a seu pescoço arqueado, ainda convencido de estar imerso num fantástico pesadelo. Com grande estampido de suas titânicas asas, a criatura elevou-se pelos ares e o rei sentiu vertigem ao contemplar, a seus pés, as luzes da cidade.


4)

“A mesma espada que mata o rei corta as amarras do império”.
(Provérbio aquiloniano)

As luzes de Tamar ferviam com a multidão que berrava e, irada, agitava os punhos e as lanças enferrujadas. Faltava pouco para amanhecer o segundo dia após a batalha de Shamar, e os acontecimentos manifestavam-se com tanta pressa que confundiam a compreensão. Por meios que só Tsotha-Lanti conhecia, a notícia da morte do rei havia chegado a Tamar seis horas depois da batalha. O resultado foi o caos. Os barões abandonaram a capital do reino a todo galope, para reforçar a defesa de seus castelos contra os atacantes. O forte reino que Conan criara parecia cambalear à beira do desmantelamento, e os plebeus e comerciantes tremiam ante a iminência do regresso ao regime feudal. O povo precisava urgentemente de um rei que os protegesse, tanto de sua própria aristocracia quanto dos inimigos externos. O conde Trocero, a quem Conan havia deixado o comando da cidade, tentava infundir-lhes confiança, mas seu medo irracional lhes fazia lembrar das antigas guerras civis e de como aquele mesmo conde havia sitiado Tamar, quinze anos antes. Pelas ruas gritava-se que Trocero havia traído o rei e que planejava saquear a cidade. Os mercenários começaram a roubar as casas, extorquindo mercadores aos gritos e mulheres aterrorizadas.

Trocero eliminou os saqueadores, espalhou seus cadáveres pelas ruas, fê-los regressar ao seu quartel e aprisionou seus chefes. Mesmo assim, o povo continuava julgando precipitadamente, e gritava insensatamente que o conde havia provocado os distúrbios em benefício próprio.

O príncipe Arpello compareceu diante do desordenado conselho e anunciou que estava disposto a assumir o cargo do governo da cidade, até decidirem quem ia ser o novo rei. Conan não tinha nenhum filho. Enquanto debatiam, seus agentes influenciaram sutilmente o povo, que se agarrava a qualquer retalho de realeza. O conselho escutou a tormenta que havia fora do palácio, onde a multidão rugia, aclamando a Arpello Salvador. E se rendeu.

A princípio, Trocero se negou a acatar a ordem de entregar o comando, mas o povo levantou-se, assobiando e berrando, lançando pedras e imundícies a seus cavaleiros. Vendo a inutilidade de uma batalha campal contra os defensores de Arpello naquelas condições, Trocero atirou o cetro na cara de seu rival, pendurou os chefes dos mercenários na praça como último ato oficial e saiu a cavalo da cidade pelo portão sul, à frente de seus mil e quinhentos cavaleiros armados. Ao se fecharem estrondosamente as portas às suas costas, a máscara meiga de Arpello caiu, revelando o sinistro semblante de um lobo faminto.

Estando os mercenários esquartejados ou escondidos em seus barracões, os dele eram os únicos soldados de Tamar. Montado sobre seu cavalo de batalha no meio da grande praça, Arpello proclamou a si mesmo rei da Aquilônia entre o clamor da enganada multidão.

O chanceler Publius, que havia se oposto à mudança, foi lançado à prisão. Os comerciantes, que haviam saudado com alívio a proclamação de um rei, ficaram indignados ao ver que a primeira ação do monarca era exigir-lhes um tributo abusivo. Seis comerciantes, enviados numa comissão de protesto, foram presos e decapitados sem cerimônias. A esta execução seguiu um perplexo silêncio. Os comerciantes, como costumam fazer ao se defrontarem com um poder que não podem enfrentar com dinheiro, caíram prostrados sobre suas gordas barrigas e lamberam as botas do opressor.

O povo simples se desinteressou sobre o destino dos comerciantes, mas começou a murmurar quando descobriram que a soldadesca peliana, sob o pretexto de manter a ordem, era tão perversa quanto os bandidos turanianos. Choveram as queixas por extorsão, assassinato e pilhagem sobre Arpello, que havia instalado sua residência no palácio de Publius, porque os desesperados conselheiros, condenados por ordem sua, defendiam o palácio real contra os soldados. Havia tomado posse do palácio do prazer, e as mulheres de Conan foram arrastadas até sua morada. O povo murmurou ao ver as belezas reais retorcendo-se nas mãos brutais de seus seqüestradores de armaduras de ferro: as jovens de olhos escuros, de Poitain; as esbeltas moças de cabelos negros, de Zamora, de Zingara e da Hirkânia, as britunianas de revoltos cabelos loiros, todas choravam de espanto e de vergonha, porque não estavam habituadas à brutalidade.

A noite caiu sobre a cidade perplexa e turbulenta, e antes que chegasse a meia-noite, se espalhou misteriosamente pelas ruas a notícia de que os kothianos haviam vencido e estavam golpeando os muros de Shamar. Alguém do misterioso serviço secreto de Tsotha tinha dado com a língua nos dentes. O medo sacudiu o povo como um terremoto, e nem sequer pararam para pensar na bruxaria que possibilitara às notícias se propagarem tão velozmente. Se precipitaram diante das portas de Arpello, exigindo-lhe que marchasse para o sul e fizesse o inimigo recuar até o outro lado do Tibor. Ele poderia ter ressaltado sutilmente que não tinha forças suficientes, e que não podia formar um exército até que os barões reconhecessem como justa sua coroação. Mas estava ébrio de poder e riu na cara deles.

Um jovem estudante, chamado Athemides, subiu num pedestal na praça e acusou Arpello de ser um instrumento de Strabonus, pintando um vívido retrato de como seria a vida sob o mandato kothiano, com Arpello como sátrapa. Antes que ele terminasse, a multidão já berrava de medo e grunhia de raiva. Arpello enviou seus soldados para que arrastassem o jovem, mas o povo lhe avisou e fugiu com ele, rechaçando seus perseguidores com pedras e com gatos mortos. Uma enxurrada de flechas acabou com o tumulto, e um ataque de cavaleiros semeou a praça de cadáveres, mas Athemides conseguiu sair da cidade, para rogar a Trocero que voltasse a tomar Tamar e viesse ajudar Shamar.

Athemides encontrou Trocero quando este levantava o acampamento fora dos muros da cidade, pronto pra marchar para Poitain, no extremo sudoeste do reino. Às insistentes súplicas do jovem, respondeu que não tinha a força necessária para tomar Tamar de assalto, mesmo contando com a ajuda da multidão que havia em seu interior, nem força suficiente para enfrentar Strabonus. Além do mais, os nobres avarentos saqueariam Poitain às suas costas enquanto ele lutasse contra os kothianos. Morto o rei, cada homem deveria proteger o que era seu. Cavalgava para Poitain, a fim de defender-se o melhor possível de Arpello e de seus aliados estrangeiros.

Enquanto Athemides negociava com Trocero, a multidão percorria a cidade com fúria desesperada. O povo formava redemoinhos sob a grande torre que havia junto ao palácio real, bradando seu ódio a Arpello, que permanecia nas ameias e ria-se deles, enquanto seus arqueiros se colocavam atrás dos parapeitos, com as balestras preparadas.

O príncipe de Pellia era um homem robusto, de estatura mediana, e de rosto severo e sombrio. Era um intrigante, mas também um lutador. Sob sua jaqueta de seda e suas roupas com adornos metálicos na parte inferior, e as mangas com rendas, brilhava o aço polido. Seu longo cabelo negro era encaracolado; usava-o perfumado e preso na nuca com uma faixa tecida com fios de prata, mas de seu quadril pendia uma enorme espada, cujo cabo com jóias já estava desgastado por causa de batalhas e campanhas.

- Idiotas! Gritem o quanto quiserem! Conan está morto e Arpello é o rei!

Que importava se toda a Aquilônia se unia contra ele? Tinha homens suficientes para defender os poderosos muros até a chegada de Strabonus. Mas a Aquilônia estava dividida. Os barões lutavam uns contra os outros para se apoderarem dos tesouros de seus vizinhos. Arpello só tinha que se ver com a desvalida multidão. Strabonus abriria caminho entre as débeis posições dos barões em guerra, como o esporão de um navio entre a espuma, e, até sua chegada, a única coisa que precisava defender e conservar em seu poder era a capital do reino.

- Idiotas! Arpello é o rei!

O sol elevava-se por cima das torres do leste. No céu rubro, apareceu uma minúscula mancha voadora que cresceu até adquirir o tamanho de um morcego, e logo o de uma águia. A seguir, todos os que viram-no proferiram gritos de assombros, já que por cima das muralhas de Tamar desceu precipitadamente uma figura que os homens só conheciam através de lendas meio esquecidas, e de suas asas titânicas, saltou uma figura humana, enquanto o animal gralhava ao passar por cima da grande torre. Logo, com um bater retumbante de asas, foi embora, e o povo piscava, pensando que estava sonhando. Mas, nas ameias, via-se um homem de aspecto bárbaro, seminu e manchado de sangue, que brandia uma grande espada. E, da multidão, ergueu-se um rugido que fez as próprias torres cambalearem:

- O rei! É o rei!

Arpello estava totalmente pasmado; logo, com um grito, desembainhou a espada e saltou em direção a Conan. Com um rugido, o cimério deteve o golpe da sibilante lâmina e, deixando cair sua própria espada, agarrou o príncipe e o ergueu por cima da cabeça, segurando-o pelo pescoço e pernas.

- Leve suas conspirações ao inferno! – rugiu, e lançou o príncipe de Pellia para longe, como se fosse um saco de sal, deixando-o cair de uma distância de 45 metros.

O povo recuou enquanto o corpo se precipitava no vazio e espatifava-se no pavimento de mármore, respingando sangue e miolos, e ficava ali, esmagado com a armadura despedaçada, feito um escaravelho pisoteado.

Os arqueiros da torre se acovardaram e perderam o sangue-frio. Fugiram, e os conselheiros sitiados saíram do palácio e despedaçaram-nos com alegre desenvoltura. Os cavaleiros e os homens de arma pellianos tentaram ficar a salvo nas ruas, e a multidão os esquartejou. A luta invadia a cidade, os capacetes emplumados e as viseiras de aço sacudiam-se violentamente entre as desordenadas cabeças e logo desapareciam; as espadas se debatiam freneticamente numa ondulante floresta de lanças e, por cima de tudo isso, se elevava o rugido da multidão, e os gritos de aclamação misturavam-se com os berros que manifestavam sua sede de sangue e com os gemidos de agonia. E, bem acima de tudo aquilo, a figura nua do rei se sacudia e movia-se sobre as ameias vertiginosas, estremecido por uma risada gutural que zombava de todos: da multidão, dos príncipes e inclusive de si mesmo.


5)

Dê-me um arco longo e forte,
E escureceremos o céu!
A flecha em sua mosca, a corda esticada
E o rei de Koth como alvo!
(Canção dos arqueiros bossonianos)

O sol do entardecer refletia-se nas águas plácidas do Tibor, que banhavam os bastiões do sul de Shamar. Os olheirudos defensores sabiam que pouquíssimos deles voltariam a ver o nascer do sol. Os pavilhões dos sitiadores abarrotavam a planície, como se fossem milhares de manchas. Os habitantes de Shamar não haviam conseguido evitar que cruzassem o rio, já que lhes dobravam em número. As barcaças acorrentadas umas às outras formavam uma ponte, pela qual o invasor derramava suas hordas incessantemente. Strabonus não se atrevera a seguir sua marcha para dentro da Aquilônia, deixando Shamar às suas costas sem tê-la conquistado. Havia mandado terra adentro os seus velozes cavaleiros, os spahis, para assolarem a região, e havia erigido sua máquinas de assédio na planície. Tinha estendida, em meio ao rio, uma frota de pequenas barcas proporcionadas por Amalrus, que chegavam até a muralha que fazia fronteira com a corrente de água. Alguns daqueles barcos a remo haviam sido afundados por pedras, lançadas da cidade, que atravessaram as coberturas e romperam violentamente suas tábuas, mas o restante continuava no cerco e, desde as proas e topos dos mastros, protegidos por trincheiras, os arqueiros estavam atacando as pequenas torres que davam no rio. Eram shemitas, nascidos de arco na mão, aos quais nenhum arqueiro aquiloniano podia equiparar-se.

Na parte terrestre, as catapultas lançavam uma chuva de seixos arredondados e troncos de árvore, que caía entre os defensores, atravessando telhados e esmagando seres humanos como escaravelhos. Os aríetes golpeavam incessantemente as portas. A parte superior do fosso fora rodeada com uma barragem e, uma vez privada da água que continha, havia sido preenchida com seixos redondos, terra, e também com cavalos e homens mortos. Ao pé das muralhas apinhavam-se figuras vestidas com cotas-de-malha, que golpeavam as portas, colocavam escadas e empurravam torres de assédio, abarrotadas de lanceiros, contra as pequenas torres da muralha.

Na cidade, toda a esperança já tinha sido abandonada; havia apenas quinhentos homens resistindo ao ataque de quarenta mil guerreiros. Não havia chegado notícias do reino, cujo posto mais avançado era a cidade. Conan estava morto, segundo gritavam os exultantes invasores. Só as fortes muralhas e a valentia desesperada dos defensores havia mantido-os na fronteira durante tanto tempo, e aquela situação não se manteria para sempre. O muro ocidental era uma pilha de resíduos, sobre os quais os defensores tropeçavam, lutando corpo-a-corpo com os invasores. Os demais muros começavam a despencar, devido às minas cavadas sob eles, e as torres se inclinavam feito bêbadas.

Os atacantes já se aglomeravam para arremeter. Soaram as trombetas, os soldados vestidos de aço organizaram-se para o combate na planície. As torres de assédio, recobertas de peles de touro, começaram a girar estrondosamente. A população de Shamar viu os estandartes de Koth e Ophir, tremulando um ao lado do outro no centro, e distinguiu a figura magra e sinistra de Amalrus, com sua cota-de-malha dourada, e a silhueta atarracada de Strabonus, coberta por uma armadura negra, entre seus reluzentes cavaleiros. E, entre ambos, se via uma pessoa que fez os mais valentes empalidecerem de terror: uma figura de abutre com uma túnica transparente. Os lanceiros se adiantaram, derramando-se sobre o terreno como as ondas cintilantes de um rio de aço líquido; os cavaleiros galoparam para a frente, com as lanças levantadas e os estandartes ao vento. Os guerreiros que estavam sobre os muros respiraram fundo, encomendaram a alma a Mitra e agarraram suas armas sem fio e manchadas de sangue.

Logo, sem nenhum sinal de aviso, um toque de corneta interrompeu o estrondo. Um barulho de cascos de cavalo se sobrepôs ao estrondo das hostes lançadas ao ataque. Ao norte da planície que o exército cruzava, erguia-se uma série de pequenas colinas que ficavam mais altas ao norte e ao oeste, como escadas gigantes. Então, descendo por aquelas colinas como a agitação no mar que anuncia uma tempestade, irromperam os spahis, que estavam devastando a região, inclinados sobre suas montarias, esporeando-as ferozmente e, atrás deles, se via o sol refletido sobre um exército de aço em movimento. Avançaram até ficarem totalmente visíveis, saindo dos desfiladeiros: cavaleiros com cota-de-malha e, pairando sobre eles, o grande leão do estandarte da Aquilônia.

Uma enorme gritaria rasgou o céu, vinda dos homens que observavam a cena, entusiasmados, das torres. Em seu êxtase, os guerreiros fizeram chocar suas espadas cegas contra os escudos amassados, e os habitantes da cidade, mendigos esfarrapados e ricos comerciantes, prostitutas com kirtles (*) vermelhos e damas envoltas em sedas e cetins, caíram de joelhos e aclamaram jubilosamente a Mitra, vertendo lágrimas de gratidão que encharcavam-lhe os rostos.

Strabonus, que dava ordens freneticamente, junto com Arbanus, destinadas a cercar as linhas do exército para enfrentar a inesperada ameaça, grunhiu:

- Ainda somos o dobro deles em número, a menos que tenham reservas escondidas nas colinas. Os homens das torres de assédio podem proteger os da cidade. São poitainianos. Devíamos ter imaginado que Trocero tentaria alguma louca bravata como esta.

Amalrus exclamou sem acreditar:

- Vejo Trocero e seu capitão Próspero... mas, quem cavalga entre eles?

- Ishtar nos proteja! – gritou Strabonus, empalidecendo – É o rei Conan!

- Está louco! – berrou Tsotha, agitando-se convulsivamente – Conan está no ventre de Satha há dias!

Parou repentinamente, olhando como um louco à tropa que se dispersava em filas pela planície. Era impossível confundir aquela gigantesca figura, com armadura negra e enfeites dourados, que montava um grande corcel negro, o qual galopava sob as dobras sedosas do grande estandarte que ondulava ao vento. Dos lábios de Tsotha brotou um grito de fúria felina, que lhe salpicou a barba encrespada. Pela primeira vez em sua vida, Strabonus viu o bruxo totalmente transtornado, e isso o aterrorizou.

- Há bruxaria aqui! – berrou Tsotha, arrancando loucamente a barba – Como é possível que tenha escapado e chegado a tempo, para voltar tão rapidamente com um exército? Isto é obra de Pelias, maldito seja! Noto a mão dele nisso! Maldito seja eu, por não tê-lo matado quando pude!

Os reis ficaram boquiabertos diante da menção de um homem que acreditavam ter morrido há dez anos, e o pânico que emanava dos chefes sacudiu as tropas. Todos reconheceram o montador do corcel negro. Tsotha percebeu o terror supersticioso de seus homens, e a fúria deu um aspecto infernal a seu rosto.

- Ao ataque! – berrou, agitando loucamente os braços delgados – Ainda somos os mais fortes! Agüentemos e esmaguemos estes cães! Ainda podemos festejar a vitória nas ruínas de Shamar, esta mesma noite! Oh, Set! – levantou as mãos e invocou ao deus-serpente para horror até de Strabonus – Assegura-nos a vitória, e juro que te oferecerei quinhentas virgens de Shamar, retorcendo-se no próprio sangue!

Enquanto isso, o exército havia se dispersado pela planície. Junto aos cavaleiros, vinha o que parecia um segundo exército irregular, montado sobre velozes cavalos. Desmontaram e entraram em formação a pé: eram os imperturbáveis arqueiros bossonianos e os hábeis lanceiros da Gunderlândia, cujas cabeleiras leoninas despontavam sob os capacetes de aço.

O exército que Conan havia reunido, nas enlouquecidas horas que seguiram ao seu regresso à capital, era uma tropa multicolorida. Havia conseguido, com grande esforço, apartar a enfurecida multidão dos soldados pellianos que se defendiam nos muros externos de Tamar e havia alistado-os a seu serviço. Enviou uma correspondência urgente a Trocero, para que ele voltasse. Sendo o sul o núcleo do exército, ele se apressou nessa direção, varrendo toda a região para buscar recrutas e cavaleiros. Os nobres de Tamar e do território que a cercava engrossaram suas fileiras, e haviam alistado gente de todas as vilas e castelos que haviam no caminho. Mas só haviam conseguido reunir uma força insignificante comparada com a das hostes invasoras, apesar da qualidade superior de seu aço.

Seguiram-no mil e novecentos cavaleiros com armadura, cujo grosso era composto por cavaleiros poitainianos. A infantaria era composta pelo restante dos mercenários e soldados profissionais que trabalhavam para os nobres leais: cinco mil arqueiros e quatro mil lanceiros. Este exército avançava em ordem, indo em primeiro lugar os arqueiros, logo depois os lanceiros e, atrás deles, os cavaleiros, e avançavam todos ao mesmo tempo.

Arbanus arrumou suas filas para enfrentá-los, e o exército aliado deslocou-se para frente, como um cintilante oceano de aço. Aqueles que olhavam dos muros da cidade estremeceram ao ver a imensa tropa, que, em força, superava enormemente os salvadores. Em primeiro lugar marchavam os arqueiros shemitas, logo depois os lanceiros kothianos e, em seguida, os cavaleiros de Strabonus e Amalrus, com suas cotas-de-malha. O que Arbanus tentava era óbvio: utilizar os homens a pé para varrer a infantaria de Conan e abrir, assim, uma brecha para lançar um poderoso ataque de sua forte cavalaria.

Os shemitas começaram a atirar a mais de quatrocentos e cinqüenta metros, e as flechas caíram como uma chuva depois de percorrer o espaço que separava os dois exércitos, escurecendo o sol. Os arqueiros do oeste, treinados durante mil anos de guerra sem trégua contra os selvagens pictos, continuaram avançando impávidos, fechando fileiras à medida que seus camaradas iam caindo. Dobraram-nos várias vezes, e o arco shemita tinha maior alcance, mas no que diz respeito à precisão, os bossonianos não eram inferiores a seus inimigos e equilibravam a pura destreza no que se refere ao manejo do arco, com sua moral mais elevada e sua excelente armadura. Quando ficaram à distância correta, lançaram as flechas, e os shemitas caíram aos montes. Os guerreiros de barbas negras, com suas leves cotas-de-malha, não podiam suportar o tormento como os bossonianos, cujas armaduras eram mais resistentes. Se dispersaram, jogando seus arcos ao solo, e sua fuga provocou desordem entre as filas de lanceiros kothianos que seguiam-nos.

Ao faltar-lhes o apoio dos arqueiros, estes homens armados caíram às centenas ante as flechas dos bossonianos e, ao atacarem desordenadamente em busca do corpo-a-corpo, foram recebidos pelos longos dardos dos lanceiros. Não havia infantaria capaz de perturbar os selvagens homens da Gunderlândia, cuja terra natal, a província mais setentrional da Aquilônia, estava apenas a um dia de cavalo das fronteiras da Ciméria através da fronteira bossoniana. Criados para a luta, eram o povo de raça mais pura entre os hiborianos. Os lanceiros kothianos, atordoados pelas baixas produzidas pelas lanças, foram destroçados e recuaram em debandada.

Strabonus rugia de fúria ao ver rechaçada a sua infantaria, e ordenou aos gritos que fizessem um ataque total. Arbanus punha objeções, ressaltando que os bossonianos estavam reorganizando-se à frente dos cavaleiros aquilonianos, que haviam permanecido imóveis sem descer de seus corcéis durante o enfrentamento. O general aconselhou uma retirada temporária, para fazer com que os cavaleiros saíssem da cobertura que os arqueiros lhes proporcionavam, mas Strabonus estava louco de fúria. Olhou as amplas fileiras reluzentes de seus cavaleiros, contemplou o punhado de figuras cobertas de cotas-de-malha que se lhes opunha, e ordenou a Arbanus que desse o sinal de ataque.

O general encomendou sua alma a Ishtar e fez soar a trombeta dourada. Com um rugido retumbante, a floresta de lanças se pôs em riste e a imensa tropa arremeteu, atravessando a planície, recebendo impulso cada vez maior. Toda a planície sob a estrondosa avalanche de cascos, e o brilho do ouro e do aço impressionou aos que observavam das torres de Shamar.

Os esquadrões sulcaram as desalinhadas fileiras de lanceiros, atropelando igualmente a amigos e inimigos, e se precipitaram sob as rajadas de flechas que lançavam-lhes os bossonianos. Cruzaram a planície com um ruído trovejante, resistindo encarniçadamente à tormenta que semeava seu caminho com cavaleiros reluzentes, como se fossem folhas caídas no outono. Logo irromperia com seus cavalos por entre os bossonianos, ceifando-os como trigo; mas a carne não podia suportar, durante muito tempo, a chuva mortal que destroçava-os e rugia violentamente entre suas fileiras. Os arqueiros continuavam em pé, ombro a ombro, as pernas firmes, lançando flecha após flecha como um só homem, proferindo breves gritos a plenos pulmões.

Toda a primeira fila de cavaleiros desapareceu e, tropeçando nos corpos moles de cavalos e montadores, seus colegas cambalearam e caíram para frente. Arbanus havia morrido, tinha uma flecha na garganta, e seu crânio fora esmagado pelos cascos de seu cavalo moribundo. A confusão percorreu as tropas desorganizadas. Strabonus gritava uma ordem, Amalrus outra, e todos sentiam o terror supersticioso que lhes fora despertado ao verem Conan.

E, enquanto as hostes cintilantes formavam redemoinhos, confusas, soaram as trombetas de Conan e, através das fileiras abertas dos arqueiros, lançou-se ao ataque a terrível carga dos cavaleiros aquilonianos.

Os exércitos foram sacudidos pelo que parecia um terremoto, que fez estremecer as oscilantes torres de Shamar. Os desorganizados esquadrões dos invasores não podiam deter o impulso da cunha de aço sólido, eriçada de lanças, que precipitou-se contra eles como um raio. As longas lanças dos atacantes trituraram suas fileiras, e os cavaleiros de Poitain entraram até o coração das tropas inimigas, manejando suas terríveis espadas com ambas as mãos.

O fragor e o estampido do aço era como o de um milhão de marretas golpeando um número igual de bigornas. Os que olhavam das muralhas estavam atordoados e ensurdecidos pelo estrondo; agarravam-se às ameias e observavam o fervente redemoinho de aço, no qual sacudiam-se violentamente os penachos que conseguiam erguer-se por entre as brilhantes espadas; os estandartes cambaleavam e caíam.

Amalrus caiu e morreu sob os cascos dos cavalos, com a omoplata partida em dois pela espada de duas mãos (**) de Próspero. As tropas dos invasores haviam cercado os mil e novecentos cavaleiros de Conan, mas, em redor desta compacta cunha, que penetrava mais e mais na formação menos compacta de seus inimigos, todos os cavaleiros de Koth e Ophir formavam redemoinhos e atacavam-na em vão. Não podiam rompê-la.

Os arqueiros e lanceiros, após terem se livrado da infantaria kothiana, que fora desfeita e fugia desordenadamente pela planície, aproximaram-se das extremidades do campo de batalha, lançando flechas de perto e apressando-se em esfaquear e rasgar com suas lâminas as barrigueiras e ventres dos cavalos, e atravessando os cavaleiros com suas lanças.

Conan, na ponta da cunha de aço, lançava seu bárbaro grito de guerra e brandia sua enorme espada, descrevendo brilhantes arcos mortais, que faziam pouco caso das cotas-de-malha. Montado em seu cavalo, penetrou entre a abundância de aço retumbante de seus inimigos, e os cavaleiros de Koth fecharam as fileiras atrás dele, deixando-o isolado. Conan golpeava como um raio, penetrando violentamente entre as fileiras com força e velocidade, e chegou até Strabonus, que estava pálido entre suas tropas palacianas. Naquele momento a batalha ficou equilibrada, já que, sendo maiores suas tropas, Strabonus ainda tinha oportunidade de arrancar a vitória dos joelhos dos deuses.

Mas, quando viu seu arquiinimigo, separado dele pela distância de um braço, deu um grito e o atacou ferozmente com o machado. Este bateu estrondosamente sobre o elmo de Conan, soltando faíscas, e o cimério recuou, devolvendo-lhe o golpe. A lâmina de sua espada, de um metro e meio de comprimento, esmagou o capacete e o crânio de Strabonus, e o corcel do rei recuou, relinchando e arremessando de sua sela um corpo flácido e desengonçado. Um imenso clamor surgiu das hostes, que hesitaram e recuaram. Trocero e suas tropas, dando estocadas furiosas, abriram caminho em direção a Conan, e o grande estandarte de Koth veio abaixo. E então, por trás dos aturdidos e destroçados invasores, ergueu-se um imenso brado e o apelo de uma revolução descomunal. Os defensores de Shamar haviam feito uma saída desesperada, despedaçando os homens que obstruíam as portas, e vagavam furiosamente entre as tendas dos sitiadores, destroçando os membros do acampamento, incendiando os pavilhões e derrubando as máquinas de assédio. Esta foi a gota d’água. O reluzente exército correu desesperadamente, e os furiosos conquistadores esmagaram-nos em sua fuga.

Os fugitivos correram para o rio, mas os homens que compunham a frota de pequenos barcos, perseguidos ferozmente pelas pedras e dardos que os reanimados cidadãos lançavam, soltaram as cordas e remaram para a margem sul, abandonando seus colegas à própria sorte. Muitos deles ganharam a margem precipitando-se pelas barcaças que serviam de ponte, até que os homens de Shamar cortaram as amarras e separaram-nas da margem. Então, a luta virou chacina. Os invasores, empurrados até o interior do rio, no qual se afogavam dentro de suas armaduras, ou derrubados a golpes ao longo da margem, pereciam aos milhares. Haviam prometido não dar trégua; tampouco receberam-na.

Do pé das colinas até as margens do Tibor, a planície estava coberta de cadáveres, e o rio, tingido de vermelho, transcorria abarrotado de mortos. Dos mil e novecentos cavaleiros que haviam cavalgado para o sul com Conan, só restaram vivos quinhentos que puderam se vangloriar de suas cicatrizes, e a matança de arqueiros e lanceiros fora espantosa. Mas a numerosa e brilhante tropa de Amalrus e Strabonus foi exterminada, e os que fugiram foram menos do que os que morreram.

Enquanto a matança se prolongava ao longo do rio, tinha lugar o último ato de um encarniçado drama na várzea do outro lado. Entre os que haviam cruzado a ponte de barcaças antes desta ser destruída, encontrava-se Tsotha, que galopava feito o vento sobre um corcel esquálido, de estranho aspecto, cuja velocidade não podia ser igualada por um cavalo terreno. Fugindo implacavelmente, deixando para trás amigos e inimigos, chegou à margem sul e então, ao voltar a vista, encontrou uma figura austera sobre um alazão negro, perseguindo-o furiosamente. Já haviam cortado as amarras, e os barcos começavam a se separar uns dos outros, ficando à deriva, mas Conan avançou com temeridade, fazendo seu corcel saltar de um bote a outro, como um homem que salta de um gelo flutuante a outro. Tsotha gritou uma maldição, mas o enorme cavalo deu um último salto, relinchando pelo esforço, e ganhou a margem sul. O bruxo iniciou a fuga para a pradaria e, atrás dele, o rei, cavalgando furiosamente, em silêncio e brandindo a enorme espada, que ia deixando um rastro de gotas rubras. E assim continuaram a presa e o caçador, embora o corcel negro não conseguisse chegar perto, apesar deste estender profundamente cada um dos seus músculos e nervos. Galoparam numa terra sobre a qual o sol se punha, e uma luz difusa projetava sombras enganosas, até que a visão e o som da matança dissiparam-se atrás deles. Naquele momento, apareceu no céu um ponto negro que, ao se aproximar, transformou-se numa enorme águia. Planou velozmente sobre a cabeça do cavalo de Tsotha; este relinchou terrivelmente e empinou, arrancando o cavaleiro da sela.

O velho Tsotha ficou em pé, enfrentando seu perseguidor. Tinha os olhos de uma serpente enlouquecida, e seu rosto parecia uma máscara de fúria animal. Trazia em cada mão algo que brilhava, algo que Conan sabia que continha a morte.

O rei desmontou e acelerou o passo em direção a seu rival, brandindo sua enorme espada, enquanto o ruído metálico de sua armadura ressoava a cada passo.

- Voltamos a nos encontrar, feiticeiro! – disse, sorrindo selvagemente.

- Afaste-se de mim! – gritou Tsotha, como um chacal excitado pelo sangue – Arrancarei a pele de seus ossos! Não conseguirá vencer-me e, mesmo que me corte em pedaços, as partes de carne e os ossos voltariam a juntar-se e lhe perseguiriam até a morte! Reconheço a mão de Pelias nisto tudo, mas desafio a ambos! Sou Tsotha, filho de...

Conan lançou-se com os olhos semicerrados e a espada na mão.

A direita de Tsotha avançou e o rei evitou rapidamente algo que passou sobre sua cabeça protegida pelo capacete, e chamuscou a areia com um brilho de fogo diabólico. Antes que Tsotha pudesse lançar o outro globo com a mão esquerda, a espada de Conan decepou-lhe o pescoço delgado. A cabeça do feiticeiro saltou dos ombros, deixando escapar um jato de sangue, e a figura de túnica oscilou e finalmente desabou como um ébrio. No entanto, seus olhos enlouquecidos miraram fixamente a Conan com uma luz selvagem, a boca torceu-se num gesto sinistro e suas mãos agitaram-se como que buscando a cabeça cortada. E então, com um veloz movimento de asas, algo precipitou-se do céu... era a águia que havia atacado o cavalo de Tsotha. Com suas poderosas garras, pegou a cabeça sanguinolenta e lançou-se ao espaço. Conan emudeceu de espanto, pois da garganta da águia brotou uma gargalhada inumana que lembrava a voz de Pelias, o feiticeiro.

Então, sucedeu-se algo horrendo, pois o corpo sem cabeça ficou de pé sobre a areia e, cambaleando, lutou de forma assustadora para dirigir-se, com as mãos estendidas, ao ponto negro que se afastava velozmente no céu escuro. Conan ficou petrificado, até que a figura oscilante desapareceu na bruma que tingia de vermelho a pradaria.

- Crom! – seus poderosos ombros se estremeceram – Ao diabo com as lutas entre feiticeiros! Pelias foi bom comigo, mas eu preferia não vê-lo mais. Que me tragam uma espada limpa e um inimigo limpo para poder cravá-la nele. Maldição! O que eu não daria por uma jarra de vinho!

FIM

(*) - Kirtle: Um tipo de colete engomado e/ou reforçado com cordas (como barbatanas), amarrado na frente (Nota do Tradutor).

(**) - Nome dado a espadas de cabo longo, os quais podem ser manuseados com ambas as mãos (N. do T.).



Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: http://wikilivres.info/wiki/The_Scarlet_Citadel
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