(por Fernando Neeser de Aragão)
Livremente inspirado num conto de Robert
E. Howard e numa idéia de Deuce Richardson.
Introdução:
Finalmente,
Conan chega a Messântia, capital portuária de Argos. Lá, Conan encontra Beloso
morto – o sinal da Mão Negra de Set estampada em seu peito. A jóia está agora
em posse de Thutothmes, sacerdote de Set, e a caminho da Stygia. Tirado de
Messântia narcotizado em um navio mercante, Conan se vê acorrentado ao lado de
antigos Corsários Negros, que conheceu quando era Amra (“O Leão”), companheiro
de Bêlit, a Rainha pirata da Costa Negra. Ele logo promove um motim, toma o
navio, e parte para a Stygia à procura do Coração de Ahriman...
No templo de Set em Khemi, Conan vê Thutothmes e seus sacerdotes serem mortos pelos khitaneses que servem ao Rei Valerius. Conan, por sua vez, os mata e zarpa para o norte com a gema cobiçada. Na Aquilônia, os quatro conspiradores originais descobrem que Xaltotun pretende usar sua magia para devolver o mundo à forma que era três milênios atrás. Xaltotun mata Orastes e força os outros três a servi-lo – pois Conan agora marcha em direção a Tarantia liderando o exército poitainiano. Xaltotun descobre uma misteriosa magia sendo usada contra ele, e descobre que está enfrentando o Coração de Ahriman. Ele se prepara para usar o sacrifício sangrento de milhares de vidas no campo de batalha para completar seu encanto de restauração – mas Zelata e o sacerdote asurano Hadrathus chegam a tempo de detê-lo, e Hadrathus mata o acheroniano. Valerius e Amalric morrem na batalha, restando vivo entre os conspiradores apenas o derrotado Tarascus da Nemédia. Conan, rei novamente, anuncia que pretende tornar a garota de harém, Zenóbia, sua rainha (A Hora do Dragão/ http://cronicasdacimeria.blogspot.com.br/2010/05/hora-do-dragao_08.html).
1) “A Aquilônia conspira atrás das
portas fechadas”
Uma quietude
sinistra se estendia como um sudário sobre a antiga cidade de Tarantia. As
ondas de calor dançavam de um telhado reluzente a outro e tremulavam contra as
suaves paredes de mármore. As torres azuis e douradas pareciam suavizar-se sob
a débil bruma. Nenhum som, de cascos de cavalo nas amplas ruas pavimentadas por
pedras, interrompia o silêncio sonolento, e os poucos pedestres que se
aventuravam a sair faziam suas tarefas rapidamente e voltavam a desaparecer
dentro das casas. A cidade parecia um reino de fantasmas.
Conan, rei da Aquilônia,
afastou para um lado as cortinas diáfanas e olhou por cima do alizar dourado da
janela, sobre o pátio de fontes faiscantes, as sebes recortadas e as árvores
podadas, em direção ao muro alto e as janelas negras das casas, que deteram seu
olhar.
- A Aquilônia
conspira atrás das portas fechadas, Zenóbia – ele grunhiu.
Sua
recém-adquirida esposa, uma linda nemédia de cabelos e olhos negros, e pele de
alabastro – e agora Rainha da Aquilônia –, sorriu suavemente.
- Você é
desconfiado demais, Conan. É o calor, que obriga o povo a ficar dentro de casa.
- Mas
conspiram – insistiu Conan. Ele era um bárbaro alto, de costas largas, com a
constituição típica do verdadeiro lutador: ombros largos, peito poderoso e
quadris delgados. Seus vulcânicos olhos azuis meditavam tristemente sob espessas
sobrancelhas negras. Seus traços indicavam claramente sua procedência, pois
Conan, o usurpador, era de origem ciméria.
- Certo,
conspiram. Quando foi que o povo deixou de conspirar, independente de quem
estivesse sentado no trono? E, no seu caso, seria explicável.
- Sim –
assentiu o gigante, cujas sobrancelhas se apertaram. – Sou um estrangeiro. O
primeiro bárbaro que alcançou o trono aquiloniano, desde o começo dos tempos. Enquanto
fui apenas comandante de seus mercenários, não levaram em conta o meu lugar de
nascimento. Mas agora jogam isso na minha cara, pelo menos com o olhar e com o
pensamento.
- E que
importância isso pode ter para você? Eu também sou estrangeira. Na verdade,
dois estrangeiros governam a Aquilônia agora, pois o povo se tornou débil e
degenerado demais para governar a si mesmo. Um cimério e uma nemédia se sentam
em seu trono, apoiados por todo o povo e nobreza do reino. Uma das condessas é
de uma cidade de descendentes de kothianos do Deserto Meridional, e os Dragões
Negros se constituem de homens de várias raças e nações.
Conan encolheu
os ombros, inquieto.
- Sei o que o
povo pensa, e com que aversão e cólera as mais velhas famílias aquilonianas
devem observar a situação. Mas, que outra coisa teriam, do contrário? Com Namedides,
o reino se encontrava em pior situação do que comigo, apesar dele ter sido um
aquiloniano nativo, herdeiro direto da antiga dinastia. Este é o preço que uma
nação deve pagar pela decadência: de uma forma ou de outra, os povos jovens e
fortes aparecem e tomam posse das coisas. Ao menos, reorganizei o reino, pondo
fim à guerra civil que assolava o país quando vim para cá como mercenário, e
devolvi à Aquilônia certa dignidade e o respeito aos cidadãos humildes, além de
reduzir significativamente os impostos. Com certeza, é muito melhor ter no
trono um bárbaro capaz de manter unidas as diferentes facções, do que permitir
que cem mil homens com as mãos ensangüentadas perambulassem livremente pela
cidade, pois isso é o que teria ocorrido a esta altura, se Namedides continuasse
reinando. O reino desmoronava e se dividia sob seus pés, com os barões em
guerra uns contra os outros... Pois bem, eu matei Namedides com minhas próprias
mãos naquela noite em que liderei os rebeldes. Enfrentei e derrotei três tentativas
de me destronar. Agora, a Aquilônia dorme em paz e sossegada, e entre uma sesta
e outra, conspira para me derrubar. Não tem havido fome desde que me tornei
rei, os armazéns transbordam de grãos, os navios mercantes chegam carregados
pelo Rio Khorotas, as bolsas dos mercadores estão cheias e o povo começa a
criar barriga. Mas, apesar de tudo isso, continuam fofocando, e praguejam e
cospem sobre minha sombra. O que querem?
A nemédia
suspirou e respondeu com amarga ironia:
- Querem outro
Namedides! Um tirano com as mãos ensangüentadas! Esquecem da ingratidão dele.
Você não se apoderou do reino para favorecê-los, nem o conserva em suas mãos
por esse motivo. Havia alcançado uma ambição de toda a vida, e se encontra
firmemente instalado no trono. Que murmurem e conspirem o quanto quiserem. Você
é o rei.
- Sim, sou o
rei deste reino dourado – assentiu Conan. – E continuarei sendo até o último
suspiro, até que meu fantasma percorra o longo caminho das sombras. O que há,
agora?
Um pajem se
inclinou profundamente diante dele.
- Altíssima
Majestade: Silvia, filha do Conde Trocero, solicita audiência.
Uma sombra se
estendeu sobre o olhar do rei.
- Mais
súplicas sobre seu incômodo assunto amoroso – ele disse, com um suspiro,
olhando para Zenóbia. – E, virando-se para o pajem, acrescentou: – Deixe-a
comparecer ante a minha presença.
Conan se
sentou numa cadeira forrada com veludo e olhou para Silvia. Ela só tinha
dezenove anos; vestida à moda das nobres damas aquilonianas, mostrava uma imagem
encantadora, cuja beleza até um celibatário poderia apreciar. Sua pele era de
um branco maravilhoso, devido aos numerosos banhos de leite e vinho que tomava,
o que a tornava uma poitainiana atípica. Mostrava as bochechas matizadas por
uma delicada cor rosa, e seus lábios eram cheios e vermelhos. Sob as delicadas
sobrancelhas negras, havia um par de profundos olhos suaves, tão negros quanto
o mistério, e toda aquela imagem se via coroada por uma massa de frisados
cabelos negros, parcialmente presos por um fino laço dourado.
Silvia se
ajoelhou aos pés do rei, tomou nas mãos suaves aqueles dedos endurecidos pelo
manejo da espada e mirou-lhe os olhos, com uma expressão luminosa e carregada
de súplica. Dentre todas as pessoas do reino, os olhos de Silvia eram os únicos
que Conan preferia não mirar. Às vezes, observava neles uma grande profundeza
de fascinação e mistério. Ela, filha cuidada e mimada da aristocracia, sabia
quais eram alguns de seus próprios poderes, mas ainda não conhecia todos,
devido à sua juventude. Conan, que era sábio no conhecimento dos homens e das
mulheres, se dava conta de que, com a maturidade, Silvia estava destinada a
alcançar um poder terrível na corte e no país, fosse para o bem ou para o
mal.
- Mas, Majestade
– rogava agora, como uma menina que pede um brinquedo –, permita que eu me case
com Demetrius da Nemédia. Ele se transformou num cidadão aquiloniano, e
alcançou um alto benefício na corte, como tu mesmo o dizes. Por que...?
- Já lhe disse
– interrompeu-lhe o rei com impaciência –, não me importa que você se case com Demetrius,
com Prospero ou com o próprio diabo, mas seu pai não quer que você se case com
aquele aventureiro nemédio e...
- Mas tu podes
fazer com que ele consinta! A própria Rainha desta nação é uma nemédia! – ela
gritou, olhando esperançosa para a recém-engravidada Zenóbia, que mirava a
garota com ar piedoso.
- Sua família está
entre meus mais fortes partidários – respondeu o cimério. – E Trocero, seu pai,
é um dos meus melhores amigos. Fez amizade comigo, quando eu era apenas um
soldado, me ajudou a juntar um exército contra Namedides e apoiou minha causa
quando me apoderei do trono. Quer que eu me arrisque a perder essa minha mão
direita, obrigando-me a aceitar algo a que ele se opõe violentamente, ou
intervindo em assuntos familiares?
Silvia ainda
não havia aprendido que alguns homens não se deixam comover pelas artimanhas
femininas. Suplicou, tentou levá-lo na conversa, e até chorou. Beijou as mãos
de Conan, chorou sobre seu peito, chegou a sentar-se sobre seus joelhos e discutiu,
tudo isso diante do desconforto do rei, mas não lhe serviu de nada. Conan se mostrou
sinceramente compreensivo, porém inflexível. Apesar de todos os atrativos e adulações
da jovem, ele só tinha uma resposta: que aquilo não era assunto seu, que o pai
dela sabia melhor o que lhe convinha e que ele, Conan, não estava disposto a
interferir.
Finalmente, Silvia
desistiu de suas tentativas e foi embora, com a cabeça baixa e arrastando os
pés. Ao sair do salão real, se encontrou com seu pai, que estava chegando
naquele momento. Trocero, que imaginou qual seria o propósito que induzira sua
filha a visitar o rei, não lhe disse nada, mas o olhar que lhe dirigiu indicava
bem claramente o castigo que lhe reservava. A jovem subiu à cadeira que lhe
esperava, sentindo-se desgraçada, como se o sofrimento que a incomodava não
pudesse ser suportado por nenhuma outra mulher. Então, sua natureza interna se
afirmou a si mesma. Em seus olhos escuros, brotou a chama da rebelião, e ela
dirigiu umas poucas e rápidas palavras aos criados que carregavam sua cadeira.
Enquanto isso,
o Conde Trocero se encontrava diante de seu rei, com os traços do rosto
transformados numa máscara de deferência formal. Conan observou aquela expressão,
e isso lhe doeu. Existia formalidade entre ele e todos os seus súditos e
aliados, exceto com Zenóbia, Amalric, Lissa, Albiona e Prospero, mas aquela
formalidade afetada era algo novo para o Conde Trocero, e Conan não demorou em
imaginar a razão.
- Sua filha
esteve aqui, conde – ele disse bruscamente.
- Sim, Majestade
– ele assentiu com tom impassível e majestoso.
-
Provavelmente, você sabe por quê. Ela deseja casar-se com Demetrius da Nemédia.
O conde
inclinou levemente a cabeça.
- Se Vossa
Majestade assim deseja, não temos mais que falar nisso – ele disse, ao mesmo
tempo em que umas linhas duras se estendiam por seu rosto bem-barbeado.
Inquieto,
Conan se levantou, cruzou a sala e se dirigiu para a janela onde, mais uma vez,
contemplou a cidade sonolenta. Sem se virar, disse dali:
- Nem pela
metade de meu reino, eu ousaria interferir em seus assuntos familiares, e muito
menos obrigá-lo a seguir um curso de ação desagradável para você.
O conde ficou
ao seu lado num instante, desaparecida toda sua formalidade anterior, com uma
expressão eloqüente em seus olhos escuros.
- Majestade,
eu havia te julgado mal. Eu deveria ter percebido que...
Fez gesto de
que ia se ajoelhar, mas Conan o conteve com um gesto.
- Fique
tranqüilo, conde. Seus assuntos particulares são seus. Não posso ajudá-lo, mas
você pode me ajudar. O ambiente me cheira a conspiração. Desde minha juventude,
aprendi a perceber o perigo. Desde então, já sentia a proximidade do tigre na
selva, ou de uma serpente no meio do capim alto.
- Meus espiões
se dedicam a percorrer a cidade, Majestade – disse o conde, com os olhos
iluminados diante da perspectiva de ação imediata. – O povo murmura, como faria
sob qualquer governante, mas acabo de falar com Publius, e ele me disse que eu
lhe avisasse sobre a atuação de influências externas e dinheiro estrangeiro.
Ele disse que ainda não sabe de nada definitivo, mas que seus soldados
obtiveram certas informações de um criado bêbado do embaixador Amalric da
Nemédia, vagos vislumbres indicativos de algum golpe que esse governo está
preparando, em possível represália ao fato de Vossa Majestade ter se casado com
uma mulher que pertencera ao harém do infame Rei Tarascus.
- Todos nós
conhecemos a grande capacidade nemédia para a traição – disse Conan, com um
grunhido. – Mas o embaixador nemédio Amalric parece ser a própria essência da
honra. Lutamos juntos, há muitos anos ao lado de Yasmela, contra as hordas de
Thugra Khotan.
- Melhor ainda
para ser utilizado como fachada. Se ele não sabe nada do que sua nação planeja,
melhor servirá para disfarçar esses planos.
- Mas, o que a
Nemédia ganharia com isso, além de um possível e indesejado rapto de minha
amada esposa caso eu morra? – perguntou Conan.
- Timothius,
um primo distante do rei Namedides, também se refugiou lá quando derrotaste a
antiga dinastia. Sem vós, a Aquilônia se despedaçaria, os exércitos ficariam
desorganizados e nos veríamos abandonados por todos os nossos aliados, exceto
os Dragões Negros; os mercenários, a quem só tu consegues controlar, se
agitariam contra a Aquilônia, e assim seríamos uma presa fácil para a primeira
nação poderosa que ousasse nos atacar. Então, apresentando Timothius como uma
desculpa para a invasão, como uma marionete no trono da Aquilônia, do mesmo
modo que fizeram recentemente com Valerius...
- Compreendo –
grunhiu Conan. – Me sinto muito mais à vontade na batalha que no conselho, mas
eu entendo. De modo que o primeiro passo seria minha eliminação, não é isso?
- Sim, Majestade.
Conan sorriu e
flexionou seus poderosos braços.
- No fim das
contas, governar às vezes dá tédio – ele disse, ao mesmo em que seus dedos
acariciavam o cabo da espada que sempre levava no cinto.
Naquele
momento, apareceu um escravo e anunciou:
- Publius,
conselheiro-chefe do rei, e Enarus, seu sobrinho.
Imediatamente,
dois homens entraram no salão. Publius, o conselheiro-chefe, era um homem
gorducho, de estatura mediana, que já se encontrava na segunda metade da vida e
que mais parecia com um mercador que com um conselheiro. Tinha o cabelo ralo, o
rosto sulcado de rugas e, sob suas sobrancelhas, havia sempre um olhar de perpétua
desconfiança. No entanto, se notava nele tanto os anos quanto as honras
recebidas. De origem plebéia, ele abrira caminho graças exclusivamente ao poder
de sua habilidade e às intrigas. Antes da chegada de Conan, ele vira surgir e
desaparecer três reis, e notava-se a tensão que isso lhe havia implicado.
Seu sobrinho Enarus
era um jovem delgado e um pouco jeitoso, com intensos olhos escuros e um
sorriso agradável. Sua principal virtude consistia no fato de saber conter a
língua, e nunca repetir a ninguém o que ouvia dizer na corte. Por essa mesma
razão, sua presença era permitida em lugares onde seu estreito parentesco com Publius
não lhe permitiria.
- Trata-se
apenas de uma pequena questão de estado, Majestade – disse Publius. – Essa autorização
para construir um novo forte na fronteira ocidental. Queres assiná-la?
Conan assinou
o documento. Publius tirou de dentro do peito um anel de fôrma, seguro por uma
pequena corrente que ele sempre usava ao redor do pescoço, e aplicou o selo
real. Este anel era, com certeza, a réplica da assinatura real, e nenhum outro
anel no mundo era exatamente igual – razão pela qual Publius o levava sempre ao
redor do pescoço, tanto acordado quanto durante o sono. Com exceção dos que
estavam presentes nesse momento, ninguém mais sabia onde era guardado o anel da
assinatura real.
- Não se
esqueça que também sou uma nemédia e me casei com um cimério. Isso sem falar
que o Conde Amalric era tão aventureiro quanto Demetrius e Conan, antes de
chegar onde está; e a própria Condessa Lissa, com quem ele se casou, também é
uma não-aquiloniana, como eu! – disse a linda Rainha Zenóbia ao Conde Trocero,
antes que o mesmo se retirasse dali.
2) Mistério
De forma quase
imperceptível, o silêncio do dia havia se transformado no silêncio da noite. A
lua ainda não havia saído e as pequenas estrelas prateadas davam pouca luz,
como se sua radiação se visse sufocada pelo calor que ainda surgia da terra.
Os cascos de
um só cavalo produziam um ressoar oco ao longo de uma rua deserta. Se alguém
observasse das janelas negras das casas, não demonstraria saber que era Demetrius
da Nemédia que montava o cavalo e avançava através da noite e do silêncio.
O corpo ágil e
atlético do jovem nemédio estava totalmente coberto por uma armadura leve, e
ele também usava um capacete. Parecia perfeitamente capaz de manejar a espada
longa e fina, com cabo cravejado de jóias, que lhe pendia do lado; e o lenço de
brilho rosa, que lhe cruzava o peito coberto de aço, não diminuía em nada a
imagem de masculinidade que oferecia.
Agora,
enquanto cavalgava, leu de novo o bilhete dobrado que trazia na mão e que, meio
desdobrado, deixava à mostra a seguinte mensagem, escrita nos caracteres
típicos da Aquilônia: “À meia-noite, meu amado, nos Jardins Malditos, do outro
lado dos muros. Fugiremos juntos”.
Um bilhete dramático.
Os belos lábios de Demetrius se curvaram ligeiramente ao lê-lo. Bom, podia
desculpar-se um pouco o melodrama de uma jovem, e ele mesmo sentia muito prazer
com isso. Um estremecimento de êxtase o sacudiu, só de pensar na situação. Ao
amanhecer, já estaria do outro lado da fronteira nemédia, junto à sua futura esposa.
Que o conde Trocero se enfurecesse o quanto quisesse, e que o exército aquiloniano
lhes seguisse o rastro, porque, uma vez cruzada essa fronteira, ele e Silvia
estariam a salvo. Sentia-se bem animado e romântico; seu coração inflava com os
estúpidos heroísmos típicos da juventude. Ainda faltavam várias horas para a
meia-noite, mas... Com os calcanhares cobertos de aço, ele fez o cavalo girar
para um lado pra seguir um atalho, através de umas estreitas ruas escuras.
- Oh, lua
prateada num peito de prata... – ele sussurrou em voz baixa, repetindo as
palavras de amor dos versos de Rinaldo, aquele poeta louco, já morto.
Então, o
cavalo fungou e se agitou, inquieto. Entre as sombras de uma porta esquálida,
uma indistinta forma escura se movia e gemia.
Demetrius se
inclinou e viu a forma de um homem. Arrastou o corpo para uma área mais
iluminada, e percebeu que o homem ainda respirava. Algo quente e pegajoso se
aderiu à sua mão.
O homem era gorducho
e aparentemente velho, pois seu cabelo era ralo e a barba estava manchada de
branco. Estava vestido com os farrapos de um mendigo, mas mesmo na escuridão, Demetrius
notou que as mãos eram suaves e brancas por debaixo da sujeira. O sangue
brotava de uma feia abertura na parte lateral da cabeça, e ele tinha os olhos fechados,
embora gemesse de vez em quando.
Demetrius
tirou um pedaço da própria faixa para lhe estancar a ferida e, ao fazê-lo, o
anel que trazia num dedo ficou emaranhado entre os pêlos da barba. Ao puxar a
mão, com um gesto impaciente, a barba se desprendeu completamente, deixando à
mostra o rosto suavemente barbeado e profundamente enrugado de um homem que
parecia estar no final da metade de sua vida. Demetrius soltou uma exclamação e
recuou. Levantou-se de um salto, perturbado e abalado. Ele ficou ali, de pé,
por um momento, sem deixar de olhar fixamente para o homem que gemia; logo, o
rápido barulho dos cascos de um cavalo, numa rua paralela, fê-lo recuperar os
sentidos.
Ele correu
pela rua, até chegar à esquina, e se aproximou do cavaleiro. O homem se deteve
com um movimento rápido, ao mesmo tempo em que levava a mão à espada. Os cascos
de seu corcel arrancaram faíscas do chão pavimentado da rua, ao fazer descer o
cavalo.
- O que está
acontecendo? Ah... é você, Demetrius!
- Pallantides!
– exclamou o jovem nemédio. – Rápido! Publius, o conselheiro-chefe, jaz nessa
rua. Está sem sentidos, e pode ter sido assassinado.
O general alto
e musculoso desmontou rapidamente, já empunhando a espada. Jogou as rédeas por
cima da cabeça de sua montaria, deixou o corcel ali, como uma estátua, e seguiu
velozmente Demetrius.
Ambos se
inclinaram sobre o conselheiro ferido, e Pallantides examinou seu corpo com
mãos experientes.
- Ao que
parece, não tem nenhuma fratura – grunhiu o general –, embora eu não possa
sabê-lo com certeza, é claro. A barba havia caído quando você o encontrou?
- Não, eu
puxei-a acidentalmente e ela se desprendeu...
- Nesse caso,
é bem provável que isto seja obra de algum desalmado que não o conhecia. Ao
menos, é o que eu prefiro pensar. Se o homem que o assaltou sabia que se
tratava de Publius, isso significaria que uma negra traição está sendo tramada
na Aquilônia. Eu já disse a ele, mais de uma vez, que seria um desastre
perambular pela cidade disfarçado desse modo, mas isso não é suficiente para
convencer um conselheiro. Ele insistiu que, desse modo, poderia saber do que
estava acontecendo, que poderia controlar o pulso do reino, segundo suas
próprias palavras.
- Mas, se foi
obra de um ladrão, por que não o roubaram? – perguntou Demetrius. – Aqui está
sua bolsa, com umas poucas moedas de cobre. Além do mais, quem tentaria roubar
um mendigo?
Pallantides praguejou.
- Tem razão.
Mas, em nome de Mitra, quem podia saber que ele era Publius? Ele nunca usou
duas vezes o mesmo disfarce, e só Enarus e um escravo lhe ajudavam a vesti-lo.
Quem o atacou procurava o quê? Ah, por Mitra... ele pode morrer, enquanto ficamos
aqui fazendo conjecturas. Ajude-me a subi-lo no meu cavalo.
Uma vez que o
conselheiro-chefe foi colocado na sela e sustentado pelos braços de aço de Pallantides,
eles percorreram as ruas em direção ao palácio. A guarda, assombrada, lhes deu
passagem, e o homem inconsciente foi levado a uma câmara interna e recostado
num leito, onde deu sinais de recuperar a consciência, sob os cuidados das cortesãs
e das damas da corte.
Finalmente,
ele se sentou e agarrou a própria cabeça com as mãos. O embaixador nemédio se
inclinou sobre ele.
- Publius!
Quem lhe atacou?
- Não sei –
respondeu o conselheiro, ainda tonto. – Não me lembro de nada.
- Você trazia
algum documento importante?
- Não.
- Lhe roubaram
algo?
Publius apalpou
as próprias roupas, incerto. Seu olhar nublado começou a clarear, e então,
repentinamente se iluminou com uma súbita compreensão.
- O anel! O
anel da assinatura real! Desapareceu!
Pallantides
esmurrou a palma de uma das mãos e praguejou, magoado.
- É nisso que
dá levá-lo sempre com você! Já lhe avisei! Rápido, Demetrius... uma vil traição
está sendo preparada. Compareçamos logo ao quarto do rei.
Diante do
dormitório real, montavam guarda dez Dragões Negros, o regimento favorito do
rei. Diante das rápidas perguntas de Demetrius, responderam que o Casal Real
tinha ido dormir há mais de uma hora, que ninguém havia tentado entrar, e que
não ouviram nenhum ruído.
Pallantides bateu
à porta dourada. Não houve resposta. Apressado pelo pânico, tentou abri-la, mas
estava trancada por dentro.
- Derrubem
esta porta! – ele gritou, com o rosto muito pálido e um inusitado timbre de
tensão na voz.
Dois dos Dragões
Negros, de tamanho gigantesco, lançaram todo seu peso contra a porta, mas esta,
por ser de denso carvalho e estar protegida por faixas de bronze, resistiu ao
embate. Pallantides os afastou para um lado e atacou a maciça porta com sua espada.
Sob os pesados golpes do aço afiado, a madeira e o metal terminaram cedendo e,
alguns momentos depois, ele lançava todo seu peso sobre ela e adentrava os
aposentos, passando por cima dos restos.
Ele parou
imediatamente, com um grito abafado, e olhou por cima do ombro, enquanto Demetrius
soltava uma praga em voz baixa. A cama real estava desarrumada, como se de fato
alguém tivesse dormido nela, mas não se via o menor rastro do rei, nem da
rainha. O quarto estava completamente vazio, e só a janela aberta parecia
oferecer uma explicação ao estranho desaparecimento.
- Vasculhem as
ruas! – rugiu Pallantides. – Vasculhem toda a cidade! Que redobrem a guarda em
todas as portas. Alertem toda a força dos Dragões Negros. Reúnam seus
cavaleiros e ponham-se à frente deles, até a morte se for preciso. Apressem-se!
Demetrius...
Mas o nemédio
havia desaparecido. Havia lembrado de repente que já era quase meia-noite, e
para ele era muito mais importante o fato de Silvia estar lhe esperando nos Jardins
Malditos, a três quilômetros de distância dos muros da cidade, antes de
conhecer o paradeiro do casal real, fosse qual fosse.
3) A assinatura do selo
Aquela noite,
Conan havia se retirado cedo para seus aposentos. Como de costume, fez amor mais
de uma vez com sua amada Zenóbia.
No exato
momento em que se virou para apagar a vela que iluminava o local, ele ouviu
leves batidas no alizar da janela. Com a espada na mão, cruzou o recinto com o
passo natural e silencioso de uma grande pantera, e olhou para fora. As sebes e
as árvores eram vistas vagamente na penumbra, sob a luz das estrelas. O ruído
das fontes chegava distante até ele, e seu olhar não conseguiu distinguir a
silhueta de nenhuma das sentinelas que percorriam aqueles limites.
Entretanto,
aqui, junto a seu cotovelo, se encontrava o mistério. Agarrada às trepadeiras
que cobriam o muro, havia uma pequena figura de rosto enrugado, com o mesmo
aspecto dos mendigos profissionais que pululavam pelas ruas mais sórdidas da
cidade. Parecia um ser inofensivo, com suas pernas delgadas e seu rosto de
macaco, e Conan o olhou com a testa franzida.
- Já vejo que
terei de colocar sentinelas sob minha janela, ou cortar estas trepadeiras. Como
conseguiu passar pela guarda?
O homem
enrugado levou um dedo magro aos lábios, com um gesto que pedia silêncio; logo,
com a habilidade típica de um símio, deslizou uma mão através das roupas e, em
silêncio, entregou um pergaminho a Conan. O rei o desenrolou e leu: “Rei Conan:
Se valorizas um pouco a vossa vida, ou o bem-estar do reino, siga este guia até
o lugar ao qual ele vos conduzirá. Não fale com ninguém. Não deixe os guardas
lhe verem. Os regimentos são uma efervescência de traições, e se queres
continuar vivendo e conservar o trono, deve fazer exatamente o que vos digo.
Confia no portador deste bilhete”. A missiva estava assinada: “Publius,
conselheiro-chefe da Aquilônia”, e se via nela o selo do anel real.
Conan franziu
as sobrancelhas. Aquilo não tinha boa aparência, mas se tratava, sem dúvida, da
caligrafia de Publius, pois não deixou de observar o traço peculiar e imperceptível
da última letra do nome de Publius, que era a característica peculiar do conselheiro,
por assim dizer. Além disso, havia o selo, e aquele selo não podia ser
duplicado. Era a assinatura de Conan.
- Muito bem –
assentiu. – Espere eu me armar.
- Irei com
você, Conan – disse Zenóbia, com tom de decisão na voz.
- Pode ser
perigoso, e você está grávida – respondeu o cimério. – Melhor ficar aqui.
- Ainda estou
no início da gestação, e não pense que vou ficar aqui, sozinha e preocupada,
até que a noite termine!
- Muito bem –
resmungou Conan, com um leve sorriso de admiração e orgulho. – Você vem,
então...
Vestido e
coberto com uma leve armadura de cota-de-malha, Conan se dirigiu novamente à
janela. Montou sobre o alizar e, com Zenóbia abraçada às suas costas, se agarrou
às trepadeiras e desceu por elas com a mesma facilidade com a qual fizera o pequeno
mendigo que lhe precedia.
Ao pé do muro,
Conan segurou seu companheiro pelo braço.
- Como
conseguiu enganar a guarda? – perguntou com um sussurro.
- A quem se
aproximou de mim, eu mostrei o sinal do selo real.
- Isso não
será suficiente agora. – grunhiu o rei – Sigam-nos; conhecemos a rotina que
seguem.
Transcorreram
uns vinte minutos, durante os quais permaneceram deitados, à espera, atrás de
uma árvore ou uma sebe, até que passasse uma sentinela, e avançassem para um
novo esconderijo, através de breves e rápidas corridas entre as sombras.
Finalmente, chegaram junto à muralha externa. Conan tomou seu guia pelos
tornozelos e o levantou até que os dedos deste se agarrassem ao alto da
muralha. Uma vez montado sobre ela, o mendigo lhe estendeu a mão para ajudá-lo,
mas Conan, com um gesto depreciativo, recusou. Em seguida, fez Zenóbia lhe
abraçar as costas novamente, recuou alguns passos, empreendeu uma curta corrida,
saltou no ar e se agarrou ao parapeito com uma das mãos, para logo elevar sua
grande estrutura com força e determinação, até encontrarem-se no alto da
muralha, tudo isso com um incrível desdobramento de força e agilidade.
Um instante
depois, as três figuras haviam pulado ao outro lado da muralha e desapareciam,
tragadas pela escuridão.
4) “Virou-se, encurralado”
Silvia, filha
do Conde Trocero, se sentia nervosa e assustada. Sustentada por suas elevadas
esperanças e pela sinceridade de seu amor, não lamentava a precipitação dos
atos que havia praticado nas últimas horas, mas desejava que logo chegasse a
meia-noite, que lhe traria seu amante.
Até o momento,
sua fuga havia sido fácil. Não era simples pra ninguém abandonar a cidade após
cair a noite, mas ela se afastara a cavalo da casa de seu pai pouco antes do
pôr-do-sol, após dizer à mãe que passaria aquela noite na casa de uma amiga.
Foi uma sorte para ela que, às mulheres das cidades da Aquilônia e de outros
reinos hiborianos, se lhes permitisse essa extraordinária liberdade, e não
tivessem que se verem reclusas nos haréns e em verdadeiras casas-prisões, como
ocorria nos reinos orientais; tratava-se de um costume que já existia desde a longínqua
Era Pré-Cataclísmica.
Silvia saiu
tranqüila pelo portão oriental, e logo seguiu diretamente aos Jardins Malditos,
situados a três quilômetros a leste da cidade. Estes jardins haviam sido
outrora o local de prazeres e propriedade rural de um nobre, mas histórias de
cruéis depravações e medonhos ritos de adoração demoníaca começaram a se
espalhar; e, finalmente, o povo, enlouquecido pelo desaparecimento regular de
suas crianças, caiu sobre os Jardins numa turba fora de si e enforcou o
príncipe diante de seus próprios portões. Vasculhando os jardins, o povo
encontrou coisas repugnantes e, numa maré de repulsa e horror, destruiu parcialmente
a mansão, as praças, os caramanchões, as grutas e os muros. No entanto, construídos
com mármore imperecível, muitos dos edifícios resistiram tanto aos malhos da
multidão quanto aos estragos do tempo. Agora, abandonados há mais de um século,
dentro daqueles muros semi-desmoronados, brotara uma verdadeira selva em
miniatura, e a vegetação cobria quase por completo as ruínas.
Silvia
escondeu o cavalo numa praça arruinada, e sentou-se sobre o chão de mármore
rachado, disposta a esperar. A princípio, não foi ruim. O suave pôr-do-sol
típico de verão pareceu inundar a paisagem, abrandando tudo com suas doces
tonalidades amareladas. Sentiu-se empolgada pelo vasto Rio Khorotas, onde ainda
se viam muros de mármore e telhados desmoronados. Mas, à medida que foi caindo
a noite e as sombras foram invadindo tudo, Silvia começou a ficar nervosa. A
brisa noturna parecia sussurrar coisas cruéis entre os galhos das árvores, as
largas folhas de palmeira e o capim alto; e as estrelas produziam uma impressão
de frieza e distância. Ela começou a se lembrar das lendas e histórias que
foram contadas e imaginou que, acima das fortes batidas de seu coração, podia
ouvir o atrito de invisíveis asas negras, e o murmúrio de vozes hostis.
Ela rogava
para que chegasse a meia-noite, e Demetrius com ela. Se Conan pudesse vê-la
naquele momento, ele não pensaria no mistério de sua profunda natureza, nem nos
sinais do grande futuro que a esperava. Só veria uma jovem assustada, que
desejava apaixonadamente se sentir consolada e acariciada nos braços de um
homem.
Mas, em nenhum
momento, passara pela mente dela a idéia de desistir.
Parecia que o
tempo não passava, embora transcorresse de alguma forma. Finalmente, um brilho
fraco indicou a próxima saída da lua, e ela notou que, pouco a pouco, a
meia-noite se aproximava.
Então,
ouviu-se de repente um ruído, que a fez se levantar de um salto e sentir o coração
lhe subir à garganta. Em algum lugar dos jardins supostamente desertos, o
silêncio da noite foi rompido por um grito e um som metálico de aço. Um novo
grito, breve e horrível, lhe gelou o sangue nas veias. Logo, se fez novamente o
silêncio, como um sufocante sudário.
“Demetrius! Demetrius!
Onde está você?”. Este pensamento martelava sem parar seu cérebro atordoado.
Possivelmente, seu amante havia comparecido ao encontro e caiu vítima de
alguém... ou de algo.
Ela saiu do
lugar onde se escondia, com a mão no coração, o qual parecia querer estourar entre
as costelas. Ela começou a percorrer um caminho pavimentado, e as folhas das
palmeiras roçaram seus dedos. Parecia estar rodeada por um abismo de sombras
pulsantes, vibrantes e cheias de uma maldade sem nome. Não se ouvia o menor
ruído.
Diante dela, erguiam-se
as sombras da mansão arruinada. De repente, dois homens a encontraram. Ela
lançou um único grito, e sua língua ficou como que petrificada de terror.
Tentou fugir, mas as pernas não lhe obedeceram, e antes que ela pudesse fazer
um só movimento, um dos homens se apoderou dela, agarrando-a pela cintura, e
colocou-a debaixo do braço como se ela fosse uma menina pequena.
- Uma mulher –
ele grunhiu num idioma que Silvia mal compreendeu, mas que reconheceu como Nemédio.
– Me dê seu punhal, que eu me encarrego de...
- Não temos
tempo agora – respondeu o outro, usando a mesma língua. – Jogue-a ali, com ele,
e depois nos encarregamos de ambos. Temos que trazer Phondar aqui, antes de
matar um dos cativos; ele quer interrogá-los um pouco.
- De que
adianta isso? – murmurou o gigante nemédio, que seguiu seu companheiro. – Eles
não vão querer falar, disso pode estar certo. Desde que os capturamos, só abriram
a boca para nos amaldiçoar.
Silvia,
transportada de maneira tão infame sob o braço de seu raptor, estava gelada de
pavor, mas sua mente funcionava a toda velocidade. A quem se referiam? A quem
queriam interrogar e logo assassinar? A possibilidade de ser Demetrius
desocupou sua mente do temor que sentia por si mesma, e encheu-lhe a alma de
ira selvagem e desesperada. Ela começou a espernear e se retorcer
violentamente, e levou um forte bofetão, que arrancou lágrimas de seus olhos e
um grito de dor de seus lábios. Resignou-se a uma humilhante submissão, e pouco
depois foi lançada, sem consideração alguma, através da soleira de uma porta
coberta pelas sombras. Caiu de bruços ao chão, como um novilho.
- Não seria
melhor amarrá-la? – perguntou o gigante.
- De que
serviria? Ela não pode escapar, e tampouco desatá-los. Vamos, se apresse. Temos
o que fazer.
Silvia se sentou
e olhou timidamente a seu redor. Ela se encontrava numa pequena câmara, cujos
cantos estavam cobertos de teias de aranhas. O chão estava coberto de poeira e
de fragmentos de mármore, soltos das paredes arruinadas. Uma parte do teto
havia desaparecido, e a lua, que agora se elevava lentamente, derramava sua luz
através da abertura. Graças a ela, pôde ver duas silhuetas no chão, próximas à
parede. Ela se encolheu, e os dentes se cravaram nos lábios, com uma
horrorizada expectativa; então, com uma delirante sensação de alívio, percebeu
que o homem era corpulento demais para ser Demetrius. Arrastou-se em direção a
eles e olhou-lhes o rosto. Assim como a mulher, o homem estava com as mãos e os
pés amarrados, além de amordaçado; mas, acima das mordaças, dois ardentes olhos
azuis miravam fixamente os seus, bem como dois brilhantes olhos negros.
- Rei Conan!
Rainha Zenóbia!
Silvia levou
ambas as mãos às têmporas, apertando-as, enquanto a sala parecia cambalear
diante de seu olhar abalado e surpreso. Um instante depois, seus dedos, delgados
porém fortes, se puseram a trabalhar sobre a mordaça. Após uns poucos minutos
de intenso esforço, conseguiu soltá-la. Conan esticou as mandíbulas e lançou
uma praga em sua própria língua, respeitando, mesmo em tal situação, os ternos
ouvidos da jovem. Em seguida, ela fez o mesmo com a rainha.
- Oh, milorde
e milady, como chegaram até aqui? –
perguntou a jovem, retorcendo as mãos.
- Ou bem o
conselheiro em quem mais confio é um traidor, ou eu sou um louco – grunhiu o
gigante. – Alguém se aproximou de nós com uma carta escrita por Publius, que
levava até o selo real. Eu o segui, como me pedia a carta. Atravessamos a
cidade e chegamos diante de uma porta, cuja existência nem eu sequer conhecia.
Esta porta não estava vigiada por ninguém, e aparentemente é desconhecida por
todos, exceto aqueles que conspiram contra mim. Uma vez do outro lado, alguém
esperava com cavalos, e cavalgamos a toda velocidade até estes Jardins
Malditos. Deixamos os cavalos próximos ao muro semi-derrubado, e fomos
conduzidos até aqui, como estúpidos cegos e surdos, prontos para o sacrifício.
Ao cruzar a soleira dessa porta, uma grande rede caiu sobre mim e Zenóbia, o
que me impediu de desembainhar a espada, e me prendeu os membros. Num instante,
uma dúzia de canalhas avançou sobre nós e... bom, de qualquer forma, me
capturar não foi tão fácil quanto haviam imaginado. Dois deles me retorceram o
braço, de modo que não consegui usar a espada, mas dei um belo chute num deles,
e pude ouvir o estalo de suas costelas se partindo. Consegui rasgar parte da
rede que me prendia, com a mão esquerda, e atravessei com minha adaga um outro,
que encontrou a morte e gritou como uma alma perdida em seu último instante.
Mas, por Crom, eles eram muitos! Finalmente, conseguiram tirar minha armadura –
Silvia percebeu, então, que o rei só usava uma espécie de tanga –, e nos
amarraram e amordaçaram como você viu. Nem sequer o próprio diabo conseguiria
romper estas cordas. Não vale a pena tentar desatar os nós. Pelo visto, um
daqueles homens era marinheiro, e sei muito bem os tipos de nós que os marujos
são capazes de fazer. Eu mesmo fui pirata várias vezes, no passado.
- Mas, o que
posso fazer? – gemeu a jovem, sem deixar de retorcer as mãos.
- Pegue um
pedaço grande de mármore e o desbaste até obter um lado afiado – respondeu
Conan, apressado. – Você tem que me cortar estas cordas.
Ela assim o
fez, e seus esforços foram recompensados quando ela conseguiu um fino pedaço de
mármore, cuja borda côncava parecia tão afiada quanto uma faca serrilhada.
- Tenho medo
de cortar sua pele, senhor – ela se desculpou, ao mesmo tempo em que começava a
trabalhar.
- Corte a
pele, a carne e até o osso se for preciso pra me soltar – disse bruscamente
Conan, com os olhos acesos. – Me deixar capturar como um cego estúpido! Ah, que
imbecil que sou! Por Crom, Ymir e Mitra! Mas quando eu puser as mãos naqueles
cães... E você? Como chegou até aqui?
- Falaremos
disso mais tarde – respondeu Silvia, ofegante. – Agora não temos tempo a
perder.
O silêncio se
fez, enquanto a jovem tentava cortar as duras amarras, sem o mínimo de
preocupação com as mãos delicadas, que não demoraram em ficar feridas e sangrando.
Mas lentamente, fiapo a fiapo, as cordas foram cedendo. No entanto, continuaram
suficientes para prender qualquer homem comum, quando passos pesados ressoaram
na soleira.
Silvia ficou
petrificada. Ouviu-se uma voz em sotaque nemédio.
- Eles estão
aí dentro, Phondar; amarrados e amordaçados. Há uma dama aquiloniana com eles,
a qual encontramos perambulando pelos jardins.
- Nesse caso,
vigiem atentamente, para o caso de seu galanteador chegar – disse outra voz em
tom duro e rangente, como o de um homem acostumado a ser obedecido. – É bem
provável que tenha marcado encontro com algum mentecapto por aqui. Quanto a você...
- Nada de
nomes, nada de nomes, meu bom Phondar – lhe interrompeu uma sedosa voz
aquiloniana. – Lembre-se de nosso acordo. Até que Timothius de Belverus se
sente no trono, eu não sou mais que... o mascarado.
- Muito bem –
grunhiu o nemédio. – Pois então, devo dizer-lhe que fez um ótimo trabalho esta
noite, mascarado. Ninguém mais, além de você, o teria conseguido, pois só você
sabia como se apoderar do selo real. Só você conseguiria imitar tão bem a
escrita de Publius. E, a propósito... matou o velho?
- Que importa
isso? Ele morrerá esta noite, ou no dia em que Timothius subir
ao trono. O que realmente importa é que o rei e a rainha estão em nosso poder,
e indefesos.
Conan pensava
a toda velocidade, numa tentativa desesperada de distinguir a voz cavernosa e familiar
daquele traidor. Quanto a Phondar... seu rosto esboçou um gesto cruel. Era uma
conspiração muito importante, para que a Nemédia enviasse o comandante de suas
forças armadas, a fim de realizar o trabalho sujo. O rei conhecia muito bem
Phondar, e em outras ocasiões, havia até acolhido-o no palácio. Agora, além de
quererem fazer o que não conseguiram através da magia do falecido Xaltotun,
ainda pretendiam levar Zenóbia de volta ao harém do Rei Tarascus!
- Entre e
tire-os daí – ordenou Phondar. – Nós os levaremos à velha câmara de torturas.
Tenho algumas perguntas pra fazer a eles.
A porta se
abriu e um homem entrou: era o mesmo gigante que havia capturado Silvia. Fechou
a porta atrás dele e cruzou a sala, sem dirigir um só olhar à garota, encolhida
num canto. Inclinou-se sobre o rei e o agarrou pelo ombro e uma perna, para levantá-lo
a pulso; então, se ouviu um golpe repentino quando Conan, empregando toda a sua
força férrea, deu um puxão convulsivo e rompeu o resto das cordas que ainda lhe
seguravam.
Não ficara
amarrado por tempo suficiente para lhe interromper a circulação, o que poderia
afetar sua força. Suas mãos se lançaram em direção ao pescoço do gigante, como
faria um píton, e o envolveram com garras de aço.
O gigante caiu
de joelhos. Levou uma das mãos aos dedos que lhe apertavam o pescoço, e a outra
à bainha da adaga. Seus dedos envolveram como aço o pulso de Conan, e a adaga
saiu da bainha com um brilho metálico. Logo, seus olhos se arregalaram, ele abriu
a boca e a língua saiu, flácida. Os dedos se soltaram do pulso do rei, e a
adaga lhe caiu da mão já sem força. O nemédio ficou flácido, com a garganta
literalmente esmagada sob aquela terrível pressão. Conan deu um puxão
aterrorizante de sua cabeça para um lado, partindo-lhe o pescoço; o largou ao
chão e lhe desembainhou a espada. Enquanto isso, Silvia havia recolhido a adaga
caída ao chão e desamarrado Zenóbia com relativa facilidade.
A luta só
durara alguns segundos, e não fizera mais barulho do que um homem levantando um
outro pesado para lançá-lo sobre o ombro.
- Apresse-se!
– gritou a voz impaciente de Phondar, do outro lado da porta.
Conan,
escondido como um tigre no interior da sala, pensou rapidamente. Sabia que, lá
fora, havia pelo menos um pelotão de conspiradores. E a rainha sabia, pelo
ruído das vozes, que, do outro do lado da porta, só havia dois ou três, pelo
menos por enquanto. A sala onde estavam não era um bom lugar para se defenderem.
Os outros não demorariam em entrar para ver o que causava o atraso. Então, ele
tomou uma decisão e agiu rapidamente. Chamou Zenóbia e a garota para seu lado.
- Quando tiverem
saído por essa porta, saiam correndo e subam a escada à esquerda.
As duas jovens
assentiram, trêmulas, e ele deu-lhes leves palmadas tranqüilizadoras nos ombros.
Logo, deu meia-volta e abriu repentinamente a porta.
Os homens que
estavam do outro lado esperavam ver o gigante nemédio, com o rei inerte sobre
os ombros. Diante daquela aparição inesperada, ficaram boquiabertos. Conan estava
de pé ante a porta, seminu, agachado como um tigre humano prestes a saltar, mostrando
os dentes num grunhido de fúria combativa, com os olhos acesos. A lâmina da
espada que empunhava deu um giro, como uma roda de prata sob a luz da lua.
Conan viu
Phondar, acompanhado por dois soldados nemédios, e uma figura delgada que usava
uma máscara negra. Passou-se apenas um instante fugaz, e ele se lançou contra
seus inimigos. A dança da morte havia começado.
O comandante nemédio
foi o primeiro a cair, ante a primeira investida do rei, com a cabeça aberta
até os dentes, apesar do capacete que usava. O mascarado desembainhou e lançou
uma estocada com a espada, cuja ponta percorreu a bochecha de Conan. Um dos
soldados, que se arremessou contra o rei empunhando uma lança, foi habilmente
evitado e, um instante depois, jazia morto sobre seu chefe. O outro soldado deu
meia-volta e pôs-se a correr, gritando por seus colegas. O mascarado recuou
rapidamente diante do ataque do rei, sem deixar de esquivar e deter seus golpes
com uma habilidade quase incrível. Mas, diante da cansativa ferocidade da
investida, não teve tempo para atacar; só para se defender. Conan golpeava a
lâmina de seu aço como um ferreiro na bigorna, e cada um de seus ataques
parecia prestes a partir em dois aquela cabeça mascarada e encapuzada, mas a longa
e delgada espada aquiloniana sempre se interpunha no caminho, desviava a
estocada por pouco, ou conseguia detê-la a poucos centímetros de sua pele,
embora sempre o suficiente.
Então, Conan
viu que os soldados nemédios corriam em direção a eles por entre o mato, ouviu
o tilintar de suas armas e seus gritos ferozes. Pego ali, ao ar livre, não demorariam
em cercá-lo e espetá-lo como a um rato. Lançou uma última estocada maligna
contra o aquiloniano que recuava, e logo, erguendo-se, deu meia-volta e pôs-se a
correr pela escada, no alto da qual Silvia e Zenóbia já lhe esperavam.
Uma vez ali,
ele virou-se, encurralado. Ele as jovens estavam sobre uma espécie de
promontório artificial. Um trecho da escada levava para cima, e antigamente
devia ter existido outro trecho que conduzia para baixo, mas este último havia
desmoronado. Conan percebeu que estavam num beco sem saída. As paredes caíam
aos poucos, cobertas por esculturas talhadas no muro. “Bem, morreremos aqui”,
pensou Conan. “Mas também morrerão muitos outros”.
Os nemédios se
reuniram ao pé da escada, sob a direção do misterioso aquiloniano mascarado.
Conan segurou com força o cabo da espada e lançou a cabeça para trás, como um
regresso inconsciente aos tempos em que vestia peles ao invés de sedas.
Ele nunca
havia temido a morte, e não a temia agora; e, se não fosse por um único
detalhe, teria dado boas-vindas ao clamor e à loucura da batalha, como a uma
velha amiga, sem lamentações inúteis. O detalhe era a presença de Silvia e
Zenóbia, que estavam ao seu lado. Ao vê-las tremerem e observar-lhes a palidez
dos rostos, tomou uma decisão repentina.
Levantou a mão
e gritou:
- Ei, homens
da Nemédia. Estou aqui, cercado! Muitos cairão antes que eu morra. Mas, se me
prometerem que soltarão as moças, sem lhes causar o menor dano, não levantarei
uma só mão contra vocês. Poderão me matar como a uma ovelha.
Silvia e a
rainha lançaram gritos de protesto, e o mascarado deu uma gargalhada.
- Não fazemos
acordos com quem já está condenado. Estas garotas também devem morrer, e eu não
faço promessas para violá-las. Além disso, já que a rainha não pode pertencer
mais ao serralho de Tarascus, ela não será de mais ninguém! Para o alto, guerreiros;
a ele!
Subiram a
escada como uma onda negra de morte, fazendo as espadas brilharem como prata
congelada sob a luz da lua. Um deles se adiantou demais. Era um enorme
guerreiro brandindo um grande machado de combate. Este homem, que se moveu com
mais rapidez do que Conan esperava, fixou-se um momento sobre o patamar da
escada. Conan atacou e o machado desceu. Com a mão esquerda no alto, ele deteve
a descida da arma no ar, segurando-a pelo pesado cabo – uma façanha que poucos
homens conseguiriam realizar –, e ao mesmo tempo golpeou com a direita o lado
de seu inimigo; e o fez com tal força, que a longa espada atravessou a
armadura, a musculatura e o osso, e a lâmina ficou incrustada na coluna
vertebral, quebrando-se.
Ao percebê-lo,
mal demorou um instante em soltar o cabo da espada inútil e arrancar o machado
da mão do guerreiro moribundo, que cambaleou para trás e caiu pela escada,
seguido por uma breve e cruel gargalhada de Conan.
Os nemédios
hesitaram sobre a escada e, mais embaixo, o mascarado os animou selvagemente a
se lançarem ao ataque. Eles, por sua vez, se mostraram mais dispostos a deixar
as coisas como estavam.
- Phondar
morreu – gritou um. – Por acaso, vamos receber ordens de um aquiloniano?
Estamos enfrentando um demônio, e não um homem! Salvem-se!
- Covardes
estúpidos! – gritou a voz do mascarado, erguendo-se num grito felino. – Não
percebem que sua única segurança se apóia em matar o rei e a rainha? Se fracassarem
esta noite, seu próprio governo lhes repudiará e ajudará os aquilonianos a
caçarem vocês. Pra cima, estúpidos! É possível que morram alguns, mas é muito
melhor que morram uns poucos sob o machado do rei, do que morrerem todos na
forca. Se um só de vocês se atrever a recuar por esta escada, eu mesmo o
matarei!
E, ao mesmo
tempo em que dizia estas palavras, a longa e delgada espada lhes ameaçou.
Desesperados e
temerosos ante seu líder, eles reconheceram a verdade que havia em suas
palavras, e os guerreiros se voltaram para o aço de Conan. No momento em que se
lançaram em massa ao que seria fundamentalmente seu último ataque, Silvia viu
sua atenção atraída por um movimento que se produziu na base da parede. Uma
silhueta se destacou dentre as sombras e começou a subir a parede vertical,
escalando como um macaco, e usando as esculturas talhadas na parede como pontos
de apoio para as mãos e os pés. Aquele ponto do muro estava envolto em sombras,
e ela não conseguiu distinguir os traços do homem que subia; além disso, ele
usava um pesado capacete que lançava mais sombras ainda sobre seu rosto.
Sem dizer nada
a Conan, que estava de pé sobre o patamar, com o machado preparado, nem a Zenóbia,
que assistia à batalha com ar apreensivo e preocupado, ela olhou pela beirada
do muro, meio oculta atrás das ruínas do que outrora devia ter sido um parapeito.
Então, notou que aquele homem usava uma armadura completa, mas continuava sem
ver seus traços. Sua respiração se acelerou, e ela levantou a adaga, fazendo
destemidos esforços para conter uma onda de náuseas.
Então, um
braço coberto de aço apareceu pela beirada, agarrando-se à mesma. A moça saltou
tão rápida e silenciosamente quanto uma tigresa, e atacou o rosto desprotegido,
que se levantou repentinamente em direção à luz da lua. E, no exato momento em
que a adaga descia, e já não podia deter o golpe que se dispunha a dar, ela
lançou um grito de surpresa e aflição. Porque, nesse último e fugaz segundo,
reconheceu o rosto de seu amante, Demetrius da Nemédia.
5) A batalha da escada
Depois de ter saído
do palácio, Demetrius correu até seu cavalo e cavalgou rapidamente para o
portão leste. Ouvira Pallantides dar ordens pra fecharem todas as portas da
cidade e que não deixassem ninguém sair, e cavalgou como um louco para se
antecipar ao cumprimento dessa ordem. De qualquer modo, já era muito difícil
sair pela noite, e Demetrius, informado de que os portões não estariam
protegidos esta noite pelos incorruptíveis Dragões Negros, tivera a intenção de
abrir caminho à base de subornos. Agora, em compensação, tudo dependia da
audácia de seu plano.
Com o cavalo
coberto de suor, ele o parou diante do portão leste e gritou:
- Abra a
porta! Rápido! O rei e a rainha desapareceram! Abram caminho, e logo depois
vigiem bem o portão! Em nome do rei! – Ao ver que os soldados hesitavam, ele
acrescentou: – Apressem-se, estúpidos! Talvez eles estejam correndo um perigo
mortal! Abram!
Do outro lado
da cidade, em tom profundo, capaz de gelar os corações com um susto, chegou o
som do grande sino de bronze do rei, que só toca quando o rei está em perigo. Os guardas
ficaram como que eletrificados. Sabiam que Demetrius era muito estimado, como
nobre que estava visitando a Aquilônia. Acreditaram, portanto, em suas palavras
e, impelidos por sua vontade, lhe abriram os grandes portões, o cavaleiro saiu
imediatamente em disparada feito um raio e, um momento mais tarde, havia
desaparecido na escuridão.
Enquanto
cavalgava, esperava que Conan, assim como Zenóbia, não tivesse sofrido danos
graves, pois ele preferia aquele bárbaro simples muito mais que aos outros
reis, sofisticados e sem sangue, dos outros países hiborianos. Se pudesse,
ajudaria na busca. Mas Silvia estava lhe esperando, e ele já chegava atrasado.
Assim que o
jovem nobre entrou nos jardins, teve a peculiar sensação de que ali, no próprio
coração da desolação e solidão, havia muitos homens presentes. Um instante
depois, ouviu o entrechocar do aço, o som de muitos passos apressados e gritos
ferozes em sua própria língua. Desmontou, desembainhou a espada e abriu caminho
cuidadosamente por entre o mato, até se ver diante da mansão em ruínas. E lá, seus olhos
puderam contemplar uma cena estranha.
No alto de uma
escada meio arruinada, estava em pé um gigante seminu e manchado de sangue, a
quem reconheceu de imediato como o Rei da Aquilônia. Ao lado deste, se
encontrava duas mulheres, e Demetrius mal conseguiu reprimir o grito que saiu
de seus lábios. Uma delas era Silvia! As unhas morderam as palmas das mãos
fechadas. Quem eram aqueles homens, vestidos de negro, que se lançavam escada
acima? Não importava. Sem dúvida alguma, pretendiam matar as mulheres e Conan.
Ouviu o desafio que o rei lhes lançou, oferecendo-lhes a vida em troca das de Silvia
e Zenóbia, e sentiu-se invadido por uma onda de gratidão. Então, observou as
esculturas existentes na parede próxima a ele, e não vacilou nem um momento.
Começou a subir, disposto a morrer junto ao rei, protegendo tanto a mulher que
amava quanto a recém-coroada rainha, à qual respeitava.
Havia perdido Silvia
e Zenóbia de vista, e agora, enquanto subia, não se atrevia a usar seu tempo
para procurá-las. Ele realizava uma tarefa traiçoeira e escorregadia, na qual
não podia se descuidar. Não voltou a vê-la até chegar à beirada e se impulsionar
para o alto. Então, ouviu Silvia gritar, e viu a mão que descia em direção a
seu rosto, segurando um raio de prata. Ele se retraiu instintivamente, e
recebeu o golpe sobre o capacete. A adaga se quebrou até o cabo, Silvia se
desmoronou e caiu em seus braços.
Ao ouvir o
grito, Conan virou-se em direção a eles, com o machado no alto. Deteve-se. Ele
e Zenóbia reconheceram o nemédio e, mesmo naquele instante de perigo, compreenderam
o que ocorria. Sabiam por que o casal estava ali, e sorriram, realmente satisfeitos.
O ataque parou
por apenas um segundo, quando os nemédios perceberam a presença do segundo
homem sobre o patamar. Mas, em seguida, voltaram a se lançar ao ataque e
subiram os degraus, sob o luar, com suas lâminas brilhando e uma expressão
desesperada no olhar. Conan foi ao encontro do primeiro, com um golpe que
esmagou capacete e crânio ao mesmo tempo. Logo, Demetrius ficou ao seu lado e
atravessou a garganta de um nemédio. Em seguida, teve início a batalha da
escada, imortalizada por poetas e menestréis.
Conan estava
ali para morrer, e matar antes de morrer. Não se preocupou em nada com a
defesa. Seu machado transformou-se numa roda que semeava a morte a seu redor e,
a cada golpe que dava, produzia um estalo de aço e ossos, fazia brotar sangue
ou arrancava um grito de agonia. Os corpos se amontoavam sobre a escada, mas os
sobreviventes não vacilaram em seu ataque e voltaram à carga, avançando por
cima das figuras ensangüentadas de seus colegas.
Demetrius teve
poucas oportunidades de dar algum golpe. Percebeu em seguida que o melhor que
podia fazer era proteger Conan, que nasceu para matar, mas que por estar sem
armadura, corria o grave perigo de cair a qualquer momento.
Desse modo,
ele teceu, com sua espada, uma rede de aço ao redor do rei, expondo todas as
habilidades no manejo da arma. Sua lâmina relampejante desviava as estocadas
dirigidas contra o coração de Conan. Seu antebraço revestido de ferro detinha
cada um dos golpes, que, de outra maneira, teriam matado-o. Em duas ocasiões,
recebeu, sobre seu próprio capacete, os golpes destinados à cabeça nua do rei.
Mas não é
fácil proteger outro homem, ao mesmo tempo em que se protege. Conan sangrava
dos cortes sofridos no rosto e no peito, de uma facada aberta na têmpora, de
uma espetada na coxa e de um profundo ferimento no ombro. Uma lança havia
rasgado a couraça de Demetrius, ferindo-lhe um lado, e ele sentiu as forças lhe
abandonarem. Um último esforço de seus inimigos, e o nemédio desmoronou e caiu
aos pés de Conan, ao mesmo tempo em que uma dúzia de armas pontiagudas tentava
tirar-lhe a vida. Conan lançou o rugido de um leão, fez o machado balançar
poderosamente de um lado a outro, limpou o espaço diante dele e ficou ao lado
do jovem caído. Os inimigos voltaram a lançar-se ao ataque.
Naquele
momento, um estrondo de cavalos ressoou nos ouvidos de Conan, e os Jardins
Malditos não demoraram em se ver inundados por cavaleiros enlouquecidos, que
gritavam como lobos ao luar. Uma chuva de flechas cruzou o ar sob as estrelas,
e os homens bradaram e caíram de bruços sobre os degraus, para ficarem imóveis,
ou para arrancarem as cruéis pontas profundamente cravadas em seus corpos. Os
poucos que não haviam recebido a carícia do machado de Conan, ou das flechas,
fugiram escada abaixo, só para se defrontarem com as sibilantes espadas azuladas
dos Dragões Negros e de ninguém menos que o próprio Amalric da Nemédia, o qual
nunca deixara de ser amigo de Conan e vice-versa. E ali morreram aqueles guerreiros
nemédios, lutando até o último instante, como gatos inofensivos de seu rei que
lhes havia enviado a uma missão tão perigosa quanto vil e estúpida, rechaçados
pelos mesmos que os haviam enviado e cobertos para sempre pela infâmia. Contudo,
morreram como homens.
Mas houve um
que não morreu ali, ao pé da escada. O mascarado fugiu enquanto ouvia o som dos
cavalos, e agora cruzava a extensão dos jardins, lançado a toda velocidade
sobre um extraordinário cavalo. Havia quase chegado ao muro externo, quando o General
Pallantides se interpôs em seu caminho. Do alto promontório onde estava, Conan,
apoiado sobre seu machado ensangüentado, os viu lutar sob a luz da lua.
O mascarado
havia abandonado suas táticas defensivas. Investiu contra o aquiloniano, com
uma valentia impiedosa, e o agigantado general dos Dragões Negros foi ao seu encontro,
cavalo contra cavalo, homem contra homem, espada contra espada. Ambos eram
cavaleiros magníficos. Seus corcéis, obedientes ao toque da brida e à pressão
dos joelhos, deram meia-volta, empinaram e saltaram. Mas, durante todos estes
movimentos, as lâminas das espadas não deixaram de assobiar, sem perder o contato
uma com a outra. Pallantides, como todos os homens de seu país, usava a larga
espada azulada da Aquilônia. Em alcance e velocidade, havia pouca diferença
entre eles, e Conan, Silvia e Zenóbia, enquanto observavam, prenderam mais de
uma vez a respiração e morderam os lábios, quando pareceu que Pallantides
estava prestes a cair sob uma estocada maligna.
Estes
guerreiros não tiveram um momento de descanso. Lançavam estocadas e detinham-nas,
rechaçavam e voltavam ao ataque. De repente, Pallantides pareceu perder o contato
com a lâmina de seu adversário, evitou uma finta e pareceu ficar ao ar livre. O
mascarado fincou os calcanhares nos flancos de seu cavalo, de modo que espada e
cavalo saíram em disparada para a frente ao mesmo tempo. Pallantides se inclinou
para um lado, e deixou que a lâmina passasse, roçando-lhe o lado da couraça;
então, sua própria lâmina surgiu reta, e o cotovelo, o pulso, o cabo e a ponta
formaram uma só linha que se iniciava em seu ombro. Os cavalos se chocaram e
caíram juntos, debruçados sobre a relva. Mas, em meio à confusão de patas, Pallantides
se ergueu sem haver recebido o menor ferimento, enquanto ali, sobre a grama, o
mascarado ficou estendido, com a espada do poderoso aquiloniano ainda fincada
em seu corpo.
Conan
despertou de seu transe; os Dragões Negros bradavam de vitória, mas ele ergueu
a mão para impor silêncio.
- Já basta!
Todos são heróis! Mas cuidem de Demetrius, que está gravemente ferido. E,
quando houverem terminado, podem cuidar de meus próprios ferimentos. Pallantides,
como conseguiu me encontrar?
Pallantides chamou
Conan para se aproximar do lugar onde o mascarado estava estendido.
- Um velho
mendigo lhes viu saltarem a muralha do palácio e, por simples curiosidade,
observou para onde se dirigiam. Seguiu-lhes e viu vocês saírem pela porta esquecida.
Eu estava cavalgando, pela planície entre a muralha e estes jardins, quando
ouvi o estrondo do aço. Mas, quem pode ser este?
- Levante-lhe
a máscara – disse Conan. – Seja quem for, foi ele quem imitou a letra de Publius,
quem arrebatou dele o anel do selo e...
Zenóbia adiantou-se,
correndo até eles, e arrancou-lhe a máscara.
- Enarus! –
exclamou Conan. – O sobrinho de Publius! Zenóbia e Pallantides: Publius nunca
deve saber disto. Façam-no crer que Enarus cavalgou com Pallantides e morreu lutando
por seu rei.
Pallantides o
olhou, assombrado.
- Enarus! Um
traidor! Mas eu, mais de uma vez, me embriaguei com ele e dormi numa de suas
camas.
- Eu gostava
de Enarus – disse Conan, assentindo.
Pallantides limpou
a lâmina da espada e voltou a guardá-la na bainha, produzindo um maligno som
metálico.
- O desejo é
capaz de transformar qualquer homem num velhaco – ele disse, com tristeza. –
Ele estava muito endividado, e Publius se mostrava mesquinho com ele. Sempre
afirmava que dar dinheiro demais aos jovens não era bom para eles. Enarus se
viu obrigado a manter as aparências, ainda que fosse só por orgulho, e assim
caiu nas mãos dos agiotas. Desse modo, resulta que Publius é o maior traidor de
todos, pois sua avareza empurrou o rapaz à traição... e gostaria que o coração
de Publius detesse a ponta de minha espada, no lugar do seu.
E, após dizer
estas palavras, o general deu meia-volta e se afastou com expressão sombria.
Conan e
Zenóbia voltaram-se para Demetrius, que estava meio inconsciente, enquanto os Dragões
Negros lhe enfaixavam os ferimentos com dedos experientes. Outros se ocuparam
em cuidar do rei, e enquanto limpavam e enfaixavam, Silvia se aproximou de Conan.
- Milorde –
ela disse, estendendo em sua direção as pequenas mãos, agora arranhadas e
manchadas de sangue seco –, não terás agora piedade de nós e nos concederá nosso
desejo... – sua voz se quebrou por um instante, antes de terminar a frase – se Demetrius
estiver vivo?
Conan pegou-a
pelos delgados ombros e sacudiu-a, angustiado.
- Ah, garota,
garota! Peça-me qualquer coisa, menos algo que eu não possa lhe conceder. Peça-me
a metade do meu reino, ou minha mão direita, e serão suas. Pedirei a Trocero
que lhe dê o consentimento para se casar com Demetrius; irei até suplicá-lo,
mas não posso obrigá-lo.
Uns cavaleiros
altos começaram então a cruzar os jardins, com resplandecentes armaduras que
reluziam entre as dos Dragões Negros. Um homem alto parou diante deles e
levantou a viseira do capacete.
- Pai!
Trocero
apertou a filha entre os braços, com um soluço de agradecimento, e logo se
voltou para seu rei.
- Milorde,
estás gravemente ferido!
Conan sacudiu
a cabeça.
- Não é nada
grave, ao menos no que me diz respeito, embora outros homens possam se sentir
bem pior. Mas aqui está aquele que recebeu as investidas mortais dirigidas
contra mim; aquele que se transformou em meu escudo e capacete, de modo que, se
não fosse por ele, a Aquilônia estaria agora aclamando um novo rei.
Trocero deu
meia-volta até o jovem prostrado.
- Demetrius!
Está morto?
- Não lhe
falta muito – grunhiu um vigoroso soldado, que ainda se dedicava a cuidar de
seus ferimentos. – Mas é de aço e de osso de baleia. Se for bem cuidado, conseguirá
sobreviver.
- Ele veio
aqui para se encontrar com sua filha e fugirem juntos – disse Conan, enquanto Silvia
inclinava a cabeça. – Avançou por entre o mato, e me viu lutar por minha vida,
pela de Zenóbia e pela dela, no alto daquela escada. Ele poderia ter fugido.
Nada o impedia. Mas subiu por esta parede inclinada, em direção ao que,
naqueles momentos, parecia uma morte certa, e lutou a meu lado tão alegremente
como se estivesse indo a uma festa... e nem sequer é um súdito meu por
nascimento.
Trocero não
fazia mais do que se lembrar das palavras que ouvira da Rainha Zenóbia da
Aquilônia. Seus olhos se iluminaram, e ele se inclinou sobre a filha.
- Silvia – ele
disse com voz doce, atraindo a jovem para a proteção de seu braço protegido por
aço –, ainda deseja casar-se com este jovem temerário?
Os olhos da
moça foram suficientemente eloqüentes.
- Levantem-no
com muito cuidado – dizia o rei a seus homens –, e levem-no ao palácio. Cuidem
para que lhe proporcionem a melhor...
- Milorde e milady – interpôs-se Trocero –, rogo-lhes
que permitam que eu mesmo me encarregue dele. Nos meus aposentos, ele será
atendido pelos melhores médicos que eu sempre trago de Poitain para cá; e, após
sua recuperação... bom, se essa for vossa vontade real, não acham que
poderíamos comemorá-la com um casamento?
Silvia soltou
um grito de alegria ao ouvir aquelas palavras, entrelaçou as mãos, beijou o
pai, a Conan e a Zenóbia, e partiu para acompanhar Demetrius, sem se afastar um
só instante de seu lado, como uma pessoa inquieta.
Trocero sorriu
docemente, com seu rosto aristocrático aceso.
- Veja... de
uma noite de sangue e de terror, nascem a alegria e a felicidade.
O rei bárbaro
lhe sorriu, e jogou ao ombro o machado sujo de sangue.
- A vida é
assim, conde: o mal de um homem constitui a bênção de outro.
FIM
A Seguir: Em Busca de Lissa.