Inimigos em Casa

(por Robert E. Howard)


Originalmente publicado em Weird Tales, janeiro de 1934.



1) "Um fugiu, outro morreu e outro está dormindo
numa cama de ouro
".
(Ditado Antigo)



Durante uma festa da corte, Nabonidus, o Sacerdote Vermelho – que era o verdadeiro governante da cidade –, tocou educadamente o braço de Murilo, o jovem aristocrata. Murilo voltou-se e se deparou com o olhar enigmático do sacerdote, tentando descobrir o seu significado oculto. Nenhuma palavra foi pronunciada entre eles, mas Nabonidus fez uma reverência e entregou a Murilo um pequeno cofre de ouro. O jovem nobre, sabendo que Nabonidus não fazia nada sem ter uma razão para isso, pediu para ser dispensado na primeira oportunidade e voltou apressadamente para o seu aposento. Abrindo o cofre, encontrou dentro dele uma orelha humana, que logo reconheceu por causa de uma cicatriz característica. Começou a suar profusamente, e não teve mais dúvidas quanto ao significado do olhar do Sacerdote Vermelho.

Mas Murilo, apesar de seus negros e perfumados cabelos encaracolados e de suas vestes afetadas, não era nenhum fraco para entregar o pescoço à faca sem lutar. Ele não sabia se Nabonidus estava apenas brincando com ele, ou se estava lhe dando uma chance de partir para o exílio voluntário; mas o fato de que ainda estava vivo e em liberdade provava que lhe eram dadas pelo menos algumas horas, provavelmente para meditar. Entretanto, não precisava meditar para tomar uma decisão; precisava era de uma ferramenta. E o Destino lhe fornecia essa ferramenta que, naqueles momentos em que o jovem nobre tremia e ponderava na parte da cidade ocupada pelas torres de mármore roxo e palácios de marfim da aristocracia, estava trabalhando entre as espeluncas e os bordéis dos bairros paupérrimos.

Havia um sacerdote de Anu, cujo templo, que se erguia nos arredores do bairro das favelas, era cenário de outras coisas além de devoção. O sacerdote era um homem gordo e bem alimentado, e era ao mesmo tempo um receptador de artigos roubados e um informante da polícia. Fazia um comércio vantajoso de ambos os lados, pois o distrito no qual atuava era o Labirinto, um emaranhado de ruelas lamacentas e sinuosas, de espeluncas sórdidas, freqüentadas pelos ladrões mais ousados do reino. Os mais intrépidos de todos eram um gunderlandês, desertor dos mercenários e um cimério bárbaro. Por causa do sacerdote de Anu, o gunderlandês fora capturado e enforcado na praça do mercado. Mas o cimério fugira e, descobrindo por caminhos tortos a traição do sacerdote, entrou à noite no templo de Anu e decepou-lhe a cabeça. Seguiu-se um grande tumulto na cidade, mas a busca do assassino foi infrutífera até que sua companheira o entregou às autoridades, levando um capitão da guarda e seu esquadrão ao quarto escondido onde o bárbaro jazia embriagado.

Despertando meio tonto, mas feroz, quando o apanharam, ele arrancou as entranhas do capitão, arremeteu-se no meio dos assaltantes e teria escapado se não fosse o álcool que ainda nublava seus sentidos. Confuso e meio cego, ele não acertou a porta ao fugir e bateu a cabeça na parede de pedra com tanta intensidade que caiu sem sentidos. Quando voltou a si, estava no calabouço mais fortificado da cidade, acorrentado à parede com correntes que nem seus músculos de bárbaro seriam capazes de romper.

Murilo foi até a sua cela, mascarado e envolto num grande manto negro. O cimério examinou-o com interesse, pensando que era o executor enviado para despachá-lo. Murilo esclareceu a questão e o observou com interesse igual. Mesmo na penumbra do calabouço, com os membros carregados de correntes, o poder primitivo do homem era evidente. Seu corpo poderoso e músculos grossos combinavam a força de um urso pardo com a rapidez de uma pantera. Sob sua emaranhada cabeleira negra, os olhos azuis brilhavam com selvageria inesgotável.



- Você gostaria de continuar vivo? – perguntou Murilo.

O bárbaro grunhiu, com um brilho de interesse nos olhos.

- Se eu arranjasse sua fuga, você me faria um favor? – perguntou o aristocrata.

O cimério não falou, mas a intensidade de seu olhar respondeu por ele.

- Quero que você mate um homem para mim.

- Quem?

- A voz de Murilo diminuiu até um sussurro:

- Nabonidus, o sacerdote do rei!

O cimério não mostrou sinal de surpresa nem de perturbação. Ele não tinha nada do temor ou da reverência pela autoridade que a civilização inspira nos homens. Rei ou mendigo, todos eram iguais para ele. Tampouco perguntou por que Murilo havia procurado por ele, considerando que os bairros estavam cheios de assassinos fora da prisão.

- Quando vou fugir? – exigiu ele.

- Daqui a uma hora. À noite, há apenas um guarda nesta parte do calabouço. Ele pode ser subornado; ele já foi comprado. Veja, aqui estão as chaves das suas correntes. Vou tirá-las e, passada uma hora depois que eu tiver partido, o guarda Athicus vai destrancar a porta da sua cela. Você deve amarrá-lo com tiras de sua túnica para que, quando ele for encontrado, as autoridades pensem que você foi salvo de fora e não suspeitem dele. Vá imediatamente à casa do Sacerdote Vermelho e mate-o. Em seguida, vá até o Covil dos Ratos, onde um homem lhe dará um saco de ouro e um cavalo. Com isso você pode fugir da cidade e deixar o país.

- Tire já estas malditas correntes. – exigiu o cimério – E mande o guarda trazer comida. Por Crom, passei o dia inteiro a pão embolorado e água, e estou faminto.

- Assim será feito; mas lembre-se: você não deve fugir antes que eu tenha tempo de chegar à minha casa.

Livre das correntes, o bárbaro se pôs de pé e esticou seus pesados braços, que pareciam enormes na penumbra do calabouço. Murilo percebeu novamente que, se havia algum homem no mundo capaz de cumprir a tarefa dada por ele, este homem era o cimério. Repetindo algumas instruções, ele saiu da prisão, sem esquecer-se de orientar Athicus para levar um prato de carne e uma cerveja para o prisioneiro. Sabia que podia confiar no guarda, não só por causa do dinheiro que havia pago, mas também por causa de determinada informação que ele tinha sobre o homem.

Quando retornou ao seu quarto, Murilo já não tinha receios. Nabonidus atacaria através do rei, disso ele tinha certeza. E como os guardas reais não estavam batendo à sua porta, era certo também que o sacerdote ainda não tinha dito nada ao rei. Sem dúvida alguma, falaria no dia seguinte – isso se estivesse vivo no dia seguinte.

Murilo acreditava que o cimério iria manter sua palavra. Se o homem seria capaz de cumprir seu objetivo, só o futuro diria. Muitos já haviam tentando assassinar o Sacerdote Vermelho antes, e morreram de maneiras horríveis e inomináveis. Mas esses haviam sido produto das cidades dos homens, a quem faltavam os instintos de lobo do bárbaro. No instante em que Murilo, revirando nas mãos o cofre de ouro com a orelha decepada, ficara sabendo através dos seus canais secretos que o cimério havia sido capturado, vira uma solução para o seu problema.

Novamente em seu quarto, ele ergueu um brinde ao homem cujo nome era Conan e ao seu sucesso naquela noite. E enquanto estava bebendo, um dos espiões lhe trouxe a notícia de que Athicus havia sido capturado e jogado na prisão. O cimério não havia fugido.

Murilo sentiu seu sangue gelar de novo. Ele só conseguia ver, nesta volta do destino, a mão sinistra de Nabonidus, e uma estranha obsessão começou a crescer dentro dele: o Sacerdote Vermelho era mais do que humano – era um feiticeiro que lia as mentes de suas vítimas e puxava os cordões, fazendo-as dançar como marionetes. Junto com o desespero veio o pânico. Ocultando uma espada debaixo de seu manto negro, ele saiu de sua casa por um caminho secreto e se precipitou pelas ruas desertas. Era meia-noite quando chegou à casa de Nabonidus, avultando sinistra entre os jardins murados que a separavam das propriedades ao redor.

O muro era alto, mas não intransponível. Nabonidus não confiava em simples barreiras de pedra. Era o que havia do lado de dentro do muro que devia ser temido. Murilo não sabia exatamente o que era. Sabia que havia pelo menos um enorme cão selvagem, que andava pelo jardim e, numa ocasião, despedaçara um invasor como se o coitado fosse um coelho. O que mais pudesse haver lá dentro, ele não perdia tempo em conjecturar. Os homens que tiveram permissão para entrar na casa, em negócios breves e legítimos, relatavam que Nabonidus morava num ambiente ricamente decorado, mas levava uma vida simples, servido por um número surpreendentemente pequeno de criados. De fato, eles disseram ter visto apenas um deles, um homem alto e silencioso, chamado Joka. Outra pessoa, presumivelmente um escravo, foi ouvida se mover nos recessos da casa, mas nunca foi vista por ninguém. O maior enigma dessa casa misteriosa era o próprio Nabonidus, cujo poder de intriga e manejo da política internacional o transformaram no homem mais poderoso do reino. O povo, o chanceler e o rei se moviam como fantoches em suas mãos.

Murilo escalou o muro e caiu nos jardins envoltos em sombras, escurecidos por aglomerados de arbustos e ondulante folhagem. Nenhuma luz brilhava nas janelas da casa, que apareciam tão sinistramente escuras entre as árvores. O jovem nobre esgueirou-se furtiva, mas rapidamente, entre os arbustos. Por um momento, esperou ouvir o latido do grande cão, e ver seu corpo gigante saltar da escuridão. Duvidava da eficiência de sua espada contra tal ataque, mas não hesitou. Tanto fazia morrer sob as presas de um animal ou sob o machado do carrasco.

Ele tropeçou em algo volumoso e macio. Agachando-se sob a luz das estrelas, percebeu uma figura rígida no chão. Era o cão que guardava os jardins, e estava morto. Seu pescoço estava quebrado e trazia marcas de presas enormes. Murilo percebeu que nenhum ser humano poderia ter feito isto. A fera havia se deparado com um monstro mais selvagem do que ela. Murilo olhou nervoso para as enigmáticas massas das moitas e arbustos; em seguida, com um dar de ombros, aproximou-se da casa silenciosa.

A primeira porta que tentou abrir estava destrancada. Entrou cautelosamente, com a espada na mão, e se encontrou num comprido corredor iluminado apenas por uma luz que vinha das cortinas, do outro lado. Um silêncio total pairava sobre a casa inteira. Murilo deslizou ao longo do corredor e se deteve para espiar pelas cortinas. Viu um aposento iluminado, cujas janelas estavam tapadas completamente por cortinas de veludo, que não deixavam passar nenhum raio de luz. O aposento estava vazio, pelo menos não havia nenhum ser humano vivo, mas tinha um ocupante macabro, apesar de tudo. No meio de escombros de mobília e cortinas rasgadas, que indicavam ter havido uma luta medonha, jazia o corpo de um homem. Estava deitado de bruços, mas a cabeça estava torcida de maneira que o queixo chegava atrás do ombro. O rosto, contorcido num esgar assombroso, parecia olhar de esguelha para o nobre aterrorizado.

Pela primeira vez naquela noite, a resolução de Murilo foi abalada. Ele lançou um olhar inseguro para o caminho pelo qual havia vindo. Então a lembrança do machado e do bloco do carrasco o fortaleceu, e ele atravessou o aposento, tentando evitar olhar para o terror sorridente estendido no centro. Embora nunca tivesse visto o homem antes, sabia pelas descrições que era Joka, o empregado taciturno de Nabonidus.

Ele espiou pela porta coberta por cortinas e viu um grande aposento circular, circundado por uma galeria a meio caminho entre o chão polido e o teto alto. Este aposento estava mobiliado como se fosse para um rei. No meio, havia uma mesa de mogno decorada, cheia de jarros de vinho e ricas iguarias. E Murilo enrijeceu. Numa grande cadeira, cujo largo encosto estava voltado para ele, viu uma figura, cujas características lhe eram familiares. Vislumbrou um braço com manga vermelha pousado sobre o braço da cadeira; a cabeça, vestida com o gorro vermelho da túnica, estava inclinada para a frente como se estivesse meditando. Foi exatamente assim que Murilo havia visto, centenas de vezes, Nabonidus sentado na corte real.

Amaldiçoando o batimento acelerado do próprio coração, o jovem nobre esgueirou-se pelo aposento com a espada estendida e toda a sua estrutura preparada para o golpe. A presa não se moveu, nem parecia ouvir seu avanço cauteloso. O Sacerdote Real estaria dormindo, ou era um cadáver esparramado naquela grande cadeira? De repente, quando estava apenas a um passo do inimigo, o homem se levantou da cadeira e o encarou.

O sangue imediatamente sumiu do rosto de Murilo. Sua espada lhe escapou dos dedos e caiu no chão com um tinido. Um grito terrível escapou de seus lábios pálidos, seguido pelo baque da queda de um corpo. Então, mais uma vez o silêncio reinou na casa do Sacerdote Vermelho.


2)

Pouco depois de Murilo ter saído do calabouço onde Conan, o cimério, estava preso, Athicus trouxe para o prisioneiro uma bandeja de comida que incluía, entre outras coisas, um enorme pedaço de carne e uma grande caneca de cerveja. Conan atirou-se à comida com voracidade, e Athicus fez uma última ronda pelas celas, verificando se tudo estava em ordem e que ninguém testemunharia a simulada invasão da prisão. Foi enquanto estava ocupado com isso, que um esquadrão de guardas marchou para dentro da prisão e o prendeu. Murilo havia se enganado ao presumir que esta captura indicava alguma descoberta da fuga planejada de Conan. Era outro assunto: Athicus se tornara descuidado em suas relações com o submundo, e um de seus pecados passados o havia alcançado.

Outro carcereiro tomou seu lugar, uma criatura confiável e parva, cujo senso de dever nenhum suborno poderia abalar. Ele era limitado, mas tinha uma idéia elevada da importância de seu trabalho.

Depois de Athicus ter sido levado para ser formalmente condenado perante um juiz, este carcereiro fez a ronda pelas celas, por rotina. Quando passou pela de Conan, ficou chocado e ultrajado ao ver o prisioneiro livre das correntes, e no ato de arrancar com os dentes as últimas fatias de carne de um enorme osso. O carcereiro ficou tão perturbado que cometeu o erro de entrar sozinho na cela, sem chamar os guardas de outras partes da prisão. Este foi seu primeiro e último erro no cumprimento do dever. Conan rachou-lhe a cabeça com o osso, tomou-lhe o punhal e as chaves, e saiu despreocupado. Como Murilo havia dito, apenas um guarda estava a postos ali naquela noite. O cimério saiu dos muros usando as chaves que havia tomado, e logo se viu ao ar livre, tão livre quanto se o plano de Murilo tivesse tido sucesso.

Nas sombras dos muros da prisão, Conan parou para decidir a seguinte etapa de ação. Ocorreu-lhe que, já que havia fugido com os seus próprios recursos, nada devia a Murilo; mas fora o jovem nobre que havia tirado suas correntes e lhe mandara a comida, sem o que sua fuga teria sido impossível. Conan decidiu que estava em dívida para com Murilo e, já que era um homem que sempre acabava cumprindo suas obrigações, iria cumprir a promessa feita ao jovem aristocrata. Mas primeiro ele tinha um assunto pessoal para cuidar.

O cimério jogou fora sua túnica esfarrapada, e caminhou pela noite vestido apenas com uma tanga. Enquanto andava, apalpava o punhal que havia pegado – uma arma mortal, com uma larga lâmina de dois gumes e quase meio metro de comprimento. Esgueirou-se pelas ruelas e praças sombrias, até chegar ao bairro de seu destino – o Labirinto. Caminhava com desenvoltura pelos caminhos conhecidos. De fato era um labirinto de ruelas negras, pátios fechados e trilhas enganadoras, cheias de sons abafados e de mau cheiro. As ruas não estavam pavimentadas; lama e lixo se misturavam numa bagunça asquerosa. Não se conhecia o esgoto; o lixo era despejado nas ruelas, formando montes e poças fétidas. Se não andasse com cuidado, poderia perder o equilíbrio e cair nessas poças imundas, ficando enterrado até a cintura. E não era nada incomum tropeçar num cadáver com a garganta cortada ou com um crânio fendido, caído na lama. As pessoas decentes tinham boas razões para evitar o Labirinto.

Conan alcançou seu destino sem ser visto, no momento em que a pessoa que mais desejava encontrar estava saindo. Quando o cimério enfiou-se no pátio inferior, a moça que o entregou para a polícia estava se despedindo de seu novo amante, num quarto no andar superior. Depois que a porta se fechou atrás dele, este jovem matador desceu tateando pelo lance de escada, que rangia a cada passo, tateando o caminho, imerso em seus próprios pensamentos que, assim como os da maioria dos moradores do Labirinto, tinham a ver com o roubo de alguma propriedade. A meio caminho, ele parou com os cabelos eriçados. Um vulto estava agachado diante dele na escuridão; um par de olhos ardia como os de um animal espreitando a sua presa. Um rosnar animalesco foi a última coisa que ele ouviu na vida, quando o monstro investiu contra ele e uma lâmina afiada atravessou seu ventre. Emitindo um grito engasgado, caiu rolando pela escada.

O bárbaro se ergueu à sua volta por alguns instantes como um predador, com os olhos queimando na penumbra. Sabia que as pessoas ouviram o ruído, mas as pessoas do Labirinto eram prudentes o bastante para não se meterem em assuntos alheios. Um grito de morte nas escadas sombrias não era nada incomum. Mais tarde, alguém iria se aventurar a investigar, mas só depois de um razoável lapso de tempo.

Conan subiu a escada e parou na frente da porta que conhecia há muito tempo. Estava fechada por dentro, mas sua lâmina passou entre a porta e o trinco, e levantou a trava. Ele entrou, fechando a porta atrás de si, e encarou a jovem que o entregara à polícia.

A moça estava sentada na cama desarrumada, de camisola, com as pernas cruzadas. Ela empalideceu e arregalou os olhos, como se estivesse olhando para um fantasma. Tinha ouvido o grito nas escadas e viu a mancha vermelha no punhal que ele segurava na mão. Mas estava apavorada demais com sua própria sorte para perder tempo lamentando o evidente destino de seu amante. Começou a implorar por sua vida, de forma quase incoerente devido ao terror. Conan não respondeu; limitou-se a fitá-la com seus olhos chamejantes, testando a ponta de seu punhal com o polegar calejado.

Finalmente atravessou o quarto, enquanto ela se encolhia contra a parede, soluçando súplicas frenéticas por misericórdia. Agarrando-a rudemente pelos cachos loiros, ele a arrastou para fora da cama. Enfiando o punhal na bainha, levantou sob o braço esquerdo sua cativa, que se debatia sem parar, e caminhou até a janela. Como em muitas construções daquele tipo, havia uma espécie de laje que circundava cada andar, à altura das janelas. Conan chutou a janela e pisou nessa beirada estreita. Se alguém estivesse por perto ou acordado, teria testemunhado a visão bizarra de um homem se movendo cuidadosamente ao longo do beiral, carregando debaixo do braço uma jovem seminua que se debatia, e se sentiriam tão confusos quanto a garota.



Ao alcançar o lugar que procurava, Conan parou, agarrando-se à parede com a mão livre. Nesse instante, um súbito clamor de vozes ergueu-se dentro do edifício, mostrando que o corpo havia sido finalmente descoberto. Sua cativa soluçava e se debatia, repetindo as súplicas. Conan olhou para a imundície e o limo das ruelas embaixo, detendo-se um pouco para ouvir o barulho que vinha de dentro e as súplicas da moça; em seguida, ele a deixou cair exatamente dentro de uma fossa imunda. Durante alguns segundos, ficou se deliciando vendo-a chutar e se debater, observando o veneno concentrado de seus palavrões, e até se permitiu uma risada em voz baixa. Em seguida, ergueu a cabeça, ouviu o tumulto crescente dentro do edifício e decidiu que era hora de matar Nabonidus.


3)

Foi um reverberante tilintar de metal que acordou Murilo. Atordoado, gemeu e procurou se sentar. Tudo era silêncio e escuridão ao seu redor e, por um instante, pensou apavorado que havia ficado cego. Então, se lembrou do que havia acontecido, e sua pele se arrepiou. Tateando, descobriu que estava deitado sobre um chão de lajes de pedra planas e unidas. Continuando a tatear, descobriu uma parede do mesmo material. Levantou-se e se apoiou à parede, tentando se orientar em vão. Parecia certo que ele estava numa espécie de prisão, mas lhe era impossível adivinhar onde e há quanto tempo. Lembrava-se vagamente de um estrondo e se perguntava se teria sido a porta de ferro de seu calabouço que se fechara atrás dele, ou se fora o anúncio da entrada de um carrasco.

Esse pensamento o fez tremer da cabeça aos pés e recomeçar a tatear seu caminho ao longo da parede. Por um momento, ele esperou encontrar os limites de sua prisão, mas depois de algum tempo chegou à conclusão de que estava andando por um corredor. Permaneceu grudado na parede, receoso de encontrar fossas e outras armadilhas, e logo se deu conta de que havia alguma coisa próxima a ele nas trevas. Seus ouvidos captaram um som furtivo – ou algum sentido subconsciente o alertara. Ele parou sobressaltado, com os cabelos eriçados; tão certo quanto ainda estava vivo, sentia diante dele a presença de alguma criatura viva agachada na escuridão.

Achou que seu coração iria parar, quando uma voz sibilou com um sotaque bárbaro:

- Murilo! É você?

- Conan!

Enfraquecido pela reação, o jovem nobre tateou no escuro e suas mãos encontraram um par de enormes ombros nus.

- Sorte que eu o reconheci. – disse o bárbaro – Estava prestes a furá-lo como um porco engordado.

- Onde estamos, em nome de Mitra?

- Nos subterrâneos da casa do Sacerdote Vermelho; mas por que...

- Que horas são?

- Não passa muito da meia-noite.

Murilo sacudiu a cabeça, tentando organizar seus pensamentos.

- O que você está fazendo aqui? – indagou o cimério.

- Vim com a intenção de matar Nabonidus. Soube que eles haviam trocado o guarda na sua prisão.

- Eles trocaram. – rosnou Conan – Rachei a cabeça do novo carcereiro e saí. Estaria aqui horas atrás, mas tive uns assuntos particulares para resolver. Bem, vamos caçar Nabonidus?

Murilo estremeceu:

- Conan, estamos na casa do arqui-demônio! Vim atrás de um inimigo humano; encontrei um demônio peludo do inferno!

Conan grunhiu, tomado pela dúvida; embora destemido como um tigre ferido quando defrontado com inimigos humanos, ele tinha todos os temores supersticiosos de um homem primitivo.

- Consegui entrar na casa. – sussurrou Murilo, como se a escuridão estivesse cheia de ouvidos – Encontrei, espancado até a morte nos jardins externos, o cachorro de Nabonidus. Dentro da casa, deparei-me com Joka, o servo. Estava com o pescoço quebrado. Então vi o próprio Nabonidus sentado em sua cadeira, vestido como sempre. Primeiro pensei que ele também estivesse morto. Aproximei-me furtivamente para apunhalá-la, quando ele se levantou e me encarou. Deuses!

A lembrança daquele horror deixou momentaneamente mudo o jovem nobre, como se ele estivesse revivendo aquele espantoso momento.

- Conan – sussurrou ele –; não era um homem que se erguia diante de mim! Seu corpo e postura eram humanos, mas, debaixo do capuz escarlate do sacerdote sorria um rosto de loucura e pesadelo! Esse rosto estava coberto de pêlos negros, com dois olhinhos vermelhos de porco; o nariz era achatado, com grandes narinas dilatadas; os lábios moles se dobravam para trás, revelando enormes presas amarelas, iguais a dentes de cachorro. As mãos que pendiam das mangas escarlates eram disformes e também cobertas por pêlos negros. Vi tudo isso num relance, e então fui tomado pelo pânico e caí desmaiado.

- E depois? – murmurou o cimério irrequieto.

- Só recobrei a consciência há pouco tempo; o monstro deve ter me jogado nesses subterrâneos. Conan, eu sempre suspeitei que Nabonidus não era totalmente humano! Ele é um demônio... um lobisomem! De dia, ele anda no meio dos homens, disfarçado de ser humano, e à noite retoma sua verdadeira aparência.

- Isto é evidente. – respondeu Conan – Todos sabem que existem homens que se transformam em lobos quando querem. Mas por que ele matou seus empregados?

- Quem consegue entender a mente de um demônio? – disse Murilo – Nosso interesse no momento é sair deste lugar. Armas humanas não podem ferir um lobisomem. Como você conseguiu chegar até aqui?

- Pelo esgoto. Eu contava com o fato dos jardins estarem sendo vigiados. Os esgotos se juntam com um túnel que sai nesse subterrâneo. Pensei em achar alguma porta destrancada para entrar na casa.

- Então vamos fugir por onde você entrou! – exclamou Murilo – Para os diabos com isto! Uma vez fora deste ninho de cobra, vamos tentar a sorte com os guardas do rei e arriscar uma fuga da cidade. Vá na frente!

- É inútil – retrucou o cimério – A saída para os esgotos está barrada. Quando entrei no túnel, uma grade de ferro desabou do telhado. Se eu não me movesse mais rápido que um relâmpago, as pontas teriam me pregado ao chão como a um verme. Tentei erguê-la, mas não consegui. Nem um elefante conseguiria tirá-la do lugar, e só um coelho passaria entre as barras.

Murilo praguejou, sentindo uma mão gelada passar por sua espinha. Ele deveria ter adivinhado que Nabonidus não deixaria desprotegida nenhuma entrada para sua casa. Se Conan não possuísse a selvagem rapidez de uma mola de aço, aquele pórtico iria cortá-lo ao meio ao cair. Sem dúvida, quando Conan caminhou pelo túnel, acionou algum gatilho oculto que soltou a grade do telhado. A realidade era que ambos estavam enterrados vivos.

- Há apenas uma coisa a fazer. – disse Murilo, suando profusamente – É procurar outra saída; sem dúvida, todas elas estão protegidas por armadilhas, mas não temos outra escolha.

O bárbaro concordou grunhindo, e os companheiros começaram a tatear pelo corredor às escuras. Naquele momento, algo ocorreu a Murilo.

- Como é que você me reconheceu nas trevas? – indagou.

- Senti o cheiro do perfume que você usava nos cabelos, quando veio à minha cela. – respondeu Conan – Senti o mesmo perfume agora há pouco, quando estava agachado no escuro e me preparando para rasgá-lo.

Murilo aproximou do nariz uma mecha de seu cabelo negro; mesmo assim, mal conseguia sentir o cheiro com seus sentidos civilizados, e percebeu o quão aguçados deveriam ser os órgãos do bárbaro.

Enquanto caminhavam, ele instintivamente tocou a bainha da espada e praguejou ao encontrá-la vazia. No mesmo instante, um brilho fraco apareceu à frente, e eles chegaram a uma curva fechada no corredor, onde a luz se infiltrava cinzenta. Os dois espiaram por detrás da esquina e Murilo, apoiando-se no companheiro, sentiu-lhe a enorme estatura enrijecer. O jovem nobre também havia visto aquilo – o corpo seminu de um homem, jogado no corredor depois da curva, vagamente iluminado por uma radiação que parecia emanar do grande disco de prata pendurado na parede mais adiante. Uma estranha familiaridade, em relação à figura deitada de bruços, agitou Murilo com inexplicáveis e monstruosas conjecturas. Sinalizando ao cimério para que o acompanhasse, ele se esgueirou até o corpo e se inclinou sobre ele. Vencendo certa repugnância, agarrou-o e virou-o de costas. Uma exclamação de incredulidade escapou de sua boca; o cimério deu um grunhido explosivo.

- Nabonidus! O Sacerdote Vermelho! – exclamou Murilo, com seu cérebro num vórtex estonteante de espanto – Então quem... o quê...?

O sacerdote deu um gemido e se mexeu. Com uma rapidez felina, Conan se curvou sobre ele, apontado o punhal para o coração do sacerdote. Murilo agarrou o seu pulso.

- Espere! Não o mate ainda...

- Por que não? – inquiriu o cimério – Ele abandonou sua forma de lobisomem e está adormecido. Você quer acordá-lo para que ele nos despedace?

- Não; espere! – insistiu Murilo, tentando organizar suas idéias confusas – Veja! Ele não está dormindo... vê esse grande hematoma em sua têmpora raspada? Ele recebeu um golpe que o deixou sem sentidos. Pode estar deitado aqui há horas.

- Pensei que você tivesse jurado que o vira na forma de um animal, no andar de cima da casa. – disse Conan.

- Eu vi! Ou então... Ele está voltando a si! Afaste sua lâmina, Conan; há aqui um mistério ainda mais sinistro do que eu pensei. Tenho de falar com este sacerdote antes que o matemos.

Nabonidus ergueu a mão vacilante até a sua têmpora ferida, balbuciou e abriu os olhos. Por um instante, seus olhos permaneceram vazios e sem inteligência; em seguida, a vida lhes voltou com uma sacudidela e o sacerdote se sentou, olhando arregalado para os companheiros. Por mais terrível que tivesse sido o baque que aturdira temporariamente seu cérebro aguçado, este voltara a funcionar com o poder de costume. Seu olhar perscrutou rapidamente o espaço ao seu redor; em seguida voltou a descansar no rosto de Murilo.

- Você honra minha pobre casa, jovem senhor. – riu ele friamente, olhando para a enorme figura atrás dos ombros do jovem nobre – Vejo que trouxe um matador. Sua espada não era suficiente para tirar a vida de minha humilde pessoa?

- Basta! – retorquiu Murilo impacientemente – Por quanto tempo você ficou deitado aqui?

- É uma pergunta peculiar para se fazer a um homem que acaba de recuperar a consciência. – respondeu o sacerdote – Não sei que horas são agora. Mas faltava mais ou menos uma hora para a meia-noite, quando fui atacado.

- Então, quem é aquele no andar de cima da casa, vestido com sua túnica? – exigiu Murilo.

- Aquele deve ser Thak. – respondeu Nabonidus, apalpando pesaroso seus ferimentos – Sim, deve ser Thak. E com minha túnica? Que cachorro!

Conan, que não estava entendendo nada daquilo, mexeu-se impacientemente e resmungou alguma coisa em sua própria língua. Nabonidus olhou para ele, com uma expressão de surpresa.

- A faca do seu valentão quer meu coração, Murilo. – disse – Achei que você seria esperto o suficiente para aceitar meu conselho, e sair da cidade.

- Como eu poderia saber o que me esperava? – retrucou Murilo – De qualquer forma, meus interesses estão aqui.

- Você está em boa companhia com esse degolador. – murmurou Nabonidus – Já venho suspeitando de você há algum tempo. Foi por isso que fiz desaparecer aquele pálido secretário da corte. Antes de morrer, ele me contou muitas coisas, entre elas o nome do jovem nobre que o subornava para surrupiar segredos de Estado, os quais, por sua vez, eram vendidos para potências rivais pelo nobre. Não se envergonha disso, Murilo, seu ladrão de mãos pálidas?

- Não tenho mais motivos do que você para me sentir envergonhado, seu saqueador com coração de abutre. – respondeu Murilo prontamente – Você explora um reino inteiro para seu próprio benefício; e, sob o disfarce de um estadista desinteressado, você engana o rei, empobrece os ricos, oprime os pobres e sacrifica o futuro inteiro da nação por sua ambição impiedosa. Você não passa de um porco gordo com o focinho enfiado na gamela. Você é mais ladrão do que eu. De nós três, este cimério é o homem mais honesto, porque ele rouba e mata abertamente.

- Bem, então, todos nós somos embusteiros. – concordou Nabonidus – E agora? E quanto à minha vida?

- Quando vi a orelha do secretário desaparecido, sabia que estava liquidado. – disse Murilo bruscamente –, e acredito que você invocaria a autoridade do rei. Não estou certo?

- Exatamente. – respondeu o sacerdote – É fácil liquidar um secretário da corte, mas você é importante demais. Pretendia dizer ao rei um gracejo sobre você, na manhã seguinte.

- Um gracejo que teria custado minha cabeça. – murmurou Murilo – Então o rei não sabe de meus negócios com o exterior?

- Ainda não. – suspirou Nabonidus – E agora, já que vejo que seu companheiro tem uma faca, temo que esse gracejo nunca será dito.

- Você deve saber como sair desses ninhos de ratos. – disse Murilo – Suponhamos que eu concorde em poupar sua vida. Está disposto a nos ajudar a fugir e a jurar manter silêncio sobre meus roubos?

- Desde quando um sacerdote manteve um juramento? – queixou-se Conan, entendendo o rumo da conversa – Deixe-me cortar o pescoço dele; quero ver qual a cor do seu sangue. Dizem, no Labirinto, que o seu coração é negro; então o sangue deve ser negro também...

- Fique quieto. – sussurrou Murilo – Se ele não nos mostrar a saída desses subterrâneos, poderemos apodrecer aqui. Bem, Nabonidus, o que me diz?

- O que pode dizer um lobo com a perna presa na armadilha? – riu o sacerdote – Estou em seu poder e, se quisermos escapar, devemos nos ajudar mutuamente. Juro que se eu sobreviver a esta aventura, vou esquecer todos os seus negócios escusos. Juro pela alma de Mitra!

- Estou satisfeito. – murmurou Murilo – Nem mesmo o Sacerdote Vermelho ousaria quebrar este juramento. Agora, vamos sair daqui. Meu amigo aqui entrou pelo túnel, mas uma grade caiu depois que ele passou e bloqueou a passagem. Você pode erguê-la?

- Não destes subterrâneos. – respondeu o sacerdote – A alavanca de controle fica no aposento acima do túnel. Existe apenas mais uma saída, que vou mostrar para vocês. Mas, diga-me, como é que você chegou aqui?

Murilo contou-lhe em poucas palavras, e Nabonidus fez sinal com a cabeça, levantando-se empertigado. Mancando pelo corredor que se abria para uma grande sala, e se aproximou do disco de prata que estava do outro lado. A luz aumentava conforme avançavam, embora não passasse de uma tênue luminosidade cheia de sombras. Chegando perto do disco, eles viram uma escada estreita que levava para o andar de cima.

- Essa é a outra saída. – disse Nabonidus – E duvido muito que a porta no final da escada esteja trancada. Mas acho que aquele que quiser atravessar aquela porta, é melhor que corte primeiro sua própria garganta. Olhe para dentro do disco.

Aquilo que parecera uma placa de prata era, na realidade, um enorme espelho encaixado na parede. Um sistema confuso de tubos de cobre saía da parede acima dele, curvando-se em ângulos retos em direção do disco. Olhando para dentro destes tubos, Murilo viu um conjunto estonteante de espelhos menores. Voltando sua atenção para o espelho maior na parede, soltou uma exclamação de espanto. Espiando por cima de seu ombro, Conan grunhiu.

Eles pareciam estar olhando através de uma grande janela para dentro de um aposento bem iluminado. Havia largos espelhos sobre as paredes, com cortinas de veludo entre eles; havia sofás de seda, cadeiras de ébano e marfim, e passagens com cortinas que levavam para fora do aposento. E diante de uma das portas que não tinha cortina, estava sentado um negro objeto volumoso que contrastava grotescamente com a riqueza do aposento.

Murilo sentiu o sangue novamente gelar nas veias ao olhar para o horror que parecia estar fitando-o diretamente nos olhos. Recuou involuntariamente do espelho, enquanto Conan estendia o pescoço de maneira truculenta, até seu queixo quase tocar a superfície do espelho, grunhindo alguma ameaça ou desafio em sua própria língua bárbara.

- Em nome de Mitra, Nabonidus – arfou Murilo, abalado –, o que é aquilo?

- É Thak. – respondeu o sacerdote, acariciando sua têmpora – Alguns o chamariam de macaco, mas ele é quase tão diferente de um verdadeiro macaco quanto é diferente de um verdadeiro homem. Seu povo mora no Leste distante, nas montanhas que ladeiam as fronteiras orientais de Zamora. Não há muitos deles; mas, se não forem exterminados, acredito que se transformarão em seres humanos em, talvez, cem mil anos. Estão no estágio de formação; não são nem macacos, como os seus ancestrais remotos, nem seres humanos, como seus descendentes remotos poderão ser. Moram nas encostas altas de montanhas bem inacessíveis, sem conhecer nada do fogo nem da fabricação de abrigos ou de vestimentas, nem do uso de armas. No entanto, falam uma espécie de língua que consiste principalmente de grunhidos e estalos de língua.

“Peguei Thak quando ainda era um filhote, e ele aprendeu o que lhe ensinei muito mais rápido e melhor do que qualquer animal de verdade o faria. Servia-me ao mesmo tempo como guarda-costas e como servo. Mas me esqueci de que, sendo em parte humano, ele não poderia ser transformado em uma simples sombra de mim mesmo, como um verdadeiro animal. Aparentemente, seu semi-cérebro conservou impressões de ódio, ressentimentos e algum tipo próprio de ambição animal.

“Em todo o caso, ele me atacou quando eu menos esperava. Ontem à noite, de repente, ele pareceu enlouquecer. Suas ações tinham todas as características de insanidade animal, mas sei que deve ter sido resultado de um longo e cuidadoso planejamento.

“Ouvi sons de luta no jardim e, ao investigar – pois acreditava que fosse você sendo arrastado pelo meu cão de guarda –, vi Thak emergir dos arbustos pingando sangue. Antes de me dar conta de sua intenção, ele pulou sobre mim com um terrível grito e me deixou sem sentidos.

“Não me lembro de mais nada, mas posso apenas concluir que, seguindo algum capricho de seu cérebro semi-humano, ele tirou minha túnica e me jogou ainda vivo nos subterrâneos... por que razão, somente os deuses saberiam. Ele deve ter matado o cão quando saiu do jardim e, depois de me derrubar, evidentemente matou Joka, conforme você mesmo viu. Joka teria vindo em minha ajuda, mesmo contra Thak, a quem ele sempre odiou”.



Murilo olhou pelo espelho para a criatura, que estava sentada com monstruosa paciência diante da porta fechada. Estremeceu ao ver as enormes mãos negras e peludas, que lembravam a pelagem de um animal. O corpo era grosso, largo e curvado. Os ombros, de tão largos, haviam rasgado a túnica escarlate, e sobre esses ombros Murilo notou o mesmo pêlo negro e espesso. O rosto, espiando debaixo do capuz escarlate, era totalmente animalesco, mas Murilo percebeu que Nabonidus tinha razão ao dizer que Thak não era de todo um animal. Havia algo naqueles olhos vermelhos embaçados, na postura desajeitada da criatura, uma aparência que a distinguia do verdadeiro animal. Aquele corpo monstruoso abrigava um cérebro e uma alma que estavam prestes a desabrochar em algo vagamente humano. Murilo ficou assombrado ao reconhecer uma leve e abominável semelhança entre sua espécie e aquela monstruosidade acocorada, e ficou nauseado ao pensar rapidamente nos abismos de bestialidade profunda dos quais a humanidade havia emergido com tanto esforço.

- Com certeza ele está nos vendo. – murmurou Conan – Por que não nos ataca? Ele poderia quebrar esta janela com facilidade.

Murilo percebeu que Conan supunha que o espelho, através do qual estavam olhando, fosse uma janela.

- Ele não está nos vendo. – respondeu o sacerdote – Estamos olhando para o aposento que fica no andar de cima. A porta que Thak está guardando é a que fica no topo dessa escada. É simplesmente uma disposição de espelhos. Está vendo aqueles espelhos nas paredes? Eles refletem a imagem do aposento para estes tubos, pelos quais outros espelhos, por sua vez, a levam para refleti-la finalmente em tamanho maior neste espelho grande.

Murilo percebeu que a perfeição de tal invenção colocava o sacerdote séculos à frente de sua geração; mas Conan atribuiu-o à feitiçaria e não se preocupou mais com isso.

- Construí estes subterrâneos para servirem tanto de refúgio quanto de calabouço. – disse o sacerdote – Houve ocasiões em que me refugiei aqui e, através desses espelhos, observava o destino cair sobre aqueles que me procuravam com más intenções.

- Mas por que Thak está vigiando aquela porta? – inquiriu Murilo.

- Ele deve ter ouvido a grade cair no túnel. A grade está ligada a sinos pendurados nos aposentos superiores. Ele sabe que há alguém nos subterrâneos, e está esperando que esse alguém suba pelas escadas. Ah, ele aprendeu bem as lições que lhe ensinei. Ele viu o que aconteceu com os homens que passaram por aquela porta, quando puxei a corda que está pendurada naquela parede, e está esperando para me imitar.

- E enquanto ele espera, o que faremos? – insistiu Murilo.

- Não há nada que possamos fazer, a não ser observá-lo. Enquanto ele estiver naquele aposento, não podemos ousar subir pela escada. Ele tem a força de um verdadeiro gorila, e poderia facilmente despedaçar a todos nós. Mas ele não precisa exercitar seus músculos; se abrirmos aquela porta, basta ele puxar aquela corda e nos mandar para a eternidade.

- Como?

- Eu concordei em ajudá-los a fugir – respondeu o sacerdote –, não em revelar meus segredos.

Murilo ia responder, mas de repente enrijeceu. Uma mão furtivamente havia afastado as cortinas numa das passagens. Por entre elas apareceu um rosto escuro, cujos olhos brilhantes se fixaram ameaçadores sobre a forma acocorada vestida com a túnica escarlate.

- Petreus! – sibilou Nabonidus – Mitra, que reunião de abutres está acontecendo essa noite!

O rosto permaneceu emoldurado pelas cortinas afastadas. Por cima do ombro do intruso espiavam outros rostos – escuros e finos, animados com ansiedade sinistra.

- O que eles fazem aqui? – murmurou Murilo, abaixando inconscientemente a voz, embora soubesse que eles não podiam ouvi-los.

- Ora, o que estariam fazendo Petreus e seus ardentes jovens nacionalistas na casa do Sacerdote Vermelho? – riu Nabonidus – Vejam com que ansiedade eles olham para a figura que julgam ser seu arquiinimigo. Eles caíram no mesmo erro que você; seria divertido observar as expressões deles, quando descobrirem o engano.

Murilo não respondeu. O assunto inteiro tinha um ar distinto de irrealidade. Ele sentiu como se estivesse observando um jogo de marionetes, ou como se ele mesmo fosse um espírito desencarnado, olhando impessoalmente para as ações dos vivos, que não o vêem nem suspeitam de sua presença.

Ele viu Petreus colocar o dedo nos lábios em advertência e acenar para seus companheiros conspiradores. O jovem nobre não conseguia saber se Thak tinha percebido os intrusos. A posição do homem-macaco não havia mudado; continuava sentado de costas para a porta pela qual os homens estavam se esgueirando.

- Eles tiveram a mesma idéia que você. – murmurava Nabonidus no ouvido dele – Só que as razões deles são patrióticas, e não egoístas. É fácil entrar na minha casa, agora que o cão está morto. Ah, que chance de me livrar dessa ameaça de uma vez por todas! Se eu estivesse sentado no lugar de Thak... um pulo até a parede... um puxão naquela corda...

Petreus havia pisado de leve sobre a soleira da porta; seus companheiros estavam nos seus calcanhares, segurando as adagas que brilhavam fracamente. De repente, Thak levantou-se e se voltou para eles. O horror inesperado de sua aparência, quando pensavam que veriam a figura odiada, mas familiar, de Nabonidus, abalou os nervos deles, assim como o mesmo espetáculo havia feito com Murilo. Petreus recuou com um grito estridente, empurrando para trás seus companheiros. Eles tropeçaram uns nos outros; e, naquele instante, Thak, cobrindo a distância num prodigioso salto grotesco, agarrou e puxou com força uma corda grossa de veludo que pendia perto da porta.

Instantaneamente, as cortinas se afastaram para os lados, deixando a porta descoberta, e algo faiscou para baixo, com um borrão prateado peculiar.

- Ele se lembrou! – exultou Nabonidus – O animal é meio humano! Ele viu como se faz e se lembrou! Observem agora! Observem! Observem!

Murilo viu que era um painel pesado de vidro que havia caído fechando a porta. Através dele, viu os rostos pálidos dos conspiradores. Petreus, jogando as mãos como se quisesse proteger-se de uma investida de Thak, encontrou a barreira transparente e, pelos seus gestos, disse alguma coisa para seus companheiros. Agora que as cortinas estavam afastadas, os homens que estavam no subterrâneo viam tudo que acontecia no aposento que continha os nacionalistas. Completamente amedrontados, correram pelo aposento até a porta pela qual haviam aparentemente entrado, somente para pararem de repente, como que impedidos por uma parede invisível.

- O puxão da corda selou aquele aposento. – riu Nabonidus – É simples: os painéis de vidro funcionam por meio de encaixes nas portas. Ao puxar a corda, solta-se uma mola que os segura. Eles deslizam para baixo, travam no lugar e só podem ser acionados do lado de fora. O vidro é inquebrável; um homem com uma marreta não conseguiria quebrá-lo. Ah!

Os homens aprisionados estavam histéricos de medo; corriam loucamente de uma porta à outra, batendo em vão nas paredes de cristal, sacudindo os punhos violentamente para a implacável forma negra que estava acocorada do lado de fora. Então um deles jogou a cabeça para trás, olhou para cima e começou a berrar, a julgar pelo movimento dos lábios, enquanto apontava para o teto.

- A queda dos painéis liberou as nuvens da morte. – disse o Sacerdote Vermelho, com uma risada selvagem – O pó do lótus cinzento, dos Pântanos dos Mortos, além da terra de Khitai.

No meio do teto, pendia um aglomerado de botões dourados; eles se abriram como pétalas de uma enorme rosa entalhada, de onde espirrou uma névoa cinzenta que rapidamente encheu o aposento. Instantaneamente, a cena mudou de histeria para loucura e horror. Os homens aprisionados começaram a cambalear; corriam em círculos como que embriagados. De seus lábios pingava espuma, num ricto de riso tenebroso. Enfurecidos, eles caíam uns sobre os outros com dentes e adagas, cortando, rasgando e matando num holocausto de loucura. Murilo sentiu náuseas ao ver a cena, e ficou contente por não ouvir os gritos e uivos que deviam estar preenchendo aquele aposento amaldiçoado. Era como imagens silenciosas projetadas numa tela.

Do lado de fora do aposento de horror, Thak saltitava numa alegria animalesca, sacudindo seus braços peludos para cima. Em pé, atrás de Murilo, Nabonidus ria como um demônio.

- Ah, um belo golpe, Petreus! Isto o desentranhou bem! Agora uma para você, meu amigo patriota! Assim! Todos eles estão caídos, e os vivos rasgam a carne dos mortos com seus dentes salivantes.

Murilo estremeceu. Atrás dele, o cimério praguejava baixo em sua língua inculta. Restava somente a morte no aposento da névoa cinzenta; rasgados, cortados e triturados, os conspiradores jaziam numa pilha vermelha, com as bocas entreabertas e os rostos salpicados de sangue, olhando para o vazio no meio da cinza fumaça mortífera, que rodopiava devagar.

Thak, curvando-se como um gigantesco gnomo, aproximou-se da parede onde pendia a corda e deu-lhe um puxão lateral específico.

- Ele está abrindo a porta mais distante. – disse Nabonidus – Por Mitra, ele é mais humano do que eu suspeitava! Vejam, a névoa rodopia para fora do aposento e é dissipada. Ele aguarda, para estar seguro. Agora ele ergue o outro painel. É cauteloso... conhece a perdição do lótus cinzento, que traz a loucura e a morte. Por Mitra!

Murilo ficou chocado com o tom entusiasmado daquela exclamação.

- Nossa única chance! – exclamou Nabonidus – Se ele sair do aposento acima por alguns minutos, vamos tentar subir correndo por aquelas escadas.

Subitamente tensos, eles observavam o monstro atravessar gingando a porta e desaparecer. Quando o painel de vidro foi erguido, as cortinas haviam caído, escondendo a câmara da morte.

- Temos que arriscar! – ofegou Nabonidus, e Murilo viu gotas de suor cobrindo seu rosto – Talvez esteja se livrando dos corpos como me viu fazer. Rápido! Sigam-me pelas escadas!

Ele correu em direção aos degraus e subiu com uma agilidade que espantou Murilo. O jovem nobre e o bárbaro estavam em seus calcanhares, e ouviram seu profundo suspiro de alívio quando escancarou a porta no topo da escada. Precipitaram-se para dentro do grande aposento que haviam visto espelhado lá embaixo. Thak não estava à vista.

- Ele está naquele aposento com os cadáveres! – exclamou Murilo – Por que não prendê-lo ali, como ele fez com os homens?

- Não, não! – ofegou Nabonidus, com uma estranha palidez lhe desbotando as feições – Não sabemos se ele está lá dentro. Poderia aparecer antes que eu alcançasse a corda da armadilha! Sigam-me para o corredor; devo alcançar meu quarto e pegar as armas que vão destruí-lo. Este corredor é a única saída desse aposento que não tem algum tipo de armadilha.

Os dois seguiram-no rapidamente, atravessando uma cortinada soleira do lado oposto à porta da câmara da morte, e adentraram um corredor, para o qual se abriam diversos outros aposentos. Com pressa desajeitada, Nabonidus começou a tentar abrir as portas a ambos os lados. Todas elas estavam trancadas, assim como a porta do final do corredor.

- Meu Deus! – exclamou o Sacerdote Vermelho apoiou-se na parede, pálido – As portas estão trancadas, e Thak levou minhas chaves. Estamos de fato presos.

Murilo arregalou os olhos, assustado, ao ver o homem em tal estado de nervosismo; Nabonidus se recompôs com esforço.

- Esse animal me pôs em pânico. – disse ele – Se vocês o tivessem visto despedaçando homens como eu já vi... bem, que Mitra nos ajude, mas devemos lutar contra ele com aquilo que os deuses nos deram. Venham!

Ele os conduziu de volta pela porta com cortinas, e espiou para dentro do grande aposento a tempo de ver Thak aparecer na porta, do outro lado. Era óbvio que o homem-animal havia suspeitado de alguma coisa. Suas pequenas orelhas pregadas à cabeça estavam contraídas; ele olhou furioso à sua volta e, aproximando-se da porta mais próxima, puxou as cortinas para espiar atrás delas.

Nabonidus recuou, tremendo como uma folha, e agarrou o ombro de Conan:

- Homem, você tem coragem de apostar sua faca contra as presas dele?

Os olhos do cimério arderam em resposta.

- Rápido! – sussurrou o Sacerdote Vermelho, empurrando-o atrás das cortinas, junto à parede – Já que de qualquer maneira ele vai nos encontrar, vamos atraí-lo para nós. Quando passar por você, afunde sua lâmina nas costas dele, se puder. Você, Murilo, deixe que ele te veja e depois fuja pelo corredor. Mitra sabe que não temos chance contra ele num combate corpo a corpo, mas estaremos perdidos de qualquer maneira quando ele nos encontrar.

Murilo sentiu o sangue congelar nas veias, mas reuniu coragem e deu um passo para fora da porta. No mesmo instante, Thak, do outro lado do aposento, voltou-se, olhou e investiu com um rugido trovejante. Seu capuz escarlate havia caído para trás, revelando sua disforme cabeça negra; suas mãos negras e a túnica vermelha estavam manchadas com um vermelho mais brilhante. Era como um pesadelo escarlate e negro ao correr através do aposento, com as presas de fora, e as pernas curvas carregando seu enorme corpo num passo aterrorizante.

Murilo voltou-se e correu de volta para o corredor e, por mais rápido que fosse, o horror desgrenhado estava quase em seus calcanhares. Então, quando o monstro passou correndo pelas cortinas, de dentro delas catapultou uma enorme figura que caiu em cheio sobre os ombros do homem-macaco, e no mesmo instante enfiou o punhal nas costas do bruto. Thak berrou terrivelmente, caindo com o impacto e levando consigo o atacante. Os dois rolaram num redemoinho de golpes e membros, no conflito desesperado de uma encarniçada batalha.

Murilo viu que o bárbaro havia prendido as pernas em torno do torso do homem-macaco e estava tentando manter sua posição sobre as costas do monstro enquanto o golpeava com seu punhal. Thak, por sua vez, estava tentando desalojar o inimigo e arrastá-lo até o alcance de suas gigantescas presas, as quais se escancaravam em busca de sua carne. Num redemoinho de golpes e farrapos vermelhos, os combatentes rolaram pelo corredor tão rapidamente que Murilo não ousava usar a cadeira que havia erguido, com medo de golpear o cimério. E viu que, apesar da vantagem do primeiro golpe de Conan e da volumosa túnica que tolhia o corpo e os membros do homem-macaco, a força gigantesca de Thak começava a prevalecer. Inexoravelmente, ele estava conseguindo colocar o cimério à sua frente. O homem-macaco havia recebido golpes suficientes para matarem doze homens. O punhal de Conan mergulhara diversas vezes em seu torso, ombros e pescoço taurino. O sangue escorria de uma série de ferimentos, mas se a lâmina não atingisse logo algum ponto absolutamente vital, o vigor inumano de Thak acabaria com o cimério e, depois, com seus companheiros.

Conan também lutava como um animal selvagem, em silêncio, exceto pelo arquejar causado pelo esforço. As garras negras do monstro e o terrível aperto daquelas mãos disformes o rasgavam e arranhavam, e as mandíbulas abertas procuravam sua garganta. Percebendo a brecha, Murilo saltou e acertou a cadeira na cabeça do monstro, com toda a sua força, suficiente para esmagar o crânio de um ser humano. A cadeira ricocheteou na inclinada cabeça negra de Thak, mas o monstro ficou atordoado e relaxou momentaneamente seu aperto dilacerante, o suficiente para que Conan, ofegando e sangrando, se lançasse para a frente e afundasse seu punhal até o cabo no coração do homem-macaco.

Com um tremor convulsivo, o homem-animal olhou para cima, e depois caiu inerte para trás. Seus olhos ferozes ficaram imóveis e vidrados, seus membros grossos estremeceram e ficaram rígidos.

Conan, atordoado, levantou-se cambaleando, sacudindo o suor e o sangue de seus olhos. O sangue pingava de seu punhal e dedos, e escorria por suas coxas, braços e peito. Murilo o ergueu para apoiá-lo, mas o bárbaro o afastou com impaciência.

- Quando eu não puder mais me manter de pé sozinho, será hora de morrer. – resmungou ele, por entre os lábios esmagados – Mas eu bem que gostaria de uma garrafa de vinho.

Nabonidus olhava para a figura imóvel, como se não acreditasse em seus próprios olhos. O monstro jazia negro, peludo, abominável, grotesco, envolto nos frangalhos da túnica escarlate. Ainda assim,, parecia mais humano que bestial, demonstrando de alguma forma uma vaga e terrível ternura.

Até o cimério sentiu isso, pois disse ofegante:

- Esta noite matei um homem, não um animal. Vou contá-lo entre os chefes cujas almas mandei para as trevas, e minhas mulheres cantarão sobre ele.



Nabonidus se agachou e pegou um molho de chaves que pendia numa corrente dourada. Elas haviam caído do cinto do homem-macaco durante a batalha. Gesticulando para que seus companheiros o seguissem, ele os conduziu até um aposento, destrancou a porta e entrou; era iluminado da mesma maneira que os outros. O Sacerdote Vermelho pegou um frasco de vinho que estava em cima de uma mesa, e encheu as taças de cristal. Enquanto seus companheiros sedentos bebiam, ele murmurou:

- Que noite! Já é quase dia. O que querem fazer, meus amigos?

- Vou cuidar dos ferimentos de Conan, se você me trouxer ataduras e outras coisas assim. – disse Murilo, e Nabonidus acenou com a cabeça, dirigindo-se até a porta que conduzia para o corredor. Algo em sua cabeça abaixada fez com que Murilo o observasse com atenção. Chegando à porta, o Sacerdote Vermelho virou-se de repente. Seu rosto havia se transformado. Seus olhos brilhavam com o antigo fogo, e seus lábios riam silenciosamente.

- Embusteiros juntos! – sua voz vibrou, com sua costumeira zombaria – Mas não tolos juntos. Você é o tolo, Murilo!

- O que você quer dizer? - perguntou o jovem nobre, adiantando-se.

- Para trás! – chicoteou a voz de Nabonidus – Mais um passo, e eu o faço estourar!

O sangue de Murilo gelou, ao ver que a mão do Sacerdote Vermelho havia agarrado uma grossa corda de veludo que pendia entre as cortinas do lado de fora da porta.

- Que traição é essa? – gritou Murilo – Você jurou...

- Eu jurei não contar ao rei um gracejo sobre você! Não jurei que não tomaria o assunto em minhas próprias mãos, se pudesse. Você pensa que eu deixaria passar uma oportunidade dessas? Em circunstâncias normais, não ousaria matá-lo eu mesmo sem a sanção do rei, mas agora ninguém jamais saberá. Você irá para as valas ácidas junto com Thak e os tolos nacionalistas, e ninguém será mais sábio que o outro. Que noite para mim! Apesar de perder alguns servos valiosos, livrei-me de vários inimigos perigosos. Para trás! Estou na soleira, e você não pode me alcançar antes que eu puxe esta corda e o mande para o Inferno. Dessa vez não será o lótus cinza, e sim algo tão ou mais eficiente. Quase todos os aposentos de minha casa são uma armadilha. E assim, Murilo, que tolo que você é...

Rápido demais para seguir com o olhar, Conan pegou um banco e o arremessou. Nabonidus jogou instintivamente o braço para cima com um grito, mas não a tempo. O projétil se espatifou em sua cabeça, e o Sacerdote Vermelho cambaleou e caiu de bruços, numa escura poça vermelha que se alastrava devagar.

- O sangue dele é vermelho, afinal. – grunhiu Conan.

Murilo afastou para trás, com a mão trêmula, seus cabelos empastados de suor e apoiou-se na mesa, enfraquecido pelo alívio.

- Já é de manhã. – disse ele – Vamos sair daqui, antes que caiamos em alguma outra armadilha. Se pudermos escalar o muro externo sem sermos vistos, não estaremos comprometidos com o que aconteceu aqui. Que a polícia escreva suas próprias explicações.

Ele olhou para o corpo do Sacerdote Vermelho, deitado numa poça de sangue, e encolheu os ombros.

- Ele foi um tolo, afinal; se não tivesse parado para zombar de nós, poderia ter nos apanhado facilmente em alguma armadilha.

- Bem – disse o cimério tranqüilamente –, ele escolheu o caminho que todos os canalhas afinal devem trilhar. Eu gostaria de saquear a casa, mas acho que é melhor irmos embora.

Quando eles apareceram da penumbra do jardim orvalhado, Murilo disse:

- O Sacerdote Vermelho foi para as sombras; então meu caminho na cidade está livre e não tenho nada mais a temer. Mas e você? Ainda há o assunto daquele sacerdote no Labirinto e...

- Estou cansado desta cidade mesmo. – sorriu o cimério – Você falou de um cavalo me esperando no Covil dos Ratos. Estou curioso para ver quão rápido aquele animal pode me levar para outro reino. Há muitas estradas pelas quais ainda quero viajar antes de tomar o mesmo caminho que Nabonidus tomou hoje à noite.



FIM



Fontes: Conan – Espada e Magia #1, http://en.wikisource.org/wiki/Rogues_in_the_House e http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2000%20-%20The%20Coming%20of%20Conan%20The%20Cimmerian%20-%20FF.txt

Agradecimento especial: ao howardmaníaco Fabrício Souza.
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