(por Fernando Neeser de Aragão)
Meu nome é
Amalric. Filho de um nobre da ilustre casa de Valerus, nasci nas colinas
ocidentais da Aquilônia. Tornei-me um renegado porque meu pai, ao morrer, resolvera
fazer de mim, seu filho caçula, um sacerdote de Mitra e dar toda sua herança ao
seu irmão mais velho. Recusando-me a ter de abraçar o sacerdócio e abandonar
minhas orgias, fui embora de casa e me tornei um mercenário. Embora não fosse
uma vida luxuosa, eu podia ao menos gastar meu soldo e saques com mulheres de
taverna, lutar, matar – e, às vezes, até mesmo violentar.
Algum tempo
depois, entrei para o exército de Argos, liderado pelo príncipe zíngaro Zapayo
da Kova. Invadiríamos a Stygia por mar, enquanto os mercenários kothianos a
invadiriam desde o norte. Mas Koth havia feito traiçoeiramente as pazes com a
Stygia, nossa fuga para o mar havia sido removida e tentamos fugir para Shem Oriental.
Entretanto, nosso exército foi exterminado no deserto e fugi com um camarada –
hoje amigo – Conan, um gigante cimério, mas fomos atacados por um bando de
cavaleiros selvagens da raça dos tibus e Conan foi derrubado. Julgando-o morto,
perambulei pelo Deserto Meridional, passando fome e sede, até terminar na
companhia de três homens de Ganatha.
Mas a chegada
da linda Lissa de Gazal, dos escuros cabelos ondulados, da suave pele branca e
dos olhos violetas, mudou para sempre minha vida e meu caráter. Matei os três
ganathas com quem eu perambulava, para que somente eu a violentasse. Ela, no
entanto, achou que eu tivesse lutado contra meus companheiros meramente para
salvá-la, e não a desiludi. Sua inocência me envergonhou e eu renunciei à minha
intenção de violentá-la.
Após
enfrentarmos os horrores de sua perdida cidade natal, reencontramos Conan –
agora líder dos mesmos tibus que nos haviam atacado semanas antes – e
enfrentamos novos horrores na turbulenta Tombalku, da qual mal escapamos vivos.
De volta à minha Aquilônia natal, consegui, com a ajuda de Conan – e com a
autorização do Rei Namedides, depois que o cimério partiu –, depor e matar meu
arrogante irmão e me tornar o novo conde da casa de Valerus, ao lado da minha
amada Lissa. Naquele suntuoso palácio, com chão e paredes de mármore, teto de
lápis-lazúli e com fontes prateadas nos pátios, as quais lançavam um brilho constante
de água faiscante no ar, eu e Lissa geramos nosso belo filho Nissus.
Ao longo dos
anos seguintes, no entanto, a política cada vez mais opressora e egocêntrica de
Namedides nos deixou enojados, e quase fomos para a Nemédia. Mas, ao sabermos
que minha terra natal estava dividida por uma guerra civil, e que meu velho
amigo cimério lutava pela coroa real, resolvemos ficar lá; e lutei ao lado do
bárbaro, até ele derrotar e matar o maldito rei da casa real de Namedes.
No décimo
quinto ano de reinado de Conan sobre a Aquilônia, eu o convidei, juntamente com
a Rainha Zenóbia, para uma festa de aniversário de Lissa em meu palácio. A
Condessa Valéria, que morava não muito longe de minhas terras, também estava presente.
Finalmente,
avistei a silhueta branca de Lissa, que estava de costas para mim, e cujo cabelo
se movia sob a brisa suave e fresca. A farta cabeleira negra da minha esposa já
tinha alguns fios brancos, e seu rosto alvo, algumas rugas; mas eu não a achava
nem um pouco menos bonita do que quando a conhecera. Além disso, o gradual
amadurecimento da minha outrora ingênua esposa, ao longo dos anos, aumentara
mais ainda a minha admiração e o meu amor por ela.
De repente, a
figura de Lissa foi envolvida pela noite. A escuridão caiu como um manto negro
sobre a multidão de nobres, que murmurou inquieta. Um hálito gelado de morte se
entendeu pela enorme sala. Um trovejar fez estremecer as paredes do castelo. Lissa,
a rainha Zenóbia e todos os presentes ali gritaram. Quando as sombras desapareceram,
corri até o batente, e Conan e Valéria saltaram como panteras até o balcão aberto,
empurrando com violência as cortesãs e os nobres que nos rodeavam. Ouviu-se
outro grito, mas o som deste era mais fraco, como se Lissa estivesse se
afastando. Quando finalmente chegamos ao terraço, estava vazio. Examinei com
meus olhos os muros do palácio, impossíveis de escalar – exceto para o rei, é
óbvio –, e não vi nada estranho. Logo olhei para cima, e ali, destacada contra o
céu iluminado pela lua, avistei uma forma bizarra, um pesadelo horrível, com
aspecto vagamente humano, que agarrava a silhueta branca de minha amada esposa.
Afastando-se diante dos poderosos impulsos de suas asas de morcego, o monstro
diminuiu de tamanho até se tornar um ponto no horizonte. Fiquei imóvel por
alguns instantes.
* *
*
A noite do Oriente cobria a cidade de Balakrishna como
um manto morno e acariciante. As estrelas brilhavam, esplendorosas como
diamantes, contra a negritude do firmamento, e a lua minguante se recortava na
direção oeste. Tochas e fogaréus iluminavam as ruas da cidade. Dos palácios
vinham risadas, sons musicais e o sussurro de passos de dança, enquanto dos
templos chegava aos ouvidos o som austero dos tambores e as vozes dos coros dos
fiéis.
Disposto a
resgatar minha amada esposa e a acabar com a vida de seu raptor, eu atravessara
os reinos de Koth, Shem, Iranistão e Reinos Dourados, até chegar à fronteira de
Vendhya – mas não sem antes Zelata me encontrar em Tarantia, onde me dera um
anel, segundo ela muito útil para mim e contra Naraj, o raptor cujo nome me
havia sido informado pela boa feiticeira.
Segundo um assustado taverneiro me contara, naquela
cidade da fronteira oeste daquele reino exótico, a magia do tal Naraj, que
governava Balakrishna, era tão poderosa, que nem mesmo a Devi Yasmina ousava
enviar os exércitos de Ayodhya contra Balakrishna.
Acordei de repente na estalagem onde eu dormia, com os
músculos tensos e dispostos a entrar em ação. Havia escutado um ruído na porta de seu
quarto. Eu estava deitado em minha cama, vestido apenas com as calças de seda.
Então, me levantei sem fazer o menor ruído, como um lobo alerta, e desembainhei
a espada. Alguém girava lentamente a maçaneta. Quando a porta começou a se
abrir, me escondi atrás dela. Então, apareceu uma figura pequena e coberta por
mantos, que entrou com ar furtivo. O desconhecido parou, como que surpreso em
encontrar o quarto vazio. Escutei com atenção. Não consegui perceber nenhum
ruído no corredor: era evidente que o misterioso visitante havia chegado só.
Logo, saí subitamente de trás da porta e tapei com a
mão direita a boca do desconhecido, que, pouco depois, jazia sobre a cama como
um menino, apesar de sua desesperada resistência.
- O que lhe trouxe a este quarto? – perguntei ao
desconhecido, cujos olhos miraram-me assustados. – Fale de uma vez, mas em voz
baixa!
Tirei a mão da boca do cativo e afastei-lhe o véu do
rosto. Eu tinha diante de mim o rosto de uma mulher vendhyana. Com uma voz que
lembrava as sinetas prateadas dos templos do país, ela respondeu:
- Vim lhe buscar para te levar até sua amada. Vista-se
e me acompanhe. Depressa!
Com a rapidez adquirida pela prática, eu me vesti e me
armei sem ajuda. A moça abriu silenciosamente a porta e olhou para fora. Logo,
fez um gesto para mim, e nós descemos furtivamente as escadas da estalagem e
saímos na quente noite estival. O caminho era sinuoso; avançamos com toda a
cautela. Não havia dúvidas de que eram certos os rumores sobre Naraj, que eu
escutara na taberna, já que a jovem parava com freqüência para olhar
rapidamente por cima do ombro. Por várias vezes, nos desviamos por estreitas
ruelas, mais escuras que a própria noite, com o evidente propósito de confundir
possíveis perseguidores.
Súbito, num
beco escuro daquela cidade maldita, fui agarrado por um grupo de homens – de pele
escura e rosto oval, como todos os vendhyanos. Consegui desembainhar minha
espada e matar dois – um com uma estocada fatal de minha lâmina, e outro com um
murro que o matou graças ao anel que Zelata me dera –, antes que eu fosse detido
com um potente soco no queixo, que me pôs em estado de semi-inconsciência. Ao
acordar completamente, eu estava numa sala semicircular, onde tapeçarias
bordadas escondiam todas as demais aberturas, exceto a porta por onde havíamos
acabado de entrar. Lampiões dourados pendiam do teto côncavo, incrustado de
ouro e ébano.
Bem de frente
para as portas de bronze, no outro extremo da sala, havia uma plataforma de
mármore. Sobre ela, uma grande poltrona, encimada por um toldo, ornamentada e
entalhada como um trono. Sobre as almofadas de veludo que revestiam o assento,
estava uma figura magra, com um manto todo bordado de pérolas. Na parte da
frente do seu alto turbante cor-de-rosa, destacava-se um broche de ouro, em
forma de serpente. O rosto sob o turbante era oval, mas sua pele era mais clara
que a da maioria dos vendhyanos, e ele tinha uma barba negra e pontiaguda. Seus
olhos negros estavam fixos sobre uma esfera de cristal à sua frente.
Mas o que me
havia prendido a atenção naquele recinto era a figura de minha amada Lissa, nua
e amarrada sobre um altar, no centro daquela sala. Uma onda vermelha de ódio
tomou conta de mim.
Eu estava
desarmado, mas usei inesperadamente meu punho – com o mesmo anel dado por
Zelata, com o qual eu derrubara mortalmente um dos vendhyanos nas ruas da
cidade – para esmurrar o queixo de um dos meus captores e recuperar minha
espada, ao mesmo tempo em que eu ouvia um estranho clamor do lado de fora
daquela câmara. Então, usando minha espada, matei os demais capangas do bruxo
Naraj num redemoinho de aço, músculos, gritos e sangue, como se fossem
marionetes cujas cordas haviam sido cortadas.
Louco de
fúria, investi contra o maldito feiticeiro que raptara minha amada. Súbito, ele
fez um gesto com a mão, fazendo com que a esfera de cristal brilhasse e Lissa
se erguesse, mas não mais como uma rainha e sim como um dos tigres das selvas
ao sul daquele país. A fera investiu contra mim, mas hesitei em me defender
para não matar a mulher que eu amava. Quando ergui minha espada, o tigre se
transformou num homem encapuzado com rosto de caveira.
- Não! –
gritei. – Você não pode ser Lissa, maldito! Não pode ser! Você não é!!!
E golpeei
aquele rosto ossudo com o cabo de minha espada, despedaçando-lhe a face em
vários cacos. Mas o ataque me queimou a mão que usava o anel e, irritado,
atirei-o sem querer ao chão. De repente, ouvi uma gargalhada terrível no altar.
- Consegui! –
gritou Naraj. – O anel era sua única proteção! Agora nada me deterá.
Então, antes
que eu pudesse me abaixar para pegar o anel, uma névoa me paralisou e visões
hediondas se formaram. Dezenas de demônios – dentre eles, o que raptara minha
amada esposa durante a festa – me cercaram e meu corpo foi envolvido em tentáculos. Senti
a morte se aproximar... minha consciência começou a fugir... quando algo misterioso
me salvou daquelas criaturas e me conduziu a um local estranho.
Em meio a
rodopiantes névoas cinzentas, ouvi um estranho chamado, fraco e distante; e,
embora não o entendesse, não era capaz de ignorá-lo. Empunhando a espada, fui
caminhando através da névoa cinzenta, como um homem andando através de nuvens,
e a voz ia ficando cada vez mais clara à medida que eu avançava, até que
entendi a palavra que estava sendo pronunciada – era meu próprio nome que
estava sendo chamado, através dos abismos do Espaço e do Tempo.
Então, as
névoas ficaram mais claras, e me vi num grande corredor escuro que parecia ter
sido escavado em sólida rocha negra. Não estava iluminado, mas por alguma magia,
eu conseguia ver claramente. O chão, o teto e as paredes eram bem polidos e emitiam
uma luz opaca, e estavam entalhados com figuras de antigos heróis e deuses semi-esquecidos.
Tremi ao ver os grandes contornos sombreados dos Antigos Seres Sem Nome.
Cheguei até
uma escada larga, escavada na sólida rocha: os lados da coluna estavam
ornamentados com símbolos esotéricos tão antigos e terríveis que minha pele se
arrepiou. Em cada um dos degraus, havia entalhada uma figura abominável da
Velha Serpente, Set, de modo que, a cada passo, eu plantava o calcanhar na
cabeça da Serpente, como era a intenção nos tempos antigos. Mas eu não me
sentia nada à vontade com aquilo tudo.
A voz
continuava a me chamar e, finalmente, envolvido na escuridão que seria impenetrável
para meus olhos materiais, entrei numa sala estranha, onde havia um homem
sentado num trono e envolto numa bruma azulada. Fitei com espanto a curva dos ombros
magníficos, as feições bem marcadas, os olhos grandes e diretos, a barba patriarcal
e os cabelos espessos cacheados, presos por uma faixa na altura das têmporas.
- Homem da
Aquilônia! – ele disse em tons profundos, calmos e harmoniosos. – Sabes quem
sou? És filho de Mitra, não consentirei que sofras maldição eterna. Sempre te
vi com bons olhos, e por isso a magia negra oriental não se apoderará de teu
espírito.
Os olhos do deus
Mitra brilharam intensamente. Logo ele levantou sua poderosa mão, e dela surgiu
uma luz. Senti que minha antiga força me voltava plenamente ao corpo. A neblina
azul foi clareando, até desaparecer por completo. Os demônios também fugiram, entre
murmúrios de frenético terror.
A esfera de
cristal se partiu em mil pedaços. O medo se refletiu nos olhos de Naraj. Mas o
bruxo ergueu o punhal sobre a bela figura de Lissa para sacrificá-la. Contudo,
lancei-me como uma pantera sobre ele e meus músculos incharam num esforço
colérico e vingativo, quando agarrei aquele pescoço maldito; ecoou-se um estalo
pela câmara e me levantei ofegante, ao mesmo tempo em que eu deixava cair um
cadáver contorcido ao chão.
- Meu próprio
deus Mitra lhe condenou, bruxo dos infernos! – ofeguei, cuspindo no rosto do
feiticeiro.
Minha roupa
estava com a parte superior queimada, minhas costas cobertas de ferimentos e
meus cabelos estavam chamuscados. Mas, apesar de tudo, avancei até o altar e,
após me inclinar, apliquei toda a minha força nas correntes que prendiam minha
amada, até que os grilhões caíssem quebrados sobre o chão.
Abracei minha
amada Lissa com o ardor de quem ama pela primeira vez. E, como na primeira vez
em que nos amamos, ela soluçava incontrolavelmente nos meus braços. Seu cabelo
lhe caía no rosto; seu aroma me estonteava. O corpo dela se espremia contra o
meu. Estava deitada sobre meus joelhos, os braços fechados ao redor do meu pescoço.
Puxando-a para meu peito, apertei-lhe os lábios com os meus. Olhos, lábios, bochechas,
cabelo, pescoço, seios... eu os inundei com beijos quentes, até os soluços dela
se transformarem em arquejos ofegantes.
Estávamos
relaxando do enlace amoroso, abraçados um ao outro, quando exércitos vendhyanos
e ocidentais atravessaram a porta, soltando gritos de vitória para mim e para
uma figura muito familiar, a qual sorriu para nós. Ao contrário da maioria dos
reis civilizados que conheci e para os quais trabalhei – como o há muito
falecido Vilerus, predecessor do igualmente falecido Namedides –, o Rei Conan
da Aquilônia não havia engordado, nem ficado flácido, com a idade. Nascido e
criado numa terra selvagem, onde homens e mulheres viviam a vida dos lobos
cujas peles lhes cobriam o corpo, ele agora, aos 55 anos, era ligeiramente mais
magro, porém com os músculos tão firmes e bem-delineados quanto na época em que
nos conhecemos a serviço do Príncipe Zapayo da Kova. A ambos os lados do
monarca bárbaro, encontravam-se as ainda ofegantes Rainha Zenóbia, com uma
balestra na mão, e a Condessa Valéria, com a espada tão ensangüentada quanto a
do cimério – e, por Mitra; até meu filho Nissus, agora com 20 anos, acompanhava
os três, com sua lâmina tão manchada de sangue quanto as dos ex-piratas!
Eu e Lissa
lhes devolvemos os sorrisos, e juntos retornamos à Aquilônia.
FIM
A Seguir: De Volta a Mogar.