Espadas de Koth

(por Fernando Neeser de Aragão)



O vento de primavera soprava pelo céu azul que encimava o capim verde, cortado por uma estrada. Ao longo desta, cavalgava um homem solitário, seu manto escarlate e cabelo dourado esvoaçando atrás de si ao sabor da brisa. Era jovem, alto e belo, e vestia uma longa armadura de cota-de-malha. Embora andasse, na maioria das vezes, escoltado, ela às vezes gostava de cavalgar só, o que lhe dava uma sensação de liberdade. Logo, ele puxou subitamente as rédeas, pois, de entre as moitas, havia saído um jovem alto, moreno, bronzeado e forte, com ombros largos, ventre bem-torneado, cintura estreita, musculoso peito peludo e longos braços musculosos. Sua mandíbula era forte; a testa, larga e baixa, era encimada por uma desgrenhada cabeleira negra, e espessas sobrancelhas negras encimavam os vulcânicos olhos azuis do recém-chegado. Sua única roupa era um par de sandálias em tiras e uma tanga, em cujo cinto pendia uma espada numa bainha de couro cru.

- Quem é você? – indagou o homem a cavalo.

- Sou Conan, um cimério. Vim à Coríntia para me alistar num exército mercenário. Soube que você, o rei Ivelos, está reunindo uma horda para atacar a cidade kothiana de Yaralet, e eu gostaria de alugar minha espada.

Ivelos sorriu. O menor movimento daquele bárbaro indicava força e agilidade incomparáveis – e inexistentes em qualquer pessoa civilizada que o jovem monarca já conhecera.

- Então, me acompanhe, cimério – disse o cavaleiro. – É de homens assim que vou precisar.

Tendo se lembrado, com os aesires, de que saques são mais lucrativos do que roubar à noite, o cimério abraçou de bom grado a idéia de se tornar, pela primeira vez, um mercenário – tanto por causa disso quanto por causa do soldo.

* * *

Durante a longa primavera de marcha até Yaralet, a guerra entre Coríntia e Koth ardeu, com cada lado buscando um meio de destruir o outro. Enquanto o rebelde Príncipe Than, da cidade de Yaralet – outrora uma província kothiana, e agora um principado independente – repousava em seu palácio, soldados de ambos os lados morriam retalhados nos bosques ao longo da fronteira. Os sobreviventes continuavam lutando, motivados por promessas de ouro e glória.

Foi nessa duradoura estação, aliado aos mercenários de Ivelos, o rei da cidade coríntia de Thularius, que Conan aprendeu como as nações civilizadas guerreavam. Como pão mergulhado em vinho, o cimério absorveu todos os métodos deles. Durante todas as noites, Conan, assim como os mercenários aos quais se aliara, bebia e se divertia com mulheres, nas tavernas e acampamentos; e, durante o dia, lutavam como demônios.

Ao final daquela estação, o Rei Ivelos enviou um reduzido esquadrão de milicianos para atrair os kothianos em meio à mata. Como o rei coríntio esperava, os invasores iniciaram a perseguição. Ao redor deles, os mercenários aguardavam, de tocaia. Esse era o tipo de tática que Conan conhecia muito bem. Então, no coração sombrio da floresta, a legião do Rei Ivelos dizimou aquela horda.

- Agora, para Yaralet! – gritou, sorridente, o vitorioso rei da cidade coríntia de Thularius. – Para a glória e para o saque!

* * *

À noite, já no lado kothiano da fronteira, as fogueiras do acampamento coríntio lançavam chuvas de faíscas para o alto, e iluminavam a terra como se fosse dia. À distância, avultavam as muralhas de Yaralet, escuras e ameaçadoramente silenciosas. A luz das estrelas brilhava sobre as espadas coríntias que estavam sendo afiadas para a batalha do dia seguinte. Entre a cidade e as fogueiras do exército de Ivelos, se estendiam as águas de um rio, escuras e manchadas pelas estrelas.

Trezentas guerreiras mercenárias em armaduras de bronze, com capacetes emplumados, se encontravam distribuídas ao longo da planície juncosa onde se erguia a cidade. A maior parte daquela invencível tropa feminina era formada por viúvas desesperadas, escravas que fugiram de haréns e jovens que fugiram tanto de maridos quanto de pais depravados. Um treinamento rigoroso transformara todas em excelentes guerreiras.

Dentre as mercenárias, havia uma que já pertencia ao exército de Ivelos. Fugitiva de um pai violento, Thetis fora a única mulher a acompanhar os guerreiros coríntios, durante aquela primavera que agora terminava, antes de se juntar às demais guerreiras. Ao longo daquela estação, aquela jovem coríntia morena, de olhos azuis, olhava para Conan com um interesse cada vez maior. A maneira arrojada e quase precipitada como o cimério se lançava aos combates, e os modos bruscos e a vitalidade do bárbaro transformaram, aos poucos, o interesse de Thetis em forte atração sexual.

Ocupado em lutar – e em se divertir com prostitutas de tavernas e do campo –, o cimério mal percebia o brilho discreto nos olhos da guerreira esguia e alta, até aquela noite, quando a jovem sentou-se ao lado de Conan, diante da fogueira onde este terminava de comer e, sorrindo, o abraçou ardentemente e lhe beijou a boca. Excitado, o bárbaro seminu lhe devolveu o beijo e abraço, e, carregando-a nos braços musculosos, levou a bela jovem até a própria tenda.


Enquanto, naquela planície juncosa, suspiros e gemidos de prazer saíam da tenda de Conan, um ritual medonho estava sendo feito dentro do castelo sombrio, que era ao mesmo tempo a fortaleza e o palácio do Príncipe de Yaralet. Numa câmara interna do castelo, erguia-se um jovem alto e forte, assistindo friamente a um pavoroso sacrifício sobre um sombrio altar negro. Sobre aquela pedra monstruosa e retangular, contorcia-se uma coisa nua e espumante que havia sido um belo rapaz; brutalmente amarrado e amordaçado, ele só conseguia se contorcer convulsivamente sob a gotejante e inexorável adaga, na mão esquerda de um homem de estatura média e cabeça raspada.

A lâmina cortou carne, tendões e ossos; o sangue jorrou em horrendas torrentes, para ser colhido numa larga tigela de cobre, a qual o velho, com seu rosto borrifado de sangue, ergueu no alto, invocando Anu, o Deus-Touro adorado em Yaralet (a única cidade kothiana onde não se cultuava Ishtar), num canto frenético. A seguir, seus magros dedos ossudos arrancaram o coração ainda pulsante do peito carneado.

- Nossa vitória de amanhã estará garantida por este sacrifício, Alteza – disse o velho. – Não importa o que aquele maldito rei coríntio faça, ele não viverá por muito tempo, nem o exército dele ganhará.

O jovem príncipe abriu um sorriso sinistro de satisfação, juntamente com o velho sacerdote.

* * *

À luz do sol nascente, os pináculos e minaretes da cidade de Yaralet se erguiam como um agrupamento verde-jade contra o céu azul.

Do lado yaraletano, o exército inimigo se constituía em infantaria, cavalaria e homens dirigindo carruagens de guerra. Estavam todos em formação de meia-lua. A cidade kothiana estava eriçada de homens armados.

- O plano não muda – disse Ivelos. – Vamos cair com tudo sobre esses kothianos. – E olhou para o jovem corneteiro, que estava tenso, mordiscando os próprios lábios com impaciência. Então prosseguiu: – A única vantagem do General Arbathus são as bigas kothianas. Elas podem se fechar num quadrado e agüentarem a carga. Mas não por muito tempo. Vamos atacar todos juntos e por todos os lados, e os despedaçaremos com nossa infantaria e cavalaria.

Conan ouvia a tudo imperturbável. Os coríntios lhe pagavam o soldo, sua espada faria o serviço à altura e ele ainda poderia saquear Yaralet. Nascido no meio de uma grande batalha, o primeiro som que os ouvidos do cimério escutaram havia sido o barulho de espadas e os gritos dos feridos. Ele, que já participara de brigas de sangue e guerras tribais, sabia que aquele ataque iminente – apesar de ter mais sofisticação que sua primeira grande batalha, em Venarium – não seria muito diferente da destruição do forte gunderlandês; aquilo não passaria de mais uma luta de espadas em grande escala.

- Dê o toque de carga! – ordenou Ivelos.

A trombeta vibrou colérica. A grande massa de cavaleiros, ladeada pela infantaria masculina – da qual Conan fazia parte – e a feminina – da qual Thetis fazia parte –, começou a se mover para diante. Como se uma tempestade escurecesse a luz da manhã, como se um dique se rompesse e liberasse a fúria das águas, os coríntios se lançaram pesada, ensurdecedora e cegamente, empurrados por uma vontade que os transformava num só dragão a despejar ferro e aço.

Arbathus estava à espera de tal dragão. Sob as ordens do príncipe ali presente, o general se enclausurou como um jaboti. Desfez a formação em meia-lua e fechou as bigas num quadrado de aço e ferro, montando ali uma fortaleza dura e móvel, de dentes cerrados e vontade cega, ao mesmo tempo em que enviava a cavalaria e infantaria yaraletana contra os coríntios. Enquanto isso, as sucessivas massas de ataque dos mercenários bateram no centro de defesa, como um martelo na rocha. Estalavam ruidosamente, mas não abalavam a mortífera fortaleza móvel.

A ala masculina de guerreiros coríntios avançava, atropelando a cavalaria do General Arbathus. Kothianos caíam, com seus peitorais de prata e corações perfurados por lanças, flechas e espadas dos mercenários coríntios, mas estes últimos não conseguiam adentrar a formação compacta das bigas de Yaralet.

- Eles estão firmes, Majestade – resmungou um dos oficiais para Ivelos. – Vai ser difícil romper o quadrado.

- O ataque mal começou – disse o rei de Thularius, olhando fixamente para o centro de defesa dos kothianos, no qual se encontrava o único homem que mandava em Arbathus.

Percebendo o olhar de seu rei, o general coríntio ficou incrédulo:

- Você não pode fazer isso, Majestade!

- Posso! – disse o Rei Ivelos de Thularius, esporeando seu cavalo.

A ala feminina foi junto, acompanhada pelos oficiais. Conan já estava à frente desde o início do ataque, decepando cabeças e membros, derramando tripas e miolos, partindo corpos de kothianos ao meio e abrindo peitos encouraçados por cotas-de-malha com peitorais de prata. Apesar do cimério estar seminu, as adagas cravejadas de jóias dos kothianos lhe resvalavam na espada móvel e mortífera; o mesmo acontecia na armadura do rei coríntio.

Quando o Rei Ivelos estava prestes a investir contra o Príncipe Than, o qual fugia de volta a Yaralet, o líder coríntio recuou subitamente, como se golpeado por um ente invisível. Próximos a ele, Conan e outros soldados coríntios ouviam passos e golpes ao redor de Ivelos, embora nada vissem. Conan foi até onde estaria o ser invisível e brandiu sua espada, mas nada acertou. Ivelos se contorcia como um homem que tentava respirar, e então seu rosto se asfixiou e contorceu, todo o ar tinha lhe abandonado os pulmões, toda a força deixou o corpo do rei coríntio, e sua forma imóvel e sem vida desabou ao chão. Enquanto isso, todos os guerreiros do rei de Thularius – inclusive as arqueiras – eram dizimados pelas forças de Yaralet.

Um guerreiro de Yaralet matou a parceira de Conan, com uma estocada de espada no coração, ao mesmo tempo em que o cimério teve sua coxa atingida por uma flecha kothiana. Apesar de claudicar levemente, o bárbaro enfiou a espada nas costas do assassino da parceira, vingando-a. Ao cair, o yaraletano moribundo abriu, com a adaga, um corte ainda maior na coxa flechada do cimério, mas este terminou de matar o assassino moribundo, abrindo-lhe o crânio com um golpe de espada.

Com a mão firmemente agarrada ao cabo da espada, Conan da Ciméria, último e exausto sobrevivente ferido de uma luta perdida, desmaiou no campo de batalha.




A Seguir: Yaralet (desenvolvido a partir de um fragmento de Robert E. Howard)


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