Yaralet

(por Robert E. Howard e Fernando N. de Aragão)



1)

O campo de batalha jazia em silêncio. Entre poças púrpuras, figuras ainda se moviam, parecendo refletir o fantástico céu crepuscular tingido de vermelho. Figuras furtivas esgueiravam-se na grama alta. Aves de rapina caíam sobre amontoados mutilados, trazendo um rufar de asas sombrias. Como arautos do Destino, uma ondulante fileira de garças batia asas lentamente em direção aos juncos da margem do rio. Nenhum rumor de rodas de carroça, repiques ou trombetas perturbava aquela quietude cega. O silêncio da morte seguia-se ao clangor da batalha.

Porém, uma figura se movia através daquele campo de ruínas dispersas, apequenado pelo imenso céu opaco e carmesim. O sujeito era um cimério, um gigante de juba negra e olhos azuis flamejantes. Sua tanga, presa por um cinto ao quadril, e suas sandálias de tiras altas estavam respingadas de sangue. A grande espada que arrastava com a mão direita estava ensangüentada até o cabo. Um terrível ferimento em sua coxa o fazia mancar enquanto andava. Cauteloso, embora impaciente, movimentava-se entre os mortos, saltando de cadáver em cadáver, xingando raivosamente o tempo todo. Outros haviam passado antes dele. Nenhum bracelete, adaga cravejada de jóias ou peitoral de prata motivava sua busca. Ele era um lobo que há muito tempo percorria aquela carnificina, enquanto os chacais levavam os despojos.

Passando os olhos pela planície atulhada, não via nenhum corpo vestido ou se movendo. As facas dos mercenários e dos ajudantes de acampamento trabalharam bastante. Abandonando sua busca inútil, perscrutou sem objetivo definido a extensão além da planície, até o local onde as torres da cidade brilhavam fracamente no crepúsculo. Então virou-se rapidamente na direção de um grito torturado que chegou aos seus ouvidos. Aquilo significava um homem ferido, mas vivo, portanto presumivelmente não saqueado. Embora mancasse, andou rapidamente na direção do som, e ao chegar ao limite da planície, afastou os primeiros juncos e olhou para a figura que se contorcia debilmente aos seus pés.

Era uma garota ali deitada. Estava nua, seus membros alvos lanhados e feridos. Havia crostas de sangue em seus cabelos longos e escuros. Uma agonia cega se projetava de seus olhos escuros, e ela gemia, delirante.

O cimério ficou um tempo olhando para ela, e seus olhos foram momentaneamente nublados por algo que, em outro homem, poderia sugerir uma expressão de pena. Ergueu a espada para encerrar o sofrimento da garota, mas quando a lâmina pairou sobre seu corpo, ela choramingou como uma criança que sofre. A longa espada imobilizou-se em pleno ar. Por um instante, o cimério quedou-se imóvel como uma estátua de bronze. Em seguida, embainhando a lâmina com uma súbita resolução, inclinou-se e levantou a garota em seus braços fortes. Ela resistiu de forma incerta, mas sem forças. Carregando-a com cuidado, ele cambaleou uma boa distância em direção à margem do rio coberta de juncos.


2)

Na cidade de Yaralet, quando a noite chegava, as pessoas barravam as janelas, trancavam as portas e permaneciam dentro das casas tremendo, com velas acesas diante de seus deuses caseiros até que a aurora iluminasse os minaretes. Nenhuma sentinela andava pelas ruas, nenhuma meretriz maquiada espreitava nas sombras, nenhum ladrão esgueirava-se ardilosamente por ruelas sinuosas. Os malfeitores, assim como as pessoas honestas, evitavam os lugares escuros, reunindo-se em tocas malcheirosas ou em tavernas à luz de velas. Do entardecer ao amanhecer, Yaralet era uma cidade silenciosa, com ruas vazias e desoladas.

O povo não sabia exatamente o que temia. Porém, dispunha de amplas evidências de que não era contra sonhos vazios que suas portas eram trancadas. Os homens falavam de sombras furtivas, avistadas através de janelas barradas, formas apressadas, estranhas à sanidade e à humanidade. Falavam sobre portas arrombadas durante a noite e de gritos e gemidos humanos seguidos por um silêncio significativo. Falavam do sol nascente brilhando sobre portas demolidas, que se abriam para casas vazias cujos ocupantes nunca mais foram vistos.

Mais estranho ainda, falavam do ruído furtivo de rodas de carroças fantasmas pelas ruas vazias na escuridão antes do amanhecer, e aqueles que as ouviam não se atreviam a olhar. Uma criança olhou, uma vez, e enlouqueceu instantaneamente para morrer em seguida, gritando e espumando, sem dizer o que vira ao olhar pela janela escurecida.

Certa noite, enquanto o povo de Yaralet tremia em suas casas trancadas, um estranho conclave acontecia na pequena câmara, forrada de veludo e iluminada à vela, pertencente a Atalis. Alguns o consideravam um filósofo, outros, um malfeitor. Atalis era um homem esbelto e de altura média, com uma cabeça esplêndida e feições de um mercador esperto. Estava vestido com um manto de rico tecido, e sua cabeça raspada denotava sua devoção ao estudo das artes. Enquanto falava, gesticulava inconscientemente com a mão esquerda. A mão direita descansava em seu colo num ângulo não-natural. De tempos em tempos, um espasmo de dor contorcia sua expressão, e então seu pé direito, escondido sob o longo manto, retorcia-se de forma aflitiva sobre o tornozelo.

Ele estava falando com alguém que a cidade de Yaralet conhecia, e louvava, como príncipe Than. O príncipe era um homem alto e elegante, jovem e inegavelmente belo. Os contornos firmes de seus membros e a têmpera de aço de seus olhos cinzas desmentiam a sugestão levemente afeminada de seus cabelos negros e encaracolados e seu gorro de veludo emplumado.

- O cão cimério mordeu a isca, Príncipe Than – disse Atalis. – Breve, a vagabunda, a quem você violentou e eu chicoteei antes de a termos largado no campo de batalha, contará àquele verme bárbaro o que nós fizemos com ela, e ele virá direto para cá – acrescentou o velhaco de cabeça raspada, com um sorriso sinistro. Súbito, o sorriso se desfez: – Não, meu príncipe! Ele não virá a Yaralet agora. Mas, quando vier, estaremos prontos para matá-lo e vingar o sacerdote a quem ele matou na cidade brituniana de Arathala. Agora, escute o que tenho a lhe dizer, Alteza...

* * *

- Mas por que diabos um príncipe e um canalha que se diz filósofo iriam até uma taverna, para surrarem uma meretriz e largarem-na num campo de batalha? – perguntou o cimério à jovem recém-desperta, enquanto lhe lavava os ferimentos nos membros alvos e vagina dolorida.

- Não sei... aqueles cachorros diziam agir em nome de Anu... o Deus-Touro – ela respondeu, ainda meio zonza.

Anu! Isso explicava, então, os pesadelos que ele havia tido após seu retorno à Ciméria! Há meses, aquele cimério, de nome Conan, vinha sonhando com um demoníaco homem-touro que o atormentava, acusando-o de ter matado um de seus seguidores. Por Crom, nem mesmo depois de morto, aquele traiçoeiro sacerdote-receptador dava sossego a ele!

- Diabos, assim que eu me banhar, irei lá agora, para vingar Ivelos e a você, mulher! – rosnou o bárbaro.

- Por favor, não entre em Yaralet agora! – exclamou a jovem prostituta, cujo nome era Lizalia de Khrosha. – Obscuros e medonhos são os rituais praticados dentro daquela cidade à noite, bárbaro! Ouvi, nas tavernas, vagos rumores de sangue e corações arrancados por um oráculo para o deus Anu. – Os belos lábios dela se torceram de nojo. – Argh! Por Ishtar, aquele tal de Atalis e o Príncipe Than não passam de bestas sanguinárias! Vamos à cidade de Khrosha, onde nasci, e falaremos com o rei de lá, para que ele reúna um exército contra Yaralet!

A seguir, a bela meretriz relatou outros horrores que assombravam Yaralet ao pôr-do-sol, em conseqüência dos sacrifícios lá praticados – aqueles sim, fizeram a pele do bárbaro se arrepiar. Pela primeira vez, ele entendeu por que o Rei Ivelos morrera daquela forma.

- Por Crom, sou apenas um mercenário – disse o cimério, enquanto, após se banhar naquele rio, vestia a armadura, tirada do cadáver do único guerreiro coríntio não-saqueado daquela batalha perdida –, mas hoje vi a morte invisível atacar um rei no meio de milhares, e não descansarei enquanto não vingá-lo. Agora, enrole-se neste manto, Lizalia – Conan acrescentou bruscamente, arrancando um molambo vermelho de um mercenário morto, cujo corpo ele encontrara naquele rio. – Tem um pouco de sangue aqui e ali, mas é a única roupa que pude achar para você.

- E tenha cuidado com as árvores ao redor de Yaralet. São árvores de lótus negro, cuja seiva é mortal e cujo aroma leva ao sono povoado por pesadelos! – concluiu a meretriz.

Naquele momento Conan se lembrou de ter sentido, na batalha, um leve e distante cheiro exótico e estranho, trazido pelo vento, e de ter visto árvores esparsas com ramalhetes verdes, cujos talos tinham folhas curiosas com hastes flexíveis – e de ter ouvido o Rei Ivelos avisar a todos para não se aproximarem daquelas árvores. Ainda com fome, mas com a sede saciada, o bárbaro tirou um pedaço do manto, para enfaixar a coxa ferida, e cambaleou, com a kothiana, para longe do rio, em direção a Khrosha.


3)

Nenhuma sentinela percorria as ruas ou os muros, e nenhuma luz saía de dentro das casas. Era como andar nas ruas de uma cidade-fantasma.

Disputada por Zamora, Coríntia e Koth (este último, o reino ao qual aquela cidade outrora pertencera), Yaralet mantinha sua independência graças à feitiçaria que assolava aquele local durante as noites – e pela qual Atalis sacrificara a mobilidade do braço direito e parte da própria saúde. Contudo, tal feitiçaria, a qual poupava Yaralet de ser conquistada ou reconquistada, dependia, como dito por Lizalia, de vidas humanas para se manter e, embora poupando a classe aristocrática à qual Than e Atalis pertenciam, aquela bruxaria, oriunda de um pacto feito entre a nobreza e as Trevas, não poupava as vidas da população da cidade. Por este motivo, quando a cidade era invadida, metade da desesperada população pobre de Yaralet – apesar de todos louvarem seu príncipe – sempre torcia para que os invasores tivessem sucesso em derrotar os exércitos mandados pela nobreza local.

***

Dias depois, um exército cruzava os prados em direção a Yaralet. Eram homens encouraçados, altos, esguios, de pele morena e feições aquilinas, vindos do leste. Aquele exército kothiano, reunido por Conan e sua meretriz Lizalia, para atacarem Yaralet e se vingarem – o cimério, da morte da guerreira assassinada no primeiro ataque à cidade; e a jovem, do açoitamento –, consistia em 5000 homens. Três mil na cavalaria, 1000 na infantaria – sendo Conan um deles – e 1000 arqueiros. Com muito custo, aquele jovem andarilho e sua atual parceira de cama conseguiram convencer o rei da cidade de Khrosha a invadirem aquela cidade amaldiçoada. O principal argumento do bárbaro e da prostituta – esta agora usando um belo e curto vestido branco – havia sido uma jóia, achada no mesmo cadáver de onde o cimério tirara o manto dias atrás. Ele e a jovem haviam dito ao rei que um assalto a Yaralet compensaria a empreitada...

- Soem o nosso sinal! – disse o Rei Priscus de Khrosha. – O exército de Yaralet logo estará à vista.

Enquanto o corneteiro obedecia ao rei, Conan, com um elmo kothiano somado à sua armadura, e cavalgando com Lizalia na garupa, falou:

- Precisamos chegar lá antes do anoitecer; do contrário, você pode ter o mesmo destino do Rei Ivelos.

- Você acha que eu não sei disso, fedelho? – rosnou Priscus.

Indignado em ser chamado assim, Conan estava prestes a esbravejar com o rei, quando Lizalia sussurrou às suas costas:

- Calma, meu cimério. Eu tenho um plano...


4)

O sol já estava quase se pondo, quando o exército de Khrosha avistou as muralhas de Yaralet. Súbito, dos portões de bronze daquela cidade, irrompeu uma aterradora horda de criaturas macabras – emitindo sons estridentes e brandindo lanças, arcos e espadas. Em absoluta harmonia, eles iniciaram seu avanço em direção ao exército rival. Eram seres altos e delgados, com patas na parte inferior do corpo, semelhantes às de uma ave, e cabeça e torso semi-humanos. Seus braços eram longos e esquálidos, terminados em mãos providas de descomunais garras curvas. Cada demônio tinha a estatura de um homem, e estava rodeado por uma aura sobrenatural e trêmula, como se tivesse sido banhado nas chamas do Inferno.

À frente daquelas criaturas medonhas, cavalgava um homem alto e musculoso, de negros cabelos cacheados, cujo gorro de veludo emplumado não lhe tirava a têmpera de aço dos olhos cinzentos, reforçada por sua prateada cota-de-malha. No cavalo ao lado, se erguia um homem de cabeça raspada e estatura mediana, cuja mão direita lhe descansava no colo de forma não-natural, enquanto manejava as rédeas de sua montaria com a esquerda.

Conan mal vira pessoalmente o primeiro, mas reconheceu os dois pela descrição, feita por sua bela parceira, como o Príncipe Than e Atalis. Entre ambos, havia uma daquelas criaturas, numa carruagem de aparência tão fantasmagórica quanto quem a guiava. Rosnando de ódio, o cimério foi o primeiro a investir contra aquela horda infernal. Gritando e uivando, os demônios correram de um lado a outro, a cada passo derrubando um soldado de Khrosha com suas garras e armas. Lizalia já havia descido do cavalo e ido para longe daquele caos, ficando numa das barracas armadas pelo rei. Um rival de Yaralet – um soldado da cavalaria de Priscus – foi arrancado de sua montaria por três daquelas criaturas, e ainda conseguiu matar uma delas, antes que sua cabeça fosse arrancada do tronco. O pobre infeliz ainda estremeceu convulsivamente por alguns minutos, antes de se enrijecer sobre a grama alta.

Indiferente a tudo isso, o cimério partia peitos e desmembrava várias daquelas criaturas. Tal qual fogo em contato com óleo, a febre da guerra incandescia o corpo e a mente de Conan da Ciméria.

Instantes depois, enquanto o bárbaro também era derrubado de seu cavalo, o mundo ao redor explodiu numa estrondosa cacofonia, a qual combinava o clangor do aço e o retalhar de carnes. A atmosfera foi infestada pelo odor de enxofre e pelo fedor da mais profana bruxaria. Erguendo-se do chão como um enorme felino, Conan matou, de um único giro de sua lâmina, os três demônios que o haviam derrubado, esquivou-se das garras de outra daquelas criaturas e a partiu em dois, na altura da cintura. Estimulados pela selvageria do bárbaro, seus aliados avançaram e lutaram, abrindo peitos e decepando cabeças, e tendo como principais aliadas as cotas-de-malha que lhes protegiam.

As criaturas contavam com aliados humanos. O primeiro kothiano a investir contra Conan teve suas tripas derramadas por um giro da espada do cimério. O segundo tentou atingir o crânio do bárbaro com uma maça, mas este se esquivou lançando-se para trás e contra-atacou desviando a maça do citadino para baixo, e em seguida lhe abrindo a garganta num jato de sangue. O terceiro investiu com sua lança em direção ao peito do cimério, mas este agarrou a haste e, usando a velocidade do oponente contra ele próprio, enfiou-lhe a espada na boca do estômago. O quarto kothiano de Yaralet foi morto por Conan com um arremesso da lança do inimigo ao qual o cimério acabara de matar.

Enquanto um dos kothianos de Khrosha enfiava sua lança na boca de um dos demônios, de modo que a ponta se projetou pela nuca da criatura, outro daqueles seres diabólicos agarrou a coxa enfaixada de Conan, e só não a esfaqueou graças à cota-de-malha que a protegia. O cimério abriu a cabeça daquela coisa, num golpe descendente de sua espada. Em meio ao caos furioso, o Rei Priscus bradava ordens, ao mesmo tempo em que estocava e decepava, tanto yaraletanos quanto os seres invocados pela magia de Atalis.

O Príncipe Than também fazia sua colheita mortífera, estocando, talhando e decepando os aliados de Conan, enquanto Atalis começava a se afastar para um local mais seguro. Após cortar clavícula e coração de um yaraletano, e decepar a cabeça de outra criatura semi-humana, o cimério pegou o escudo de um kothiano morto, e o ergueu a tempo de se proteger de uma chuva de flechas, lançadas pelos guerreiros de Yaralet.

Antes que os arqueiros se reorganizassem para lançar outra saraivada de flechas, os kothianos de Khrosha, a um comando do Rei Priscus, atiraram contra seus rivais, matando tanto yaraletanos quanto demônios. A chuva de flechas atingiu os cavalos do Príncipe Than e de Atalis, antes que este último alcançasse os portões da cidade. Enquanto isso, Conan teve seu escudo partido ao meio pela espada de outra criatura, cujo coração o bárbaro perfurou com sua espada. Então, os vulcânicos olhos azuis do bárbaro encontraram os olhos de aço do príncipe rebelde que governava Yaralet.

O príncipe kothiano saltou inesperadamente, esperando pegar seu antagonista com a guarda aberta. Mas a espada do cimério colidiu no ar contra a lâmina do príncipe, e faíscas choveram quando as duas longas lâminas giraram, lampejaram, levantaram e caíram, palpitando à luz do sol poente.

Ambos atacaram, golpeando furiosamente, cada um preocupado demais em matar o outro para pensar muito em ostentar esgrima. Cada golpe era dado com força total e desejo assassino por trás dele. Tal duelo não continuaria por muito tempo; a desesperada indiferença do combate o levaria rapidamente a um desfecho sangrento, para um ou para outro.

Conan lutava em silêncio, mas Than ria e escarnecia de seu inimigo, entre golpes relampejantes.

- Cão! – O manejo do braço do kothiano não interferia no de sua língua, nem vice-versa. – Matar você aqui me cansa. Você deveria viver para presenciar a destruição de seu exército maldito! Eu vou forjar uma espada para meus inimigos, tanto coríntios quanto kothianos... para conquistar o reino de Koth!

“As hordas do Inferno estão preparadas para tal guerra. Rugiremos para o sul, como uma avalanche que ganha volume e velocidade à medida que avança. Com meio milhão de guerreiros, invadiremos Koth... transformaremos Khoraja e Khauran em pó e incorporaremos seus guerreiros às nossas fileiras! E, sobre os cadáveres dos cavaleiros kothianos, invadiremos as planícies de Shem!”.

Conan cuspiu uma praga. Ele pouco se importava com os delírios imperiais de Than e Atalis – e quaisquer tipos de delírio desta ordem.

- Eu havia hesitado – riu Than, respirando calma e facilmente, enquanto aparava a lâmina que zunia. – Mas, noites atrás, Atalis me deu uma notícia... Koth está condenada! Serei o imperador de lá em breve! A guerra será iniciada. O culto a Ishtar será abolido, e Anu tomará o lugar daquela deusa vadia! Os haréns de Koth serão preenchidos por garotas como a sua meretriz...

Dos lábios de Conan explodiu um grito áspero e selvagem, como se ele percebesse pela primeira vez que o kothiano não estava simplesmente zombando dele com palavras sem importância, mas enunciando um verdadeiro plano de conquista, do qual a bela Lizalia faria parte.

Com o rosto sombrio e os olhos ferozes, ele mergulhou com uma velocidade renovada que fez Lizalia – a qual, vendo a batalha diminuir ao redor de sua tenda, saíra de lá e se aproximara, a uma distância segura, de seu salvador – arregalar os olhos. Os lábios de Than já não pronunciavam mais escárnios. Toda a atenção do príncipe estava dedicada a deter a espada ciméria que lhe batia na lâmina como um martelo numa forja.

O estrondo do aço se ergueu a ponto de abafar os próprios ruídos daquela batalha sobrenatural.

A pura força e fúria berserk do cimério estavam começando a surtir efeito. O kothiano estava com a pele bronzeada pálida. Sua respiração foi ficando ofegante, e ele foi continuamente recuando. O sangue escorria de talhos nos braços, coxa e pescoço. Conan sangrava também, mas ele não afrouxava o furor impetuoso de seu ataque.

Than subitamente saltou para um lado enquanto Conan investia. Desequilibrado por errar a estocada, o cimério pulou para a frente e a ponta de sua espada colidiu contra o chão de pedra. Ao mesmo tempo, Than dirigiu um talho à cabeça de seu inimigo, com toda a sua força minguante. Mas o aço cimério, ao invés de se quebrar como uma lâmina mais fraca, se dobrou e endireitou novamente. A espada que descia cortou o capacete de Conan e arranhou o couro cabeludo por baixo, mas antes que Than pudesse recuperar seu equilíbrio, a lâmina de Conan golpeou para cima, atravessando elos de metal e o osso do quadril até lhe ralar a coluna vertebral.

O kothiano cambaleou e caiu com um grito abafado, suas entranhas se espalhando pelo chão, e logo ele ficou flácido.

Conan, cego pelo sangue e suor, enfiava, em silencioso frenesi, várias vezes, sua espada na figura aos seus pés, embriagado demais de fúria para perceber que seu rival estava morto, até Lizalia, correndo até ele e praguejando num quase horror, arrastá-lo dali. O cimério, atordoado, limpou o sangue e suor dos olhos, e fitou groguemente seu adversário. Ainda estava aturdido pelo golpe que lhe havia rachado o elmo. Puxou o capacete partido e o lançou para um lado. Estava ensangüentado, e uma torrente escarlate lhe descia pelo rosto, cegando-o.

Praguejando ardentemente, ele começou a tatear a própria cota-de-malha, procurando por algo que o enxugasse, quando sentiu os dedos ágeis e delicados de Lizalia em ação. A kothiana rapidamente limpou o sangue do rosto do companheiro, e lhe enfaixou o ferimento com tiras arrancadas da própria roupa.

De repente, a horda demoníaca desapareceu – incluindo o cocheiro-fantasma, que ceifava mais vidas dentre as criaturas –, favorecendo à cidade-estado inimiga de Yaralet redobrar seus ataques contra as forças acéfalas de Than, as quais já perdiam seu entusiasmo e coragem, devido à morte do príncipe. Sem contar que, nunca imaginando serem derrotados, os yaraletanos não costumavam trazer suas bigas nas batalhas onde as criaturas demoníacas de Atalis ajudavam – e esta fora uma das ruínas dos guerreiros dali

Então, Lizalia entrou novamente no campo de batalha, e um dos primeiros homens feridos que viu foi Atalis. Suas pernas haviam sido quebradas por uma grande pedra, lançada a mando da garota por um soldado amigo dela, como ela planejara, e uma lança havia se quebrado nas costelas do patife. Fora graças à bela prostituta de Khrosha, que as hordas sobrenaturais haviam desaparecido tão subitamente. Agora, Atalis, com os olhos vitrificados e sem a reconhecer, ofegava por água.

- Água? – ela disse. – É nos rios do inferno que você vai saciar sua sede!

E a jovem puxou a cabeça dele para trás, cortando-lhe a garganta, com uma punhalada no esôfago do patife.

Então, com a morte de Atalis, o exército de Khrosha, liderado pelo rei da cidade rival, adentrou Yaralet, no intuito de saqueá-la. Conan foi junto, acompanhado por Lizalia. O sol já havia se posto. Uma estreita rua de mármore, protegida por enormes portas de ferro, levava até o Palácio Real, no centro de um enorme jardim cheio de árvores frutíferas e de flores, adornado com lagos artificiais e fontes prateadas como o luar ao qual refletiam. Dos portões, podiam-se ver as pequenas ruelas da cidade, as mesquitas, os minaretes, as tendas, os templos, as mansões e a praça do mercado.

Súbito, um profundo estrondo reverberou pela cidade. A terra tremia, sacudia-se e se erguia, jogando saqueadores e moradores no chão.

- Cuidado! – gritou Lizalia a Conan.

Quando a prostituta tentou se levantar, Conan a ergueu nos braços e carregou, do Palácio Real até a praça central de Yaralet. Assim que o fez, a parede de um edifício próximo caiu no exato ponto onde ambos haviam estado, mas seu poderoso estrondo se perdeu em meio ao trovejar do terremoto.

- Temos que sair logo daqui! – guinchou Lizalia, declarando o óbvio, como todo civilizado.

Com a jovem nos braços, o cimério correu em ziguezague pelas ruas. De ambos os lados, paredes e colunas se inclinavam e desabavam, reduzindo-se a entulho. O barulho era ainda mais ensurdecedor que na cidade perdida de Iapheton, em Zamora, quilômetros ao norte, à qual o cimério visitara há quase dois anos. Nuvens de pó provocavam tosse nos moradores – tanto os que fugiam quanto os que morriam. O bárbaro parou e saltou para trás, para evitar ser esmagado pela queda da fachada de um templo de Anu. Ele cambaleou com novos tremores que sacudiam o chão.

Galgou pilhas de escombros e saltou loucamente de sob uma parede que caía. Fragmentos de pedras e de tijolos o atingiam – mais a ele do que à garota em seus braços –; um deles abriu um corte no queixo de Conan. Outro bateu em sua canela encouraçada. Uma rápida olhada para trás mostrou ao cimério o Palácio Real explodindo gradativamente, em milhares de pedaços, do topo até a base, até não restar mais do que entulho carbonizado.

Finalmente, Conan, Lizalia e uns poucos sobreviventes, tanto de Yaralet quanto do exército de Khrosha, alcançaram os desmoronados portões da cidade, bem como os também desmoronados muros que outrora cercavam aqueles mesmos portões. Nada havia restado daquela cidade, exceto escombros, alguns sobreviventes que conseguiram fugir e os poucos bens materiais que cada um conseguiu levar daquele principado perdido. A morte de Atalis havia causado o fim da cidade de Yaralet.

Então, colocando Lizalia de pé sobre o solo firme de grama alta, do lado de fora da cidade, o bárbaro sorriu para a bela meretriz.

- Era este o plano que você tinha em mente, mulher? – ele perguntou.

Ela assentiu:

- Sim... Consegui me vingar de Atalis e acabar, deste modo, com a horda demoníaca e a cidade, além de evitar que o Rei Priscus descobrisse que havíamos mentido sobre a jóia. Só lamento que tenha restado tão pouco para você saquear, meu cimério... – ela respondeu, com pesar na voz.

Conan olhou ao redor. Os sobreviventes pediam para entrar no exército do Rei Priscus, e ele prontamente os atendia. Outros choravam a perda da cidade e dos entes queridos que lá viviam, bem como a morte do príncipe. O cimério sorriu novamente para a garota, com uma nova chama lhe brilhando nos vulcânicos olhos azuis:

- Você fez a coisa certa, garota. Agora venha, e me dê um beijo.

- Um beijo? – gritou ela, histérica. – Como pode pensar em beijos, num momento desses?

A gargalhada de Conan ecoou por toda a planície, quando ele a ergueu novamente do chão, sobre os musculosos braços encouraçados, e beijou-lhe os lábios com prazer incontido e evidente.

- Só consigo pensar em vida! – ele urrou. – Os mortos estão mortos, e o que passou, passou! – Quanto ao que saqueei... – Para alegria da prostituta, o cimério ergueu uma bolsa cheia de moedas de ouro, a qual guardara no cinto pouco antes do terremoto. – Agora, vou para outra cidade-estado kothiana, lutar novamente como mercenário, e, se quiser, iremos para uma taverna onde nenhum janota da realeza maltrate as prostitutas! – ele acrescentou, com a jovem Lizalia nos braços e contente em saber, através dela, que a morte de Atalis o deixará livre de pesadelos.

Então, com os braços enlaçados no pescoço taurino do cimério, Lizalia devolveu ardentemente o beijo, nos finos lábios fortes do bárbaro.

FIM




Agradecimentos especiais: Aos amigos e howardmaníacos Ricardo Medeiros, de Brasília (DF), e Deuce Richardson, dos EUA.



A seguir: Cherkessia.


Compartilhar