A Sombra na Chama

(por “VonKalmbach”)

Ouça, milorde. Eu era um grande feiticeiro no sul. Os homens falavam de Thoth-Amon como falavam de Rammon. O Rei Ctesphon da Stygia me dedicava grande estima, derrubando magos de altos postos para me enaltecer acima deles. Eles me odiavam, mas tinham medo de mim, pois eu controlava seres do além, que respondiam ao meu chamado e cumpriam minhas ordens. Por Set, meus inimigos não sabiam a hora em que poderiam acordar no meio da noite, e sentirem as garras de um horror sem nome nas suas gargantas! Eu era um mestre da magia negra. Realizei magias negras e terríveis com o Anel da Serpente de Set, que encontrei num túmulo tenebroso, uma légua abaixo da terra, esquecido lá antes que o primeiro homem se arrastasse para fora do mar lamacento”.
(Thoth-Amon, em “A Fênix na Espada”, de Robert E. Howard)


1) Yaralet à Noite

LÂMPADAS A ÓLEO QUEIMAVAM INTERMITENTEMENTE ao longo das ruas vazias de Yaralet, e sombras cobriam os becos desocupados e as escuras passagens arcadas. Não havia passadas arrogantes, nem risadas borrascosas de gente festejando tarde da noite, para quebrar o silêncio morto, pois os habitantes de Yaralet mantinham um amedrontado toque de recolher por trás de suas portas fechadas e trancadas.

O sol havia afundado no oeste, e as primeiras estrelas bruxuleavam no céu do anoitecer.  No pequeno portão oeste da cidade, dois guardas kothianos mudavam nervosamente a posição de suas lanças à luz das lanternas, olhando apreensivos para a escuridão que caía. Uma batida trovejante sacudiu ruidosamente o portão.

Os guardas ficaram imóveis, tomados pelo medo, e o portão bramiu e sacudiu pela segunda vez. Uma voz retumbante berrou com um sotaque bárbaro:

- Abram o portão!

Os guardas trocaram olhares incertos, mas não se moveram.

- Abram o portão, por Crom!

Desta vez, a voz lhes cortou o medo com seu timbre de comando. Os guardas abriram a portinhola e olharam para fora.

Mal-iluminado pela luz da portinhola, erguia-se um forasteiro de grande estatura, com ombros largos e membros pesados. Os olhos azuis do estranho carranqueavam sob as sobrancelhas, brilhando ferozmente à luz dos lampiões e possuindo uma vitalidade selvagem que faltava nos olhos dos observadores. Uma grande juba de cabelos negros lhe caía ao redor dos ombros, aparada na testa. Ele vestia uma tanga e um par de sandálias em tiras; em sua cintura, havia um largo cinto do qual pendia uma espada de lâmina larga. Em seus braços, ele carregava um grande fardo envolto num manto escarlate.

- Qual o seu nome, e o que faz em Yaralet? – perguntou o guarda, queixoso.

- Sou Conan, um cimério – o forasteiro enunciou.

- Você era um soldado naquela batalha que rugiu mais cedo sobre a planície? – perguntou o outro.

- Abra o portão. Estou ferido, e minha companheira também – Conan respondeu.

Os olhos dos guardas desceram sobre o vulto no manto vermelho, onde eles viram a cabeça de uma jovem mulher descansando no ombro do estrangeiro. Os olhos da mulher estavam fechados, e sua pele pálida contra a vermelhidão do manto. Ela se agitou e murmurou algo incoerente, mas não acordou.

- Por que estão demorando? – o cimério resmungou impacientemente.

Um dos guardas matraqueou sua chave na fechadura, e o portão se abriu.

Conan passou claudicando pelos guardas com seu fardo. Ele sentiu os olhos dos dois às suas costas, enquanto prosseguia ao longo da rua mal-iluminada que fazia a curva após o portão. Ouviu o portão se fechar, e a chave girar na fechadura atrás de si; então, um dos guardas falou atrás dele:

- Você se arrisca demais em vir para cá após o pôr-do-sol, estranho. O pesadelo espreita as ruas de Yaralet.

Conan parou e deu a volta, mas o portão agora estava vazio sob o brilho das lanternas; e não havia nada, exceto o som de pés recuando apressadamente.

Ele murmurou uma praga perplexa, e continuou seu caminho.

* * *

O cimério tentou entrar em uma taverna após a outra, ao longo das ruas lugubremente abandonadas, mas estavam todas trancadas e ninguém queria deixá-lo entrar, apesar de todas as suas pragas. Ele via luzes brilhando fracamente através das rachaduras nas palhetas e postigos das casas por onde passava, e ouvia sussurros e murmúrios atemorizados, vindos de dentro delas. Passou por casas que eram escuras, silenciosas e cobertas por tábuas de madeira, com uma cruz negra pintada na parede. O trabalho em madeira nas portas e postigos destas casas estava riscado e estilhado como se por garras. Finalmente, com seu pouco estoque de paciência já esgotado, ele deitou cuidadosamente a mulher do lado de fora de uma das casas abandonadas, e arrancou as tábuas da portada quebrada com seus dedos de ferro. Desencaixando um lampião próximo de seu suporte na parede, ele puxou a porta, abrindo-a, e adentrou seu interior escuro.

Lá dentro, viu um único e grande cômodo com janelas trancadas, o qual fora recentemente ocupado. Havia uma cama amarrotada num canto, várias prateleiras, uma grade aberta, uma mesa e alguns bancos sem recosto. O local estava desarrumado; uma luta havia acontecido lá e, no chão, da mesa à soleira, ele viu uma longa mancha escura de sangue seco.

O cimério pôs o lampião sobre a mesa no centro da sala, e voltou para fora, para pegar a mulher e deitá-la na cama. Pegou a madeira que fora usada para vedar o local, e a partiu em gravetos; logo, acendeu uma fogueira na grade. Havia pão mofado, queijo, manteiga, carne seca, fruta e vinho na pequena despensa, e ele comeu com gosto, sentando-se à mesa próxima à fogueira e observando a mulher.

Após ter se banqueteado, ele flexionou e estirou a perna ferida, rangendo os dentes por causa da dor. Mas sua vitalidade natural já se impunha, e ele sabia que, em breve, seria capaz de arremeter a perna com toda a sua força.

A mulher se mexeu e acordou. Ela olhou ao redor da sala, perplexa, até seu olhar descansar no gigante de bronze que se sentava imóvel próximo à fogueira, seus olhos azuis cintilando ferozmente à luz do fogo. Ele irradiava uma presença elemental que, de alguma forma, parecia tranqüilizá-la, apesar de sua aparência bárbara.

- Quem é você? – ela murmurou confusa. – Como cheguei aqui?

- Sou Conan – ele respondeu. – Eu lhe encontrei semi-morta e delirante nos juncos. Levei-lhe ao rio, limpei seus ferimentos e então lhe trouxe aqui a esta cidade.

Ele não mencionou que quase a havia matado, como um ato de misericórdia para acabar com seu sofrimento. Algum capricho havia detido sua mão. Mas depois, enquanto a carregava até o rio, ele havia sentido a força dentro da estrutura flexível dela, e percebeu que ela se recuperaria de seus ferimentos.

- Esta cidade? Mitra! Você quer dizer Yaralet! – Ela estremeceu, enquanto seus olhos se demoravam na longa mancha de sangue seco sobre o chão.

Conan se levantou e apontou a comida sobre a mesa, com um movimento impetuoso.

- Não há tempo. Tenho que sair daqui! – Ela tentou se levantar, e caiu para trás num desmaio momentâneo. – Oh, eu...

- Calma, garota; você está passando fome.

Ele pôs uma baixela diante dela, amontoada com as comidas que havia posto para um lado, junto com um pouco de vinho. Ela comeu e bebeu vorazmente, com as mãos trêmulas, seus escuros cachos molhados emoldurando-lhe o rosto pálido à luz da fogueira, o manto vermelho disposto à toa ao redor de seus ombros esguios. Enquanto ela comia, Conan olhou ao redor da sala, até encontrar umas roupas deixadas pelos ocupantes anteriores, e colocou-as próximas à mulher.

- Aqui; quando você terminar de comer, vista-as. Você estava nua quando lhe encontrei. Depois, você pode me contar o que está acontecendo.

Quando a mulher terminou de comer e beber até se saciar, ela se levantou vacilante e, sem timidez, começou a vestir as roupas simples e plebéias que ele procurara para ela. O cimério deu a volta e caminhou até a soleira, os polegares enfiados no cinto, uma figura silenciosa e indomável, erguendo o olhar para a irregular linha do horizonte e para os anoitecidos domos e minaretes de Yaralet.

Os olhos de Conan passearam ao longo da rua vazia, sobre os tetos sombreados e para o castelo que pairava acima da cidade. O próprio castelo estava encaixado na escuridão, com apenas algumas luzes brilhando fracamente de dentro da torre de menagem. No topo daquela torre, um fulgor sobrenatural flamejava. Ele viu uma nuvem escura de formas aladas se erguer para dentro do céu noturno, vinda do pátio do castelo e delineada à distância por aquele brilho profano. Os cabelos de seu pescoço se arrepiaram e um frio correu por suas veias, quando viu os alados voarem alto e silenciosos através das ameias, e acima dos tetos de Yaralet.

Conan recuou involuntariamente da soleira, sua mão cicatrizada caindo até o cabo de sua espada. A mulher se juntou a ele.

- É tarde demais! Já estão aqui!

Ela tentou, sem sucesso, fechar a porta quebrada, voltou à sala e começou a puxar a cama.

- Ajude-me a usar isto para bloquear a porta. Temos que fazer o que pudermos para mantê-los fora.

Por um momento, Conan ficou olhando ferozmente para a horda silenciosa, como se para um inimigo implacável, passando o polegar pela lâmina de sua espada larga. Então, ele enfiou a lâmina de volta à bainha e ergueu a cama com facilidade. Colocou-a na portada e a encaixou no lugar com a mesa.

- O que são eles? – perguntou.

- Demônios da noite, invocados por um demônio em forma de homem – ela respondeu amargamente. Conan se perguntou quais horrores não-pronunciados ela já havia experimentado nas mãos dessas criaturas.

A mulher começou a procurar ao redor da câmara. Ela pegou uma faca de cozinhar, a qual estava próxima à fogueira.

- Qual o seu nome, garota?

- Nissa.

- Muito bem, Nissa; vigie essa porta até eu retornar. – Ele puxou a barricada para o lado e deslizou pela abertura até a rua.

- Espere; para onde está indo?

- Vocês, civilizados, são todos iguais. Tremem trancados em seus lares, enquanto seus vizinhos são arrastados de suas próprias casas por tiranos ou demônios. Se ficassem unidos e lutassem, poderiam eliminar toda essa maldita ninhada dos infernos.

Então, Conan fechou a barricada atrás de si e partiu.


2) Asas Contra as Estrelas

CONAN SUBIU SILENCIOSAMENTE até o teto da pequena residência, e de lá até uma sacada acima. Como uma sombra, ele saltou até o teto plano de uma construção adjacente, onde se agachou e encostou-se a uma parede baixa que era a divisória de um pequeno jardim de teto, onde fileiras de violetas, murtas e asfódelos se curvavam e soltavam seu perfume no ar noturno. Ele desembainhou sua espada e a colocou sobre os joelhos. Dali, podia ver facilmente a rua do lado de fora, de onde Nissa ficou observando atrás da barricada. Ele aguardava na escuridão – invisível, mas vendo.

A última vez em que ouvira sobre Yaralet, ela estava sob o governo do impiedoso renegado kothiano Altarus, o qual fugira das intrigas políticas de Koth e conquistara a pequena província fronteiriça de Yaralet dos zamorianos. Os rumores eram os de que Altarus havia impiedosamente massacrado os nobres zamorianos que haviam anteriormente governado o local, não querendo que nenhum deles fugisse para a corte zamoriana e chamasse o déspota para uma represália. O próprio déspota zamoriano estava ocupado, defendendo a fronteira leste de Zamora das ambições do Rei do Turan; e assim, à parte de mensageiros políticos ameaçados e da ocasional incursão punitiva através da fronteira, não houve tentativa evidente de arrancar Yaralet de seu domínio. Altarus havia imediatamente se rendido ao rei kothiano e lhe enviado tributo, permanecendo afastado de seus inimigos na corte. Vinte anos haviam se passado desde então, e parecia que Yaralet ficaria de fato sob a coroa kothiana. As fronteiras mudavam freqüentemente nas políticas irascíveis daquela época.

O céu sobre Yaralet não estava vazio, mas os olhos agudos do cimério distinguiam as formas inquietas, que se empoleiravam em silencioso conclave predatório, dentro das sombras ao redor dos tetos iluminados pelas estrelas. Lâmpadas a óleo ainda palpitavam e fumegavam ao longo das ruas vazias, e Conan se pôs a fazer uma longa vigília. Não sentindo perigo imediato, ele fechou os olhos e dormiu como um gato.

Foi o som de uma porta se abrindo e fechando que o acordou. Instantaneamente alerta, sem a névoa embriagada entre o sono e a vigília que comumente caracterizava os homens civilizados, os olhos de Conan se abriram abruptamente, e ele viu a figura furtiva de um pelishtio vestido num kaftan se movendo cautelosamente rua abaixo, próximo à parede. Ele olhava temerosamente ao redor, enquanto se movia.

Formas escuras se destacavam dos tetos sombreados e se erguiam para o céu, quando giraram e mergulharam silenciosamente – humanóides altos e escuros, com a pele escura mais negra que a noite. O pelishtio soltou um grito áspero e começou a correr. Conan não sabia qual o assunto desesperado que o levara a viajar sozinho para esta cidade maldita, mas aquilo o havia levado à sua morte, pois as criaturas aladas desceram, e duas delas o pegaram com seus pés em forma de garras, o ergueram e carregaram para o alto entre elas. Ele guinchou e se debateu, bem acima dos tetos, enquanto era carregado em direção ao castelo negro. O restante daquele bando infernal alçou vôo para se empoleirar pela rua próxima.

Conan esperou, imóvel mas pronto. Por um tempo, parecia que as criaturas haviam voltado a se instalar na escuridão para se empoleirarem e aguardarem outra vítima; então, uma delas se ergueu e desceu voando para o teto da pequena residência, na qual Nissa aguardava lá embaixo. E mais ainda delas se precipitou até a rua do lado de fora da porta barricada, suas peles de ébano cintilando à luz bruxuleante das lâmpadas. Conan sibilou uma praga entre os dentes fechados. Começaram a morder a tosca barricada, e um grito desesperado de Nissa se ergueu lá de baixo.

Mas Conan já se movia. Ele saltou sobre o parapeito, e então para a sacada abaixo. Jatos vermelhos de agonia perfuraram seu cérebro, quando a dor do ferimento esquecido ardeu novamente. Com a espada na mão direita, ele usou a esquerda para descer sobre o teto debaixo da sacada, e lá ficou cara a cara com a criatura alada no telhado, a qual se virou em direção a ele. Conan encarava um rosto rapineiro, com cruéis feições aquilinas torcidas numa expressão de cinismo e zombaria inumanos. Na Nemédia, Conan tinha visto construções com gárgulas entalhadas, as quais lembravam esta criatura. Parecia-lhe a obra distorcida de um escultor insano. A criatura abriu sua boca com presas e o amaldiçoou em sua língua estranha.

Conan correu para diante, com a intenção de transpassar a criatura com sua espada, mas ela abriu as asas e alçou vôo com velocidade surpreendente. Nissa gritou novamente, e Conan, ao invés disso, deu a volta e desceu até a rua abaixo. Ele se viu entre uma dúzia dos demônios, os quais viraram seus rostos cruéis em sua direção e abriram suas bocas com presas, zombando dele e o amaldiçoando como o primeiro havia feito. Conan arremeteu para a frente, com um talho furioso que arrancou a cabeça de um deles, e os outros se ergueram numa escura agitação de asas. Uma breve olhada mostrou a Conan que as criaturas haviam forçado a barricada para baixo. Por um momento, seus olhos se encontraram com os de Nissa, enquanto ela ofegava na portada. Uma selvagem satisfação encheu o cimério, quando ele viu que a faca na mão de Nissa estava manchada até o cabo com sangue negro, e que duas das criaturas estavam mortas aos pés dela.

Logo, o ar estava vivo com formas que batiam asas e dilaceravam com garras, quando os demônios começaram a atormentá-lo de cima. Tão frenética foi a atividade ao seu redor, que ele foi forçado a proteger o rosto com um dos braços, enquanto cortava e retalhava cegamente ao seu redor com sua espada. Sua única certeza de sucesso era o satisfatório solavanco que lhe percorria o braço, toda vez que sua espada entrava na carne de seus inimigos. A rua ao seu redor ficou alastrada de formas retalhadas e estraçalhadas, algumas das quais ainda se mexiam. Mas sua perna ferida o traiu, e ele escorregou no sangue que escorria abundantemente sobre as ruas aos seus pés. Naquele instante, ele foi pego por meia-dúzia de garras e carregado para o alto.

Ele ouviu o grito desesperado de Nissa, quando ela foi levada para o alto, acima das ruas de Yaralet.

Havia mantido instintivamente o aperto em sua espada. Um enjôo vertiginoso o atacou quando olhou para baixo. Não tinha medo de alturas, já tendo galgado algumas das montanhas mais altas do norte da Ciméria, mas este vôo não-natural, sob as asas destas criaturas de outro mundo, lhe banhava a própria alma com ondas de náusea.

Seu braço, perna e cintura esquerdos estavam pegos no aperto feroz das garras. Conan ainda tinha livre seu braço da espada, e ele o usava em total vantagem ao se retorcer e estocar para o alto. Sua espada atravessou a coxa do demônio acima, ele o soltou com um guincho e despencou na escuridão. Os outros dois soltaram instantaneamente seu aperto nele. A mão esquerda de Conan arremeteu instintivamente, e seus dedos de ferro se fecharam numa perna de ébano. Nem mesmo as largas asas de couro de um desses demônios pôde suportar o grande peso do cimério, e tanto homem quanto demônio começaram a cair em espiral, em direção aos tetos abaixo.

Conan aterrissou no teto abobadado de um palácio próximo ao castelo. Com algo sólido sob seus pés mais uma vez, ele não perdeu a chance de estripar aquele demônio e, então, partir seu crânio, e observar seu corpo rolar para baixo e ir parar na larga calha que rodeava o domo. Ele ergueu o olhar, apenas para ver um novo bando daquelas criaturas infernais voando em sua direção.

E então, uma nova batalha teve início. Sobre o domo daquele palácio, Conan lutou, destacado contra o céu iluminado pelas estrelas, enquanto girava, talhava e trespassava os demônios que assolavam ao seu redor, num bando de carniça profana. Conan sabia que não podia fazer uma pausa, nem cometer um único erro, enquanto rodopiava e golpeava. Pois, se o fizesse, seria carregado novamente no ar, e em direção a qualquer que fosse o destino sombrio encontrado por aqueles que eram levados para o castelo negro no centro de Yaralet.

Mas ele finalmente ficou só, com seu peito amplo subindo e descendo do seu esforço. O céu ao seu redor estava novamente limpo, e toda a cúpula estava alastrada com as imóveis formas quebradas de seus inimigos. Ele sangrava de vinte ferimentos, que ardiam como fogo sombrio por todo o seu corpo; mas seu selvagem senso de vitória estava misturado com uma onda escura de fatalismo. Lá longe, do outro lado dos tetos, ele viu Nissa sendo carregada em direção ao castelo.


3) “Sou o Lorde de Yaralet”

CONAN CAMBALEOU ATÉ a beirada do domo, onde um portão arcado de bronze escuro, lavrado a ouro e brilhando suavemente à luz fraca, dava numa escada estreita. O portão estava trancado, e Conan ergueu sua espada e rachou a tranca. Em circunstâncias normais, haveria guardas sobre este teto, Conan presumiu. Ele desceu cambaleando pelos degraus, seu cérebro ardendo como uma chama líquida e seus movimentos cada vez mais vacilantes. Avançou pelo jardim do palácio e ao longo de um caminho enfileirado por ciprestes, cujos galhos formavam uma treliça de sombras contra o céu noturno, até chegar a um portão duplo, após o qual ficavam as ruas de Yaralet. Este portão também estava trancado, com uma sólida viga reforçada por bronze, e aquela larga tranca era grossa demais para sua espada cortar. Ele contornou o muro alto, até achar uma árvore cujos galhos cresciam próximos ao espigão do muro e, por este caminho, escalou até o topo da muralha e saltou até a rua do lado externo.

Do outro lado da rua, havia um pequeno grupo de figuras em túnicas. A visão de Conan estava ficando cada vez mais indistinta, e ele sacudiu sua cabeça cabeluda com uma praga. Sua mão caiu certeira no cabo da espada, mas, antes que ele pudesse dar outro passo, uma onda de negrura se ergueu do chão para atolá-lo, e ele se espatifou inconsciente no chão.

As figuras em túnicas atravessaram furtivamente a rua e pararam próximas à sua forma caída. Tinham rostos magros e aquilinos, típicos dos kothianos, e o tilintar da malha podia ser ouvido sob suas túnicas.

- Por Mitra – falou um –, este é o homem que lutou sobre a cúpula.

- Ele está morto? – perguntou outro.

- Não – disse um terceiro, curvando-se sobre Conan e com a mão sobre o pescoço dele –; mas pode morrer logo, com o veneno daquelas garras lhe correndo pelas veias.

- Ele pode ser um espião zamoriano – disse o segundo. – Que ele morra na rua e retornemos até Valantius.

- Ou um espião ou um mercenário – disse o terceiro. – Este homem é um estrangeiro. Aposto que ele estava com os mercenários coríntios, lutando com Ascalus. Valantius vai querer notícias do oeste. Aqui, ajudem-me a levantá-lo. Deuses, ele pesa como ferro.

Dos seis homens, quatro ergueram Conan pelos braços e pernas, e dois ficaram de guarda enquanto fugiam através da rua e para dentro de um labirinto de ruas escurecidas. Entraram numa determinada casa e desceram degraus rangentes, para dentro de um porão mofado, onde, atrás de uma prateleira de vinho, havia um painel oculto que dava para dentro dos esgotos sob Yaralet.

* * *

A lua se erguia como uma caveira vermelho-sangue sobre as colinas acidentadas que avultavam contra o horizonte. Sua palidez fantasmagórica delineava os topos das árvores enfermas e retorcidas. Aquele teto de selva era pontuado apenas pelas torres de ébano que se erguiam grotescamente a intervalos regulares acima do eternamente inquieto mar de folhas. Contra um céu pontilhado por estrelas estranhas, os alados voavam como demônios de asas escuras, carregando os pálidos corpos flácidos de suas vítimas até seus altares sombrios.

Conan percebeu estar sonhando, enquanto corria ao longo da trilha na selva, num corpo que não era o dele. Em sua mão direita, havia uma lança de ponta de sílex e, em sua esquerda, um escudo de pele pintada de mamute numa forte estrutura de vime. Ao redor de seus quadris, uma tanga de pele de lobo. Sua grande cabeleira esvoaçava quando ele sacudiu o suor dos olhos, e ele continuava correndo com um grande passo galopante ao longo da trilha obscura, naquela luz incerta.

Estava consciente de uma única necessidade: encontrar Kiana. Ele havia cortado o laço de sangue com sua tribo e partido só. Na verdade, ele sabia que sua busca era inútil, mas jamais perderia a esperança, até o último suspiro lhe destruir o corpo e sua alma ir para Golmorra, ou para o inferno. Se tudo o mais desse errado, ele mataria o máximo possível daqueles demônios, antes de morrer.

Ele era Gerath do Cu Tuerna, e Kiana era sua companheira.

Um silêncio caiu sobre a selva, quando Gerath se aproximou da base da torre escura – vasta como uma tigela de sequóia, mas negra como azeviche. Não havia entrada naquele nível, e Gerath largou sua lança e escudo, e subiu numa das árvores retorcidas e cheias de trepadeiras que cresciam perto da torre.

Mas o ponto mais alto que conseguia alcançar ainda ficava sob as sacadas arcadas pelas quais os demônios alados entravam. Gerath pegou um pouco das videiras flexíveis que engrinaldavam as árvores nas redondezas, e fez com elas uma corda, a qual ele amarrou à sua lança. Quebrou um galho forte, o cortou e aparou com sua faca de sílex, e amarrou firmemente uma travessa curvada atrás do cabo da lança. Então, ele pôs seu poderoso braço para trás e arremessou a lança para o alto num grande arco.

O gancho improvisado no cabo de sua lança bateu no parapeito da beirada da sacada, e Gerath o testou para ter certeza de que agüentaria seu peso. Então, amarrou a outra extremidade à árvore à qual se agarrava, e subiu pela corda até a beirada da sacada acima.

Gerath se ergueu na soleira, mirando para dentro das profundezas da torre escura.

* * *

Conan se mexeu e acordou subitamente, como se estivesse sob o domínio de um pesadelo obscuro. Seu corpo ardia com mil fogos, e ele olhava ferozmente, como se através de uma névoa eterna, para vários rostos indistintos. Ouviu uma voz, que falava através da bruma das eras.

- Ele está acordando. O delírio está passando.

Conan se sentou. Seus ferimentos haviam sido limpados e enfaixados. Ele estava num porão amplo e pouco mobiliado. Havia cinco kothianos na sala com ele: dois em armadura completa, montando guarda, e os outros três em roupas mais comuns, usando cintos largos dos quais pendiam espadas. Um dos três usava uma curta e bem-arrumada barba aparada, a qual lhe acentuava as feições aquilinas, e se apresentava com a autoridade e arrogância de alguém que nascera para comandar. Conan tomou uma antipatia pelo homem.

Seu sonho recente ainda pesava muito na mente de Conan, quando ele se ergueu vacilante. Os dois guardas deram um passo à frente, mas o kothiano barbado acenou impacientemente para que recuassem. Não era um pequeno gesto de ousadia, pois, mesmo em seu estado ferido e grogue, a estrutura poderosa do gigante cimério transpirava uma vitalidade primitiva que falava de morte e destruição.

- Pelos deuses, me disseram que você enfrentou uns dez a quinze dos demônios da cúpula do Palácio Kiresias. E, mesmo assim, ainda está vivo.

- Sim, por Crom – Conan sussurrou sombriamente.

O kothiano barbado sinalizou para um de seus homens:

- Dêem um pouco de vinho para o forasteiro.

O homem trouxe um copo e um odre de vinho de trás da adega, encheu o copo e o entregou a Conan. Ignorando a bebida oferecida, Conan arrebatou o odre de vinho do homem e o ergueu, bebendo profusamente.

- Há quanto tempo estou aqui? – ele disse finalmente.

- Quase um dia inteiro.

Conan assentiu sombriamente.

- O que acontece com aqueles que são levados até o castelo? – Conan perguntou.

- Aqueles dentre nós, que se aventuraram perto das paredes do castelo à noite, ouviram seus gritos vindos do pátio interno. Se os rumores forem verdadeiros, aqueles demônios alados devoram vivas as suas vítimas.

Uma sombra passou pelo rosto cicatrizado de Conan, e seu maxilar cerrou convulsivamente. Se um dia inteiro havia se passado desde que ele vira Nissa ser levada, ela provavelmente estava morta agora. Familiarizado com a morte, Conan já vira homens e bestas morrerem de muitas formas não-amáveis. O falcão caça a lebre, o leão caça a corça – era o jeito de ser da Natureza. Mas o pensamento de outro humano, sofrendo nas mãos daquelas criaturas, fazia uma irracional onda vermelha de fúria assassina fluir até mesmo por suas veias endurecidas por batalhas. Alguma memória dispersa o puxou dos recessos de sua alma, e o sonho pelo qual passara em seu delírio assumiu um novo significado.

- Da última vez em que ouvi falar – disse Conan –, Altarus era governante de Yaralet. Desde quando os homens de Koth fazem barganha com demônios?

- Altarus está morto – falou o kothiano. – Sou Valantius, filho de Altarus, e sou o atual Lorde de Yaralet.

- Um governante que mantém a corte em adegas, e cujos homens rastejam ao redor da cidade à noite – Conan grunhiu, e limpou o vinho de seus lábios com a parte de trás de um dos braços musculosos.


4) Lorde nas Sombras

Os olhos de Valantius luziram:

- Segure sua língua, cão do norte, e me responda! Onde estão agora as forças de Ascalus, e quais são os planos dele?

Conan deu uma risada baixa:

- Primeiro, devolva-me as armas e me dê um pouco de comida, e eu lhe contarei tudo sobre Ascalus,

Valantius mirou Conan com um olhar calculista, e logo sinalizou para um de seus homens.

O homem hesitou por um momento, e então devolveu o cinto da espada de Conan. Conan afivelou o cinto, e grunhiu de satisfação enquanto o colocava no lugar, aliviado em sentir o peso familiar de sua grande lâmina em seu quadril mais uma vez.

Valantius seguiu à frente, saindo pela porta, ladeado por seus dois guardas em armaduras. Conan seguiu, com o caminhar desembaraçado de uma pantera selvagem entre mastins de guerra. Atrás de Conan, vieram os outros dois mercenários, e o grupo entrou na câmara adjacente, onde mais dos homens de Valantius estavam sentados ao redor, murmurando e bebendo, com o ar desanimado de um exército derrotado. Seus olhos taciturnos miraram Conan, quando este se sentou com Valantius à mesa que ocupava a extremidade mais distante da longa sala. Velas palpitavam em seus suportes ao longo das paredes.

Comida foi trazida para ambos. Valantius comia moderadamente, enquanto Conan devorava e bebia vorazmente como um urso faminto.

- Juntei-me aos mercenários de Revas em Zamora – relatou Conan. – Revas foi pago pelos zamorianos para atravessar a fronteira e assolar o campo ao redor de Yaralet. Nós não esperávamos uma grande resistência; então, Ascalus veio do sudoeste com homens suficientes para um pequeno exército. O que ele estava fazendo a esta distância nordeste de Khorshemish com tal tropa?

“Assumimos a formação a tempo de enfrentá-los na planície. Eu cavalgava com a cavalaria leve em nosso flanco direito. Atacamos a infantaria leve dos kothianos, a qual tentou desbordar nosso flanco, os dispersamos e perseguimos a cavalo pela planície; e fui separado do meu cavalo entre um amontoado de soldados da infantaria, que haviam se reorganizado e assustado minha montaria. Eu me levantei, para me ver cercado por soldados kothianos a pé, guinchando como fantasmas e tentando perfurar minha barriga com aço kothiano. Matei vários deles, e o restante fugiu, mas eu estava, naquele momento, ferido na coxa, sem um cavalo, e o restante da minha unidade havia girado e retornado ao conflito, deixando-me só na extremidade distante da planície.

“Apoiado sobre minha espada, assisti ao desdobrar da batalha e as forças de Revas lutaram bem, por algum tempo.

“Então, após dispersar a cavalaria de Revas, Ascalus liderou sua própria cavalaria num contra-ataque ao flanco esquerdo de Revas. Ascalus atacou, cambaleou, recuou e então quebrou os mercenários ali. Eu assistia do outro lado da planície, enquanto o resto dos zamorianos debandava e fugia como espuma diante do avanço dos cavaleiros kothianos de Ascalus.

“Mas Ascalus não os perseguiu por muito tempo, nem ficou muito tempo no campo após isso. Apesar de termos ganhado, suas tropas foram terrivelmente espancadas, e os homens de Ascalus saquearam e seguiram para o sul.

“Na hora em que manquei de volta ao campo, não havia uma bugiganga que não tivesse sido saqueada. De lá, vim para Yaralet”.

Valantius deu uma risada cínica:

- Então, você está com os zamorianos afinal. Você é um patife honesto. Eu poderia tê-lo executado como um espião zamoriano.

- Ah, não sou espião – rosnou Conan. – Não tenho grande amor pelos zamorianos, após eles terem me perseguido desde Shadizar por certos roubos que fiz. Roubei um cavalo fora de Shadizar, e foi por isso que me juntei a Revas. Eu já estava cheio das intrigas fedorentas das cobras daquela cidade repugnante, e resolvi me tornar mercenário por um tempo.

- Isso parece bastante provável – disse Valantius. – Quem ia contratar um hiperbóreo como você para ser um espião nesta região?

Os olhos de Conan arderam com uma chama súbita:

- Por Crom, não sou um cão hiperbóreo! Sou um cimério!

- Não sei nada sobre cimérios – disse Valantius, com um gesto de dispensa. – Mas uma coisa eu sei. Preciso de todos os homens que eu puder conseguir. Se você é um mercenário, vou lhe contratar então. Revas me fez um favor quando atravessou a fronteira, pois Ascalus é um velho inimigo de minha família e estava a caminho de nos atacar aqui em Yaralet, para resolver um antigo rancor. Ele poderia ter simplesmente ignorado o exército de Revas e vir diretamente para cá, mas assim ele teria um inimigo às suas costas e uma explicação para dar ao Rei sobre o porquê de ter ignorado os incursores.

“Não, eu teria até pago umas boas moedas para Revas, para ele vir quando veio. Mas o que você diz? Vai se juntar a mim?”.

Conan olhou ao redor da sala escura, para os rostos desanimados dos homens de Valantius:

- Parece que vocês já estão do lado perdedor do que quer que esteja acontecendo aqui em Yaralet. Escondidos em sua própria cidade, como rebeldes. O que aconteceu com seu pai Altarus?

- Meu pai, Altarus, foi assassinado por um traidor – disse Valantius. – Esse traidor é o Príncipe Than de Ophir.

- Já ouvi falar nele – murmurou Conan. – Ele foi exilado de Ophir, por causa de intrigas contra os irmãos.

- Sim – disse Valantius. – Bem, logo depois que fugiu da corte ophiriana, ele solicitou refúgio aqui em Yaralet e se ofereceu para servir meu pai. Veio com 100 cavaleiros e se provou útil em nos ajudar a subjugar os insurgentes zamorianos, os quais ainda assolavam as montanhas ao redor de Yaralet. Não nos deu motivo para desconfiar dele, e todos nós imaginamos que suas ambições estivessem reservadas para o trono ophiriano.

“E foi assim que as coisas deveriam ter continuado. Então, do coração do sul negro, veio um estudioso stígio de estatura mediana, chamado Atalis. Vestia uma túnica, estava aleijado por uma estranha doença e vinha acompanhado por uma escrava shemita. Mas ele tinha uma personalidade magnética e falava com prudência sobrenatural. Meu pai levou Atalis para dentro de sua corte. Com sua ajuda, insurgentes zamorianos, tanto nas colinas quanto na própria cidade, foram extirpados com precisão sobrenatural. Com sua ajuda, descobrimos que até mesmo o Rei de Turan tem espiões em nossa cidade.

“Mas, como descobrimos mais tarde, Atalis tinha suas próprias ambições, bem além do posto que lhe fora oferecido na corte do meu pai. Tanto Atalis quanto o Príncipe Than têm se encontrado secretamente, e suas intrigas resultaram numa traição que matou meu pai; eu e minha irmã fugimos, e os remanescentes de minhas forças leais rastejam pela cidade, nos esconderijos que haviam sido anteriormente usados pelos insurgentes zamorianos”.

- E quanto aos demônios alados? – perguntou Conan.

- Não sei nada deles – disse Velantius. – Apareceram logo depois que perdi meu castelo para o traidor Than. Mas, tão certo quanto a morte existe, aquele maldito stígio tem a ver com isso.

- Quantos homens eles têm?

- Meu pai era um governante rude e impopular. Quando ele foi morto por Than, a maioria alegremente ficou do lado de seu assassino. Than é muito amado pelo povo, e teve pouca dificuldade em consolidar seu governo. Seus homens superavam os meus por três a um, mas muitos deles estão espalhados por toda a cidade.

- Por que vocês não admitem a derrota, e se reagrupam para lutar outro dia?

- É isso o que você faria? – perguntou Velantius.

- Eu cavalgaria para dentro das colinas, resistiria lá, atacaria de surpresa e os devastaria – disse Conan. – Eu atrairia suas forças para emboscadas e os desgastaria. Contrataria mercenários e faria pactos com os kozakis, oferecendo-lhes abrigo e pastoreando em minha terra, se eles me ajudassem. Eu faria tudo isso, até levar a melhor. – Conan bateu na mesa com seu punho maciço. – E então, eu atacaria!

- É um bom plano – disse Velantius. – Mas não o que eu escolheria.

- Bah – disse Conan. – Como poderão vencer, escondendo-se como ratos? O que me oferecerão, se eu me juntar a vocês?

- O cavalo, armas e armadura que você escolher, e uma sacola com ouro suficiente para lhe manter em boa vida por um ano.

O solene murmúrio entre os homens de Velantius havia se transformado num tenso silêncio de expectativa. Conan sentiu os olhos de cada homem na sala sobre ele. Sozinho neste antro de chacais, ele não poderia se arriscar a ofender Velantius, recusando sua oferta.

Conan abriu um esgar lupino de satisfação:

- Tudo bem; vou me juntar a vocês. Então, qual o seu plano?

A luz das velas palpitava no rosto aquilino de Valantius, quando ele se ergueu para dirigir-se aos seus homens:

- Pois bem, aproximem-se e escutem todos, pois isto é o que faremos...


5) Rescaldos da Stygia

AS SOMBRAS SE MOVIAM selvagemente nos muros brilhantes dos bueiros sob Yaralet. Velantius e seus homens andavam furtivamente à luz de tochas, através daqueles confins úmidos, em silêncio sombrio – um silêncio interrompido apenas pelos passos arrastados de suas botas de couro na pedra, e pelo tinir abafado de seus apetrechos. Conan olhava com desaprovação para o canal mal-cheiroso, que corria preguiçosamente à luz fraca. Ele andava à frente do grupo, com Velantius e seus tenentes, agora blindado em aço kothiano.

- Há três entradas subterrâneas para o castelo – disse Velantius. – A que leva diretamente à torre de menagem do castelo, pela qual originalmente escapamos durante o golpe, é conhecida por Than e, sem dúvida, trancada e vigiada. Mas nosso empreendimento depende totalmente dele não conhecer as outras duas.

Eles chegaram a uma junção, onde Velantius dividiu seus homens e enviou um grupo sob a liderança de seu segundo-em-comando, enquanto ele e o restante de sua força prosseguiram, com Conan, ao longo do canal principal. Dali a pouco, desceram uma pequena passagem lateral, a qual terminava no que parecia ser uma parede sem aberturas, situada dentro do arco. Velantius se estirou para o alto, além do limite daquele arco, e ouviu-se um estalo mudo; então, ele pôs o ombro contra os tijolos, e a seção da parede sob o arco rangeu lentamente para dentro.

- Os zamorianos adoram seus segredos e sagacidades – disse Valantius, enquanto entrava no corredor escuro que se abriu.

O grupo agora molhava suas tochas, e tateava ao longo desta nova passagem, a qual se inclinava gradualmente em direção a outra entrada oculta. Esta saía nos fundos de uma sala de pedra, na torre sul do castelo. O luar se infiltrava através de uma janela gradeada, situada lá no alto. A sala de pedra estava vazia, e dava sinais de ter sido pilhada. Valantius se dirigiu à escadaria em espiral, e o grupo subiu silenciosamente.

Eles saíram numa caserna abandonada, cuja porta externa estava aberta. Valantius recuou e praguejou em voz baixa, ao olhar para fora:

- Pelos deuses, que coisa dos infernos é esta?

Conan se juntou a Valantius na porta, e estremeceu diante da carnificina após a mesma.

Sob o luar, alastrados por todo o pátio, sobre lajes manchadas de sangue, Conan viu inúmeros cadáveres que eram pouco mais que ossos ensangüentados. Seus sentidos cambalearam diante do fedor de carniça, que pairava como um miasma pelo local, bem pior que qualquer campo de batalha que ele já tivesse conhecido. Os demônios alados se agrupavam em conclave infernal ao redor dos corpos de suas vítimas mais recentes. Alguns guinchavam como condenados e se debatiam fracamente, enquanto os demônios se empanturravam com a carne dos vivos; outros jaziam moles e sem oferecer resistência, mesmo sendo devorados vivos. Os demônios se voltaram para olhar os dois homens na portada, os olhos ardendo de malevolência, garras e rostos manchados com a evidência de seu horrendo banquete.

Mais uma vez, uma fúria cega e irracional se ergueu no peito de Conan. Um ódio atávico e primordial o encheu, puxado dos mananciais de um legado ancestral, do qual seu pensamento mal estava consciente, mas do qual seu sangue e alma se lembravam. Ele investiu pátio adentro com a espada desembainhada, seguido por Velantius e seus homens.

Os alados alçaram vôo, e o ar ficou repleto de seus gritos. Conan, Velantius e os kothianos se encontravam agora num círculo irregular, preparados para enfrentá-los. Os alados remoinhavam; logo, um a um, eles pousaram no chão e se emplumaram num círculo negro, no centro do pátio.

As vítimas abandonadas jaziam por toda a parte, lamentando, gemendo e chorando, seus corpos caricaturas quebradas e ensangüentadas. Conan, Velantius e os kothianos se espalharam pelo pátio e os libertaram de seus tormentos, da única forma que podiam. Embora fosse um ato de misericórdia, parecia um matadouro.

Quando seu trabalho pavoroso estava finalmente terminado, eles se aproximaram do poço. Era minuciosamente construído de uma estranha pedra negra e, quando Conan olhou para dentro de suas profundezas vertiginosas, sua mente deu voltas, como se ele mirasse um vasto golfo cósmico. A escuridão no poço transpirava malevolência, como se inúmeros horrores disformes se reunissem lá, além daquele véu sem luz.

- Sob as fundações de Koth, os rescaldos da Antiga Stygia ainda ardem – disse Valantius. – Há poços como este por toda Koth, e por onde mais o antigo império stígio tenha se espalhado, embora alguns digam que eles ainda são mais antigos. São aparentemente indestrutíveis. Nós os vedamos o melhor que pudemos, como de fato este havia sido selado na última vez em que eu o vi.

Os olhos de Conan eram fendas de fogo sinistro, enquanto esquadrinhavam as escuras torres vazias e ameias que se erguiam ao redor deles. As únicas luzes vinham de janelas na própria e vasta torre redonda, a qual era construída na muralha norte, e no alto da torre onde o estranho fulgor ainda flamejava. Um silêncio mortal agora pairava sobre o local. Parecia que tudo, exceto a torre, fora abandonado pelos alados.

Conan deu a volta sem dizer uma palavra, e se dirigiu à escada que levava às ameias.

- Vamos manter nosso plano original – disse Velantius. – Vá com Conan, Amalrus. Leve seus homens até as ameias, e entre na torre pelo nível mais alto. Eu me encontrarei com os outros, e juntos entraremos na torre por baixo.

Amalrus se dirigiu às ameias, seguido pelos dez homens designados para ele.

Velantius pegou o restante de seus homens, e juntos marcharam através do pátio, em direção à torre noroeste.

* * *

Conan avançou até o pequeno portão que guardava a entrada da torre das trincheiras; a torre era projetada para ser independentemente defensível, caso o resto do castelo fosse tomado. Conan viu uma figura pálida, observando desde uma janela estreita acima da guarita, a qual sumira rapidamente, quase tão logo ele a vira. A porta da guarita era reforçada por faixas de ferro. Ele torceu-lhe a maçaneta de ferro e empurrou, mas ela não queria girar. Aguardou pela chegada de Amalrus, e este soltou um pequeno anel de chaves do cinto e destrancou a porta. Conan a empurrou e olhou para dentro.

Lá dentro, ele viu um pequeno saguão, do outro lado do qual havia outra porta trancada de ferro, a pouca distância. Olhando para cima, viu oito buracos no teto, cercando um buraco maior no centro. No caso de um cerco, esta pequena entrada seria um buraco infernal, onde lanças seriam enfiadas nos invasores vindos de cima, ou óleo fervente seria derramado sobre os defensores. Conan deslizou para dentro, mantendo-se próximo à parede, até alcançar a outra porta. O silêncio era total, embora uma luz fraca brilhasse sob a soleira.

Conan encontrou a outra porta, também trancada. Amalrus e seus homens seguiram Conan, e Amalrus usou novamente sua chave. Eles ouviram o caminhar arrastado de pés calçados em sandálias, vindo de cima. Um pequeno jarro de porcelana foi lançado através do buraco no teto, atingindo um dos homens de Amalrus e se despedaçando no lado de seu elmo, molhando o lado de seu rosto e pescoço com um líquido viscoso. O homem gritou quando o líquido começou a fumegar sobre sua pele.

Conan não perdeu tempo. Ele irrompeu pela porta, para dentro da sala adiante, com a espada desembainhada, pronto para qualquer coisa e seguido por Amalrus e o restante dos kothianos, dois dos quais haviam agarrado seu companheiro que guinchava e o levado com eles. O lado direito do rosto do homem sibilava, fumegava, borbulhava e se dissolvia horrivelmente diante dos olhos deles. Ele caiu para a frente, rolou sobre as costas e aos pés deles, os dedos agarrando convulsivamente o ar em agonia antes de morrer, com metade do rosto e pescoço devorados pelo fluido torpe. Até mesmo seu elmo de aço e a proteção metálica em seu ombro estavam esburacados e corroídos.

Nenhum traço da reviravolta que sentiu apareceu no rosto de Conan, quando seus olhos varreram a câmara. Tochas meio queimadas palpitavam em seus encaixes sobre as paredes. Suas luzes delineavam as formas de oito homens que se sentavam imóveis a uma longa mesa que ocupava o centro da grande sala. Vestiam a armadura e os opulentos enfeites de guardas reais ophirianos. Os oito homens não prestaram atenção aos intrusos, e havia algo estranho na maneira como eles se sentavam, tão imóveis e silenciosos, mirando sem piscar e com pálidos olhos injetados de sangue.

Conan, Amalrus e os nove kothianos se aproximaram cautelosamente da mesa, com lâminas na mão. Conan viu os peitos dos oito homens subir e descer enquanto respiravam, mas, em seu estado de transe aparente, não davam atenção a ele nem aos seus companheiros.

- Estes são alguns dos homens do Príncipe Than – disse Amalrus. – Mas eles não estavam assim antes. Quando ele...

Amalrus parou bruscamente, quando uma figura pálida saiu andando das sombras atrás da câmara. Era uma shemita de cabelos negros que ali estava, com um robe pálido amarrado à cintura. Ela tinha um belo rosto, e seus tristes olhos assombrados estavam pintados de kohl, à moda stígia. Aqueles olhos brilhavam com o fogo e a intensidade do desespero.

- Você! – gritou Amalrus.

A mulher ignorou Amalrus e pronunciou uma ordem truncada em Stígio. Ao som de sua voz, os oito ophirianos irromperam em terrível ação. Cadeiras foram derrubadas, quando eles imediatamente se ergueram como um só, puxaram suas espadas e caíram sobre os kothianos em frenesi demoníaco. Uma grande mistura de sons preencheu a câmara, e os kothianos praguejaram e golpearam, enquanto o aço de Koth reluzia e faiscava contra o aço de Ophir.

Três kothianos caíram ao primeiro golpe, antes que pudessem atacar, tamanha era a fantástica velocidade e intensidade do ataque ophiriano. Amalrus correu sua espada dentro do abdômen de seu oponente, num golpe que teria derrubado um homem normal; mas o ophiriano simplesmente se livrou cambaleando da lâmina, e atacou furiosamente, aparentemente esquecido do horrível ferimento.

Conan se defendia com dificuldade de dois ophirianos ao mesmo tempo. Não conseguia ganhar espaço, enquanto se esforçava para desviar o aço maligno que procurava sua pele. Ele recuou e quase tropeçou numa cadeira caída. Agarrou a pesada cadeira com a mão livre, e a arremeteu em cheio no peito do ophiriano à sua direita. A cadeira se estilhaçou com a força daquele terrível golpe, e o ophiriano girou para trás e caiu sobre um dos joelhos, mas nenhum palpitar de reconhecimento de qualquer tipo de dor apareceu em seu olhar que não piscava. Conan aparou um golpe do ophiriano à sua direita, e então lhe passou a rasteira com os restos da cadeira quebrada. O ophiriano caiu e, com uma praga, Conan desceu sua pesada lâmina sobre a cabeça dele, partindo tanto elmo quanto crânio. Conan deu a volta e encarou o primeiro ophiriano, o qual havia recuperado o equilíbrio e investia sobre ele. Por um breve instante, suas lâminas colidiram num soar brilhante, e então Conan abriu a guarda de seu oponente e lhe atravessou o pescoço; ele caiu morto ao chão. No corpo-a-corpo, nem mesmo a vitalidade não-natural daquele demônio desvairado havia sido páreo para a fúria selvagem do cimério.

Conan olhou ao redor da câmara. A luta fora breve, frenética e mortal. Todos os ophirianos estavam mortos e, dos kothianos, só restava Amalrus, de pé, com a malha ensangüentada. Ele arrancou sua espada do cadáver de seu adversário e examinou a matança.

Os dois homens procuraram ver se algum dos outros kothianos ainda vivia, mas nenhum deles havia sobrevivido. O único homem que ainda se movia entre a pilha de mortos naquela câmara era um dos ophirianos, o qual jazia olhando estranhamente para o alto, golpeado por ferimentos que teriam matado por três vezes um homem normal. Conan o matou onde ele estava.

- Ishtar! – praguejou Amalrus. – Isto é um lugar de diabolismo. Vamos nos juntar novamente a Valantius. Não podemos prosseguir sozinhos.

Conan grunhiu e sacudiu sombriamente a cabeça cabeluda:

- Nossa tarefa era matar o stígio.

Ele se dirigiu aos fundos da câmara, de onde a mulher havia emitido seu chamado misterioso. A princípio, não notou qualquer sinal dela, nem qualquer aparente meio de saída, até sentir um traço fraco de perfume stígio no ar, próximo a uma tapeçaria. Conan empurrou esta para um lado, para se ver cara a cara com uma alcova vazia; mas, com seu conhecimento das astúcias zamorianas, não demorou muito para que ele descobrisse a pequena pedra encaixada na parede, a qual cedeu ao seu toque, e a parte de trás da alcova girou silenciosamente para dentro. Conan pegou uma tocha gotejante de um encaixe próximo, e avançou escuridão adentro.

Amalrus praguejou e seguiu.

* * *

Na luz palpitante da sua tocha, Conan viu uma escadaria estreita em espiral, guiando tanto para cima quanto para baixo na escuridão. Não foi por decisão consciente que Conan escolheu descer; logo, ele e Amalrus chegaram a outra passagem estreita, enquanto os degraus continuavam seguindo para dentro da escuridão abaixo. Mais uma vez, Conan sentiu a insinuação de um perfume stígio. Ele abriu a entrada oculta no final da curta passagem, e depois dela havia uma tapeçaria, de cuja base saía uma luz fraca. Conan descartou a tocha e arrastou a tapeçaria para o lado.

Ele olhava para uma câmara vasta, circular e com pilares, com paredes altas revestidas por ricas tapeçarias. Lâmpadas a óleo brilhavam na escuridão, sua luz fraca incapaz de afastar as sombras que pairavam ao redor do elevado teto abobadado, e atrás dos largos pilares de meia-cana. Todo o local parecia prenhe de ameaça, e a mente de Conan imaginava fileiras de inimigos ocultos na escuridão. Logo à sua frente, havia a parte posterior de um trono. Enquanto avançavam, viram uma figura parda e de estatura média sentada no trono, mas com as inconfundíveis feições da classe stígia dominante. Vestia apenas uma longa tanga de seda vermelha naquele ar frio, e sua pele estava bastante tatuada com hieróglifos e símbolos arcanos. Seus escuros olhos sombrios estavam abertos e aprisionados num transe, como se ele mirasse alamedas invisíveis, e sua respiração parecia impossivelmente lenta, quase indetectável. De cada lado do trono, havia pequenos incensórios de latão, subindo de cada um a fumaça em espiral de folhas de lótus negro queimando, e Conan e Amalrus ficaram tontos com o cheiro disso.

- Este é ele – disse Amalrus –; aquele que veio até nossa corte como Atalis o Erudito.

Ambos os homens ouviram o arrastar de pés calçados em sandálias, e olharam através da sala, para dentro das sombras atrás dos pilares. Lá, eles viram um banco coberto por acessórios alquímicos: potes, urnas, jarros, ungüentos, facas, almofarizes, pilões e pós. O corpo de um guarda ophiriano jazia imóvel sobre uma mesa próxima.

Amalrus andou furtivamente, de espada na mão, através da câmara.

- Nekhem! Oh, acorde, Nekhem! – gritou uma mulher.

- É a escrava do stígio – sibilou Amalrus. – Vou silenciá-la agora.

- Oh, Nekhem! Nekhem! – a mulher gritava.

Conan girou de volta à figura no trono, a qual se sentava em contemplação silenciosa. Sua mente oscilava com a intoxicação inebriante das fumaças de lótus, e os símbolos na pele do stígio pareciam se encolher e retorcer grotescamente diante de seus olhos.

Amalrus alcançou o banco, onde ele puxou uma tapeçaria para o lado, revelando a encolhida mulher de cabelos negros. Ela lançou algo em Amalrus, que, instintivamente, ergueu um braço encouraçado para desviá-lo. O objeto era uma pequena urna de cerâmica, a qual lhe escorregou do braço e se despedaçou na parte frontal de seu elmo, molhando o lado de seu rosto e pescoço com um líquido viscoso. Amalrus soltou um grito agudo, quando o líquido começou a fumegar em sua pele.

Ele apunhalou, mas a mulher disparou para o lado, deixando Amalrus agarrando a tapeçaria e cambaleando, enquanto o lado de seu rosto sibilava, fumegava, borbulhava e se dissolvia horrivelmente.

Conan praguejou e correu em direção à mulher, a qual se agarrou ao banco, pegando outra urna. Conan parou e tirou o manto, colocando-o sobre o braço como um escudo improvisado, e então avançou cautelosamente.

Amalrus caiu para a frente e rolou sobre as costas, os dedos agarrando convulsivamente o ar em agonia, antes que ele se sufocasse e morresse, com metade do rosto e pescoço consumidos pelo líquido torpe. Até mesmo seu elmo de aço, e a proteção metálica em seu ombro, estavam esburacados e corroídos.

- Nekhem! – gritou a mulher mais uma vez; então, ela lançou a urna em direção a Conan.

O projétil se espatifou contra seu braço protegido pelo manto. Ele imediatamente o descartou, deixando-o numa pilha fumegante sobre o chão, e, com mais duas passadas, alcançou a mulher, enquanto ela tentava pegar mais uma das urnas mortíferas. Ele a agarrou e girou para longe do banco, lançando-a ao chão diante dele. Então, agarrou-a rapidamente pelo braço e a puxou, colocando-a novamente de pé com uma das mãos encouraçadas.

Era uma shemita, com longos cabelos negros e pele cor-de-oliva. Tinha um belo rosto, e seu corpo flexível e escultural sob o robe pálido – este último, preso por um cinto largo e tecido à maneira de brocado. Ela trazia nenhuma arma que ele pudesse ver.

- Me largue! – ela exigiu, num tom incomumente imperioso para uma escrava. – Você é impróprio para tocar em alguém como eu, que dancei nas cortes de Askalon, com Bêlit e Akuri! Além disso, você chegou muito tarde. Veja: Nekhem desperta!

Conan girou a mulher consigo ao se virar. O stígio havia se levantado do trono, seu contorno engrinaldado com vapor e, quando ele disse um encantamento num estranho dialeto, um halo de jade irradiou de sua mão erguida. Anéis do lótus se enrolaram em seus dedos, num verticilo que se contorcia. Conan lançou a mulher para o lado e saltou pela câmara. O stígio lançou o braço para a frente com uma ordem sussurrada, e a nuvem brilhante voou até o cimério.

Conan pulou para o lado. Mas, quando ele se moveu, a nuvem se moveu com ele, envolvendo-lhe a cabeça, forçando a si mesma como uma coisa viva dentro de sua boca e narinas. Conan golpeou selvagemente em direção ao stígio, mas, com seus olhos turvos e sua visão agora obscurecida pela bruma de jade, o stígio deu um passo para trás, afastando-se de sua lâmina, e seus golpes nada acertaram. As fumaças enfeitiçadas queimavam na boca e olhos de Conan, em suas narinas e pulmões, e sua mente boiava com visões monstruosas, seus sentidos remoinhavam num turbilhão fantasmagórico. Ele caiu inconsciente ao chão e ficou imóvel, com pequenos feixes do vapor do lótus negro lhe saindo em espiral da boca.

- Nekhem. – O alívio inundava a voz da shemita, enquanto ela corria através da câmara e lançava os braços ao redor do stígio.

- Que este homem seja o terceiro – disse Nekhem, descendo o olhar para a figura caída do cimério. – Eu preferiria que fosse Velantius, mas agora não é hora. Devemos completar o ritual.

“Meu espírito planou através dos golfos anoitecidos, e fundi pensamentos com um demônio da escuridão. Breve, até mesmo Thoth-Amon e o poder do Anel deixarão de ser uma ameaça, ó, Kihya. Talvez então, nós possamos conhecer a paz”.

Então, ele ergueu-lhe o queixo e a beijou antes de lhe devolver o abraço.


6) A Sombra na Chama

CONAN ACORDOU, PARA se ver ainda com elmo e armadura, mas sua espada havia sumido. Uma grossa corrente partia de uma larga coleira de ferro, trancada ao redor de seu pescoço e presa a um grande anel de ferro.

Acima dele, as estrelas brilhavam, e uma brisa quente lhe agitava o cabelo. Estava no teto do castelo acima de Yaralet, no centro do qual um solene fogo-de-bruxa ardia numa grande tigela de bronze, encaixada sobre uma estrutura de ferro. Vistas através daquele fulgor doentio, as estrelas pareciam palpitar estranhamente, e a luz da chama tinha uma característica pálida, apesar de seu brilho, como se ardesse parcialmente em reinos invisíveis. Ao lado, jaziam outras duas figuras, também acorrentadas. Igualmente próximos, se erguiam dois dos guardas ophirianos, como sentinelas silenciosas, com hieróglifos desbotados escritos em sangue sobre suas testas.

Um dos outros cativos era uma mulher em roupas comuns, enroscada e de costas para ele. Logo após, havia um homem alto e esbelto, com as roupas de um nobre. Ele se sentava quieto, olhando tanto a mulher quanto o cimério, através de olhos cinzas que possuíam uma qualidade de aço, a qual desmentia a leve sugestão afeminada de seus cachos negros.

Conan se levantou, e os guardas silenciosos pareciam não lhe dar atenção. A corrente era longa o bastante para que ele se erguesse, mas não mais do que isso, de modo que ele a agarrou com suas enormes mãos encouraçadas, entrelaçando os dedos através dos elos, e puxou, mas a pesada corrente resistiu aos seus esforços. Tendo verificado que estava além da sua força quebrar a corrente, ele não desperdiçou mais energia tentando, mas se sentou na pedra, seus olhos azuis ardendo com o fogo incandescente de um lobo capturado.

O som da armadura de Conan e os estalos da corrente fizeram a mulher se mover, e ela se virou e olhou para Conan, cuja expressão sombria se suavizou um pouco quando ele a reconheceu:

- Nissa. Eu vi quando lhe levaram. Pensei que estivesse morta.

- Também pensei o mesmo de você, até lhe trazerem para cá – ela disse. – Oh, Conan, seria melhor se tivéssemos sido mortos. O stígio é um demônio, eu sei disso.

“Fui carregada para dentro do pátio, onde vi uma cena de horror além da imaginação. Então, guardas saíram do castelo com longos piques (*), e fizeram as criaturas aladas recuarem. Levaram-me para dentro do castelo, onde fui aprisionada com outros que também foram capturados”.

Conan quis contar a Nissa sobre Velantius, que naquele momento devia estar abrindo seu caminho à força para cima, desde as profundezas do castelo, se ele e seus homens ainda estivessem vivos. Mas ele ficou calado por enquanto, não querendo trair a presença de Velantius para os ophirianos.

Havia um pequeno alojamento na beirada do castelo, e Conan viu duas figuras saírem de sua porta. O stígio caminhava em direção à grande porta de bronze, ainda vestido apenas com uma longa e rica tanga, bordada com fios de prata, e seguido pela shemita. Ele trazia um longo bastão, e os símbolos sobre sua pele escura brilhavam estranhamente à luz daquela chama etérea.

Ao ver o stígio, o nobre alto se levantou:

- Nekhem, solte-me. Com meu sangue real e sua magia, eu posso ser Rei de Ophir. Por que desperdiçar inutilmente minha vida assim, quando posso lhe ajudar a se tornar co-governante de um reino?

O stígio dirigiu seu olhar sombrio sobre o nobre, e falou em tom suave:

- Nada tema, Príncipe Than. Seu sangue não será desperdiçado. Mas nenhum domínio ou exército mundano pode me proteger do meu inimigo. Nem o aço, a intriga, a astúcia ou a furtividade. Apenas a profunda sabedoria das trevas. Somente minhas proteções e sacrifícios místicos. E preciso de mais um sacrifício.

- Nekhem! Solte-me agora! – O Príncipe Than puxava sua corrente em vão, mas Nekhem virou as costas para o príncipe e encarou a chama.

O stígio abriu bem os braços e começou a entoar numa linguagem desconhecida para Conan. Ao som de sua voz, a chama começou a palpitar. Não havia vento, além da brisa suave que soprava ao redor do castelo, mas algo fazia o estranho fogo se retorcer e açoitar, como se à mercê de uma tempestade.

Conan olhou para cima, para ver a noite semeada por estrelas estranhas, como se houvessem dois céus, e sua pele se arrepiou com o horror sobrenatural diante da impossível negação de sanidade, posta diante dele. Então, uma forma escura se elevou de um lado a outro daquelas estrelas, ficando maior a cada instante, até algo enorme pairar na escuridão além do castelo, sua forma medonha delineada pela luz misteriosa do fogo-de-bruxa, suas penas esfarrapadas batendo no ar quente e abafado, como as asas de um condor gigante.

Não se assemelhava a nada que Conan já tivesse visto, nem ele teve qualquer idéia de referência com a qual comparar. Sua mente recuava diante da própria noção de que tal coisa existisse – uma blasfêmia no rosto da criação, que repelia toda razão e ameaçava enviar a mente que tentasse tomar conhecimento daquilo para girar dentro de golfos remoinhantes de loucura. E mesmo assim, Nekhem se voltou calmamente em direção a ela, ergueu seu bastão e acenou com uma única palavra, a cujo convite o horror nascido da noite pousou sobre o teto do castelo e fechou as asas.

A mente de Conan estava inundada com a malevolência de sua presença. Ele puxou sua corrente como um tigre enlouquecido. Ainda incapaz de partir os elos, ele se lançou sobre um dos ophirianos, numa tentativa desesperada de se apoderar da espada do homem, mas este ficou impassivelmente a postos, com o olhar vago, a centímetros do alcance do cimério.

Nekhem sussurrava e cantava em voz baixa para o ser estranho. Sua silhueta cheia de símbolos se erguia como uma lasca de relativa normalidade, diante do que parecia ser um enorme ferimento negro no tecido da sanidade, através do qual a loucura viva havia se derramado e tomado forma.

* * *

Uma sombra tremeluzia na chama que queimava na grande tigela de bronze, uma sombra que se tornava um fantasma. A imagem que apareceu lá era de um homem alto e escuro – stígio como Nekhem –, vestido em roupas cor de terracota bordadas a ouro, tachonadas com lápis-lazúli. Suas feições aristocráticas estavam entalhadas com uma malícia e arrogância tão arraigadas, que ele próprio seria inconsciente desta qualidade neste aspecto. A imagem sombria daquele homem na chama lançou uma risada cínica, com toque de loucura, e Nekhem girou em direção ao fantasma; seu rosto ficou pálido, e seus olhos se arregalaram de medo e reconhecimento.

- Thoth-Amon! – ele gritou.

- Nekhem-ptah – falou Thoth-Amon, sua imagem palpitando como a sombra de um abutre dentro do fogo. – Pensei que você tivesse morrido há muito tempo, até agora, destruído pelas maldições que enviei para você, desde a corte do Rei Ctesphon. Que ironia este ritual ter sido o próprio meio pelo qual lhe encontrei.

“Saiba que você é o último daqueles que se revoltaram contra mim. Quando você se for, nenhum outro ousará me desafiar. Com o poder deste anel, posso realizar, em momentos, aquilo que exige grandes rituais e muitos sacrifícios de um feiticeiro menor”.

A imagem de Thoth-Amon ergueu uma mão, sobre cujo dedo havia um anel curioso, lavrado na forma de uma serpente escamosa, enrolada em três anéis, com a cauda na boca. Parecia ser feita de cobre escuro, seus olhos duas gemas amarelas que brilhavam perniciosamente. A própria imagem de Thoth-Amon parecia diáfana, mas o anel parecia tão sólido quanto se existisse lá, dentro do fogo palpitante, e não sobre o dedo de seu portador, a mais de mil léguas ao sul.

- Thamu Koteph, Thamu da Escuridão! – ele entoou, e aquele estranho horror se voltou diante do som de sua voz. Então, Thoth-Amon começou a falar encantamentos solenemente: – Pelo Anel da Serpente de Set, eu, Thoth-Amon, lhe ordeno. Mate todos neste teto, começando por ele! – E, com um dedo espectral, Thoth-Amon apontou Nekhem-ptah.

Nekhem saltou para a frente com um grito desesperado, e girou seu bastão através da chama, num arco brilhante. A imagem de Thoth-Amon tremulou, e o fogo translúcido queimou vazio mais uma vez.

Uma garra tenebrosa moveu-se rapidamente, e Nekhem foi agarrado por aquele chamado Thamu Koteph. Ele gritou e se debateu no aperto daquele horror negro, e os símbolos em sua pele escura começaram a resplandecer, bruxulear e sumir um a um, enquanto ele enfiava seu bastão na massa escura que procurava engolfá-lo.

A shemita Kihya gritou em Stígio, e os dois ophirianos correram para diante, puxando suas espadas. Quando um deles passou perto, Conan usou seu punho como um martelo no rosto do homem, derrubando-o ao chão. Conan pegou a espada do homem e começou a golpear a corrente.

O outro ophiriano correu adiante, e ele também foi agarrado por Thamu. Ele golpeou desvairadamente com sua espada, antes que fosse lançado para dentro do grande bucho negro que se abria diante dele. Thamu flutuou como uma sombra em direção a Conan e avultou acima dele, como uma onda de ébano. Dedos gelados, numa enorme mão negra, fluíram ao redor de Conan, como noite líquida. O cimério estava preso num aperto semelhante ao de um píton, mas ainda mais sinuoso que o de qualquer cobra. A corrente foi esticada, e Thamu a puxou e quebrou com aparente facilidade.

Conan foi erguido em direção a Thamu Koteph. Sua espada reluziu repetidamente para baixo, o gume da lâmina resvalando da carne do braço de Thamu, como se batesse em granito líquido. Do que quer que Thamu fosse composto, parecia ser de alguma substância obscura, desconhecida pelo homem.

Conan olhava para um rosto de configuração tão estranha, que mal parecia ser um rosto. Ele olhou fixamente para dentro de olhos que o miravam com fosca e desinteressada malícia cósmica, acima de uma boca semelhante a um corte escancarado de profunda escuridão. Aqueles olhos sugeriam vastas profundezas ímpias preenchidas com criaturas similares, cuja própria existência zombava da futilidade do homem. Um sopro de hálito fétido foi lançado sobre Conan, seu sangue se congelou em suas veias, e ele praguejou e golpeou.

À sua direita, Conan viu o bastão do stígio cravado na carne de Thamu. Passando sua espada da mão direita para a esquerda, ele arremeteu, seus dedos encouraçados se fechando ao redor do bastão com runas. Então, golpeou Thamu tanto com a espada quanto com o bastão. Ao contrário da lâmina, o bastão encerado perfurou a carne de ébano e um icor doentio verteu dos ferimentos, brilhando estranhamente à luz da chama etérea. Aquilo fluía como bile fosforescente pela escuridão bruxuleante da horrível massa de Thamu.

O cimério foi arremessado no ar. Ele se espatifou a uns seis metros de distância, rolou e carambolou dentro da parede interna do parapeito, onde jazeu imóvel. Deixara cair o bastão, mas seu punho de ferro ainda agarrava o cabo de sua espada. Ele se agitou, gemeu e se ergueu vacilante, os olhos azuis mirando ferozmente, através de sua cabeleira desgrenhada, para o grande volume escuro que avançava em sua direção.

- Conan! – gritou Nissa. O bastão havia caído próximo a ela, e agora ela o erguia e lançava através do espaço entre eles.

O cimério o pegou no ar com facilidade instintiva. Mudando o aperto para o meio do bastão, ele pôs o braço para trás e o atirou como uma lança, com toda a força de sua poderosa estrutura. O bastão reluziu através do ar da noite e se cravou profundamente no corpo da criatura. Luzindo com o icor fosforescente de seus ferimentos, e perfurada pelo bastão do feiticeiro, a entidade chamada Thamu abriu suas asas esfarrapadas e se ergueu, para voar alto e desaparecer entre as estrelas.

Conan o viu partir, com uma expressão quase assombrada no rosto cicatrizado.

- Crom, se minhas costelas não estiverem amassadas dentro de minhas tripas – ele disse. – Agora, onde está a chave, para que eu possa tirar esta maldita corrente de meu pescoço?

Kihya se agachou ao lado do corpo quebrado de Nekhem.

- Acabou – Nekhem arfou, enquanto ela lhe erguia a mão. – Estou liquidado, e Thoth-Amon venceu. Prometa-me... não procure vingança. Pegue o que eu lhe ensinei... e viva...

A luz desapareceu dos olhos de Nekhem, e a chama na grande tigela de bronze palpitou, sua característica sobrenatural desaparecendo, até só ficarem os restos gotejantes de uma chama agora terrena. Kihya desabou sobre ele, o cabelo negro caindo como uma cortina tremeluzente e seu corpo atormentado por soluços. Então, ela se levantou subitamente com os olhos brilhando, seu rosto manchado de khol, e correu até o parapeito. Lançando um último olhar para o cenário onde jazia seu amante morto, murmurou uma palavra e se lançou pela beirada.

Conan caminhou sobre o corpo do stígio e recuperou as chaves que estavam ao redor da cintura de Nekhem. Libertou-se dos restos de seus grilhões, e então lançou as chaves para Nissa. Ele olhou por sobre a vista da cidade de Yaralet, onde viu uma pálida forma de falcão, voando bem acima dos tetos, e além de onde o céu florescia cada vez mais brilhante contra o horizonte.

Agora quinze homens sombrios, em malha golpeada e ensangüentada, saíam para o teto do castelo, liderados pelo Lorde Velantius, todos eles restantes dos 40 que originalmente haviam se infiltrado na fortaleza. Quatro deles tinham vários ferimentos, e eram sustentados por seus camaradas. Nissa recuou para dentro da escuridão, quando Velantius apareceu no cenário. O lorde kothiano viu a forma caída do stígio, e então olhou para o ainda acorrentado Príncipe Than, o qual havia se levantado com o afeminado gorro de veludo novamente em sua cabeça.

- Que sorte lhe encontrar vivo – sibilou Velantius. – Não haverá suspensão temporária de execução para você. Nem mesmo o resgate de um príncipe pode desfazer o mal, que você e aquele maldito sacerdote fizeram. Você será levado ao calabouço, para aguardar minha justiça. E todos que se oporem a mim, aqui em Yaralet, verão sua execução.

Certa resignação se moveu furtivamente pela forma alta do Príncipe Than, mas a qualidade de aço nunca abandonou seus olhos cinzas, enquanto ele meditava sobre as palavras do Lorde Velantius.

Velantius se voltou para Conan:

- Estou feliz em ver que você teve sucesso em matar o stígio – ele disse. – Quando passei pelos corpos de Amalrus e dos outros, achei que todos vocês haviam falhado.

“Neste momento, meus outros capitães estão retomando pontos-chaves da cidade. Quando o sol se erguer, brilhará sobre uma cidade novamente devolvida às mãos de minha família.

“Conan, eu lhe ofereço um posto como capitão mercenário aqui em Yaralet. Ajude-me a consolidar meu governo, e irei lhe recompensar. Você será apenas o segundo em classificação aos meus fiéis capitães e dependentes”.

Conan olhou feroz e inquietamente para Velantius e seus homens, os quais se encontravam num esfarrapado semicírculo ao redor de seu Lorde.

- Bah, eu já tive minha cota desta cidade maldita – ele afirmou rudemente. – Só vou tomar o que você me prometeu, e cavalgar para longe amanhã.

- Estou vendo. Você deve entender que não posso deixar um mercenário como você ir embora, sabendo o domínio incerto que terei sobre esta cidade nas próximas semanas. Você ficará aqui, até meu governo estar firmemente restabelecido.

Uma nuvem escura passou pelo rosto cicatrizado de Conan, e ele sacudiu a espada:

- Por Crom, me dê o que prometeu, e então seguirei meu caminho!

Os cães de guerra de Velantius se empertigaram diante desta demonstração de truculência do cimério, e a possibilidade de um conflito sangrento ficou pendurada num fio de cabelo. O lorde kothiano estava instintivamente acostumado a ter seus comandos obedecidos. Não lhe passou pela cabeça que Conan poderia estar preparado para lutar até a morte, por motivos até menores que este.

Então, Nissa deu um passo à frente:

- Velantius!

- Por Mitra, Pelana! Pensei que você tivesse morrido durante o golpe de estado.

- Eu teria – ela disse –, mas este homem me salvou. – Ela se voltou para Conan: – Sinto muito em ter mentido para você. Meu nome não é Nissa, mas Pelana, e sou irmã de Velantius. Eu não sabia se podia confiar em você; por isso, menti. Nissa era o nome de minha criada.

Pelana se voltou novamente para o irmão:

- Nissa e eu escapamos, descendo por uma corda da janela de meu quarto, enquanto os homens de Than golpeavam a porta. Fugimos pela escuridão e através da planície do lado de fora da cidade. Mais tarde, depois que a lua se ergueu, um demônio alado caiu sobre nós. Consegui matá-lo, mas ele matou Nissa e me feriu. Segui caminhando às cegas, mas algo queimava como fogo em meu sangue e caí em delírio, sendo encontrada por Conan, que me carregou de volta à cidade.

“Ele salvou minha vida, Velantius, e mais de uma vez. Deixe-o seguir seu caminho, eu lhe imploro”.

Velantius abraçou Pelana:

- Será como você pede, minha irmã. E você me contará tudo o que lhe aconteceu, quando o tempo e as circunstâncias permitirem.

* * *

Do lado de fora da cidade de Yaralet, Conan montava um garanhão baio, vestido em malha kothiana. Pelana se erguia ao lado da montaria dele e, um pouco distante, seu pequeno séquito aguardava, acompanhado por dois dos cavaleiros de Velantius a cavalo.

Pelana falava suavemente:

- Conan, tenha cuidado com homens como meu irmão. Há uma selvageria incomum em você, a qual os incita facilmente ao ódio. A quem eles não conseguem controlar, eles temem; e, a quem eles temem, eles freqüentemente planejam destruir. Tome cuidado, pois ele pode colocar assassinos em sua trilha.

Conan grunhiu e assentiu.

- Para onde você vai agora?

O braço musculoso do cimério girou, como se para indicar vastas expansões:

- A leste, para Turan, ou a oeste, para Coríntia. Talvez eu cruze as estepes até o Mar de Vilayet, e caminhe entre os bazares brilhantes de Aghrapur, mas também penso em me juntar aos Companheiros Livres. E quanto a você?

- Embora eu tenha andado com sedas adornadas por jóias e peles através de palácios dourados, não tenho nada. Sou pouco mais que uma peça de barganha para meu irmão, que quer me casar dentro de uma família de inimigos para agir como espião, para selar uma aliança, ou ambos. Minhas perspectivas sempre foram assim. Quando acordei de meu delírio e lhe vi sentado ao lado da fogueira, quando pensei ter perdido tudo, eu estava quase feliz... eu me senti livre...

- Na Ciméria – disse Conan –, nenhuma mulher se casaria contra a vontade, e desgraçado do homem que tentar forçá-la.

Conan ergueu uma mão em adeus, girou sua montaria e cavalgou na direção oeste.

- Adeus, Conan da Ciméria – disse Pelana tristemente. Então, ela retornou, com seu séquito, para Yaralet.


FIM



(*) – Pique: Espécie de lança antiga (Nota do Tradutor).



Tradução: Fernando Neeser de Aragão.




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