(por “VonKalmbach”)
“Ouça, milorde. Eu era um grande feiticeiro no
sul. Os homens falavam de Thoth-Amon como falavam de Rammon. O Rei Ctesphon da
Stygia me dedicava grande estima, derrubando magos de altos postos para me
enaltecer acima deles. Eles me odiavam, mas tinham medo de mim, pois eu
controlava seres do além, que respondiam ao meu chamado e cumpriam minhas
ordens. Por Set, meus inimigos não sabiam a hora em que poderiam acordar no
meio da noite, e sentirem as garras de um horror sem nome nas suas gargantas!
Eu era um mestre da magia negra. Realizei magias negras e terríveis com o Anel
da Serpente de Set, que encontrei num túmulo tenebroso, uma légua abaixo da
terra, esquecido lá antes que o primeiro homem se arrastasse para fora do mar
lamacento”.
(Thoth-Amon, em “A
Fênix na Espada”, de Robert E. Howard)
1) Yaralet à Noite
LÂMPADAS A
ÓLEO QUEIMAVAM INTERMITENTEMENTE ao longo das ruas vazias de Yaralet, e sombras
cobriam os becos desocupados e as escuras passagens arcadas. Não havia passadas
arrogantes, nem risadas borrascosas de gente festejando tarde da noite, para
quebrar o silêncio morto, pois os habitantes de Yaralet mantinham um
amedrontado toque de recolher por trás de suas portas fechadas e trancadas.
O sol havia
afundado no oeste, e as primeiras estrelas bruxuleavam no céu do anoitecer. No pequeno portão oeste da cidade, dois
guardas kothianos mudavam nervosamente a posição de suas lanças à luz das
lanternas, olhando apreensivos para a escuridão que caía. Uma batida trovejante
sacudiu ruidosamente o portão.
Os guardas
ficaram imóveis, tomados pelo medo, e o portão bramiu e sacudiu pela segunda
vez. Uma voz retumbante berrou com um sotaque bárbaro:
- Abram o
portão!
Os guardas
trocaram olhares incertos, mas não se moveram.
- Abram o
portão, por Crom!
Desta vez, a
voz lhes cortou o medo com seu timbre de comando. Os guardas abriram a
portinhola e olharam para fora.
Mal-iluminado
pela luz da portinhola, erguia-se um forasteiro de grande estatura, com ombros
largos e membros pesados. Os olhos azuis do estranho carranqueavam sob as
sobrancelhas, brilhando ferozmente à luz dos lampiões e possuindo uma
vitalidade selvagem que faltava nos olhos dos observadores. Uma grande juba de
cabelos negros lhe caía ao redor dos ombros, aparada na testa. Ele vestia uma
tanga e um par de sandálias em tiras; em sua cintura, havia um largo cinto do
qual pendia uma espada de lâmina larga. Em seus braços, ele carregava um grande
fardo envolto num manto escarlate.
- Qual o seu
nome, e o que faz em Yaralet? – perguntou o guarda, queixoso.
- Sou Conan,
um cimério – o forasteiro enunciou.
- Você era um
soldado naquela batalha que rugiu mais cedo sobre a planície? – perguntou o
outro.
- Abra o
portão. Estou ferido, e minha companheira também – Conan respondeu.
Os olhos dos
guardas desceram sobre o vulto no manto vermelho, onde eles viram a cabeça de
uma jovem mulher descansando no ombro do estrangeiro. Os olhos da mulher
estavam fechados, e sua pele pálida contra a vermelhidão do manto. Ela se
agitou e murmurou algo incoerente, mas não acordou.
- Por que
estão demorando? – o cimério resmungou impacientemente.
Um dos guardas
matraqueou sua chave na fechadura, e o portão se abriu.
Conan passou
claudicando pelos guardas com seu fardo. Ele sentiu os olhos dos dois às suas
costas, enquanto prosseguia ao longo da rua mal-iluminada que fazia a curva
após o portão. Ouviu o portão se fechar, e a chave girar na fechadura atrás de
si; então, um dos guardas falou atrás dele:
- Você se
arrisca demais em vir para cá após o pôr-do-sol, estranho. O pesadelo espreita
as ruas de Yaralet.
Conan parou e
deu a volta, mas o portão agora estava vazio sob o brilho das lanternas; e não
havia nada, exceto o som de pés recuando apressadamente.
Ele murmurou
uma praga perplexa, e continuou seu caminho.
*
* *
O cimério
tentou entrar em uma taverna após a outra, ao longo das ruas lugubremente
abandonadas, mas estavam todas trancadas e ninguém queria deixá-lo entrar,
apesar de todas as suas pragas. Ele via luzes brilhando fracamente através das
rachaduras nas palhetas e postigos das casas por onde passava, e ouvia sussurros
e murmúrios atemorizados, vindos de dentro delas. Passou por casas que eram
escuras, silenciosas e cobertas por tábuas de madeira, com uma cruz negra
pintada na parede. O trabalho em madeira nas portas e postigos destas casas
estava riscado e estilhado como se por garras. Finalmente, com seu pouco
estoque de paciência já esgotado, ele deitou cuidadosamente a mulher do lado de
fora de uma das casas abandonadas, e arrancou as tábuas da portada quebrada com
seus dedos de ferro. Desencaixando um lampião próximo de seu suporte na parede,
ele puxou a porta, abrindo-a, e adentrou seu interior escuro.
Lá dentro, viu
um único e grande cômodo com janelas trancadas, o qual fora recentemente
ocupado. Havia uma cama amarrotada num canto, várias prateleiras, uma grade
aberta, uma mesa e alguns bancos sem recosto. O local estava desarrumado; uma
luta havia acontecido lá e, no chão, da mesa à soleira, ele viu uma longa
mancha escura de sangue seco.
O cimério pôs
o lampião sobre a mesa no centro da sala, e voltou para fora, para pegar a
mulher e deitá-la na cama. Pegou a madeira que fora usada para vedar o local, e
a partiu em gravetos; logo, acendeu uma fogueira na grade. Havia pão mofado, queijo,
manteiga, carne seca, fruta e vinho na pequena despensa, e ele comeu com gosto,
sentando-se à mesa próxima à fogueira e observando a mulher.
Após ter se
banqueteado, ele flexionou e estirou a perna ferida, rangendo os dentes por
causa da dor. Mas sua vitalidade natural já se impunha, e ele sabia que, em
breve, seria capaz de arremeter a perna com toda a sua força.
A mulher se
mexeu e acordou. Ela olhou ao redor da sala, perplexa, até seu olhar descansar
no gigante de bronze que se sentava imóvel próximo à fogueira, seus olhos azuis
cintilando ferozmente à luz do fogo. Ele irradiava uma presença elemental que,
de alguma forma, parecia tranqüilizá-la, apesar de sua aparência bárbara.
- Quem é você?
– ela murmurou confusa. – Como cheguei aqui?
- Sou Conan –
ele respondeu. – Eu lhe encontrei semi-morta e delirante nos juncos. Levei-lhe
ao rio, limpei seus ferimentos e então lhe trouxe aqui a esta cidade.
Ele não
mencionou que quase a havia matado, como um ato de misericórdia para acabar com
seu sofrimento. Algum capricho havia detido sua mão. Mas depois, enquanto a
carregava até o rio, ele havia sentido a força dentro da estrutura flexível
dela, e percebeu que ela se recuperaria de seus ferimentos.
- Esta cidade?
Mitra! Você quer dizer Yaralet! – Ela estremeceu, enquanto seus olhos se
demoravam na longa mancha de sangue seco sobre o chão.
Conan se
levantou e apontou a comida sobre a mesa, com um movimento impetuoso.
- Não há
tempo. Tenho que sair daqui! – Ela tentou se levantar, e caiu para trás num
desmaio momentâneo. – Oh, eu...
- Calma,
garota; você está passando fome.
Ele pôs uma
baixela diante dela, amontoada com as comidas que havia posto para um lado,
junto com um pouco de vinho. Ela comeu e bebeu vorazmente, com as mãos
trêmulas, seus escuros cachos molhados emoldurando-lhe o rosto pálido à luz da
fogueira, o manto vermelho disposto à toa ao redor de seus ombros esguios.
Enquanto ela comia, Conan olhou ao redor da sala, até encontrar umas roupas deixadas
pelos ocupantes anteriores, e colocou-as próximas à mulher.
- Aqui; quando
você terminar de comer, vista-as. Você estava nua quando lhe encontrei. Depois,
você pode me contar o que está acontecendo.
Quando a
mulher terminou de comer e beber até se saciar, ela se levantou vacilante e,
sem timidez, começou a vestir as roupas simples e plebéias que ele procurara
para ela. O cimério deu a volta e caminhou até a soleira, os polegares enfiados
no cinto, uma figura silenciosa e indomável, erguendo o olhar para a irregular
linha do horizonte e para os anoitecidos domos e minaretes de Yaralet.
Os olhos de
Conan passearam ao longo da rua vazia, sobre os tetos sombreados e para o
castelo que pairava acima da cidade. O próprio castelo estava encaixado na escuridão,
com apenas algumas luzes brilhando fracamente de dentro da torre de menagem. No
topo daquela torre, um fulgor sobrenatural flamejava. Ele viu uma nuvem escura
de formas aladas se erguer para dentro do céu noturno, vinda do pátio do
castelo e delineada à distância por aquele brilho profano. Os cabelos de seu pescoço
se arrepiaram e um frio correu por suas veias, quando viu os alados voarem alto
e silenciosos através das ameias, e acima dos tetos de Yaralet.
Conan recuou
involuntariamente da soleira, sua mão cicatrizada caindo até o cabo de sua
espada. A mulher se juntou a ele.
- É tarde
demais! Já estão aqui!
Ela tentou,
sem sucesso, fechar a porta quebrada, voltou à sala e começou a puxar a cama.
- Ajude-me a
usar isto para bloquear a porta. Temos que fazer o que pudermos para mantê-los
fora.
Por um
momento, Conan ficou olhando ferozmente para a horda silenciosa, como se para
um inimigo implacável, passando o polegar pela lâmina de sua espada larga.
Então, ele enfiou a lâmina de volta à bainha e ergueu a cama com facilidade.
Colocou-a na portada e a encaixou no lugar com a mesa.
- O que são
eles? – perguntou.
- Demônios da
noite, invocados por um demônio em forma de homem – ela respondeu amargamente.
Conan se perguntou quais horrores não-pronunciados ela já havia experimentado
nas mãos dessas criaturas.
A mulher
começou a procurar ao redor da câmara. Ela pegou uma faca de cozinhar, a qual
estava próxima à fogueira.
- Qual o seu
nome, garota?
- Nissa.
- Muito bem,
Nissa; vigie essa porta até eu retornar. – Ele puxou a barricada para o lado e
deslizou pela abertura até a rua.
- Espere; para
onde está indo?
- Vocês,
civilizados, são todos iguais. Tremem trancados em seus lares, enquanto seus
vizinhos são arrastados de suas próprias casas por tiranos ou demônios. Se ficassem
unidos e lutassem, poderiam eliminar toda essa maldita ninhada dos infernos.
Então, Conan
fechou a barricada atrás de si e partiu.
2) Asas Contra as Estrelas
CONAN SUBIU
SILENCIOSAMENTE até o teto da pequena residência, e de lá até uma sacada acima.
Como uma sombra, ele saltou até o teto plano de uma construção adjacente, onde
se agachou e encostou-se a uma parede baixa que era a divisória de um pequeno
jardim de teto, onde fileiras de violetas, murtas e asfódelos se curvavam e soltavam
seu perfume no ar noturno. Ele desembainhou sua espada e a colocou sobre os
joelhos. Dali, podia ver facilmente a rua do lado de fora, de onde Nissa ficou
observando atrás da barricada. Ele aguardava na escuridão – invisível, mas
vendo.
A última vez
em que ouvira sobre Yaralet, ela estava sob o governo do impiedoso renegado
kothiano Altarus, o qual fugira das intrigas políticas de Koth e conquistara a
pequena província fronteiriça de Yaralet dos zamorianos. Os rumores eram os de
que Altarus havia impiedosamente massacrado os nobres zamorianos que haviam
anteriormente governado o local, não querendo que nenhum deles fugisse para a
corte zamoriana e chamasse o déspota para uma represália. O próprio déspota
zamoriano estava ocupado, defendendo a fronteira leste de Zamora das ambições
do Rei do Turan; e assim, à parte de mensageiros políticos ameaçados e da
ocasional incursão punitiva através da fronteira, não houve tentativa evidente
de arrancar Yaralet de seu domínio. Altarus havia imediatamente se rendido ao
rei kothiano e lhe enviado tributo, permanecendo afastado de seus inimigos na
corte. Vinte anos haviam se passado desde então, e parecia que Yaralet ficaria
de fato sob a coroa kothiana. As fronteiras mudavam freqüentemente nas
políticas irascíveis daquela época.
O céu sobre
Yaralet não estava vazio, mas os olhos agudos do cimério distinguiam as formas
inquietas, que se empoleiravam em silencioso conclave predatório, dentro das
sombras ao redor dos tetos iluminados pelas estrelas. Lâmpadas a óleo ainda
palpitavam e fumegavam ao longo das ruas vazias, e Conan se pôs a fazer uma
longa vigília. Não sentindo perigo imediato, ele fechou os olhos e dormiu como
um gato.
Foi o som de
uma porta se abrindo e fechando que o acordou. Instantaneamente alerta, sem a
névoa embriagada entre o sono e a vigília que comumente caracterizava os homens
civilizados, os olhos de Conan se abriram abruptamente, e ele viu a figura furtiva
de um pelishtio vestido num kaftan se
movendo cautelosamente rua abaixo, próximo à parede. Ele olhava temerosamente
ao redor, enquanto se movia.
Formas escuras
se destacavam dos tetos sombreados e se erguiam para o céu, quando giraram e
mergulharam silenciosamente – humanóides altos e escuros, com a pele escura
mais negra que a noite. O pelishtio soltou um grito áspero e começou a correr.
Conan não sabia qual o assunto desesperado que o levara a viajar sozinho para
esta cidade maldita, mas aquilo o havia levado à sua morte, pois as criaturas
aladas desceram, e duas delas o pegaram com seus pés em forma de garras, o
ergueram e carregaram para o alto entre elas. Ele guinchou e se debateu, bem
acima dos tetos, enquanto era carregado em direção ao castelo negro. O restante
daquele bando infernal alçou vôo para se empoleirar pela rua próxima.
Conan esperou,
imóvel mas pronto. Por um tempo, parecia que as criaturas haviam voltado a se
instalar na escuridão para se empoleirarem e aguardarem outra vítima; então,
uma delas se ergueu e desceu voando para o teto da pequena residência, na qual
Nissa aguardava lá embaixo. E mais ainda delas se precipitou até a rua do lado
de fora da porta barricada, suas peles de ébano cintilando à luz bruxuleante
das lâmpadas. Conan sibilou uma praga entre os dentes fechados. Começaram a
morder a tosca barricada, e um grito desesperado de Nissa se ergueu lá de
baixo.
Mas Conan já
se movia. Ele saltou sobre o parapeito, e então para a sacada abaixo. Jatos
vermelhos de agonia perfuraram seu cérebro, quando a dor do ferimento esquecido
ardeu novamente. Com a espada na mão direita, ele usou a esquerda para descer sobre
o teto debaixo da sacada, e lá ficou cara a cara com a criatura alada no
telhado, a qual se virou em direção a ele. Conan encarava um rosto rapineiro,
com cruéis feições aquilinas torcidas numa expressão de cinismo e zombaria
inumanos. Na Nemédia, Conan tinha visto construções com gárgulas entalhadas, as
quais lembravam esta criatura. Parecia-lhe a obra distorcida de um escultor
insano. A criatura abriu sua boca com presas e o amaldiçoou em sua língua
estranha.
Conan correu
para diante, com a intenção de transpassar a criatura com sua espada, mas ela
abriu as asas e alçou vôo com velocidade surpreendente. Nissa gritou novamente,
e Conan, ao invés disso, deu a volta e desceu até a rua abaixo. Ele se viu
entre uma dúzia dos demônios, os quais viraram seus rostos cruéis em sua
direção e abriram suas bocas com presas, zombando dele e o amaldiçoando como o
primeiro havia feito. Conan arremeteu para a frente, com um talho furioso que
arrancou a cabeça de um deles, e os outros se ergueram numa escura agitação de
asas. Uma breve olhada mostrou a Conan que as criaturas haviam forçado a barricada
para baixo. Por um momento, seus olhos se encontraram com os de Nissa, enquanto
ela ofegava na portada. Uma selvagem satisfação encheu o cimério, quando ele
viu que a faca na mão de Nissa estava manchada até o cabo com sangue negro, e
que duas das criaturas estavam mortas aos pés dela.
Logo, o ar
estava vivo com formas que batiam asas e dilaceravam com garras, quando os
demônios começaram a atormentá-lo de cima. Tão frenética foi a atividade ao seu
redor, que ele foi forçado a proteger o rosto com um dos braços, enquanto cortava
e retalhava cegamente ao seu redor com sua espada. Sua única certeza de sucesso
era o satisfatório solavanco que lhe percorria o braço, toda vez que sua espada
entrava na carne de seus inimigos. A rua ao seu redor ficou alastrada de formas
retalhadas e estraçalhadas, algumas das quais ainda se mexiam. Mas sua perna
ferida o traiu, e ele escorregou no sangue que escorria abundantemente sobre as
ruas aos seus pés. Naquele instante, ele foi pego por meia-dúzia de garras e carregado
para o alto.
Ele ouviu o
grito desesperado de Nissa, quando ela foi levada para o alto, acima das ruas
de Yaralet.
Havia mantido
instintivamente o aperto em sua espada. Um enjôo vertiginoso o atacou quando
olhou para baixo. Não tinha medo de alturas, já tendo galgado algumas das
montanhas mais altas do norte da Ciméria, mas este vôo não-natural, sob as asas
destas criaturas de outro mundo, lhe banhava a própria alma com ondas de
náusea.
Seu braço,
perna e cintura esquerdos estavam pegos no aperto feroz das garras. Conan ainda
tinha livre seu braço da espada, e ele o usava em total vantagem ao se retorcer
e estocar para o alto. Sua espada atravessou a coxa do demônio acima, ele o
soltou com um guincho e despencou na escuridão. Os outros dois soltaram instantaneamente
seu aperto nele. A mão esquerda de Conan arremeteu instintivamente, e seus
dedos de ferro se fecharam numa perna de ébano. Nem mesmo as largas asas de
couro de um desses demônios pôde suportar o grande peso do cimério, e tanto
homem quanto demônio começaram a cair em espiral, em direção aos tetos abaixo.
Conan
aterrissou no teto abobadado de um palácio próximo ao castelo. Com algo sólido
sob seus pés mais uma vez, ele não perdeu a chance de estripar aquele demônio
e, então, partir seu crânio, e observar seu corpo rolar para baixo e ir parar
na larga calha que rodeava o domo. Ele ergueu o olhar, apenas para ver um novo
bando daquelas criaturas infernais voando em sua direção.
E então, uma
nova batalha teve início. Sobre o domo daquele palácio, Conan lutou, destacado
contra o céu iluminado pelas estrelas, enquanto girava, talhava e trespassava
os demônios que assolavam ao seu redor, num bando de carniça profana. Conan
sabia que não podia fazer uma pausa, nem cometer um único erro, enquanto
rodopiava e golpeava. Pois, se o fizesse, seria carregado novamente no ar, e em
direção a qualquer que fosse o destino sombrio encontrado por aqueles que eram
levados para o castelo negro no centro de Yaralet.
Mas ele finalmente
ficou só, com seu peito amplo subindo e descendo do seu esforço. O céu ao seu
redor estava novamente limpo, e toda a cúpula estava alastrada com as imóveis
formas quebradas de seus inimigos. Ele sangrava de vinte ferimentos, que ardiam
como fogo sombrio por todo o seu corpo; mas seu selvagem senso de vitória
estava misturado com uma onda escura de fatalismo. Lá longe, do outro lado dos
tetos, ele viu Nissa sendo carregada em direção ao castelo.
3) “Sou o Lorde de Yaralet”
CONAN
CAMBALEOU ATÉ a beirada do domo, onde um portão arcado de bronze escuro,
lavrado a ouro e brilhando suavemente à luz fraca, dava numa escada estreita. O
portão estava trancado, e Conan ergueu sua espada e rachou a tranca. Em
circunstâncias normais, haveria guardas sobre este teto, Conan presumiu. Ele
desceu cambaleando pelos degraus, seu cérebro ardendo como uma chama líquida e
seus movimentos cada vez mais vacilantes. Avançou pelo jardim do palácio e ao
longo de um caminho enfileirado por ciprestes, cujos galhos formavam uma treliça
de sombras contra o céu noturno, até chegar a um portão duplo, após o qual
ficavam as ruas de Yaralet. Este portão também estava trancado, com uma sólida
viga reforçada por bronze, e aquela larga tranca era grossa demais para sua
espada cortar. Ele contornou o muro alto, até achar uma árvore cujos galhos
cresciam próximos ao espigão do muro e, por este caminho, escalou até o topo da
muralha e saltou até a rua do lado externo.
Do outro lado
da rua, havia um pequeno grupo de figuras em túnicas. A visão de
Conan estava ficando cada vez mais indistinta, e ele sacudiu sua cabeça
cabeluda com uma praga. Sua mão caiu certeira no cabo da espada, mas, antes que
ele pudesse dar outro passo, uma onda de negrura se ergueu do chão para atolá-lo,
e ele se espatifou inconsciente no chão.
As figuras em
túnicas atravessaram furtivamente a rua e pararam próximas à sua forma caída.
Tinham rostos magros e aquilinos, típicos dos kothianos, e o tilintar da malha
podia ser ouvido sob suas túnicas.
- Por Mitra –
falou um –, este é o homem que lutou sobre a cúpula.
- Ele está
morto? – perguntou outro.
- Não – disse
um terceiro, curvando-se sobre Conan e com a mão sobre o pescoço dele –; mas
pode morrer logo, com o veneno daquelas garras lhe correndo pelas veias.
- Ele pode ser
um espião zamoriano – disse o segundo. – Que ele morra na rua e retornemos até
Valantius.
- Ou um espião
ou um mercenário – disse o terceiro. – Este homem é um estrangeiro. Aposto que
ele estava com os mercenários coríntios, lutando com Ascalus. Valantius vai
querer notícias do oeste. Aqui, ajudem-me a levantá-lo. Deuses, ele pesa como
ferro.
Dos seis
homens, quatro ergueram Conan pelos braços e pernas, e dois ficaram de guarda
enquanto fugiam através da rua e para dentro de um labirinto de ruas escurecidas.
Entraram numa determinada casa e desceram degraus rangentes, para dentro de um
porão mofado, onde, atrás de uma prateleira de vinho, havia um painel oculto
que dava para dentro dos esgotos sob Yaralet.
*
* *
A lua se
erguia como uma caveira vermelho-sangue sobre as colinas acidentadas que
avultavam contra o horizonte. Sua palidez fantasmagórica delineava os topos das
árvores enfermas e retorcidas. Aquele teto de selva era pontuado apenas pelas
torres de ébano que se erguiam grotescamente a intervalos regulares acima do
eternamente inquieto mar de folhas. Contra um céu pontilhado por estrelas
estranhas, os alados voavam como demônios de asas escuras, carregando os
pálidos corpos flácidos de suas vítimas até seus altares sombrios.
Conan percebeu
estar sonhando, enquanto corria ao longo da trilha na selva, num corpo que não
era o dele. Em sua mão direita, havia uma lança de ponta de sílex e, em sua
esquerda, um escudo de pele pintada de mamute numa forte estrutura de vime. Ao
redor de seus quadris, uma tanga de pele de lobo. Sua grande cabeleira
esvoaçava quando ele sacudiu o suor dos olhos, e ele continuava correndo com um
grande passo galopante ao longo da trilha obscura, naquela luz incerta.
Estava
consciente de uma única necessidade: encontrar Kiana. Ele havia cortado o laço
de sangue com sua tribo e partido só. Na verdade, ele sabia que sua busca era
inútil, mas jamais perderia a esperança, até o último suspiro lhe destruir o
corpo e sua alma ir para Golmorra, ou para o inferno. Se tudo o mais desse errado,
ele mataria o máximo possível daqueles demônios, antes de morrer.
Ele era Gerath
do Cu Tuerna, e Kiana era sua companheira.
Um silêncio
caiu sobre a selva, quando Gerath se aproximou da base da torre escura – vasta
como uma tigela de sequóia, mas negra como azeviche. Não havia entrada naquele
nível, e Gerath largou sua lança e escudo, e subiu numa das árvores retorcidas
e cheias de trepadeiras que cresciam perto da torre.
Mas o ponto
mais alto que conseguia alcançar ainda ficava sob as sacadas arcadas pelas
quais os demônios alados entravam. Gerath pegou um pouco das videiras flexíveis
que engrinaldavam as árvores nas redondezas, e fez com elas uma corda, a qual
ele amarrou à sua lança. Quebrou um galho forte, o cortou e aparou com sua faca
de sílex, e amarrou firmemente uma travessa curvada atrás do cabo da lança.
Então, ele pôs seu poderoso braço para trás e arremessou a lança para o alto
num grande arco.
O gancho
improvisado no cabo de sua lança bateu no parapeito da beirada da sacada, e
Gerath o testou para ter certeza de que agüentaria seu peso. Então, amarrou a
outra extremidade à árvore à qual se agarrava, e subiu pela corda até a beirada
da sacada acima.
Gerath se
ergueu na soleira, mirando para dentro das profundezas da torre escura.
*
* *
Conan se mexeu
e acordou subitamente, como se estivesse sob o domínio de um pesadelo obscuro.
Seu corpo ardia com mil fogos, e ele olhava ferozmente, como se através de uma
névoa eterna, para vários rostos indistintos. Ouviu uma voz, que falava através
da bruma das eras.
- Ele está
acordando. O delírio está passando.
Conan se
sentou. Seus ferimentos haviam sido limpados e enfaixados. Ele estava num porão
amplo e pouco mobiliado. Havia cinco kothianos na sala com ele: dois em
armadura completa, montando guarda, e os outros três em roupas mais comuns,
usando cintos largos dos quais pendiam espadas. Um dos três usava uma curta e
bem-arrumada barba aparada, a qual lhe acentuava as feições aquilinas, e se
apresentava com a autoridade e arrogância de alguém que nascera para comandar.
Conan tomou uma antipatia pelo homem.
Seu sonho
recente ainda pesava muito na mente de Conan, quando ele se ergueu vacilante.
Os dois guardas deram um passo à frente, mas o kothiano barbado acenou
impacientemente para que recuassem. Não era um pequeno gesto de ousadia, pois,
mesmo em seu estado ferido e grogue, a estrutura poderosa do gigante cimério
transpirava uma vitalidade primitiva que falava de morte e destruição.
- Pelos
deuses, me disseram que você enfrentou uns dez a quinze dos demônios da cúpula
do Palácio Kiresias. E, mesmo assim, ainda está vivo.
- Sim, por
Crom – Conan sussurrou sombriamente.
O kothiano
barbado sinalizou para um de seus homens:
- Dêem um
pouco de vinho para o forasteiro.
O homem trouxe
um copo e um odre de vinho de trás da adega, encheu o copo e o entregou a
Conan. Ignorando a bebida oferecida, Conan arrebatou o odre de vinho do homem e
o ergueu, bebendo profusamente.
- Há quanto
tempo estou aqui? – ele disse finalmente.
- Quase um dia
inteiro.
Conan assentiu
sombriamente.
- O que
acontece com aqueles que são levados até o castelo? – Conan perguntou.
- Aqueles
dentre nós, que se aventuraram perto das paredes do castelo à noite, ouviram
seus gritos vindos do pátio interno. Se os rumores forem verdadeiros, aqueles demônios
alados devoram vivas as suas vítimas.
Uma sombra
passou pelo rosto cicatrizado de Conan, e seu maxilar cerrou convulsivamente.
Se um dia inteiro havia se passado desde que ele vira Nissa ser levada, ela
provavelmente estava morta agora. Familiarizado com a morte, Conan já vira
homens e bestas morrerem de muitas formas não-amáveis. O falcão caça a lebre, o
leão caça a corça – era o jeito de ser da Natureza. Mas o pensamento de outro
humano, sofrendo nas mãos daquelas criaturas, fazia uma irracional onda
vermelha de fúria assassina fluir até mesmo por suas veias endurecidas por
batalhas. Alguma memória dispersa o puxou dos recessos de sua alma, e o sonho
pelo qual passara em seu delírio assumiu um novo significado.
- Da última
vez em que ouvi falar – disse Conan –, Altarus era governante de Yaralet. Desde
quando os homens de Koth fazem barganha com demônios?
- Altarus está
morto – falou o kothiano. – Sou Valantius, filho de Altarus, e sou o atual
Lorde de Yaralet.
- Um
governante que mantém a corte em adegas, e cujos homens rastejam ao redor da
cidade à noite – Conan grunhiu, e limpou o vinho de seus lábios com a parte de
trás de um dos braços musculosos.
4) Lorde nas Sombras
Os olhos de
Valantius luziram:
- Segure sua
língua, cão do norte, e me responda! Onde estão agora as forças de Ascalus, e
quais são os planos dele?
Conan deu uma
risada baixa:
- Primeiro,
devolva-me as armas e me dê um pouco de comida, e eu lhe contarei tudo sobre
Ascalus,
Valantius
mirou Conan com um olhar calculista, e logo sinalizou para um de seus homens.
O homem
hesitou por um momento, e então devolveu o cinto da espada de Conan. Conan
afivelou o cinto, e grunhiu de satisfação enquanto o colocava no lugar,
aliviado em sentir o peso familiar de sua grande lâmina em seu quadril mais uma
vez.
Valantius
seguiu à frente, saindo pela porta, ladeado por seus dois guardas em armaduras.
Conan seguiu, com o caminhar desembaraçado de uma pantera selvagem entre
mastins de guerra. Atrás de Conan, vieram os outros dois mercenários, e o grupo
entrou na câmara adjacente, onde mais dos homens de Valantius estavam sentados
ao redor, murmurando e bebendo, com o ar desanimado de um exército derrotado.
Seus olhos taciturnos miraram Conan, quando este se sentou com Valantius à mesa
que ocupava a extremidade mais distante da longa sala. Velas palpitavam em seus
suportes ao longo das paredes.
Comida foi
trazida para ambos. Valantius comia moderadamente, enquanto Conan devorava e
bebia vorazmente como um urso faminto.
- Juntei-me
aos mercenários de Revas em Zamora – relatou Conan. – Revas foi pago pelos
zamorianos para atravessar a fronteira e assolar o campo ao redor de Yaralet.
Nós não esperávamos uma grande resistência; então, Ascalus veio do sudoeste com
homens suficientes para um pequeno exército. O que ele estava fazendo a esta
distância nordeste de Khorshemish com tal tropa?
“Assumimos a
formação a tempo de enfrentá-los na planície. Eu cavalgava com a cavalaria leve
em nosso flanco direito. Atacamos a infantaria leve dos kothianos, a qual
tentou desbordar nosso flanco, os dispersamos e perseguimos a cavalo pela
planície; e fui separado do meu cavalo entre um amontoado de soldados da
infantaria, que haviam se reorganizado e assustado minha montaria. Eu me
levantei, para me ver cercado por soldados kothianos a pé, guinchando como
fantasmas e tentando perfurar minha barriga com aço kothiano. Matei vários
deles, e o restante fugiu, mas eu estava, naquele momento, ferido na coxa, sem
um cavalo, e o restante da minha unidade havia girado e retornado ao conflito,
deixando-me só na extremidade distante da planície.
“Apoiado sobre
minha espada, assisti ao desdobrar da batalha e as forças de Revas lutaram bem,
por algum tempo.
“Então, após
dispersar a cavalaria de Revas, Ascalus liderou sua própria cavalaria num contra-ataque
ao flanco esquerdo de Revas. Ascalus atacou, cambaleou, recuou e então quebrou
os mercenários ali. Eu assistia do outro lado da planície, enquanto o resto dos
zamorianos debandava e fugia como espuma diante do avanço dos cavaleiros kothianos
de Ascalus.
“Mas Ascalus
não os perseguiu por muito tempo, nem ficou muito tempo no campo após isso.
Apesar de termos ganhado, suas tropas foram terrivelmente espancadas, e os
homens de Ascalus saquearam e seguiram para o sul.
“Na hora em
que manquei de volta ao campo, não havia uma bugiganga que não tivesse sido
saqueada. De lá, vim para Yaralet”.
Valantius deu
uma risada cínica:
- Então, você
está com os zamorianos afinal. Você é um patife honesto. Eu poderia tê-lo
executado como um espião zamoriano.
- Ah, não sou
espião – rosnou Conan. – Não tenho grande amor pelos zamorianos, após eles
terem me perseguido desde Shadizar por certos roubos que fiz. Roubei um cavalo
fora de Shadizar, e foi por isso que me juntei a Revas. Eu já estava cheio das
intrigas fedorentas das cobras daquela cidade repugnante, e resolvi me tornar
mercenário por um tempo.
- Isso parece
bastante provável – disse Valantius. – Quem ia contratar um hiperbóreo como
você para ser um espião nesta região?
Os olhos de
Conan arderam com uma chama súbita:
- Por Crom,
não sou um cão hiperbóreo! Sou um cimério!
- Não sei nada
sobre cimérios – disse Valantius, com um gesto de dispensa. – Mas uma coisa eu
sei. Preciso de todos os homens que eu puder conseguir. Se você é um
mercenário, vou lhe contratar então. Revas me fez um favor quando atravessou a
fronteira, pois Ascalus é um velho inimigo de minha família e estava a caminho
de nos atacar aqui em Yaralet, para resolver um antigo rancor. Ele poderia ter
simplesmente ignorado o exército de Revas e vir diretamente para cá, mas assim
ele teria um inimigo às suas costas e uma explicação para dar ao Rei sobre o porquê
de ter ignorado os incursores.
“Não, eu teria
até pago umas boas moedas para Revas, para ele vir quando veio. Mas o que você
diz? Vai se juntar a mim?”.
Conan olhou ao
redor da sala escura, para os rostos desanimados dos homens de Valantius:
- Parece que
vocês já estão do lado perdedor do que quer que esteja acontecendo aqui em Yaralet. Escondidos
em sua própria cidade, como rebeldes. O que aconteceu com seu pai Altarus?
- Meu pai,
Altarus, foi assassinado por um traidor – disse Valantius. – Esse traidor é o
Príncipe Than de Ophir.
- Já ouvi
falar nele – murmurou Conan. – Ele foi exilado de Ophir, por causa de intrigas
contra os irmãos.
- Sim – disse
Valantius. – Bem, logo depois que fugiu da corte ophiriana, ele solicitou
refúgio aqui em Yaralet e se ofereceu para servir meu pai. Veio com 100 cavaleiros
e se provou útil em nos ajudar a subjugar os insurgentes zamorianos, os quais
ainda assolavam as montanhas ao redor de Yaralet. Não nos deu motivo para
desconfiar dele, e todos nós imaginamos que suas ambições estivessem reservadas
para o trono ophiriano.
“E foi assim
que as coisas deveriam ter continuado. Então, do coração do sul negro, veio um estudioso
stígio de estatura mediana, chamado Atalis. Vestia uma túnica, estava aleijado
por uma estranha doença e vinha acompanhado por uma escrava shemita. Mas ele
tinha uma personalidade magnética e falava com prudência sobrenatural. Meu pai
levou Atalis para dentro de sua corte. Com sua ajuda, insurgentes zamorianos,
tanto nas colinas quanto na própria cidade, foram extirpados com precisão
sobrenatural. Com sua ajuda, descobrimos que até mesmo o Rei de Turan tem
espiões em nossa cidade.
“Mas, como
descobrimos mais tarde, Atalis tinha suas próprias ambições, bem além do posto
que lhe fora oferecido na corte do meu pai. Tanto Atalis quanto o Príncipe Than
têm se encontrado secretamente, e suas intrigas resultaram numa traição que matou
meu pai; eu e minha irmã fugimos, e os remanescentes de minhas forças leais
rastejam pela cidade, nos esconderijos que haviam sido anteriormente usados
pelos insurgentes zamorianos”.
- E quanto aos
demônios alados? – perguntou Conan.
- Não sei nada
deles – disse Velantius. – Apareceram logo depois que perdi meu castelo para o
traidor Than. Mas, tão certo quanto a morte existe, aquele maldito stígio tem a
ver com isso.
- Quantos
homens eles têm?
- Meu pai era
um governante rude e impopular. Quando ele foi morto por Than, a maioria
alegremente ficou do lado de seu assassino. Than é muito amado pelo povo, e
teve pouca dificuldade em consolidar seu governo. Seus homens superavam os meus
por três a um, mas muitos deles estão espalhados por toda a cidade.
- Por que
vocês não admitem a derrota, e se reagrupam para lutar outro dia?
- É isso o que
você faria? – perguntou Velantius.
- Eu
cavalgaria para dentro das colinas, resistiria lá, atacaria de surpresa e os devastaria
– disse Conan. – Eu atrairia suas forças para emboscadas e os desgastaria. Contrataria
mercenários e faria pactos com os kozakis, oferecendo-lhes abrigo e pastoreando
em minha terra, se eles me ajudassem. Eu faria tudo isso, até levar a melhor. –
Conan bateu na mesa com seu punho maciço. – E então, eu atacaria!
- É um bom
plano – disse Velantius. – Mas não o que eu escolheria.
- Bah – disse
Conan. – Como poderão vencer, escondendo-se como ratos? O que me oferecerão, se
eu me juntar a vocês?
- O cavalo,
armas e armadura que você escolher, e uma sacola com ouro suficiente para lhe
manter em boa vida por um ano.
O solene
murmúrio entre os homens de Velantius havia se transformado num tenso silêncio
de expectativa. Conan sentiu os olhos de cada homem na sala sobre ele. Sozinho
neste antro de chacais, ele não poderia se arriscar a ofender Velantius,
recusando sua oferta.
Conan abriu um
esgar lupino de satisfação:
- Tudo bem;
vou me juntar a vocês. Então, qual o seu plano?
A luz das
velas palpitava no rosto aquilino de Valantius, quando ele se ergueu para
dirigir-se aos seus homens:
- Pois bem,
aproximem-se e escutem todos, pois isto é o que faremos...
5) Rescaldos da Stygia
AS SOMBRAS SE
MOVIAM selvagemente nos muros brilhantes dos bueiros sob Yaralet. Velantius e
seus homens andavam furtivamente à luz de tochas, através daqueles confins
úmidos, em silêncio sombrio – um silêncio interrompido apenas pelos passos
arrastados de suas botas de couro na pedra, e pelo tinir abafado de seus
apetrechos. Conan olhava com desaprovação para o canal mal-cheiroso, que corria
preguiçosamente à luz fraca. Ele andava à frente do grupo, com Velantius e seus
tenentes, agora blindado em aço kothiano.
- Há três
entradas subterrâneas para o castelo – disse Velantius. – A que leva diretamente
à torre de menagem do castelo, pela qual originalmente escapamos durante o
golpe, é conhecida por Than e, sem dúvida, trancada e vigiada. Mas nosso
empreendimento depende totalmente dele não conhecer as outras duas.
Eles chegaram
a uma junção, onde Velantius dividiu seus homens e enviou um grupo sob a
liderança de seu segundo-em-comando, enquanto ele e o restante de sua força
prosseguiram, com Conan, ao longo do canal principal. Dali a pouco, desceram
uma pequena passagem lateral, a qual terminava no que parecia ser uma parede
sem aberturas, situada dentro do arco. Velantius se estirou para o alto, além
do limite daquele arco, e ouviu-se um estalo mudo; então, ele pôs o ombro
contra os tijolos, e a seção da parede sob o arco rangeu lentamente para
dentro.
- Os
zamorianos adoram seus segredos e sagacidades – disse Valantius, enquanto
entrava no corredor escuro que se abriu.
O grupo agora
molhava suas tochas, e tateava ao longo desta nova passagem, a qual se
inclinava gradualmente em direção a outra entrada oculta. Esta saía nos fundos
de uma sala de pedra, na torre sul do castelo. O luar se infiltrava através de
uma janela gradeada, situada lá no alto. A sala de pedra estava vazia, e dava
sinais de ter sido pilhada. Valantius se dirigiu à escadaria em espiral, e o
grupo subiu silenciosamente.
Eles saíram
numa caserna abandonada, cuja porta externa estava aberta. Valantius recuou e
praguejou em voz baixa, ao olhar para fora:
- Pelos
deuses, que coisa dos infernos é esta?
Conan se
juntou a Valantius na porta, e estremeceu diante da carnificina após a mesma.
Sob o luar, alastrados
por todo o pátio, sobre lajes manchadas de sangue, Conan viu inúmeros cadáveres
que eram pouco mais que ossos ensangüentados. Seus sentidos cambalearam diante
do fedor de carniça, que pairava como um miasma pelo local, bem pior que
qualquer campo de batalha que ele já tivesse conhecido. Os demônios alados se
agrupavam em conclave infernal ao redor dos corpos de suas vítimas mais
recentes. Alguns guinchavam como condenados e se debatiam fracamente, enquanto
os demônios se empanturravam com a carne dos vivos; outros jaziam moles e sem
oferecer resistência, mesmo sendo devorados vivos. Os demônios se voltaram para
olhar os dois homens na portada, os olhos ardendo de malevolência, garras e
rostos manchados com a evidência de seu horrendo banquete.
Mais uma vez,
uma fúria cega e irracional se ergueu no peito de Conan. Um ódio atávico e
primordial o encheu, puxado dos mananciais de um legado ancestral, do qual seu
pensamento mal estava consciente, mas do qual seu sangue e alma se lembravam.
Ele investiu pátio adentro com a espada desembainhada, seguido por Velantius e
seus homens.
Os alados
alçaram vôo, e o ar ficou repleto de seus gritos. Conan, Velantius e os
kothianos se encontravam agora num círculo irregular, preparados para
enfrentá-los. Os alados remoinhavam; logo, um a um, eles pousaram no chão e se
emplumaram num círculo negro, no centro do pátio.
As vítimas
abandonadas jaziam por toda a parte, lamentando, gemendo e chorando, seus
corpos caricaturas quebradas e ensangüentadas. Conan, Velantius e os kothianos
se espalharam pelo pátio e os libertaram de seus tormentos, da única forma que
podiam. Embora fosse um ato de misericórdia, parecia um matadouro.
Quando seu
trabalho pavoroso estava finalmente terminado, eles se aproximaram do poço. Era
minuciosamente construído de uma estranha pedra negra e, quando Conan olhou
para dentro de suas profundezas vertiginosas, sua mente deu voltas, como se ele
mirasse um vasto golfo cósmico. A escuridão no poço transpirava malevolência,
como se inúmeros horrores disformes se reunissem lá, além daquele véu sem luz.
- Sob as
fundações de Koth, os rescaldos da Antiga Stygia ainda ardem – disse Valantius.
– Há poços como este por toda Koth, e por onde mais o antigo império stígio
tenha se espalhado, embora alguns digam que eles ainda são mais antigos. São
aparentemente indestrutíveis. Nós os vedamos o melhor que pudemos, como de fato
este havia sido selado na última vez em que eu o vi.
Os olhos de
Conan eram fendas de fogo sinistro, enquanto esquadrinhavam as escuras torres
vazias e ameias que se erguiam ao redor deles. As únicas luzes vinham de
janelas na própria e vasta torre redonda, a qual era construída na muralha
norte, e no alto da torre onde o estranho fulgor ainda flamejava. Um silêncio
mortal agora pairava sobre o local. Parecia que tudo, exceto a torre, fora
abandonado pelos alados.
Conan deu a
volta sem dizer uma palavra, e se dirigiu à escada que levava às ameias.
- Vamos manter
nosso plano original – disse Velantius. – Vá com Conan, Amalrus. Leve seus
homens até as ameias, e entre na torre pelo nível mais alto. Eu me encontrarei
com os outros, e juntos entraremos na torre por baixo.
Amalrus se
dirigiu às ameias, seguido pelos dez homens designados para ele.
Velantius
pegou o restante de seus homens, e juntos marcharam através do pátio, em
direção à torre noroeste.
*
* *
Conan avançou
até o pequeno portão que guardava a entrada da torre das trincheiras; a torre
era projetada para ser independentemente defensível, caso o resto do castelo
fosse tomado. Conan viu uma figura pálida, observando desde uma janela estreita
acima da guarita, a qual sumira rapidamente, quase tão logo ele a vira. A porta
da guarita era reforçada por faixas de ferro. Ele torceu-lhe a maçaneta de
ferro e empurrou, mas ela não queria girar. Aguardou pela chegada de Amalrus, e
este soltou um pequeno anel de chaves do cinto e destrancou a porta. Conan a
empurrou e olhou para dentro.
Lá dentro, ele
viu um pequeno saguão, do outro lado do qual havia outra porta trancada de
ferro, a pouca distância. Olhando para cima, viu oito buracos no teto, cercando
um buraco maior no centro. No caso de um cerco, esta pequena entrada seria um
buraco infernal, onde lanças seriam enfiadas nos invasores vindos de cima, ou
óleo fervente seria derramado sobre os defensores. Conan deslizou para dentro,
mantendo-se próximo à parede, até alcançar a outra porta. O silêncio era total,
embora uma luz fraca brilhasse sob a soleira.
Conan
encontrou a outra porta, também trancada. Amalrus e seus homens seguiram Conan,
e Amalrus usou novamente sua chave. Eles ouviram o caminhar arrastado de pés
calçados em sandálias, vindo de cima. Um pequeno jarro de porcelana foi lançado
através do buraco no teto, atingindo um dos homens de Amalrus e se despedaçando
no lado de seu elmo, molhando o lado de seu rosto e pescoço com um líquido
viscoso. O homem gritou quando o líquido começou a fumegar sobre sua pele.
Conan não
perdeu tempo. Ele irrompeu pela porta, para dentro da sala adiante, com a
espada desembainhada, pronto para qualquer coisa e seguido por Amalrus e o
restante dos kothianos, dois dos quais haviam agarrado seu companheiro que
guinchava e o levado com eles. O lado direito do rosto do homem sibilava,
fumegava, borbulhava e se dissolvia horrivelmente diante dos olhos deles. Ele
caiu para a frente, rolou sobre as costas e aos pés deles, os dedos agarrando
convulsivamente o ar em agonia antes de morrer, com metade do rosto e pescoço
devorados pelo fluido torpe. Até mesmo seu elmo de aço e a proteção metálica em
seu ombro estavam esburacados e corroídos.
Nenhum traço
da reviravolta que sentiu apareceu no rosto de Conan, quando seus olhos
varreram a câmara. Tochas meio queimadas palpitavam em seus encaixes sobre as
paredes. Suas luzes delineavam as formas de oito homens que se sentavam imóveis
a uma longa mesa que ocupava o centro da grande sala. Vestiam a armadura e os
opulentos enfeites de guardas reais ophirianos. Os oito homens não prestaram
atenção aos intrusos, e havia algo estranho na maneira como eles se sentavam,
tão imóveis e silenciosos, mirando sem piscar e com pálidos olhos injetados de
sangue.
Conan, Amalrus
e os nove kothianos se aproximaram cautelosamente da mesa, com lâminas na mão.
Conan viu os peitos dos oito homens subir e descer enquanto respiravam, mas, em
seu estado de transe aparente, não davam atenção a ele nem aos seus
companheiros.
- Estes são
alguns dos homens do Príncipe Than – disse Amalrus. – Mas eles não estavam
assim antes. Quando ele...
Amalrus parou
bruscamente, quando uma figura pálida saiu andando das sombras atrás da câmara.
Era uma shemita de cabelos negros que ali estava, com um robe pálido amarrado à
cintura. Ela tinha um belo rosto, e seus tristes olhos assombrados estavam
pintados de kohl, à moda stígia.
Aqueles olhos brilhavam com o fogo e a intensidade do desespero.
- Você! –
gritou Amalrus.
A mulher
ignorou Amalrus e pronunciou uma ordem truncada em Stígio. Ao som de sua
voz, os oito ophirianos irromperam em terrível ação. Cadeiras foram derrubadas,
quando eles imediatamente se ergueram como um só, puxaram suas espadas e caíram
sobre os kothianos em frenesi demoníaco. Uma grande mistura de sons preencheu a
câmara, e os kothianos praguejaram e golpearam, enquanto o aço de Koth reluzia
e faiscava contra o aço de Ophir.
Três kothianos
caíram ao primeiro golpe, antes que pudessem atacar, tamanha era a fantástica
velocidade e intensidade do ataque ophiriano. Amalrus correu sua espada dentro
do abdômen de seu oponente, num golpe que teria derrubado um homem normal; mas
o ophiriano simplesmente se livrou cambaleando da lâmina, e atacou
furiosamente, aparentemente esquecido do horrível ferimento.
Conan se
defendia com dificuldade de dois ophirianos ao mesmo tempo. Não conseguia
ganhar espaço, enquanto se esforçava para desviar o aço maligno que procurava
sua pele. Ele recuou e quase tropeçou numa cadeira caída. Agarrou a pesada
cadeira com a mão livre, e a arremeteu em cheio no peito do ophiriano à sua
direita. A cadeira se estilhaçou com a força daquele terrível golpe, e o
ophiriano girou para trás e caiu sobre um dos joelhos, mas nenhum palpitar de
reconhecimento de qualquer tipo de dor apareceu em seu olhar que não piscava. Conan
aparou um golpe do ophiriano à sua direita, e então lhe passou a rasteira com
os restos da cadeira quebrada. O ophiriano caiu e, com uma praga, Conan desceu
sua pesada lâmina sobre a cabeça dele, partindo tanto elmo quanto crânio. Conan
deu a volta e encarou o primeiro ophiriano, o qual havia recuperado o
equilíbrio e investia sobre ele. Por um breve instante, suas lâminas colidiram
num soar brilhante, e então Conan abriu a guarda de seu oponente e lhe
atravessou o pescoço; ele caiu morto ao chão. No corpo-a-corpo, nem mesmo a
vitalidade não-natural daquele demônio desvairado havia sido páreo para a fúria
selvagem do cimério.
Conan olhou ao
redor da câmara. A luta fora breve, frenética e mortal. Todos os ophirianos
estavam mortos e, dos kothianos, só restava Amalrus, de pé, com a malha
ensangüentada. Ele arrancou sua espada do cadáver de seu adversário e examinou
a matança.
Os dois homens
procuraram ver se algum dos outros kothianos ainda vivia, mas nenhum deles
havia sobrevivido. O único homem que ainda se movia entre a pilha de mortos
naquela câmara era um dos ophirianos, o qual jazia olhando estranhamente para o
alto, golpeado por ferimentos que teriam matado por três vezes um homem normal.
Conan o matou onde ele estava.
- Ishtar! –
praguejou Amalrus. – Isto é um lugar de diabolismo. Vamos nos juntar novamente
a Valantius. Não podemos prosseguir sozinhos.
Conan grunhiu
e sacudiu sombriamente a cabeça cabeluda:
- Nossa tarefa
era matar o stígio.
Ele se dirigiu
aos fundos da câmara, de onde a mulher havia emitido seu chamado misterioso. A
princípio, não notou qualquer sinal dela, nem qualquer aparente meio de saída,
até sentir um traço fraco de perfume stígio no ar, próximo a uma tapeçaria.
Conan empurrou esta para um lado, para se ver cara a cara com uma alcova vazia;
mas, com seu conhecimento das astúcias zamorianas, não demorou muito para que
ele descobrisse a pequena pedra encaixada na parede, a qual cedeu ao seu toque,
e a parte de trás da alcova girou silenciosamente para dentro. Conan pegou uma
tocha gotejante de um encaixe próximo, e avançou escuridão adentro.
Amalrus
praguejou e seguiu.
*
* *
Na luz
palpitante da sua tocha, Conan viu uma escadaria estreita em espiral, guiando
tanto para cima quanto para baixo na escuridão. Não foi por decisão consciente
que Conan escolheu descer; logo, ele e Amalrus chegaram a outra passagem
estreita, enquanto os degraus continuavam seguindo para dentro da escuridão
abaixo. Mais uma vez, Conan sentiu a insinuação de um perfume stígio. Ele abriu
a entrada oculta no final da curta passagem, e depois dela havia uma tapeçaria,
de cuja base saía uma luz fraca. Conan descartou a tocha e arrastou a tapeçaria
para o lado.
Ele olhava
para uma câmara vasta, circular e com pilares, com paredes altas revestidas por
ricas tapeçarias. Lâmpadas a óleo brilhavam na escuridão, sua luz fraca incapaz
de afastar as sombras que pairavam ao redor do elevado teto abobadado, e atrás
dos largos pilares de meia-cana. Todo o local parecia prenhe de ameaça, e a
mente de Conan imaginava fileiras de inimigos ocultos na escuridão. Logo à sua
frente, havia a parte posterior de um trono. Enquanto avançavam, viram uma
figura parda e de estatura média sentada no trono, mas com as inconfundíveis
feições da classe stígia dominante. Vestia apenas uma longa tanga de seda
vermelha naquele ar frio, e sua pele estava bastante tatuada com hieróglifos e
símbolos arcanos. Seus escuros olhos sombrios estavam abertos e aprisionados
num transe, como se ele mirasse alamedas invisíveis, e sua respiração parecia
impossivelmente lenta, quase indetectável. De cada lado do trono, havia
pequenos incensórios de latão, subindo de cada um a fumaça em espiral de folhas
de lótus negro queimando, e Conan e Amalrus ficaram tontos com o cheiro disso.
- Este é ele –
disse Amalrus –; aquele que veio até nossa corte como Atalis o Erudito.
Ambos os
homens ouviram o arrastar de pés calçados em sandálias, e olharam através da
sala, para dentro das sombras atrás dos pilares. Lá, eles viram um banco coberto
por acessórios alquímicos: potes, urnas, jarros, ungüentos, facas, almofarizes,
pilões e pós. O corpo de um guarda ophiriano jazia imóvel sobre uma mesa
próxima.
Amalrus andou
furtivamente, de espada na mão, através da câmara.
- Nekhem! Oh,
acorde, Nekhem! – gritou uma mulher.
- É a escrava
do stígio – sibilou Amalrus. – Vou silenciá-la agora.
- Oh, Nekhem!
Nekhem! – a mulher gritava.
Conan girou de
volta à figura no trono, a qual se sentava em contemplação silenciosa. Sua
mente oscilava com a intoxicação inebriante das fumaças de lótus, e os símbolos
na pele do stígio pareciam se encolher e retorcer grotescamente diante de seus
olhos.
Amalrus
alcançou o banco, onde ele puxou uma tapeçaria para o lado, revelando a
encolhida mulher de cabelos negros. Ela lançou algo em Amalrus, que,
instintivamente, ergueu um braço encouraçado para desviá-lo. O objeto era uma
pequena urna de cerâmica, a qual lhe escorregou do braço e se despedaçou na
parte frontal de seu elmo, molhando o lado de seu rosto e pescoço com um
líquido viscoso. Amalrus soltou um grito agudo, quando o líquido começou a
fumegar em sua pele.
Ele apunhalou,
mas a mulher disparou para o lado, deixando Amalrus agarrando a tapeçaria e
cambaleando, enquanto o lado de seu rosto sibilava, fumegava, borbulhava e se
dissolvia horrivelmente.
Conan
praguejou e correu em direção à mulher, a qual se agarrou ao banco, pegando
outra urna. Conan parou e tirou o manto, colocando-o sobre o braço como um
escudo improvisado, e então avançou cautelosamente.
Amalrus caiu
para a frente e rolou sobre as costas, os dedos agarrando convulsivamente o ar
em agonia, antes que ele se sufocasse e morresse, com metade do rosto e pescoço
consumidos pelo líquido torpe. Até mesmo seu elmo de aço, e a proteção metálica
em seu ombro, estavam esburacados e corroídos.
- Nekhem! –
gritou a mulher mais uma vez; então, ela lançou a urna em direção a Conan.
O projétil se
espatifou contra seu braço protegido pelo manto. Ele imediatamente o descartou,
deixando-o numa pilha fumegante sobre o chão, e, com mais duas passadas,
alcançou a mulher, enquanto ela tentava pegar mais uma das urnas mortíferas.
Ele a agarrou e girou para longe do banco, lançando-a ao chão diante dele.
Então, agarrou-a rapidamente pelo braço e a puxou, colocando-a novamente de pé
com uma das mãos encouraçadas.
Era uma
shemita, com longos cabelos negros e pele cor-de-oliva. Tinha um belo rosto, e seu
corpo flexível e escultural sob o robe pálido – este último, preso por um cinto
largo e tecido à maneira de brocado. Ela trazia nenhuma arma que ele pudesse
ver.
- Me largue! –
ela exigiu, num tom incomumente imperioso para uma escrava. – Você é impróprio
para tocar em alguém como eu, que dancei nas cortes de Askalon, com Bêlit e Akuri!
Além disso, você chegou muito tarde. Veja: Nekhem desperta!
Conan girou a
mulher consigo ao se virar. O stígio havia se levantado do trono, seu contorno
engrinaldado com vapor e, quando ele disse um encantamento num estranho
dialeto, um halo de jade irradiou de sua mão erguida. Anéis do lótus se
enrolaram em seus dedos, num verticilo que se contorcia. Conan lançou a mulher
para o lado e saltou pela câmara. O stígio lançou o braço para a frente com uma
ordem sussurrada, e a nuvem brilhante voou até o cimério.
Conan pulou
para o lado. Mas, quando ele se moveu, a nuvem se moveu com ele, envolvendo-lhe
a cabeça, forçando a si mesma como uma coisa viva dentro de sua boca e narinas.
Conan golpeou selvagemente em direção ao stígio, mas, com seus olhos turvos e
sua visão agora obscurecida pela bruma de jade, o stígio deu um passo para
trás, afastando-se de sua lâmina, e seus golpes nada acertaram. As fumaças
enfeitiçadas queimavam na boca e olhos de Conan, em suas narinas e pulmões, e
sua mente boiava com visões monstruosas, seus sentidos remoinhavam num
turbilhão fantasmagórico. Ele caiu inconsciente ao chão e ficou imóvel, com
pequenos feixes do vapor do lótus negro lhe saindo em espiral da boca.
- Nekhem. – O
alívio inundava a voz da shemita, enquanto ela corria através da câmara e
lançava os braços ao redor do stígio.
- Que este
homem seja o terceiro – disse Nekhem, descendo o olhar para a figura caída do
cimério. – Eu preferiria que fosse Velantius, mas agora não é hora. Devemos completar
o ritual.
“Meu espírito
planou através dos golfos anoitecidos, e fundi pensamentos com um demônio da
escuridão. Breve, até mesmo Thoth-Amon e o poder do Anel deixarão de ser uma
ameaça, ó, Kihya. Talvez então, nós possamos conhecer a paz”.
Então, ele
ergueu-lhe o queixo e a beijou antes de lhe devolver o abraço.
6) A Sombra na Chama
CONAN ACORDOU,
PARA se ver ainda com elmo e armadura, mas sua espada havia sumido. Uma grossa
corrente partia de uma larga coleira de ferro, trancada ao redor de seu pescoço
e presa a um grande anel de ferro.
Acima dele, as
estrelas brilhavam, e uma brisa quente lhe agitava o cabelo. Estava no teto do
castelo acima de Yaralet, no centro do qual um solene fogo-de-bruxa ardia numa
grande tigela de bronze, encaixada sobre uma estrutura de ferro. Vistas através
daquele fulgor doentio, as estrelas pareciam palpitar estranhamente, e a luz da
chama tinha uma característica pálida, apesar de seu brilho, como se ardesse
parcialmente em reinos invisíveis. Ao lado, jaziam outras duas figuras, também
acorrentadas. Igualmente próximos, se erguiam dois dos guardas ophirianos, como
sentinelas silenciosas, com hieróglifos desbotados escritos em sangue sobre
suas testas.
Um dos outros
cativos era uma mulher em roupas comuns, enroscada e de costas para ele. Logo
após, havia um homem alto e esbelto, com as roupas de um nobre. Ele se sentava
quieto, olhando tanto a mulher quanto o cimério, através de olhos cinzas que
possuíam uma qualidade de aço, a qual desmentia a leve sugestão afeminada de
seus cachos negros.
Conan se
levantou, e os guardas silenciosos pareciam não lhe dar atenção. A corrente era
longa o bastante para que ele se erguesse, mas não mais do que isso, de modo
que ele a agarrou com suas enormes mãos encouraçadas, entrelaçando os dedos
através dos elos, e puxou, mas a pesada corrente resistiu aos seus esforços.
Tendo verificado que estava além da sua força quebrar a corrente, ele não
desperdiçou mais energia tentando, mas se sentou na pedra, seus olhos azuis
ardendo com o fogo incandescente de um lobo capturado.
O som da
armadura de Conan e os estalos da corrente fizeram a mulher se mover, e ela se
virou e olhou para Conan, cuja expressão sombria se suavizou um pouco quando
ele a reconheceu:
- Nissa. Eu vi
quando lhe levaram. Pensei que estivesse morta.
- Também
pensei o mesmo de você, até lhe trazerem para cá – ela disse. – Oh, Conan,
seria melhor se tivéssemos sido mortos. O stígio é um demônio, eu sei disso.
“Fui carregada
para dentro do pátio, onde vi uma cena de horror além da imaginação. Então,
guardas saíram do castelo com longos piques (*), e fizeram as
criaturas aladas recuarem. Levaram-me para dentro do castelo, onde fui
aprisionada com outros que também foram capturados”.
Conan quis
contar a Nissa sobre Velantius, que naquele momento devia estar abrindo seu
caminho à força para cima, desde as profundezas do castelo, se ele e seus
homens ainda estivessem vivos. Mas ele ficou calado por enquanto, não querendo
trair a presença de Velantius para os ophirianos.
Havia um pequeno
alojamento na beirada do castelo, e Conan viu duas figuras saírem de sua porta.
O stígio caminhava em direção à grande porta de bronze, ainda vestido apenas
com uma longa e rica tanga, bordada com fios de prata, e seguido pela shemita.
Ele trazia um longo bastão, e os símbolos sobre sua pele escura brilhavam
estranhamente à luz daquela chama etérea.
Ao ver o
stígio, o nobre alto se levantou:
- Nekhem,
solte-me. Com meu sangue real e sua magia, eu posso ser Rei de Ophir. Por que
desperdiçar inutilmente minha vida assim, quando posso lhe ajudar a se tornar
co-governante de um reino?
O stígio
dirigiu seu olhar sombrio sobre o nobre, e falou em tom suave:
- Nada tema,
Príncipe Than. Seu sangue não será desperdiçado. Mas nenhum domínio ou exército
mundano pode me proteger do meu inimigo. Nem o aço, a intriga, a astúcia ou a
furtividade. Apenas a profunda sabedoria das trevas. Somente minhas proteções e
sacrifícios místicos. E preciso de mais um sacrifício.
- Nekhem!
Solte-me agora! – O Príncipe Than puxava sua corrente em vão, mas Nekhem virou
as costas para o príncipe e encarou a chama.
O stígio abriu
bem os braços e começou a entoar numa linguagem desconhecida para Conan. Ao som
de sua voz, a chama começou a palpitar. Não havia vento, além da brisa suave
que soprava ao redor do castelo, mas algo fazia o estranho fogo se retorcer e
açoitar, como se à mercê de uma tempestade.
Conan olhou
para cima, para ver a noite semeada por estrelas estranhas, como se houvessem
dois céus, e sua pele se arrepiou com o horror sobrenatural diante da impossível
negação de sanidade, posta diante dele. Então, uma forma escura se elevou de um
lado a outro daquelas estrelas, ficando maior a cada instante, até algo enorme
pairar na escuridão além do castelo, sua forma medonha delineada pela luz
misteriosa do fogo-de-bruxa, suas penas esfarrapadas batendo no ar quente e
abafado, como as asas de um condor gigante.
Não se
assemelhava a nada que Conan já tivesse visto, nem ele teve qualquer idéia de
referência com a qual comparar. Sua mente recuava diante da própria noção de
que tal coisa existisse – uma blasfêmia no rosto da criação, que repelia toda
razão e ameaçava enviar a mente que tentasse tomar conhecimento daquilo para
girar dentro de golfos remoinhantes de loucura. E mesmo assim, Nekhem se voltou
calmamente em direção a ela, ergueu seu bastão e acenou com uma única palavra,
a cujo convite o horror nascido da noite pousou sobre o teto do castelo e
fechou as asas.
A mente de
Conan estava inundada com a malevolência de sua presença. Ele puxou sua
corrente como um tigre enlouquecido. Ainda incapaz de partir os elos, ele se
lançou sobre um dos ophirianos, numa tentativa desesperada de se apoderar da
espada do homem, mas este ficou impassivelmente a postos, com o olhar vago, a
centímetros do alcance do cimério.
Nekhem
sussurrava e cantava em voz baixa para o ser estranho. Sua silhueta cheia de
símbolos se erguia como uma lasca de relativa normalidade, diante do que
parecia ser um enorme ferimento negro no tecido da sanidade, através do qual a
loucura viva havia se derramado e tomado forma.
*
* *
Uma sombra
tremeluzia na chama que queimava na grande tigela de bronze, uma sombra que se
tornava um fantasma. A imagem que apareceu lá era de um homem alto e escuro –
stígio como Nekhem –, vestido em roupas cor de terracota bordadas a ouro,
tachonadas com lápis-lazúli. Suas feições aristocráticas estavam entalhadas com
uma malícia e arrogância tão arraigadas, que ele próprio seria inconsciente
desta qualidade neste aspecto. A imagem sombria daquele homem na chama lançou
uma risada cínica, com toque de loucura, e Nekhem girou em direção ao fantasma;
seu rosto ficou pálido, e seus olhos se arregalaram de medo e reconhecimento.
- Thoth-Amon!
– ele gritou.
- Nekhem-ptah
– falou Thoth-Amon, sua imagem palpitando como a sombra de um abutre dentro do
fogo. – Pensei que você tivesse morrido há muito tempo, até agora, destruído
pelas maldições que enviei para você, desde a corte do Rei Ctesphon. Que ironia
este ritual ter sido o próprio meio pelo qual lhe encontrei.
“Saiba que
você é o último daqueles que se revoltaram contra mim. Quando você se for,
nenhum outro ousará me desafiar. Com o poder deste anel, posso realizar, em
momentos, aquilo que exige grandes rituais e muitos sacrifícios de um
feiticeiro menor”.
A imagem de
Thoth-Amon ergueu uma mão, sobre cujo dedo havia um anel curioso, lavrado na
forma de uma serpente escamosa, enrolada em três anéis, com a cauda na boca.
Parecia ser feita de cobre escuro, seus olhos duas gemas amarelas que brilhavam
perniciosamente. A própria imagem de Thoth-Amon parecia diáfana, mas o anel
parecia tão sólido quanto se existisse lá, dentro do fogo palpitante, e não
sobre o dedo de seu portador, a mais de mil léguas ao sul.
- Thamu
Koteph, Thamu da Escuridão! – ele entoou, e aquele estranho horror se voltou
diante do som de sua voz. Então, Thoth-Amon começou a falar encantamentos
solenemente: – Pelo Anel da Serpente de Set, eu, Thoth-Amon, lhe ordeno. Mate
todos neste teto, começando por ele! – E, com um dedo espectral, Thoth-Amon
apontou Nekhem-ptah.
Nekhem saltou
para a frente com um grito desesperado, e girou seu bastão através da chama,
num arco brilhante. A imagem de Thoth-Amon tremulou, e o fogo translúcido
queimou vazio mais uma vez.
Uma garra
tenebrosa moveu-se rapidamente, e Nekhem foi agarrado por aquele chamado Thamu
Koteph. Ele gritou e se debateu no aperto daquele horror negro, e os símbolos
em sua pele escura começaram a resplandecer, bruxulear e sumir um a um,
enquanto ele enfiava seu bastão na massa escura que procurava engolfá-lo.
A shemita
Kihya gritou em Stígio, e os dois ophirianos correram para diante, puxando suas
espadas. Quando um deles passou perto, Conan usou seu punho como um martelo no
rosto do homem, derrubando-o ao chão. Conan pegou a espada do homem e começou a
golpear a corrente.
O outro
ophiriano correu adiante, e ele também foi agarrado por Thamu. Ele golpeou
desvairadamente com sua espada, antes que fosse lançado para dentro do grande
bucho negro que se abria diante dele. Thamu flutuou como uma sombra em direção
a Conan e avultou acima dele, como uma onda de ébano. Dedos gelados, numa
enorme mão negra, fluíram ao redor de Conan, como noite líquida. O cimério
estava preso num aperto semelhante ao de um píton, mas ainda mais sinuoso que o
de qualquer cobra. A corrente foi esticada, e Thamu a puxou e quebrou com
aparente facilidade.
Conan foi
erguido em direção a Thamu Koteph. Sua espada reluziu repetidamente para baixo,
o gume da lâmina resvalando da carne do braço de Thamu, como se batesse em
granito líquido. Do que quer que Thamu fosse composto, parecia ser de alguma
substância obscura, desconhecida pelo homem.
Conan olhava
para um rosto de configuração tão estranha, que mal parecia ser um rosto. Ele
olhou fixamente para dentro de olhos que o miravam com fosca e desinteressada
malícia cósmica, acima de uma boca semelhante a um corte escancarado de profunda
escuridão. Aqueles olhos sugeriam vastas profundezas ímpias preenchidas com
criaturas similares, cuja própria existência zombava da futilidade do homem. Um
sopro de hálito fétido foi lançado sobre Conan, seu sangue se congelou em suas
veias, e ele praguejou e golpeou.
À sua direita,
Conan viu o bastão do stígio cravado na carne de Thamu. Passando sua espada da
mão direita para a esquerda, ele arremeteu, seus dedos encouraçados se fechando
ao redor do bastão com runas. Então, golpeou Thamu tanto com a espada quanto
com o bastão. Ao contrário da lâmina, o bastão encerado perfurou a carne de
ébano e um icor doentio verteu dos ferimentos, brilhando estranhamente à luz da
chama etérea. Aquilo fluía como bile fosforescente pela escuridão bruxuleante
da horrível massa de Thamu.
O cimério foi
arremessado no ar. Ele se espatifou a uns seis metros de distância, rolou e
carambolou dentro da parede interna do parapeito, onde jazeu imóvel. Deixara
cair o bastão, mas seu punho de ferro ainda agarrava o cabo de sua espada. Ele
se agitou, gemeu e se ergueu vacilante, os olhos azuis mirando ferozmente,
através de sua cabeleira desgrenhada, para o grande volume escuro que avançava
em sua direção.
- Conan! –
gritou Nissa. O bastão havia caído próximo a ela, e agora ela o erguia e
lançava através do espaço entre eles.
O cimério o
pegou no ar com facilidade instintiva. Mudando o aperto para o meio do bastão,
ele pôs o braço para trás e o atirou como uma lança, com toda a força de sua
poderosa estrutura. O bastão reluziu através do ar da noite e se cravou
profundamente no corpo da criatura. Luzindo com o icor fosforescente de seus
ferimentos, e perfurada pelo bastão do feiticeiro, a entidade chamada Thamu
abriu suas asas esfarrapadas e se ergueu, para voar alto e desaparecer entre as
estrelas.
Conan o viu
partir, com uma expressão quase assombrada no rosto cicatrizado.
- Crom, se
minhas costelas não estiverem amassadas dentro de minhas tripas – ele disse. –
Agora, onde está a chave, para que eu possa tirar esta maldita corrente de meu
pescoço?
Kihya se
agachou ao lado do corpo quebrado de Nekhem.
- Acabou –
Nekhem arfou, enquanto ela lhe erguia a mão. – Estou liquidado, e Thoth-Amon
venceu. Prometa-me... não procure vingança. Pegue o que eu lhe ensinei... e
viva...
A luz
desapareceu dos olhos de Nekhem, e a chama na grande tigela de bronze palpitou,
sua característica sobrenatural desaparecendo, até só ficarem os restos gotejantes
de uma chama agora terrena. Kihya desabou sobre ele, o cabelo negro caindo como
uma cortina tremeluzente e seu corpo atormentado por soluços. Então, ela se
levantou subitamente com os olhos brilhando, seu rosto manchado de khol, e correu até o parapeito. Lançando
um último olhar para o cenário onde jazia seu amante morto, murmurou uma
palavra e se lançou pela beirada.
Conan caminhou
sobre o corpo do stígio e recuperou as chaves que estavam ao redor da cintura
de Nekhem. Libertou-se dos restos de seus grilhões, e então lançou as chaves
para Nissa. Ele olhou por sobre a vista da cidade de Yaralet, onde viu uma
pálida forma de falcão, voando bem acima dos tetos, e além de onde o céu
florescia cada vez mais brilhante contra o horizonte.
Agora quinze
homens sombrios, em malha golpeada e ensangüentada, saíam para o teto do
castelo, liderados pelo Lorde Velantius, todos eles restantes dos 40 que originalmente
haviam se infiltrado na fortaleza. Quatro deles tinham vários ferimentos, e
eram sustentados por seus camaradas. Nissa recuou para dentro da escuridão,
quando Velantius apareceu no cenário. O lorde kothiano viu a forma caída do
stígio, e então olhou para o ainda acorrentado Príncipe Than, o qual havia se
levantado com o afeminado gorro de veludo novamente em sua cabeça.
- Que sorte
lhe encontrar vivo – sibilou Velantius. – Não haverá suspensão temporária de
execução para você. Nem mesmo o resgate de um príncipe pode desfazer o mal, que
você e aquele maldito sacerdote fizeram. Você será levado ao calabouço, para aguardar
minha justiça. E todos que se oporem a mim, aqui em Yaralet, verão sua execução.
Certa
resignação se moveu furtivamente pela forma alta do Príncipe Than, mas a
qualidade de aço nunca abandonou seus olhos cinzas, enquanto ele meditava sobre
as palavras do Lorde Velantius.
Velantius se
voltou para Conan:
- Estou feliz
em ver que você teve sucesso em matar o stígio – ele disse. – Quando passei
pelos corpos de Amalrus e dos outros, achei que todos vocês haviam falhado.
“Neste
momento, meus outros capitães estão retomando pontos-chaves da cidade. Quando o
sol se erguer, brilhará sobre uma cidade novamente devolvida às mãos de minha
família.
“Conan, eu lhe
ofereço um posto como capitão mercenário aqui em Yaralet. Ajude-me
a consolidar meu governo, e irei lhe recompensar. Você será apenas o segundo em
classificação aos meus fiéis capitães e dependentes”.
Conan olhou
feroz e inquietamente para Velantius e seus homens, os quais se encontravam num
esfarrapado semicírculo ao redor de seu Lorde.
- Bah, eu já
tive minha cota desta cidade maldita – ele afirmou rudemente. – Só vou tomar o
que você me prometeu, e cavalgar para longe amanhã.
- Estou vendo.
Você deve entender que não posso deixar um mercenário como você ir embora,
sabendo o domínio incerto que terei sobre esta cidade nas próximas semanas.
Você ficará aqui, até meu governo estar firmemente restabelecido.
Uma nuvem
escura passou pelo rosto cicatrizado de Conan, e ele sacudiu a espada:
- Por Crom, me
dê o que prometeu, e então seguirei meu caminho!
Os cães de
guerra de Velantius se empertigaram diante desta demonstração de truculência do
cimério, e a possibilidade de um conflito sangrento ficou pendurada num fio de
cabelo. O lorde kothiano estava instintivamente acostumado a ter seus comandos
obedecidos. Não lhe passou pela cabeça que Conan poderia estar preparado para
lutar até a morte, por motivos até menores que este.
Então, Nissa
deu um passo à frente:
- Velantius!
- Por Mitra,
Pelana! Pensei que você tivesse morrido durante o golpe de estado.
- Eu teria –
ela disse –, mas este homem me salvou. – Ela se voltou para Conan: – Sinto
muito em ter mentido para você. Meu nome não é Nissa, mas Pelana, e sou irmã de
Velantius. Eu não sabia se podia confiar em você; por isso, menti. Nissa era o
nome de minha criada.
Pelana se
voltou novamente para o irmão:
- Nissa e eu
escapamos, descendo por uma corda da janela de meu quarto, enquanto os homens
de Than golpeavam a porta. Fugimos pela escuridão e através da planície do lado
de fora da cidade. Mais tarde, depois que a lua se ergueu, um demônio alado
caiu sobre nós. Consegui matá-lo, mas ele matou Nissa e me feriu. Segui
caminhando às cegas, mas algo queimava como fogo em meu sangue e caí em
delírio, sendo encontrada por Conan, que me carregou de volta à cidade.
“Ele salvou
minha vida, Velantius, e mais de uma vez. Deixe-o seguir seu caminho, eu lhe
imploro”.
Velantius
abraçou Pelana:
- Será como
você pede, minha irmã. E você me contará tudo o que lhe aconteceu, quando o
tempo e as circunstâncias permitirem.
*
* *
Do lado de
fora da cidade de Yaralet, Conan montava um garanhão baio, vestido em malha
kothiana. Pelana se erguia ao lado da montaria dele e, um pouco distante, seu
pequeno séquito aguardava, acompanhado por dois dos cavaleiros de Velantius a
cavalo.
Pelana falava
suavemente:
- Conan, tenha
cuidado com homens como meu irmão. Há uma selvageria incomum em você, a qual os
incita facilmente ao ódio. A quem eles não conseguem controlar, eles temem; e,
a quem eles temem, eles freqüentemente planejam destruir. Tome cuidado, pois
ele pode colocar assassinos em sua trilha.
Conan grunhiu
e assentiu.
- Para onde
você vai agora?
O braço
musculoso do cimério girou, como se para indicar vastas expansões:
- A leste,
para Turan, ou a oeste, para Coríntia. Talvez eu cruze as estepes até o Mar de
Vilayet, e caminhe entre os bazares brilhantes de Aghrapur, mas também penso em
me juntar aos Companheiros Livres. E quanto a você?
- Embora eu
tenha andado com sedas adornadas por jóias e peles através de palácios
dourados, não tenho nada. Sou pouco mais que uma peça de barganha para meu
irmão, que quer me casar dentro de uma família de inimigos para agir como
espião, para selar uma aliança, ou ambos. Minhas perspectivas sempre foram
assim. Quando acordei de meu delírio e lhe vi sentado ao lado da fogueira,
quando pensei ter perdido tudo, eu estava quase feliz... eu me senti livre...
- Na Ciméria –
disse Conan –, nenhuma mulher se casaria contra a vontade, e desgraçado do
homem que tentar forçá-la.
Conan ergueu
uma mão em adeus, girou sua montaria e cavalgou na direção oeste.
- Adeus, Conan
da Ciméria – disse Pelana tristemente. Então, ela retornou, com seu séquito,
para Yaralet.
FIM
(*) – Pique: Espécie de lança antiga (Nota do Tradutor).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.