(por Robert E. Howard)
Yar Ali
deslizou cuidadosamente seu olhar pelo cano azul de sua Lee-Enfield, rezou para
Alá com devoção e atravessou, com uma bala, o cérebro de um ágil cavaleiro.
- Allaho akbar! – o enorme afegão gritou
de alegria, agitando sua arma acima da cabeça. – Deus é grande! Por Alá, sahib, acabo de mandar outro daqueles
cães para o Inferno!
Seu companheiro
espiou cautelosamente por cima da beirada do buraco que haviam escavado na
areia com as próprias mãos. Era um americano magro e forte, chamado Steve
Clarney.
- Bom
trabalho, velho cavalo. – disse este último – Restam quatro. Veja... estão se
retirando.
Os cavaleiros
de roupas brancas estavam, de fato, cavalgando para longe, juntando-se para
longe do alcance preciso do rifle, como se estivessem numa reunião. Eram sete,
quando atacaram os dois camaradas pela primeira vez, mas o fogo dos rifles no
buraco de areia havia sido mortal.
- Veja, sahib: eles abandonaram a luta!
Yar Ali se
ergueu destemidamente e gritou zombarias para os cavaleiros em retirada; um
deles girou e disparou uma bala que levantou areia a menos de 10 metros do
buraco.
- Eles atiram
como filhos de cães – disse Yar Ali, em complacente auto-estima. – Por Alá,
você viu como aquele velhaco pulou da sela quando minha bala o atingiu? Levante-se,
sahib; vamos segui-los e acabar com
eles!
Sem prestar
atenção a esta proposta escandalosa – pois sabia que era uma das reações
próprias da natureza afegã –, Steve se levantou, sacudiu o pó de suas calças e,
olhando para os cavaleiros – agora pequenos pontos brancos no horizonte do
deserto –, disse pensativo:
- Aqueles
sujeitos cavalgam como se tivessem algum propósito em mente... não parecem nem
um pouco com homens que fogem de uma derrota.
- Sim –
concordou Yar Ali imediatamente, e sem ver nenhuma inconsistência entre sua
atitude de agora e a recente sugestão sedenta de sangue –; eles cavalgam atrás
de outros da raça deles... eles são falcões que não desistem facilmente de sua
presa. Faríamos bem em sairmos logo daqui, sahib
Steve. Eles voltarão... talvez dentro de poucas horas, talvez dentro de poucos
dias... tudo depende da distância onde se encontra o oásis de sua tribo. Mas
voltarão. Temos armas e vidas... eles querem ambas. E veja!
O afegão sacou
a cápsula vazia e introduziu um único cartucho na culatra de seu rifle.
- Minha última
bala, sahib.
Steve
assentiu:
- Restam-me
três.
Os incursores
que haviam sido derrubados das selas foram saqueados pelos próprios
companheiros. Não adiantaria revistar os corpos, que jaziam na areia, em busca
de munição. Steve ergueu seu cantil e o sacudiu. Não restava muita água. Sabia
que Yar Ali tinha apenas um pouco mais do que ele, embora o grande afridi,
criado numa terra árida, estivesse acostumado e precisasse de menos água que o
americano; entretanto o outro, julgado pelos padrões de um homem branco, era
duro e resistente como um lobo. Enquanto Steve abria o cantil e bebia muito
economicamente, ele recapitulava mentalmente a cadeia de eventos que os havia
levado à presente situação.
Errantes,
soldados da fortuna, unidos pelo acaso e atraídos um ao outro por admiração
mútua, ele e Yar Ali haviam perambulado da Índia até o Turquestão e Pérsia –
uma dupla estranha, mas altamente competente. Guiados pelo anseio incansável de
inato desejo de aventuras, seu propósito confesso – para o qual haviam jurado
e, às vezes, eles mesmos acreditavam – era o acúmulo de algum tesouro vago e
não-descoberto, algum pote de ouro ao pé de algum arco-íris ainda não-nascido.
Então, na
antiga Xiraz, eles haviam ouvido falar no Fogo de Assurbanipal. Dos lábios de
um velho mercador persa, o qual só acreditava na metade do que repetia para
eles, ouviram a história que ele, por sua vez, havia escutado dos lábios
balbuciantes do delírio, em sua distante juventude. Ele havia sido membro de
uma caravana, 50 anos antes, a qual, perambulando pela costa sul do Golfo
Pérsico em comércio por pérolas, seguira a história de uma pérola rara que estava longe, dentro do
deserto.
A pérola,
segundo rumores encontrada por um mergulhador e roubada por um sheik do
interior, eles não acharam, mas encontraram um turco que morria de fome, sede e
um ferimento de bala na coxa. Enquanto morria delirando, ele balbuciou uma
história desvairada, sobre uma silenciosa cidade morta, feita de pedra negra e
situada entre as areias do deserto na direção oeste, e de uma gema flamejante
agarrada pelos dedos de um esqueleto num antigo trono.
Ele não ousara
trazê-la consigo, por causa de um esmagador horror pensativo que assombrava o
local, e a sede o havia levado de volta ao deserto, onde beduínos o haviam
perseguido e ferido. Mas conseguira escapar, cavalgando duramente até seu
cavalo cair sob ele. Morrera sem dizer como havia alcançado a cidade mística,
mas o velho mercador achava que ele deveria ter vindo do noroeste – um desertor
do exército turco, fazendo uma tentativa desesperada de alcançar o Golfo.
Os homens da
caravana não haviam tentado mergulhar mais fundo no deserto, em busca da
cidade; pois, disse o velho mercador, eles acreditavam que ela fosse a antiga,
muito antiga, Cidade do Mal, mencionada no Necromicon do louco árabe Alhazred –
a cidade dos mortos, na qual repousava uma antiga maldição. Lendas a nomeavam
vagamente: os árabes a chamavam Beled-el-Djinn, a Cidade dos Demônios; e os
turcos, de Kara-Shehr, a Cidade Negra. E a gema era aquela antiga e amaldiçoada
jóia, que pertencera a um rei há muito tempo; um rei a quem os gregos chamavam
Sardanapalus, e a quem os povos semitas chamavam Assurbanipal.
Steve fora
fascinado pela história. Embora admitindo para si mesmo que era, sem dúvida, um
dos dez mil mitos fantasiosos criados no Oriente, ainda havia uma possibilidade
de que ele e Yar Ali se deparassem com um rastro daquele pote de ouro de
arco-íris, ao qual procuravam. E Yar Ali tinha antes ouvido alusões sobre uma
cidade silenciosa nas areias; histórias que haviam seguido as caravanas pelas
terras altas da Pérsia e através das areias do Turquestão, dentro da região
montanhosa e além... histórias vagas; sussurros sobre uma cidade negra dos
djinns, nas profundezas das névoas de um deserto assombrado.
Então,
seguindo a trilha daquela lenda, os companheiros haviam chegado, de Xiraz a um
povoado na costa árabe do Golfo Pérsico, e lá eles ouviram mais, de um velho
que havia sido pescador de pérolas em sua juventude. Ele tinha a tagarelice da
idade, e contava histórias repetidas a ele por viajantes de outras tribos, os
quais, por sua vez, as ouviram dos nômades selvagens das terras profundas do
interior; e novamente Steve e Yar Ali ouviram sobre a quieta cidade negra, com
bestas gigantes esculpidas em pedra, e o esqueleto do sultão que agarrava a
gema resplendorosa.
E assim, xingando
a si mesmo de idiota, Steve mergulhou naquilo de cabeça; e Yar Ali, convencido
de que o conhecimento de todas as coisas repousa no colo de Alá, foi com ele. Seu
escasso suprimento de dinheiro lhes fora suficiente apenas para fornecer
camelos e comida, para uma ousada e rápida invasão ao desconhecido. Seu único
mapa havia sido os vagos rumores sobre a suposta localização de Kara-Shehr.
Foram dias de
viagem árdua, forçando os animais e racionando água e comida. Então, nas
profundezas que invadiram, eles haviam encontrado uma cegante tempestade de
areia, na qual haviam perdido os camelos. Depois daquilo, vieram longas milhas
cambaleando através das areias, expostos a um sol escaldante, sobrevivendo da
água cada vez mais escassa de seus cantis e da comida que Yar Ali tinha numa
bolsa. Agora já nem pensavam em encontrar a cidade mítica. Continuaram às
cegas, na esperança de se depararem com uma fonte; sabiam que, atrás deles, não
havia oásis numa distância que pudessem alcançar a pé. Era uma opção desesperada,
mas a única que tinham.
Então,
guerreiros vestidos de branco os atacaram, vindos da neblina do horizonte, e,
de uma rasa trincheira cavada às pressas, os aventureiros haviam trocado tiros
com os ferozes cavaleiros que os cercaram rapidamente. As balas dos beduínos
haviam saltado através de sua fortificação improvisada, lançando-lhes areia nos
olhos e lhes raspando partes das roupas, mas, por sorte, nenhuma delas os
atingiu.
Seu único
pedaço de sorte, refletiu Clarney, enquanto xingava a si mesmo de idiota. Que
aventura louca, afinal! Pensar que dois homens poderiam desafiar assim o
deserto e sobreviver, e ainda por cima lhe arrancar do seio abismal os segredos
das eras! E aquela história louca da mão de um esqueleto agarrando uma jóia
flamejante numa cidade morta... asneira! Tolice total! Ele devia estar louco
para acreditar nisso, decidiu o americano com a visão clara que o sofrimento e
perigo trazem.
- Bem, velho
cavalo – disse Steve, erguendo seu rifle –; vamos. É um jogo de azar ver se
morreremos de sede, ou se seremos decepados pelos irmãos do deserto. De qualquer
forma, não estamos bem, ficando aqui.
- Deus
proverá. – Yar Ali concordou alegremente – O sol afunda no oeste. Logo, o frio
da noite estará sobre nós. Talvez ainda encontremos água, sahib. Veja; o terreno muda ao sul.
Clarney
ensombreceu seus olhos, protegendo-os do sol moribundo. Além da plana vastidão
árida de muitas milhas de largura, a terra ficava realmente mais acidentada;
colinas desiguais se evidenciavam. O americano lançou o rifle sobre o braço e
suspirou:
- Vamos
adiante; somos comida para os abutres, de qualquer forma.
O sol afundou
e a lua se ergueu, inundando o deserto com uma fantástica luz prateada. Areia
levada pelo vento reluzia em ondas, como se um mar houvesse sido subitamente
congelado. Steve, ressequido por uma sede que ele não ousara saciar totalmente,
praguejava em voz baixa. O deserto era bonito sob a lua, com a beleza de uma
fria Lorelei (*), para atrair homens para a destruição. “Que busca
louca!”, seu cérebro cansado repetia; o Fogo de Assurbanipal se refugiava
dentro dos labirintos de irrealidade a cada passo arrastado. O deserto se
tornou, não meramente um ermo material, mas as brumas cinzentas de eons
perdidos, em cujas profundezas sonhavam coisas submersas.
Clarney
cambaleava e praguejava; estaria ele já desfalecendo? Yar Ali se balançava
ritmicamente, com as passadas fáceis e incansáveis de um montanhês, e Steve
apertava seus dentes, encorajando-se para esforços maiores. Estavam finalmente
entrando na região acidentada, e o caminho ficava mais difícil. Barrancos rasos
e ravinas estreitas cortavam a terra com desenhos hesitantes. A maioria deles
estava quase cheia de areia, e não havia sinal de água.
- Esta região
um dia foi um oásis. – comentou Yar Ali – Só Alá sabe há quantos séculos a
areia a tomou, como fez com muitas cidades do Turquestão.
Eles seguiram
cambaleando, como mortos numa terra cinza de morte.
A lua ficou
vermelha e sinistra ao se pôr, e a escuridão se assentou sobre o deserto, antes
que alcançassem um ponto no qual pudessem ver o que ficava além daquela zona
acidentada. Até mesmo os pés do enorme afegão começaram a se arrastar, e Steve
se mantinha ereto apenas por uma selvagem força de vontade. Por fim, subiram,
com grande esforço, uma espécie de aresta, em cujo lado sul a terra descia.
- Vamos
descansar. – disse Steve – Não há água nesta região infernal. É inútil caminhar
o tempo todo. Minhas pernas estão rígidas como canos de armas. Sou incapaz de
dar outro passo para salvar meu pescoço. Aqui há uma espécie de penhasco
raquítico, quase tão alto quanto o ombro de um homem, voltado para o sul. Vamos
dormir no sotavento dele.
- E não
montaremos guarda, sahib Steve?
- Não. –
respondeu Steve – Se os árabes cortarem nossas gargantas enquanto dormirmos,
melhor. Estamos morrendo, de qualquer forma.
Com tal
observação otimista, Clarney caiu rígido na areia. Mas Yar Ali ficou de pé,
inclinando-se para a frente e forçando os olhos contra a escuridão enganosa,
que transformava os horizontes estrelados em poços escuros de sombras.
- Há algo no
horizonte, na direção sul. – ele murmurou inquieto – Uma colina? Não sei dizer
e nem sequer tenho certeza de que vi alguma coisa.
- Você está
vendo miragens. – disse Steve, irritado – Deite-se e durma.
Dizendo isso,
Steve dormiu.
O sol em seus
olhos o acordou. Ele se sentou, bocejou e sua primeira sensação foi de sede.
Ergueu o cantil e molhou os lábios. Só restava um gole. Yar Ali ainda dormia.
Os olhos de Steve perambularam sobre o horizonte sul, e ele se sobressaltou e
chutou o afegão deitado.
- Ei, acorde,
Ali. Acho que você não estava vendo coisas. Lá está sua colina... e algo
estranho, também.
O afridi acordou como uma coisa selvagem:
instantânea e completamente, com sua mão saltando para sua longa faca, enquanto
olhava ferozmente ao redor, em busca de inimigos. Seu olhar seguiu os dedos de
Steve a apontarem, e seus olhos se arregalaram.
- Por Alá e
por Alá! – ele praguejou – Nós estamos numa terra de djinns! Aquilo não é uma colina... é uma cidade de pedra em meio às
areias!
Steve se
ergueu de um pulo, como uma mola de aço. Enquanto fitava com a respiração
presa, um grito feroz lhe escapava dos lábios. Aos seus pés, a inclinação da
aresta descia para uma larga e plana vastidão de areia, a qual se estendia para
o sul. E, lá longe, através daquelas areias, aos seus olhos concentrados, a
“colina” tomava forma lentamente, como uma miragem crescendo desde as areias
ondulantes.
Ele viu
grandes muros irregulares, enormes ameias; todo o redor se arrastava pelas
areias, como uma coisa viva, amontoada no alto dos muros, suavizando os
contornos ásperos. Não era de se espantar que, à primeira vista, tudo aquilo se
parecesse com uma colina.
- Kara-Shehr!
– Clarney exclamou ferozmente – Beled-el-Djinn! A cidade dos mortos! Não era
uma alucinação, afinal! Nós a encontramos... céus, nós a encontramos! Venha!
Vamos!
Yar Ali
sacudiu a cabeça incerto e murmurou algo sobre djinns malignos, mas seguiu adiante. A visão das ruínas havia feito
Steve se esquecer da sede, fome e do cansaço que poucas horas de sono não
haviam reparado totalmente. Caminhava penosa, mas rapidamente, esquecendo-se do
calor que aumentava, seus olhos brilhando com o desejo de explorar. Não era
apenas a cobiça pela gema fabulosa o que havia induzido Steve Clarney a
arriscar a vida naquele ermo sombrio; lá no fundo de sua alma, se escondia a
velha herança do homem branco, o impulso de buscar lugares ocultos pelo mundo;
e aquele ímpeto havia sido despertado das profundezas por aquelas antigas
histórias.
Agora,
enquanto cruzavam a planície erma que separava a terra irregular da cidade,
eles viram que os muros despedaçados tomavam uma forma mais clara, como se crescesse
no céu da manhã. A cidade parecia ser feita de enormes blocos de pedra negra,
mas não havia como saber a altura verdadeira dos muros, por causa da areia que
se amontoava alta, desde a base; em muitos lugares, eles haviam caído, e a
areia ocultava completamente os pedaços.
O sol ficou a
pino e a sede importunava, apesar do entusiasmo; mas Steve controlou ferozmente
seu sofrimento. Seus lábios estavam ressecados e inchados, mas ele não beberia
seu último gole, enquanto não alcançasse a cidade em ruínas. Yar Ali molhou
seus lábios com seu próprio cantil, e tentou dividir o restante com seu amigo.
Steve negou com a cabeça e continuou a caminhar penosamente.
No calor feroz
da tarde no deserto, eles alcançaram as ruínas e, atravessando um buraco largo
na muralha desmoronada, contemplaram a cidade morta. A areia obstruía as ruas
antigas e dava uma forma fantástica às enormes colunas caídas e meio
escondidas. Estava tudo tão decaído e coberto da areia, que os exploradores mal
conseguiam identificar o traçado original da cidade; agora ela era apenas uma
imensidão de montes de areia e pedras caídas, sobre as quais pairava, como uma
nuvem invisível, uma aura de antiguidade inexprimível.
Mas, logo à
frente deles, corria uma larga avenida, cujo contorno nem mesmo as devastadores
areias e ventos foram capazes de apagar. Em ambos os lados do amplo caminho,
havia enormes colunas enfileiradas; não eram especialmente altas,
principalmente tendo em conta a areia que escondia suas bases, mas
incrivelmente largas. No topo de cada coluna, havia uma figura esculpida em
pedra sólida – imagens grandes e sombrias, meio humanas, meio bestiais, participando
da brutalidade que pairava em toda a cidade. Steve gritou assombrado:
- Os touros
alados de Nínive. Os touros com cabeças de homens! Pelos santos, Ali, as velhas
histórias são verdadeiras! Os assírios realmente construíram esta cidade! Toda
a história é verdadeira! Devem ter vindo para cá, quando os babilônios
destruíram a Assíria; ora, este cenário é idêntico às imagens que vi...
reconstrói cenas da velha Nínive! E veja!
Ele apontou
para a grande construção que estava na outra extremidade da rua larga – um
edifício colossal, cujas colunas e paredes, de sólidos blocos negros de pedra,
desafiavam os ventos e areias do tempo. Aquele ondulante e destruidor mar de
areia se arrastava ao redor de seus alicerces, inundando suas portadas, mas seriam
necessários mil anos para inundar toda a estrutura.
- Uma moradia
de demônios! – murmurou Yar Ali, inquieto.
- O templo de
Baal! – exclamou Steve – Vamos! Eu temia encontrar todos os palácios e templos
escondidos pela areia, e ter de cavar em busca da gema.
- Isso nos
fará pouco bem. – murmurou Yar Ali – Morreremos aqui.
- Conto com
isso. – Steve desatarraxou a tampa de seu cantil – Vamos tomar nosso último
gole. De qualquer forma, estamos a salvo dos árabes. Eles jamais ousarão vir
para cá, por causa de suas superstições. Beberemos e morreremos aqui, eu
calculo, mas primeiro encontraremos a jóia. Quando eu morrer, quero tê-la em
minha mão. Talvez, daqui a alguns séculos, algum bastardo sortudo encontre
nossos esqueletos... e a gema. Aqui está para ele, quem quer que seja!
Com essa
brincadeira sombria, Clarney esvaziou seu cantil e Yar Ali fez o mesmo. Haviam
jogado sua última carta; o resto repousava no colo de Alá.
Atravessavam a
larga avenida a passos largos, e Yar Ali, totalmente destemido diante de um
humano, olhava nervosamente à direita e esquerda, como se esperando ver um
rosto fantástico e com chifres lhes olhando atravessado de trás de uma coluna.
Steve sentiu a sombria antiguidade do local, e quase se pegou temendo um ataque
de carruagens de bronze, vindo das ruas esquecidas, ou ouvindo o sú
bito e ameaçador clangor de trombetas de bronze. O silêncio em
cidades mortas era muito mais intenso, ele refletia, do que aquele do deserto
aberto.
Chegaram aos
portais do grande templo. Fileiras de imensas colunas flanqueavam a ampla
entrada, a qual afundava na areia até os joelhos e da qual pendiam maciças estruturas
de bronze, as quais outrora haviam sustentado enormes portas, cuja polida madeira
havia apodrecido há séculos. Entraram num grande salão de penumbra nebulosa,
cujo sombreado teto de pedra era sustentado por colunas que pareciam os troncos
das árvores de uma floresta. Todo o efeito da estrutura era de uma magnitude
terrível, e de um esplendor sombrio e de tirar o fôlego, como um templo
construído por gigantes lúgubres para abrigar os deuses obscuros.
Yar Ali
caminhava temeroso, como se na expectativa de acordar deuses adormecidos, e Steve,
mesmo sem as superstições do afridi,
sentia a melancólica imponência do local lhe colocar mãos sombrias na alma.
Não havia um
único resto de pegada na poeira espessa sobre o chão; meio século havia se
passado desde que o assustado turco, atormentado por demônios, fugira daqueles
salões silenciosos. Quanto aos beduínos, era fácil ver por que aqueles
supersticiosos filhos do deserto evitavam essa cidade assombrada – e era
realmente assombrada, não por fantasmas de verdade, talvez, mas pelas sombras
de esplendores perdidos.
Enquanto
caminhavam pelas areias do salão, as quais pareciam não ter fim, Steve
considerou muitas perguntas: Como aqueles fugitivos da ira de rebeldes
enlouquecidos construíram aquela cidade? Como atravessaram o país de seus
inimigos (pois a Babilônia fica entre a Assíria e o deserto árabe)? Mas já não
tinham outro local para irem; a oeste, fica a Síria e o mar; a o norte e leste
estavam apinhados pelos “perigosos medos (**)”, aqueles ferozes
arianos, cuja ajuda havia fortalecido o braço da Babilônia para pulverizar seus
inimigos.
Possivelmente,
pensou Steve, Kara-Shehr – ou qualquer que fosse seu nome naqueles dias
obscuros – havia sido construída como um posto-avançado fronteiriço, antes da
queda do império assírio, para o qual fugiram sobreviventes daquela destruição.
De qualquer forma, era possível que Kara-Shehr houvesse sobrevivido a Nínive
por alguns séculos – uma cidade estranha e solitária, isolada do resto do
mundo.
Certamente,
como disse Yar Ali, esta foi outrora uma região fértil, regada por oásis; e,
sem dúvida, na região acidentada pela qual passaram na noite anterior,
existiram pedreiras que forneceram a pedra para a construção da cidade.
Então, o que
causou a ruína dela? A invasão das areias e o preenchimento dos mananciais por
elas fizeram o povo abandoná-la, ou Kara-Shehr era uma cidade silenciosa antes
das areias pularem as muralhas? A decadência veio de dentro ou de fora? Foi uma
guerra civil que aniquilou os habitantes, ou eles foram massacrados por algum
poderoso inimigo vindo do deserto? Clarney sacudiu a cabeça em frustrada
humilhação. As respostas para essas perguntas estavam perdidas no labirinto de
eras esquecidas.
- Allaho akbar!
Haviam
atravessando o salão sombreado e, em sua extremidade mais afastada, se depararam
com um horrível altar de pedra negra, atrás do qual avultava um antigo deus,
bestial e aterrador. Steve encolheu os ombros, ao reconhecer o aspecto
monstruoso da imagem: sim, aquele era Baal, em cujo altar negro, em outras
eras, muitas vítimas gritando, se retorcendo e desnudas haviam oferecido suas
almas nuas. O ídolo incorporava, em sua total, abismal e sombria bestialidade,
toda a alma dessa cidade demoníaca. Certamente, pensou Steve, os construtores
de Nínive e Kara-Shehr foram feitos num molde diferente das pessoas de hoje.
Sua arte e cultura eram muito maciças e muito sombriamente desprovidas dos
aspectos mais suaves da humanidade, para serem totalmente humanas, como o homem
moderno entende a humanidade.
Sua
arquitetura era desagradável; de alto nível técnico, mas muito maciça, sombria
e bruta, a ponto de estar quase além do alcance das pessoas modernas.
Os
aventureiros atravessaram uma porta estreita, que se abria ao final do salão,
próxima ao ídolo, e adentraram uma série de câmaras amplas, obscuras e
empoeiradas, ligadas umas às outras por corredores flanqueados de colunas.
Avançaram a passos largos por eles, na cinzenta luz fantasmagórica, e
finalmente chegaram a uma escada larga, cujos enormes degraus subiam e
desapareciam na escuridão. Yar Ali parou lá.
- Já nos
atrevemos demais, sahib. – ele
murmurou – É sensato nos arriscarmos mais?
Steve, embora
trêmulo de impaciência, entendeu a intenção do afegão:
- Você quer
dizer que não deveríamos subir esses degraus?
- Eles têm uma
aparência maligna. Para quais câmaras de silêncio e horror eles podem levar?
Quando os djinns assombram
construções abandonadas, eles espreitam nas câmaras mais altas. A qualquer
momento, um demônio pode arrancar nossas cabeças.
- Seja como
for, já somos homens mortos. – grunhiu Steve – Mas você pode voltar pelo salão
e vigiar se os árabes vêm, enquanto subo as escadas.
- É como
aguardar por um vento no horizonte. – respondeu melancolicamente o afegão,
erguendo o rifle e desembainhando sua longa faca – Nenhum beduíno vem para cá.
Vamos, sahib. Tu estás louco, como
todos os francos... mas eu não te deixaria enfrentar um djinn sozinho.
Assim, os
companheiros subiram os enormes degraus, seus pés afundando, a cada passo, na
poeira acumulada pelos séculos. Foram subindo e subindo, a uma altura inacreditável,
até o chão lá embaixo se perder numa vaga escuridão.
- Estamos
caminhando cegamente para nossa condenação, sahib.
– murmurou Yar Ali – Allah il allah...
e Maomé é seu Profeta! No entanto, sinto a presença do Mal adormecido, e nunca
mais voltarei a ouvir o vento soprar no Passo Khyber.
Steve não
respondeu. Ele não gostava do silêncio morto que pairava sobre o antigo templo,
nem da horrível luz cinza que se infiltrava de algum lugar oculto.
Agora, acima
deles, a escuridão clareava um pouco e eles entraram numa enorme câmara
circular, iluminada tristemente pela luz que se infiltrava através do teto alto
e perfurado. Mas outro brilho colaborava para a iluminação. Um grito escapou
dos lábios de Steve, ecoado por Yar Ali.
De pé no
último degrau da larga escada de pedra, eles olhavam diretamente através
daquela ampla câmara, com seu maciço chão de ladrilhos coberto de pó e suas
desnudas paredes de pedra negra. Do centro da câmara, enormes degraus subiam
até um estrado de pedra; e, sobre este estrado, se erguia um trono de mármore.
Ao redor deste trono, brilhava e tremeluzia uma luz misteriosa, e os aterrados
aventureiros ofegaram ao ver sua fonte. Sobre o trono, jazia um esqueleto
humano, uma massa quase disforme de ossos se esfarelando. Uma mão sem carne
pendia estirada sobre o largo braço marmóreo do trono e, em seu horrível
aperto, pulsava e palpitava como uma coisa viva, uma grande pedra rubra.
O Fogo de
Assurbanipal! Mesmo após terem achado a cidade, Steve não havia realmente se
permitido acreditar que encontrariam a gema, ou que ela sequer realmente
existisse. Mas ele não podia duvidar da evidência em seus olhos, deslumbrados
por aquela incandescência maligna e incrível. Com um grito feroz, ele saltou
pela câmara e pelos degraus. Yar Ali estava logo atrás dele, mas, quando Steve
ia agarrar a gema, o afegão lhe pegou o braço.
- Espere! –
exclamou o enorme maometano – Não a toque ainda, sahib! Há uma maldição sobre coisas antigas... e esta certamente é
uma coisa três vezes maldita! Por que mais ela permaneceria aqui intacta, numa
região de ladrões, por tantos séculos? Não é bom perturbar as posses dos
mortos.
- Tolice! –
bufou o americano – Superstições! Os beduínos estavam assustados pelas
histórias contadas a eles por seus ancestrais. Sendo moradores do deserto,
temem qualquer cidade, e não duvido que esta tivesse uma má reputação quando
era habitada. E ninguém, exceto os beduínos, havia visto este local antes,
exceto aquele turco, que provavelmente estava meio louco por causa do
sofrimento.
“Estes ossos
podem ser os do rei mencionado na lenda – o ar seco do deserto conserva tais
coisas indefinidamente –, mas eu duvido. Talvez assírios – mais provavelmente
árabes –, ou de algum mendigo que pegou a gema e morreu no trono por algum
motivo ou outro”.
O afegão mal o
ouvia. Ele olhava para a grande pedra com amedrontada fascinação, como um
pássaro hipnotizado que mira o olho de uma serpente.
- Veja, sahib! Ele sussurrou – O que é isso?
Nenhuma gema como esta foi talhada por mãos mortais! Veja como ela palpita e
pulsa, como o coração de uma cobra!
Steve olhava,
e percebeu uma estranha e indefinida sensação de desconforto. Perfeito
conhecedor de pedras preciosas, ele nunca tinha visto uma como esta. À primeira
vista, ele havia suposto que fosse um rubi monstruoso, como dito nas lendas.
Agora ele não tinha certeza, e tinha uma nervosa sensação de que Yar Ali estava
certo, de que isto não era uma gema natural e normal. Ele não conseguia
classificar o estilo no qual ela era talhada, e o poder de seu brilho era tal,
que ele achou difícil olhá-la de perto por muito tempo. Todo o local não era
adequado para acalmar nervos inquietos. A grande quantidade de pó no chão
sugeria uma antiguidade nociva; a luz cinza evocava uma sensação de
irrealidade, e as maciças paredes negras se erguiam sombriamente, sugerindo
coisas escondidas.
- Vamos pegar
a pedra e partir! – murmurou Steve, com um pânico incomum se erguendo no peito.
- Espere! – Os
olhos de Yar Ali ardiam, e ele olhava, não para a gema, mas para as sombrias paredes
de pedra – Somos moscas na teia da aranha! Sahib,
tão certo quanto Alá existe, é mais do que fantasmas de velhos medos que
espreitam sobre esta cidade de horror! Sinto a presença do perigo, como já
senti antes... como senti numa caverna na selva, onde uma píton espreitava na
escuridão, sem ser vista... como senti no templo dos thugs (***),
onde os estranguladores ocultos de Shiva se agachavam para saltar sobre nós...
como sinto agora, só que dez vezes mais intenso!
O cabelo de
Steve formigou. Ele sabia que Yar Ali era um veterano implacável, e que não
estava reprimido por medo tolo ou pânico sem sentido; ele se lembrava muito bem
dos incidentes mencionados pelo afegão, bem como de outras ocasiões, nas quais
o instinto telepático de Yar Ali o havia advertido do perigo, antes que o mesmo
pudesse ser visto ou ouvido.
- O que é
isto, Yar Ali? – ele sussurrou.
O afegão
sacudiu sua cabeça, com os olhos preenchidos por uma estranha luz misteriosa,
enquanto ouvia as memórias obscuras e ocultas de seu subconsciente.
- Não sei; sei
que está perto de nós, e que é muito antigo e muito maligno. Eu acho... –
Súbito, ele parou e girou, o brilho lúgubre lhe desaparecendo dos olhos, para
ser substituído por um olhar de medo e suspeita lupinos.
- Ouça, sahib! – ele falou bruscamente –
Fantasmas ou mortos sobem a escada!
Steve se
enrijeceu, quando o bater furtivo de sandálias macias lhe chegou aos ouvidos.
- Por Judas,
Ali! – ele disse abruptamente – Há algo lá fora...
As paredes
antigas ressoaram com um coro de gritos selvagens, quando uma horda de figuras
ferozes inundou a câmara. Por um instante aturdido e insano, Steve acreditou
realmente que estavam sendo atacados por guerreiros reencarnados de uma era
desaparecida; logo, o estalar rancoroso de uma bala passando perto de sua
orelha, e o odor acre de pólvora lhe indicaram que seus inimigos eram
suficientemente materiais. Clarney praguejou; em sua segurança imaginária,
foram pegos como ratos numa armadilha, pelos perseguidores árabes.
Enquanto o
americano puxava seu rifle, Yar Ali atirou mortalmente a queima-roupa, com o
rifle apoiado no quadril; lançou o rifle vazio na horda e desceu os degraus
como um furacão, sua faca khaibar de mais de 90 centímetros lhe brilhando na
mão peluda. Em seu gosto por batalha, entrava alívio autêntico por seus
inimigos serem humanos. Uma bala arrancou o turbante de sua cabeça, mas um
árabe caiu com o crânio rachado sob o primeiro golpe cortante do montanhês.
Um beduíno
alto apoiou o cano de sua arma no lado do afegão, mas antes que pudesse puxar o
gatilho, a bala de Clarney lhe estourou os miolos. A própria quantidade de
agressores lhes estorvava o ataque ao afridi,
cuja rapidez de tigre fazia os tiros serem tão perigosos para ele quanto para
eles próprios. A maioria o cercava, atacando com cimitarras e rifles, enquanto
outros atacavam escada acima atrás de Steve. Naquele alcance, não havia como
errar; o americano simplesmente mirava o cano de seu rifle num rosto barbudo e
disparava, transformando-o em ruínas medonhas. Os outros avançavam, rugindo
como panteras.
E agora,
enquanto se preparava para gastar seu último cartucho, Clarney viu duas coisas
num breve instante: um guerreiro feroz, com saliva na barba e uma pesada cimitarra
erguida, estava quase sobre ele; e outro, que se ajoelhava no chão, apontando
cuidadosamente seu rifle para Yar Ali, o qual pulava. Steve fez uma escolha
instantânea e disparou sobre o ombro do espadachim que atacava, matando o homem
do rifle... e voluntariamente oferecendo a própria vida para salvar a do amigo,
pois a cimitarra se dirigia à sua própria cabeça. Mas, mesmo enquanto o árabe balançava,
grunhindo com a força de seu golpe, sua sandália escorregou nos degraus de
mármore e a lâmina curva, desviando-se erraticamente do seu arco, se espatifou
no cano do rifle de Steve. Num instante, o americano ergueu o rifle e, quando o
beduíno recuperou o equilíbrio e reergueu a cimitarra, Clarney golpeou com toda
a sua força, e coronha e crânio se despedaçaram juntos.
Então, uma
bala pesada lhe estalou ombro adentro, nauseando-o com o impacto.
Enquanto ele
cambaleava aturdido, um beduíno laçou-lhe os pés com um turbante e puxou
cruelmente. Clarney caiu de ponta-cabeça pelos degraus e colidiu com força assombrosa.
Uma coronha de arma, numa mão marrom, saiu para lhe arrebentar os miolos, mas
um comando imperioso deteve o golpe:
- Não o matem,
mas amarrem suas mãos e pés.
Enquanto Steve
se debatia atordoado contra muitas mãos que o agarravam, ele teve a impressão
de já ter ouvido antes aquela voz imperiosa, em algum lugar.
A queda do
americano ocorreu em questão de segundos. Mesmo quando o segundo tiro de Steve
fora disparado, Yar Ali havia meio decepado o braço de um atacante, e ele
próprio recebido um golpe entorpecedor de coronha de rifle em seu ombro
esquerdo. Sua jaqueta de pele de carneiro, vestida apesar do calor do deserto,
lhe salvou a pele de meia-dúzia de facas retalhadoras. Um rifle foi disparado
tão perto de seu rosto, que a pólvora o queimou ferozmente, arrancando um grito
sedento de sangue do enlouquecido afegão. Quando Yar Ali ergueu sua lâmina
gotejante, o atirador assustado ergueu o rifle acima da cabeça com ambas as
mãos, para deter o golpe descendente, mas o afridi,
com um ganido de exultação feroz, saltou como um gato selvagem no ataque e
mergulhou seu longo punhal na barriga do árabe. Mas, naquele instante, a
coronha de um rifle, girada com toda a força e maldade de seu portador, se
espatifou contra a cabeça do gigante, abrindo-lhe o escalpo e fazendo-o cair de
joelhos.
Com a
ferocidade teimosa e silenciosa de sua raça, Yar Ali se levantou novamente,
cambaleando às cegas e golpeando os inimigos aos quais mal conseguia ver, mas
uma chuva de golpes o derrubou novamente, e seus atacantes não pararam de lhe
bater, enquanto ele não ficasse imóvel no chão. Eles o teriam matado em pouco
tempo, se não fosse por outra ordem imperiosa de seu chefe; depois, o amarraram
inconsciente e o lançaram para baixo, ao lado de Steve, que estava totalmente
consciente e sabedor do selvagem ferimento de bala em seu ombro.
Ele olhou
ferozmente o árabe alto que descia os olhos em sua direção.
- Bem, sahib – disse este, e Steve viu que ele
não era beduíno –; lembra-se de mim?
Steve franziu
a testa – um ferimento a bala não ajuda na concentração.
- Você parece
familiar... por Judas! Você é Nureddin El Mekru!
- Estou
honrado! O sahib se lembra! –
Nureddin o saudou zombeteiramente ao estilo árabe – E você se lembra, sem
dúvida, da ocasião em que me deu este
presente!
Os olhos
escuros se ensombreceram de ameaça amarga, e o sheik indicou uma fina cicatriz
branca na mandíbula.
- Eu me
lembro. – rosnou Clarney, a quem a dor e ira não tendiam a tornar dócil – Foi
na Somália, anos atrás. Você era um traficante de escravos na época. Um pobre negro
fugiu de você e se refugiou comigo. Você veio ao meu acampamento numa noite,
com seus modos despóticos, iniciou um tumulto e, na briga resultante, levou um
talho de cutelo no rosto. Eu gostaria de ter cortado seu pescoço nojento!
- Você teve
sua chance. – respondeu o árabe – Agora virei a mesa.
- Pensei que
seu raio de ação ficasse a oeste. – rosnou Clarney – Iêmen e Somália.
- Abandonei o
tráfico de escravos há muito tempo. – respondeu o sheik – É um jogo antiquado.
Liderei um bando de ladrões no Iêmen por um tempo; logo, fui novamente forçado
a mudar de local. Vim para cá com uns poucos seguidores fiéis e, por Alá, esses
selvagens quase me cortaram o pescoço quando nos encontramos pela primeira vez.
Mas venci suas desconfianças, e agora lidero mais homens do que os que me
seguiram durante anos.
“Aqueles
contra quem você lutou ontem eram meus homens – batedores aos quais eu mandara
à frente. Meu oásis fica bem a oeste. Cavalgamos por muitos dias, pois eu
estava a caminho desta cidade. Quando meus batedores voltaram e me contaram
sobre dois aventureiros, não mudei meu curso, pois eu tinha negócios em
Beled-el-Djinn. Cavalgamos cidade adentro pelo oeste e vimos suas pegadas na
areia. Nós os seguimos, e vocês pareciam búfalos cegos que não ouviram nossa
chegada”.
Steve rosnou:
- Você não nos
pegaria tão facilmente; apenas achamos que nenhum beduíno ousaria entrar em
Kara-Shehr.
Nureddin
balançou afirmativamente a cabeça:
- Mas não sou
beduíno. Viajei para muito longe, vi muitas terras e raças, e li muitos livros.
Sei que o medo é como fumaça, que os mortos estão mortos e que djinns, fantasmas e maldições são brumas
que se vão com o vento. Foi por causa dos contos sobre a pedra vermelha que
adentrei este deserto abandonado. Mas demorei meses para persuadir meus homens
a cavalgarem comigo até aqui.
“Mas... aqui
estou! E sua presença é uma deliciosa surpresa. Sem dúvida, você se pergunta
por que lhe capturei com vida; planejei um entretenimento mais elaborado para
você e esse suíno pachtun. Agora...
pegarei o Fogo de Assurbanipal e partiremos”.
Ele se dirigiu
para o estrado, e um de seus homens, um gigante barbudo e caolho, exclamou:
- Pare, meu
senhor! Um antigo mal reinou aqui, antes dos dias de Maomé! Os djinns uivam por estes salões quando o
vento sopra, e homens têm visto fantasmas dançando nas muralhas sob o luar.
Nenhum homem mortal ousou desafiar esta cidade negra por mil anos... exceto um,
há meio século, que fugiu guinchando.
“Você veio
desde o Iêmen; você não conhece a antiga maldição sobre esta cidade repugnante
e esta pedra maligna, a qual pulsa como o coração negro de Satã! Nós o seguimos
até aqui contra nosso bom-senso, porque você tem demonstrado ser um homem forte
e disse ter um encanto contra todas as coisas malignas. Você disse que só
desejava olhar para esta gema preciosa, mas agora vejo que sua intenção é pegá-la
para si. Não ofenda os djinns!”.
- Não, Nureddin,
não ofenda os djinns! – repetiram
outros beduínos em coro. Os próprios bandidos endurecidos do sheik, num grupo
compacto afastado dos beduínos, nada diziam; fortalecidos para crimes e atos de
impiedade, eles eram menos afetados pelas superstições dos homens do deserto,
para os quais a terrível história da cidade amaldiçoada fora repetida durante
séculos. Steve, mesmo odiando Nureddin com rancor concentrado, percebia o poder
magnético do homem, a capacidade inata de liderança que o capacitara a subjugar
daquele modo os medos e tradições das eras.
- A maldição
recai sobre os infiéis que invadem a cidade – respondeu Nureddin –, não sobre
os Fiéis. Vejam: nesta câmara, nós derrotamos nossos inimigos kafares!
Um falcão do
deserto de barba branca sacudiu a cabeça:
- A maldição é
mais antiga que Maomé, e não escolhe raça nem crença. Homens maus construíram
esta cidade negra, na aurora do Começo dos Dias. Eles oprimiram nossos
ancestrais das tendas negras e guerrearam entre eles; sim, as muralhas negras
desta cidade repugnante foram manchadas de sangue, e ressoaram com os gritos de
festejos profanos e os sussurros de intrigas obscuras.
“Assim chegou
a pedra à cidade: havia um bruxo na corte de Assurbanipal, e a sabedoria negra
das eras não lhe foi negada. Para ganhar honra e poder para si mesmo, ele
desafiou os horrores de uma vasta caverna sem nome numa terra obscura e
desconhecida, e, daquelas profundezas assombradas por demônios, ele trouxe essa
gema brilhante, a qual é entalhada das chamas congeladas do Inferno! Graças aos
seus terríveis poderes em magia negra, ele enfeitiçou o demônio que guardava a
antiga gema, e assim roubou a pedra. E o demônio ficou dormindo naquela caverna
desconhecida.
“Assim, este
mago – de nome Xuthltan – morou na corte do sultão Assurbanipal, e fez magia e
previsões esquadrinhando as profundezas vermelhas da pedra, dentro das quais
somente os olhos dele podiam mirar sem ficarem cegos. E os homens chamaram a
pedra de O Fogo de Assurbanipal, em honra ao rei.
“Mas o mal
chegou ao reino, e homens gritaram que era a maldição dos djinns; e o sultão, sentindo muito medo, ordenou a Xuthltan que
pegasse a gema e a lançasse dentro da caverna da qual ele a pegara, antes que
acontecessem males ainda piores com eles.
“Mas o mago
não tinha a intenção de se desfazer da gema, na qual ele lera estranhos
segredos da época pré-adâmica, e fugiu para a cidade rebelde de Kara-Shehr,
onde logo estourou uma guerra civil e os homens lutaram uns contra os outros pela
posse da gema. Então, o rei que governava a cidade cobiçou a gema, capturou o
mago e o torturou até a morte. E, nesta própria câmara, ele assistiu à sua
morte; com a gema na mão, o rei se sentou no trono... como ele já havia se
sentado antes... como ficou sentado através dos séculos... como está sentado
agora!”.
O dedo do
árabe apontou para os ossos esfarelados sobre o trono de mármore, e os ferozes
homens do deserto recuaram; até os próprios patifes de Nureddin recuaram,
prendendo a respiração, mas o sheik não mostrou sinal de perturbação.
- Enquanto
Xuthltan morria – continuou o velho beduíno –, ele amaldiçoou a pedra cuja
magia não o salvara, e guinchou em voz alta as terríveis palavras que desfaziam
o feitiço, o qual ele colocara sobre o demônio na caverna, e libertou o
monstro. E, invocando aos gritos os deuses esquecidos... Cthulhu, Koth,
Yog-Sothoth e todos os moradores pré-adâmicos das cidades negras sob o mar e
das cavernas da terra... ele os chamou para tomarem de volta o que era deles e,
com seu último suspiro, amaldiçoou o falso rei, e aquela maldição era a de que
o rei permaneceria sentado em seu trono, segurando em sua mão o Fogo de
Assurbanipal até o trovejar do Juízo Final.
“Por isso, a
grande pedra gritou como se estivesse viva, e o rei e seus soldados viram uma
nuvem negra se erguer em círculos desde o chão, e da nuvem soprou um vento
fétido; e, deste vento, saiu uma forma medonha, a qual estendeu patas
espantosas para a frente e as colocou sobre o rei, o qual murchou e morreu ao
toque delas. Os soldados fugiram aos gritos, e todo o povo da cidade correu aos
prantos para o deserto, onde morreram ou atravessaram o ermo até alcançarem as
distantes cidades do oásis. Kara-Shehr ficou silenciosa e abandonada, um antro
de lagartos e chacais. E, quando algumas pessoas do deserto se aventuraram
dentro da cidade, encontraram o rei morto em seu trono, agarrando a gema
ardente, mas não se atreveram a tocá-la, pois sabiam que o demônio espreitava
próximo para guardá-la através das eras, como ele o faz da mesma forma,
enquanto estamos aqui”.
Os guerreiros
estremeceram involuntariamente e olharam ao redor; e Nureddin disse:
- Por que ele
não apareceu quando os francos adentraram a câmara? Ele está surdo, para que o
ruído do combate não o tenha despertado?
- Nós não
tocamos na gema – respondeu o velho beduíno –, nem os francos a molestaram. Os
homens olharam para ela e viveram; mas nenhum mortal pode tocá-la e sobreviver.
Nureddin
começou a falar, olhou para aqueles rostos teimosos e inquietos, e percebeu a futilidade
de seus argumentos. Sua atitude mudou abruptamente.
- Quem manda
aqui sou eu. – ele retrucou, descendo a mão até seu coldre – Não suei nem
sangrei por esta gema, para agora ser impedido por medos sem fundamento! Todos
para trás! Se algum homem cruzar meu caminho, pagará com a cabeça!
Ele os encarou
com os olhos ardendo, e eles recuaram, intimidados pela força de sua
personalidade impiedosa. Ele subiu destemidamente os degraus de mármore, e os
árabes prenderam o fôlego, recuando em direção à porta; Yar Ali, finalmente
desperto, gemeu sombriamente. “Deus!”, pensou Steve, “Que cena estranha!”. Cativos
amarrados no chão empoeirado, guerreiros selvagens agrupados ao redor,
segurando suas armas, o cru cheiro ácido de sangue e pólvora queimada, ainda
empestando o ar; corpos espalhados, numa horrenda mistura de sangue, miolos e
entranhas... e, sobre o estrado, o sheik de rosto aquilino, esquecido de tudo,
exceto do maligno brilho escarlate nos dedos esqueléticos que descansavam sobre
o trono de mármore.
Um silêncio
tenso se apoderou de todos, quando Nureddin estendeu lentamente a mão, como se
hipnotizado pela pulsante luz escarlate. E, no subconsciente de Steve,
estremecia um eco fraco, como de algo vasto e repugnante, acordando subitamente
de um sono de eras. Os olhos do americano se moveram instintivamente em direção
às sombrias paredes ciclópicas. O brilho da jóia foi estranhamente alterado:
agora era de um ardor vermelho mais intenso e profundo – irado e ameaçador.
- Coração de
todo o mal – murmurou o sheik –, quantos príncipes morreram por ti, no Início
dos Acontecimentos? Certamente, o sangue dos reis pulsa dentro de ti. Os sultões,
princesas e generais que te usaram viraram pó e foram esquecidos, mas tu
brilhas com majestade não-obscurecida, fogo do mundo...
Nureddin pegou
a pedra. Um gemido estremecedor irrompeu dos árabes, cortado por um agudo grito
inumano. A Steve parecia, horrivelmente, que a grande jóia havia gritado como
uma coisa viva! A pedra escorregou da mão do sheik. Nureddin talvez a tivesse
soltado; para Steve, parecia que ela pulou convulsivamente, como o faria uma
coisa viva. Ela rolou do estrado, pulando de degrau em degrau, com Nureddin
saltando atrás dela, praguejando enquanto sua mão tentava agarrá-la sem
conseguir. A pedra bateu no chão, mudou brutalmente de direção e, apesar da
espessa camada de pó, rolou como uma bola giratória de fogo em direção à parede
de trás. Nureddin estava bem próximo dela... a pedra bateu na parede... e a mão
do sheik se esticou para pegá-la.
Um grito de
medo mortal rompeu o tenso silêncio. Sem aviso, a parede sólida havia se
aberto. E, da abertura, saiu um tentáculo que agarrou violentamente o corpo do
sheik, como um píton que envolve sua vítima, e o puxou impetuosamente para
dentro da escuridão. Então, a parede ficou novamente lisa e sólida; o único som
que se ouvia de dentro era um grito medonho, agudo e abafado, que gelou o
sangue de quem ouvia. Uivando sem palavras, os árabes correram e se aglomeraram
numa massa alvoroçada na portada, atravessando-a e descendo loucamente os
largos degraus.
Steve e Ali,
deitados e indefesos, ouviram o clamor frenético da fuga diminuir à distância,
e miravam em horror mudo àquela parede sombria. Os guinchos desapareceram,
dando lugar a um silêncio ainda mais horripilante. Prendendo o fôlego, eles
ouviram subitamente um som que lhes congelou o sangue nas veias: o suave
deslizar de metal ou pedra numa ranhura. Ao mesmo tempo, a porta oculta começou
a se abrir, e Steve viu um brilho na escuridão, o qual poderia ser o cintilar de
olhos monstruosos. Ele fechou os próprios olhos; não ousava olhar para qualquer
que fosse o horror que escapulisse daquele hediondo buraco negro. Ele sabia que
há tensões às quais o cérebro humano não consegue resistir, e cada instinto
primitivo de sua alma lhe gritava que essa coisa era pesadelo e loucura. Sentiu
que Yar Ali também fechava, e os dois ficaram deitados, como se estivessem
mortos.
Clarney não
ouviu mais nada, mas sentiu a presença de um mal aterrorizante, horrível demais
para a compreensão humana – de um Invasor vindo de Golfos Exteriores e de
distantes extensões negras de seres cósmicos. Um frio mortal invadiu aquela
sala, e Steve sentiu a mirada de olhos inumanos lhe queimar as pálpebras
fechadas e congelar sua consciência. Se olhasse, se abrisse os olhos, ele sabia
que uma loucura completamente negra seria sua sina.
Sentiu um bafo
repugnante, de sacudir a alma, contra seu rosto, e percebeu que o monstro
estava se curvando acima dele; mas ficou imóvel, como um homem congelado num
pesadelo. Ele se apegava a um pensamento: nem ele nem Yar Ali haviam tocado a
jóia à qual este horror guardava.
Logo, ele não
sentia mais aquele odor imundo, o frio no ar ficava apreciavelmente menor, e
ele ouvia novamente a porta secreta se fechar. O demônio estava retornando ao
seu esconderijo. Nem mesmo todas as legiões do Inferno conseguiram evitar que
os olhos de Steve se abrissem um pouquinho. Ele só teve um vislumbre, enquanto
a porta oculta se fechava – e aquele mero vislumbre foi o bastante para lhe
tirar toda a consciência do cérebro. Steve Clarney, aventureiro de nervos de
ferro, desmaiou pela única vez em sua vida nada monótona.
Por quanto
tempo ficou inconsciente, Steve nunca soube, mas não deve ter sido muito, pois
foi despertado pelo sussurro de Yar Ali:
- Fique
quieto, sahib; movendo um pouco o meu
corpo, posso alcançar tuas cordas com meus dentes.
Steve sentiu
os dentes fortes do afegão trabalharem em suas amarras e, enquanto permanecia
com o rosto contra a poeira espessa e seu ombro ferido começava a latejar
dolorosamente – ele havia se esquecido disso até então –, ele começou a reunir
os fios dispersos de sua consciência, e esta retornou totalmente a ele.
Quantos, ele se perguntava atordoado, haviam sido os pesadelos de delírio,
nascidos do sofrimento e da sede que lhe endurecia a garganta? A luta com os
árabes havia sido real – as ataduras e ferimentos mostravam isso –, mas o
destino medonho do sheik... a coisa que se arrastava para fora da abertura
negra na parede... certamente, aquilo fora uma invenção do delírio. Nureddin
devia ter caído num poço, ou em algum tipo de buraco... Steve sentiu que suas
mãos estavam livres, e ele se levantou, sentando-se e procurando às cegas por
alguma navalha esquecida pelos árabes. Ele não olhou para cima, nem ao redor da
câmara, enquanto cortava as cordas que lhe amarravam os tornozelos, e logo
soltou Yar Ali, trabalhando desajeitadamente, porque seu braço esquerdo estava
rígido e inútil.
- Onde estão
os beduínos? – ele perguntou, enquanto o afegão se levantava, erguendo-o.
- Por Alá, sahib – sussurrou Yar Ali –, está louco?
Acaso esqueceu? Vamos sair logo, antes que o djinn retorne!
- Foi um
pesadelo. – murmurou Steve – Veja... a jóia está de volta ao trono...
Sua voz se
apagou. Aquele brilho vermelho pulsava novamente no antigo trono, refletindo-se
na caveira embolorada. Mais uma vez, nos estirados dedos de osso, pulsava o
Fogo de Assurbanipal. Mas, aos pés do trono, jazia outro objeto que não havia
estado lá antes... a cabeça decepada de Nureddin el Mekru olhava cegamente para
o alto, em direção à luz cinza que se infiltrava pelo teto de pedra. Os lábios
sem sangue estavam contraídos num sorriso pavoroso, e os olhos arregalados
refletiam um horror insuportável. Na espessa poeira do chão, havia três
rastros: um do sheik, quando este seguira a jóia vermelha enquanto esta rolava
até a parede, e, acima dele, dois outros grupos de rastros, vindos do trono e
retornando à parede – rastros amplos e sem forma, como se fossem de pés
achatados, gigantescos e com garras – nem humanos nem animais.
- Meu Deus! –
disse Steve, se engasgando – Foi verdade... e a Coisa... a Coisa que eu vi...
Steve se
lembrou da fuga daquela câmara como um pesadelo impetuoso, no qual ele e seu
companheiro se lançaram impetuosamente por uma escada sem fim, a qual era um
buraco cinzento de medo; correram cegamente através de empoeiradas câmaras silenciosas
e passaram pelo ídolo de olhar furioso no enorme salão, até chegarem à luz ardente
do sol do deserto, onde caíram extenuados, tentando recuperar o fôlego.
Mais uma vez,
Steve foi incitado pela voz do afridi:
- Sahib, sahib; em nome de Alá, o Compassivo, nossa sorte mudou!
Steve olhou
para seu companheiro, com o olhar de um homem em transe: as roupas do enorme
afegão estavam esfarrapadas e encharcadas de sangue, e sua voz parecia um
grasnido. Mas seus olhos estavam acesos com esperança, e ele apontou com um
dedo trêmulo.
- Na sombra
daquele muro em ruínas! – ele resmungou, esforçando-se para umedecer os lábios
enegrecidos – Allah il allah! Os cavalos dos homens que matamos! Com cantis
e bolsas de comida nas selas! Os cães fugiram sem parar para pegarem os cavalos
de seus camaradas!
Uma vida nova
surgiu dentro do peito de Steve, e ele se ergueu cambaleante.
- Vamos embora
daqui. – ele murmurou – Vamos, rápido!
Como
moribundos, eles cambalearam até os cavalos, soltaram-nos e subiram com
dificuldade até as selas.
- Vamos guiar
as montarias poupadas. – resmungou Steve, e Yar Ali assentiu em enfática
concordância:
-
Provavelmente precisaremos delas antes de avistarmos a costa.
Embora seus
nervos torturados gritassem pela água que balançava nos cantis pendurados nas
selas, eles viraram suas montarias para o lado e, balançando-se nas selas, cavalgaram
como cadáveres voadores pela longa rua arenosa de Kara-Shehr, entre os palácios
em ruínas e as colunas desagregadas; cruzaram a muralha caída e se dirigiram ao
deserto. Em nenhum momento, eles olharam para trás, em direção àquela pilha
negra de horror antigo, nem sequer falaram, até as ruínas desaparecerem à
distância. Foi então, e só então, que eles pararam e aliviaram a sede.
- Allah il allah! – disse Yar Ali
devotamente – Aqueles cães me golpearam até eu achar que cada osso do meu corpo
estivesse quebrado. Desmonte, eu lhe peço, sahib,
e me deixe examinar essa maldita bala e enfaixar seu ombro da melhor forma que
minha habilidade limitada permitir.
Enquanto o
fazia, Yar Ali falou, evitando o olhar de seu amigo:
- Você disse, sahib; disse algo sobre... sobre ver? O
que viste, em nome de Alá?
Um forte
estremecimento sacudiu a estrutura de aço do americano:
- Você não
olhava quando... quando a... a Coisa pôs a jóia de volta à mão do esqueleto, e
deixou a cabeça de Nureddin no estrado?
- Por Alá,
não! – jurou Yar Ali – Meus olhos estavam tão fechados quanto se tivessem sido
soldados pelos ferros derretidos de Satã!
Steve não
respondeu, até terem saltado novamente para as selas e iniciado sua longa
jornada em direção à costa, a qual, com cavalos descansados, comida, água e
armas, eles tinham uma boa chance de alcançar.
- Eu olhei. –
o americano disse sombriamente – Gostaria de não tê-lo feito; sei que sonharei
com isso pelo resto de minha vida. Tive apenas um vislumbre; eu não conseguiria
descrevê-lo como um homem descreve uma coisa terrena. Deus me ajude, não era
uma coisa terrena nem normal. A humanidade não é a primeira dona da terra;
havia outros Seres aqui, antes da sua chegada... e agora, sobreviventes de
épocas horrivelmente antigas. Talvez esferas de dimensões desconhecidas
permaneçam invisíveis neste universo material hoje. Sacerdotes evocavam
demônios adormecidos, no passado, e os controlavam com magia. Não é absurdo
supor que um feiticeiro assírio pudesse invocar um demônio elemental até a
terra, para vingá-lo e guardar algo que deve ter vindo do Inferno, em primeiro
lugar.
“Tentarei lhe
dizer o que vislumbrei; depois, não voltaremos mais a falar nisso. Era
gigantesco, negro e sombrio; era uma monstruosidade enorme, a qual andava ereta
como um homem, mas também parecia um sapo, e tinha asas e tentáculos. Eu só a
vi de costas; se eu a visse de frente – se eu tivesse visto seu rosto –, eu sem
dúvida ficaria louco. O velho árabe estava certo; Deus nos socorra, era o
monstro que Xuthltan evocou das escuras e ocultas cavernas da terra, para
vigiar o Fogo de Assurbanipal!”.
FIM
(*) – Lorelei: Na mitologia nórdica, é uma entidade dos rios, a qual
atraía os navegantes com seu canto (Nota do Tradutor);
(**) – Os “medos”, aos quais Robert E. Howard se refere, são os habitantes da
antiga Média – ou Pérsia (N. do T.);
(***) –
Thugs: Uma fraternidade secreta de
assassinos e ladrões de viajantes, que se tornou operante a partir do século
XVI, na história da Índia (idem).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.