(por Robert E. Howard)
Acordei subitamente
e me sentei na cama, me perguntando sonolento quem batia tão violentamente à
porta, ameaçando despedaçar os painéis. Uma voz guinchava, intoleravelmente
aguçada, como se por terror louco.
- Conrad,
Conrad! – alguém guinchava do outro lado da porta – Pelo amor de Deus, deixe-me
entrar! Eu o vi! Eu o vi!
- Parece ser
Job Kiles. – disse Conrad, erguendo sua longa estrutura do divã onde estivera
dormindo, após ter cedido sua cama para mim – Não derrube a porta! – ele gritou,
procurando por seus chinelos – Estou indo!
- Bem,
apresse-se! – gritou o visitante invisível – Acabei de olhar para dentro dos
olhos do Inferno!
Conrad acendeu
uma luz e abriu rapidamente a porta; e, numa figura meio caída, meio
cambaleante e com olhos desvairados, reconheci o homem a quem Conrad chamara de
Job Kiles – um homem rançoso e miseravelmente velho, que vivia na pequena
propriedade vizinha à de Conrad. Agora, uma mudança pavorosa acontecera com o homem,
normalmente tão reservado e senhor de
si. Seu cabelo ralo estava totalmente eriçado; gotas de suor lhe brilhavam na
barba cinza e, de tempos em tempos, ele tremia como se de uma febre violenta.
- Em nome de
Deus, o que houve, Kiles? – exclamou Conrad, encarando-o – Você parece que viu
um fantasma!
- Um fantasma!
– a voz elevada de Kiles estalou e caiu num guincho de risada histérica – Eu vi
um demônio do Inferno! Eu lhe digo, eu o vi esta noite! Há apenas alguns
minutos! Ele me olhou pela minha janela e riu para mim! Oh, Deus, aquela
risada!
- Quem? –
Conrad perguntou brusca e impacientemente.
- Meu irmão
Jonas! – gritou o velho Kiles.
Até Conrad se
sobressaltou. Jonas, irmão gêmeo de Job, havia morrido há uma semana. Tanto
Conrad quanto eu tínhamos visto seu cadáver ser colocado na tumba, no alto das
inclinações íngremes das Colinas de Dagoth. Eu me lembrava do ódio que existira
entre os irmãos: Job, o avarento, e Jonas, o esbanjador, que passou seus
últimos dias em pobreza e solidão, na velha e arruinada mansão da família, nos
declives mais baixos das Colinas de Dagoth; todo o seu veneno pairando sobre
sua alma azedada, que se centrava no irmão sovina que morava numa casa própria,
no vale. Este sentimento havia sido recíproco. Até mesmo quando Jonas estava
morrendo, Job havia, de má-vontade, se permitido ser convencido a ir até seu
irmão. Enquanto isso ocorria, ele havia estado sozinho quando este último
morreu, e a cena de morte deve ter sido horrenda, pois Job havia corrido para
fora da sala, trêmulo e com o rosto pálido, perseguido por uma horrível
crepitação de risada, quebrada bruscamente pelo súbito estrépito de morte.
Agora, o velho
Job tremia diante de nós, o suor lhe escorrendo da pele acinzentada e
balbuciando o nome de seu irmão morto.
- Eu o vi! Eu
me levantei e sentei esta noite mais tarde que o usual. Assim que apaguei a luz
para ir à cama, seu rosto me olhou malevolamente através da janela, emoldurado
pelo luar. Ele voltou do Inferno para me arrastar para baixo, como jurou fazer
enquanto morria. Ele não é humano! Há anos, ele não era! Suspeitei disso quando
ele retornou de sua longa perambulação no Oriente. Ele é um demônio em forma
humana. Um vampiro! Ele planeja me destruir corpo e alma!
Fiquei mudo e
totalmente perplexo, e até Conrad não encontrou palavras. Confrontado pela
aparente evidência de completa loucura, o que dizer ou fazer? Meu único pensamento
era o de que Job Kiles estava obviamente insano. Ele agora agarrava Conrad pela
gola de sua roupa de dormir, e o sacudia violentamente na agonia de seu terror.
- Só há uma
coisa a ser feita! – ele gritou, com a luz do desespero em seus olhos – Devo ir
até a tumba dele! Preciso ver, com meus próprios olhos, se ele ainda jaz lá,
onde o enterramos! E vocês devem vir comigo! Não ouso atravessar sozinho a
escuridão! Ele pode estar esperando por mim... jazendo à espera, atrás de
alguma sebe ou árvore!
- Isto é
loucura, Kiles! – advertiu Conrad – Jonas está morto... você teve um pesadelo...
- Pesadelo! –
sua voz se ergueu a um grito estalado – Tive vários, desde que fiquei ao lado
de seu maligno leito de morte, e ouvi as ameaças blasfemas escorrerem como um
rio negro de seus lábios espumantes; mas aquilo não foi sonho! Eu estava completamente
acordado, e eu lhes digo... eu lhes digo que vi meu irmão-demônio Jonas, me
olhando malévola e horrendamente através da janela!
Ele torceu as
mãos, gemendo de terror, com todo o seu orgulho, compostura e equilíbrio
varridos por terror total, primitivo e animal. Conrad me olhou de relance, mas
eu não tinha sugestão a oferecer. O assunto parecia tão completamente insano,
que a única coisa óbvia a fazer parecia ser chamar a polícia e mandar o velho
Job para o manicômio mais próximo. Mas havia, em seus modos, um terror
fundamental que parecia atingir até mesmo a sensação ao longo de minha espinha.
Como se
sentindo nossa dúvida, ele voltou a gritar:
- Eu sei!
Vocês acham que estou louco! Estou tão são quanto vocês! Mas estou indo até
aquela tumba, se eu tiver que ir só! E, se me deixarem ir só, meu sangue ficará
em suas consciências! Vocês irão?
- Espere! –
Conrad começou a se vestir apressadamente – Nós vamos com você. Acho que a
única coisa que destruirá esta alucinação é ver seu irmão no caixão dele.
- Sim. – o
velho Job riu terrivelmente – Em sua tumba, no caixão sem tampa! Por que ele
preparou aquele caixão aberto antes de morrer, e deixou ordens para que nenhum
tipo de tampa fosse colocado sobre ele?
- Ele sempre
foi excêntrico. – respondeu Conrad.
- Ele sempre
foi um demônio. – rosnou o velho Job – Nós nos odiávamos desde a juventude.
Quando ele desperdiçou sua herança e voltou rastejando, paupérrimo, ele se
ressentiu porque eu não queria dividir com ele minhas riquezas tão duramente
adquiridas. Aquele cão negro! Aquele demônio das covas do Purgatório!
- Bom, vamos
ver logo se ele está em segurança na sua tumba. – disse Conrad – Está pronto,
O’Donnel?
- Pronto. –
respondi, prendendo ao coldre minha pistola 45. Conrad riu.
- Não consegue
esquecer sua criação texana, hein? – Ele gracejou – Acha que pode ser chamado
para balear um fantasma?
- Bom, você
não sabe dizer. – respondi – Não gosto de sair à noite sem ela.
- Pistolas são
inúteis contra um vampiro. – disse Job, movendo-se com impaciência – Só há uma
única coisa que prevalecerá contra eles! Uma estaca enfiada no coração negro do
demônio.
- Grandes
céus, Job! – Conrad riu abruptamente – Não consegue falar sério sobre essa
coisa?
- Por que não?
– Uma chama de loucura se ergueu em seus olhos – Existiram vampiros em épocas
passadas... ainda existem no Leste Europeu e Oriente. Eu o ouvi se gabar a
respeito do próprio conhecimento de cultos secretos e magia negra. Suspeitei
disso... então, enquanto jazia moribundo, ele me contou seu segredo medonho... jurou
que voltaria do túmulo e me arrastaria com ele para o Inferno!
Saímos de casa
e atravessamos o gramado. Aquela parte do vale era pouco povoada, embora poucas
milhas a sudoeste brilhassem as luzes da cidade. Adjacente aos jardins de
Conrad a oeste, ficava a propriedade de Job, a casa escura avultando magra e
silenciosa por entre as árvores. Aquela casa era o único luxo que o velho
avarento permitia a si mesmo. Uma milha ao norte, fluía o rio, e ao sul se
erguiam os sombrios contornos negros daquelas baixas e onduladas colinas
estéreis, com longas inclinações cobertas por arbustos, às quais os homens
chamam de Colinas de Dagoth – um nome curioso, não-aparentado com qualquer
língua indígena conhecida, mas usado inicialmente por aqueles homens vermelhos
para designarem aquela cordilheira raquítica. Eram praticamente inabitadas. Havia
fazendas nas inclinações externas, em direção ao rio, mas os vales internos tinham
solos muito rasos, e as próprias colinas eram rochosas demais para o cultivo. A
pouco menos de 800 metros da propriedade de Conrad, se erguia a estrutura
vagabunda que havia abrigado a família Kiles durante uns 300 anos – pelo menos,
as pedras fundamentais datavam dessa época, embora o resto da casa fosse mais
moderno. Acho que o velho Job estremeceu ao olhar para ela, ali empoleirada
como um abutre no ninho, contra o negro fundo ondulado das Colinas de Dagoth.
Era uma
selvagem noite ventosa, a qual atravessamos em nossa louca busca. Nuvens
passavam sem parar pela lua, e o vento uivava pelas árvores, trazendo estranhos
ruídos noturnos e pregando curiosas peças com nossas vozes. Nossa meta era a
tumba que se acocorava numa inclinação mais alta de uma colina que se projetava
do resto da cordilheira, correndo para trás e acima do planalto alto no qual se
erguia a casa do velho Kiles. Era como se o ocupante do sepulcro olhasse sobre
a casa ancestral e para o vale, que sua gente outrora possuíra da aresta ao
rio. Agora, todo o chão pertencente à velha propriedade era a faixa que subia
as inclinações até as colinas, a casa numa extremidade e a tumba na outra.
A colina sobre
a qual o túmulo fora construído divergia das demais, como eu dissera, e, ao
irmos para o sepulcro, passamos perto de sua extremidade íngreme e coberta por
matagal, a qual recuava bruscamente para dentro de um penhasco vertical e
coberto por moita. Estávamos nos aproximando da ponta dessa aresta, quando
Conrad comentou:
- O que
possuiu Jonas, para construir seu túmulo tão longe das criptas da família?
- Ele não o
construiu. – rosnou Job – Foi construído há muito tempo por nosso ancestral, o
velho Capitão Jacob Kiles, e por causa dele, esta projeção particular ainda é
chamada de Colina Pirata... pois ele era um bucaneiro e contrabandista. Algum
estranho capricho o fez construir seu tumulo lá em cima e, em sua vida, ele
passou muito tempo sozinho ali, especialmente à noite. Mas ele nunca o ocupou,
pois estava perdido no mar, numa luta com um navio de guerra. Ele costumava
observar, em busca de inimigos ou soldados, desde aquele penhasco à nossa
frente, e é por isso que as pessoas o chamam, até hoje, de Cabo do Contrabandista.
“O túmulo
estava em ruínas, quando Jonas começou a morar na antiga casa, e ele o
restaurou para receber seus ossos. Ele bem sabia que não ousava dormir em solo
santificado! Antes de morrer, ele havia feito todos os preparativos – a tumba
havia sido reconstruída, e o caixão sem tampa colocado nela para recebê-lo...”.
Estremeci,
apesar de mim mesmo. A escuridão, as nuvens desvairadas passando pela lua
leprosa, os ruídos estridentes do vento, as sombrias colinas escuras avultando
sobre nós, as palavras desvairadas de nosso companheiro, tudo trabalhava minha
imaginação para povoar a noite com formas de horror e pesadelo. Olhei
nervosamente para as inclinações cobertas por arbustos, negras e repelentes na
luz mutável, e me vi desejando que não estivéssemos passando tão perto dos
despenhadeiros com moitas e assombrados por lendas do Cabo do Contrabandista,
se sobressaindo da cordilheira sinistra como a proa de um navio.
- Não sou uma
garota tola, para ser assustado por sombras. – o velho Job tagarelava – Vi seu
rosto maligno na janela iluminada pela lua. Sempre acreditei secretamente que
os mortos caminham à noite. Agora... o que é isso?
Ele parou
bruscamente, congelado numa altitude de terror completo. Instintivamente,
aguçamos nossos ouvidos. Ouvimos os galhos das árvores se sacudirem na
ventania. Ouvimos o farfalhar alto da grama alta.
- É apenas o
vento. – murmurou Conrad – Ele distorce qualquer som.
- Não! Não, eu
lhe digo! Era...
Um grito
fantasmagórico veio com o vento – uma voz aguçada com medo e agonia mortais:
- Socorro!
Socorro! Oh, Deus, tenha piedade! Oh, Deus! Oh, Deus!
- A voz do meu
irmão! – gritou Job – Ele está me chamando desde o Inferno!
- De onde ela
veio? – sussurrou Conrad, com lábios subitamente secos.
- Não sei. –
Minha pele se arrepiava umidamente até meus membros – Não sei dizer. Pode ter
vindo de cima... ou de baixo. Ela soa estranhamente abafada.
- O aperto da
sepultura abafa a voz dele! – guinchou Job – A mortalha grudada nele sufoca
seus gritos! Eu lhes digo que ele uiva nas grelhas em brasa do Inferno, e quer
me arrastar para compartilhar seu destino! Lá! Lá sobre o túmulo!
- A rota final
de toda a humanidade. – murmurou Conrad, cuja brincadeira medonha com as
palavras de Job não me adicionou conforto. Seguimos o velho Kiles, mal conseguindo
lhe seguir o passo enquanto ele galopava – uma figura magra e grotesca, atravessando
as inclinações e galgando em direção ao vulto acocorado, ao qual o ilusório
luar revelava como uma caveira brilhando obtusamente.
- Você
reconheceu essa voz? – murmurei para Conrad.
- Não sei.
Estava abafada, como você mencionou. Pode ter sido um truque do vento. Se eu
disser que achei que foi Jonas, você pensaria que estou louco.
- Não agora. –
murmurei – Achei que fosse insanidade, no início. Mas o espírito da noite
entrou no meu sangue. Estou pronto para acreditar em qualquer coisa.
Havíamos
galgado os declives e ficado diante da maciça porta de ferro do túmulo. Acima e
atrás dela, a colina se erguia íngreme, oculta por densos matagais. O sombrio
mausoléu parecia investido de agouro sinistro, causado pelos acontecimentos
fantásticos da noite. Conrad virou a luz de sua lanterna sobre aquela visão ponderosa,
com sua aparência antiga.
- Esta porta
não foi aberta. – disse Conrad – A tranca não foi violada. Veja: aranhas já
haviam feito suas teias por toda a soleira, e os fios estão intactos. O capim
diante da porta não foi pisado, como aconteceria se alguém tivesse recentemente
entrado no túmulo... ou saído dele.
- O que são
portas e janelas para um vampiro? – queixou-se Job – Eles passam por paredes
sólidas como fantasmas. Eu lhes digo, não descansarei até ter entrado nessa
tumba e feito o que devo fazer. Tenho a chave... a única chave existente no
mundo que se encaixará naquela tranca.
Ele a puxou
para fora: uma ferramenta antiga, a qual enfiou na fechadura. Houve um estalar
e ranger de básculas enferrujadas, e o velho Job recuou, como se na expectativa
de algum fantasma com presas de hiena voar em sua direção, através da porta que
se abria.
Conrad e eu
espiamos a parte de dentro – e admito que eu me firmei, sacudindo por
conjecturas caóticas. Mas a escuridão lá dentro era estígia. Conrad fez menção
de ligar sua lanterna, mas Job o impediu. O velho parecia ter recuperado grande
parte de sua compostura normal.
- Dê-me a
lanterna. – ele disse, e havia determinação sombria em sua voz – Irei só. Se
ele retornou para o túmulo... se ele estiver novamente em seu caixão, sei como
lidar com ele. Esperem aqui, e se eu gritar, ou se ouvirem sons de luta, corram
para dentro.
- Mas... –
Conrad começou uma objeção.
- Não
questione! – guinchou o velho Kiles, começando novamente a se descompor – Esta
é minha tarefa, e eu a farei só!
Ele praguejou
quando Conrad inadvertidamente girou o raio de luz diretamente em seu rosto;
logo, agarrando a lanterna e puxando algo de seu paletó, entrou furtivamente no
túmulo, empurrando a porta maciça para trás de si.
- Mais
insanidade. – murmurei inquieto – Por que ele insistiu tanto para o acompanharmos,
se pretendia entrar sozinho? E você percebeu o brilho nos olhos dele? Pura
loucura!
- Não estou
tão certo. – respondeu Conrad – Pareceu-me mais um triunfo maligno. Quanto a
estar só, você dificilmente pode chamar assim, pois estamos a apenas poucos
passos de distância dele. Ele tem algum motivo para não querer que entremos na
tumba com ele. O que foi aquilo que ele tirou do paletó, quando entramos?
- Parecia uma
estaca afiada e um pequeno martelo. Por que ele pegaria um martelo, já que não
há o que ser desamarrado sobre o caixão?
- Claro! –
Conrad falou bruscamente – Como fui tolo em não ter entendido. Não me admira
que ele queira adentrar o túmulo sozinho! O’Donnel, ele está falando sério
sobre esse disparate de vampiro! Não se lembra das insinuações que ele deixou
escapar, sobre estar preparado e tudo o mais? Ele pretende enfiar aquela estaca
no coração do irmão! Vamos! Não pretendo deixar que ele mutile...
Da tumba,
vibrou um grito que me assombrará quando eu estiver morrendo. Seu timbre
medonho paralisou nossos passos e, antes que pudéssemos recuperar o juízo,
houve um correr louco de pés, o impacto de um corpo voador contra a porta; e,
para fora da tumba, como um morcego soprado para fora dos portões do Inferno,
voou a figura de Job Kiles. Ele caiu de ponta-cabeça aos nossos pés, a lanterna
elétrica em sua mão caindo ao chão e se apagando. Atrás dele, a porta de ferro
ficou entreaberta e eu pensei ter ouvido um estranho barulho de deslizar e
arrastar na escuridão. Mas toda a minha atenção foi voltada para o coitado que
se torcia aos nossos pés em horríveis convulsões.
Nós nos
inclinamos sobre ele. A lua, deslizando de trás de uma nuvem escura, iluminou
seu rosto lívido e nós gritamos involuntariamente diante do horror ali
estampado. Toda a luz de sanidade fora apagada de seus olhos arregalados, como
uma vela apagada no escuro. Seus lábios frouxos se moviam, salpicando espuma.
Conrad o sacudiu:
- Kiles, em
nome de Deus, o que aconteceu com você?
Um horrível
choramingar babante foi a única resposta; logo, entre os sons salivantes e sem
significado, percebemos palavras humanas, babantes e meio inarticuladas.
- A coisa! A
coisa no caixão!
Então, quando
Conrad gritou uma pergunta feroz, os olhos rolaram para cima e pararam, os
lábios contraídos se congelaram num horrível sorriso triste, e toda a estrutura
magra do homem parecia afundar e desmoronar sobre si mesma.
- Morto! –
murmurou Conrad, empalidecido.
- Não vejo
ferimento. – sussurrei, sacudido até minha própria alma.
- Não há
ferimentos... nenhuma gota de sangue.
- Então...
então... – mal tive coragem de transformar o pensamento pavoroso em palavras.
Olhamos
medrosamente para a tira retangular de negrura, destacada na porta parcialmente
aberta da tumba silenciosa. O vento guinchou subitamente através da grama, como
uma exultante canção de triunfo demoníaco; e um súbito tremor se apossou de
mim.
Conrad se
ergueu e endireitou os ombros.
- Vamos! – ele
disse – Só Deus sabe o que se esconde naquele túmulo infernal... Mas temos que
descobrir. O velho estava muito agitado, presa de seus próprios medos. Seu
coração não era muito forte. Algo deve ter causado sua morte. Está comigo?
Qual terror de
uma ameaça tangível e compreendida pode se igualar ao de uma ameaça invisível e
sem nome? Mas balancei minha cabeça em consentimento, e Conrad pegou a
lanterna, a ligou e grunhiu de prazer por ela não estar quebrada. Então, aproximamos-nos
da sepultura como homens que se aproximam da toca de uma serpente. Minha
pistola estava engatilhada em minha mão, quando Conrad abriu bruscamente a porta.
Sua luz dançava rapidamente sobre as paredes úmidas, chão empoeirado e teto abobadado,
até descansar no caixão sem tampa que se encontrava sobre seu pedestal de pedra
no centro. Deste, nós nos aproximamos com a respiração presa, sem ousar fazer
conjectura sobre qual horror estranho e não-terrestre poderia ir ao encontro de
nossos olhos. Inspirando rapidamente, Conrad passou a luz de sua lanterna
dentro dele. Um grito escapou dos nossos lábios: o caixão estava vazio.
- Meu Deus! –
sussurrei – Job estava certo! Mas onde está o vampiro?
- Nenhum
caixão vazio tirou a vida do corpo de Job Kiles. – respondeu Conrad – Suas
últimas palavras foram “a coisa no caixão”. Havia algo dentro dele... algo que,
ao ser visto, extinguiu a vida de Job Kiles como uma vela apagada.
- Mas onde
está essa coisa? – perguntei com desconforto, um arrepio bem medonho me subindo
e descendo pela espinha – Ela não pode ter saído da tumba, sem a termos visto.
Foi algo que pode ficar invisível à vontade? Estaria acocorada invisível na
tumba conosco, aqui neste instante?
- Esta
conversa é loucura. – Conrad falou bruscamente, mas olhando rápida e instintivamente
sobre o ombro à direita e esquerda. Logo, ele acrescentou:
- Você
percebeu um leve odor repulsivo ao redor deste caixão?
- Sim, mas não
consigo defini-lo.
- Nem eu. Não é
exatamente um ranço de cripta. É uma espécie de cheiro terrestre de réptil. Ele
me lembra vagamente os cheiros que senti debaixo da superfície da terra. Ele se
adere ao caixão... como se alguma coisa profana do fundo da terra houvesse jazido
ali.
Ele correu a
luz sobre as paredes novamente, e a deteve subitamente, focando-a na parede de
trás, a qual estava fora da camada de rocha da colina na qual a tumba foi
construída.
- Veja!
Na parede
supostamente sólida, aparecia uma longa abertura fina. Com uma só passada,
Conrad a alcançou, e juntos a examinamos. Empurramos cautelosamente a porção da
parede mais próxima dela, e ela cedeu silenciosamente para dentro, abrindo-se
numa escuridão tamanha como eu nunca sonhara existir deste lado da sepultura.
Recuamos involuntariamente e ficamos tensos, como se na expectativa de algum
horror noturno saltar sobre nós. Logo, a risada brusca de Conrad foi como um
choque de água gelada sobre nervos tensos.
- Pelo menos,
o ocupante da tumba usa um meio não-sobrenatural de entrar e sair. – ele disse
– Esta porta secreta foi evidentemente construída com extremo cuidado. Veja, é
meramente um grande bloco vertical de pedra que gira sobre um pino. E o
silêncio com o qual ele funciona mostra que o pino e os encaixes foram
lubrificados recentemente.
Ele dirigiu
seu raio de luz para dentro do buraco atrás da porta, e este revelou um túnel
estreito correndo paralelo à soleira da porta, claramente para dentro da rocha
sólida da colina. As paredes e o chão eram lisos e polidos, e o teto curvo.
Conrad recuou,
voltando-se para mim:
- O’Donnel, eu
pareço sentir algo realmente obscuro e sinistro aqui, e tenho certeza de que
isso possui uma influência humana. Sinto como se tivéssemos nos deparado com um
rio negro e oculto, correndo sob nossos próprios pés. Para onde ele leva, não
sei dizer, mas creio que o poder por trás de tudo isso seja Jonas Kiles.
Acredito que o velho Job realmente viu seu irmão na janela esta noite.
- Mas, a tumba
vazia ou não, Jonas Kiles está morto.
- Acho que
não. Creio que ele estava num estado auto-induzido de catalepsia, tal como é
praticado pelos faquires hindus. Já vi alguns casos, e juraria que eles estavam
realmente mortos. Eles descobriram o segredo da animação suspensa voluntária,
apesar dos cientistas e céticos. Jonas Kiles viveu vários anos na Índia e, de
alguma forma, ele deve ter aprendido aquele segredo.
“O caixão
aberto, o túnel guiando do ponto da tumba à crença de que ele estava vivo
quando foi colocado lá. Por alguma razão, ele queria que as pessoas acreditassem
que havia morrido. Pode ser o capricho de uma mente perturbada. Pode ter um
significado mais profundo e sombrio. À luz de sua aparição ao irmão e da morte
de Job, acredito mais na segunda opção; mas, neste momento, minhas suspeitas
são horríveis e fantásticas demais para expressar em palavras. Contudo, eu
pretendo explorar este túnel. Jonas pode estar escondido em algum lugar dele.
Está comigo? Lembre-se, aquele homem pode ser um maníaco homicida, ou se não,
ele pode ser ainda mais perigoso que um louco”.
- Estou com
você. – grunhi, apesar da minha pele se arrepiar diante da perspectiva de
mergulhar naquela cova escura. – Mas, e quanto ao grito que ouvimos ao
passarmos pelo Cabo? Não houve fingimento de agonia! E qual foi a coisa que Job
viu no caixão?
- Não sei.
Pode ter sido Jonas, vestido com algum disfarce infernal. Devo admitir que há
muito mistério unido a este assunto, mesmo que aceitemos a teoria de que Jonas
está vivo e por trás de tudo isso. Mas vamos olhar dentro daquele túnel.
Ajude-me a levantar Job. Não podemos deixá-lo aqui jazendo deste jeito. Nós o
colocaremos no caixão.
E assim,
erguemos Job Kiles e o colocamos no caixão do irmão que ele odiava, onde ele
jazeu com olhos vidrados mirando desde suas congeladas feições cinzas. Enquanto
eu o olhava, o canto fúnebre do vento parecia ecoar suas palavras em meus
ouvidos: “Lá! Sobre o túmulo”. E seu caminho o havia realmente levado para o
túmulo.
Conrad entrou
primeiro pela porta secreta, à qual deixamos aberta. Enquanto adentrávamos
aquele túnel negro, tive um momento de puro medo; e fiquei feliz que a pesada
porta externa da tumba não possuísse fecho de mola, e que Conrad tivesse em seu
bolso a única chave com a qual a tranca maciça pudesse ser fechada. Tive uma
sensação desconfortável de que o demoníaco Jonas poderia trancar a porta,
deixando-nos encerrados na tumba até o Juízo Final.
O túnel
parecia correr irregularmente cada vez mais para o leste... e se mover cautelosamente,
reluzindo a luz diante de nós.
- Este túnel
nunca foi aberto por Jonas Kiles. – sussurrou Conrad – Há um verdadeiro ar de
antiguidade nele... Veja!
Outra portada
escura apareceu à nossa direita. Conrad dirigiu sua lanterna para dentro dela,
mostrando outra passagem mais estreita. Outras portas se abriram dentro dela,
em ambos os lados.
- É uma rede
regular. – murmurei – Corredores paralelos conectados por túneis menores. Quem
imaginaria tal coisa sob as Colinas de Dagoth?
- Como Jonas
Kiles a descobriu? – perguntou-se Conrad – Veja; há outra portada à nossa
direita... e outra... e mais outra! Você está certo... é uma verdadeira rede de
túneis. Quem, em nome do céu, os cavou? Devem ser o trabalho de alguma raça
pré-histórica desconhecida. Mas este corredor em particular foi usado
recentemente. Vê como a poeira está agitada no chão? Todas as portas estão à
direita, e nenhuma à esquerda. Este corredor segue a linha externa da colina, e
deve haver uma saída em algum lugar ao longo dele. Veja!
Estávamos
passando pela abertura de um dos escuros túneis que se cruzavam, e Conrad havia
lançado sua luz sobre a parede ao lado dele. Lá, nós vimos uma seta tosca,
feita com giz vermelho e apontando para o túnel menor.
- Isso não
pode levar para a saída. – murmurei – Ele mergulha ainda mais fundo nas
entranhas da colina.
- Vamos
segui-lo, de qualquer forma. – respondeu Conrad – Podemos achar facilmente o
caminho de volta para este túnel externo.
Então, nós o
adentramos, cruzando outros corredores maiores, e, em cada um, encontrando a
seta que ainda apontava o caminho por onde íamos. O fino raio de luz de Conrad
parecia quase perdido naquela densa escuridão, e presságios inomináveis e medos
instintivos me assombravam enquanto mergulhávamos cada vez mais fundo no coração
daquela colina amaldiçoada. Súbito, o túnel terminou abruptamente numa escada
estreita, que guiava para baixo e desaparecia na escuridão. Um estremecimento
involuntário me sacudiu enquanto eu descia o olhar para aqueles degraus
esculpidos. Quais pés profanos os haviam pisado em eras esquecidas? Logo, nós
vimos algo mais – uma pequena câmara se abrindo para o túnel, bem no topo da
escada. E, quando Conrad dirigiu sua luz para dentro dela, uma exclamação
involuntária irrompeu de meus lábios. Não havia ocupante, mas ela estava cheia
de evidências de ocupação recente. Entramos e ficamos seguindo o movimento do
fino raio de luz.
Que aquela
câmara havia sido ocupada por humanos, isso não me espantava, dadas as nossas
descobertas anteriores, mas ficamos horrorizados com a condição do conteúdo.
Havia uma cama de acampamento ao lado dela, quebrada, os cobertores espalhados
sobre o chão rochoso em tiras esfarrapadas. Livros e revistas estavam rasgados
em pedaços e espalhados a esmo; latas de comida jaziam espalhadas sem cuidado,
batidas e tortas, algumas delas arrebentadas e com seu conteúdo derramado.
Havia uma lâmpada esmagada sobre o chão.
- Um
esconderijo para alguém. – disse Conrad – E aposto minha cabeça que é Jonas
Kiles. Mas que caos! Veja estas latas, aparentemente abertas ao serem batidas
contra o chão de pedra... e esses cobertores, rasgados em tiras, como um homem
rasgaria um pedaço de papel. Bom Deus, O’Donnel, nenhum ser humano faria
tamanha devastação!
- Um louco
faria. – murmurei – O que é isso?
Conrad havia
parado e apanhado uma agenda. Ele a ergueu até a luz de sua lanterna.
- Muito
rasgada. – ele grunhiu – Mas temos sorte, de qualquer forma. É o diário de
Jonas Kiles! Conheço sua caligrafia. Veja, esta última página está intacta e
com a data de hoje! Uma prova positiva de que ele está vivo, na falta de outra
prova.
- Mas onde ele
está? – sussurrei, olhando ao redor com medo – E por que toda esta devastação?
- A única
coisa na qual posso pensar – disse Conrad – é que o homem era, pelo menos,
parcialmente lúcido quando entrou nestas cavernas, mas, desde então, ficou
insano. É melhor ficarmos alertas; se ele está louco, é totalmente possível que
ele possa nos atacar no escuro.
- Eu pensei
nisso. – grunhi com um estremecimento involuntário – É um belo pensamento: um
louco se escondendo nestes infernais túneis negros, para saltar sobre nossas
costas. Prossiga; leia o diário, enquanto eu fico de olho na porta.
- Vou ler este
último registro. – disse Conrad – Talvez ele lance alguma luz sobre o tema.
E, focando a
luz sobre os rabiscos, ele leu:
“Agora tudo
está pronto para meu grande golpe. Esta noite, deixo para sempre este abrigo,
nem ficarei triste, pois a eterna escuridão e silêncio estão começando a
sacudir meus nervos de aço. Estou ficando imaginativo. Mesmo enquanto escrevo,
pareço ouvir sons furtivos, como se de coisas rastejando de baixo, embora eu
nunca tenha visto sequer um morcego ou uma cobra nestes túneis. Mas amanhã
ocuparei a bela casa de meu amaldiçoado irmão. Enquanto ele – e é uma ótima
zombaria eu me arrepender de não poder compartilhar isso com alguém – tomará
meu lugar na fria escuridão – mais escura e fria que estes túneis escuros.
“Devo
escrever, se não posso falar disso, pois estou emocionado com a minha própria
sagacidade. Que astúcia diabólica a minha! Com quão demoníaca velhacaria eu
planejei e preparei! Não havia ninguém no caminho, antes da minha ‘morte’ – há,
há, há, se os tolos soubessem! –, no qual trabalhei nas superstições de meu
irmão – deixando cair alusões e místicas observações. Ele sempre me considerou
uma ferramenta do Maligno. Antes da minha ‘enfermidade’ final, ele tremeu à
beira de acreditar que eu havia me tornado sobrenatural ou infernal. Logo, em
meu ‘leito de morte’, quando despejei toda a minha fúria sobre ele, seu espanto
foi genuíno. Eu sabia que ele estava totalmente convencido de que sou um
vampiro. Bem, eu realmente conheço meu irmão. Estou certo de que ele fugiu de
sua casa e preparou uma estaca para enfiar em meu coração. Mas ele não tomará
atitude alguma, até ter certeza de que suas suspeitas são verdadeiras.
“Darei a ele esta
certeza. Esta noite, aparecerei em sua janela. Aparecerei e sumirei. Não quero
matá-lo de medo, porque assim meus planos de nada serviriam. Sei que, quando
ele se recuperar de seu primeiro susto, virá até minha tumba para me matar com
sua estaca. E, quando ele estiver em segurança na tumba, eu o matarei. Trocarei
de roupa com ele – o colocarei em segurança na tumba, no caixão aberto – e
voltarei furtivamente à sua bela casa. Nós nos parecemos bastante um com o
outro, de modo que, com meu conhecimento e boa educação, posso imitá-lo
perfeitamente. Além disso, quem suspeitaria? É bizarro demais – fantástico
demais. Assumirei sua vida onde ele a deixou. As pessoas podem se surpreender
com a mudança em Job Kiles, mas isso não irá além da surpresa. Viverei e
morrerei no lugar de meu irmão e, quando a morte vier realmente a mim, que ela
seja bastante adiada! Vou jazer em pompa, na cripta funerária do velho Kiles,
com o nome de Job Kiles em minha lápide, enquanto o verdadeiro Job jaz, sem que
ninguém imagine, na velha tumba da Colina do Pirata! Ah, é uma ótima, ótima
zombaria!
“Eu me
pergunto como o velho Job Kiles descobriu estes caminhos subterrâneos. Ele não
os construiu. Eles foram entalhados em cavernas obscuras e rocha sólida, pelas
mãos de homens esquecidos – há quanto tempo, eu não ouso arriscar uma
conjectura. Enquanto estou aqui, aguardando a hora de estar pronto para agir,
eu me entretive explorando-os. Percebi que são bem mais amplos do que eu havia
suspeitado. As colinas devem estar conectadas com eles, e eles afundam na terra
até uma profundeza incrível, pavimento sob pavimento, como os andares de um
prédio, cada pavimento conectado com o inferior por uma única escada. O velho
Jacob Kiles deve ter usado estes túneis – pelo menos, os do pavimento superior
– para o depósito do saque e contrabando. Ele construiu a tumba para ocultar
suas verdadeiras atividades e, é claro, abriu a entrada secreta e pôs a porta
no eixo. Ele deve ter descoberto as tocas através da entrada oculta do Cabo do
Contrabandista. A velha porta que ele construíra aqui era uma mera massa de
lascas apodrecidas e metal enferrujado, quando a encontrei. Como ninguém a descobriu
depois dele, é provável que ninguém encontre a nova porta que construí com minhas
próprias mãos, para substituir a antiga. Mesmo assim, tomarei as devidas precauções
no tempo certo.
“Eu tenho me
perguntado bastante sobre a identidade da raça que deve um dia ter habitado
estes labirintos. Não encontrei ossos nem crânios, embora eu tenha descoberto,
no pavimento superior, instrumentos curiosamente endurecidos de cobre. Nos poucos
andares seguintes, achei utensílios de pedra, até o décimo andar, onde eles
desapareceram. E, também no andar superior, encontrei porções de paredes
decoradas com pinturas grandemente desbotadas, mas evidenciando habilidade
indubitável. Estas gravuras pintadas, eu encontrei em todos os pavimentos,
inclusive no quinto, embora as decorações de cada andar fossem mais toscas que
as do andar superior, até as últimas pinturas serem meras manchas sem
significado, como as que um macaco faria com um pincel. Além disso, os
instrumentos de pedra eram muito mais toscos nos níveis inferiores, assim como
o feitio dos tetos, escadas, portadas, etc. Tem-se uma fantástica impressão de
uma raça aprisionada, cavando cada vez mais fundo dentro da terra negra, século
após século, e perdendo cada vez mais de seus atributos humanos, à medida que
afundava a cada novo nível.
“O
décimo-quinto andar não tem rima nem razão; os túneis correm sem rumo e sem
plano aparente – assumindo um contraste com o pavimento mais alto, o qual é um
triunfo da arquitetura primitiva, de modo que é difícil acreditar que tenham
sido construídas pela mesma raça. Muitos séculos devem ter se passado entre a
construção das duas camadas, e os construtores devem ter se degradado muito.
Mas a décima-quinta camada não é o fim destas tocas misteriosas.
“A abertura da
portada na única escada da camada mais alta foi bloqueada por pedras, que
haviam caído do teto – provavelmente há centenas de anos, antes do velho Capitão
Jacob descobrir aqueles túneis. Levado pela curiosidade, tirei os escombros,
apesar daquilo exigir demais de minha força, e abri um buraco na pilha hoje
mesmo, embora eu não tivesse tempo de explorar o que havia embaixo. Eu, de
fato, duvido que pudesse fazê-lo, pois minha luz me mostrou, não a sucessão
usual de degraus de pedra, mas um poço íngreme e liso, levando à negrura lá
embaixo. Um macaco ou uma serpente pode subir e descer por ele, mas não um ser
humano. Para quais fossos ele guia, eu não me importo em sequer tentar
imaginar. Por alguma razão, a descoberta de que a décima-quinta camada não era
a do poço não-pisado me deu uma estranha sensação arrepiante, e me levou a
fantásticas conjecturas sobre o destino final da raça que outrora viveu nestas
colinas. Supus que os escavadores, afundando cada vez mais na escala da vida,
haviam se extinguido nas camadas mais baixas, embora eu não tenha achado nenhum
resto para justificar minhas teorias. As camadas mais baixas não ficam em rocha
quase sólida, como as que estão mais próximas da superfície. Elas estão em
terra negra e numa espécie de pedra bem mole, e foram aparentemente cavadas com
os utensílios mais primitivos; em alguns lugares, elas até parecem ter sido
cavadas com dedos e unhas. Poderiam ser tocas de animais, exceto pela tentativa
evidente de imitar os sistemas mais bem-organizados acima. Mas, sob a
décima-quinta camada, como pude ver, mesmo através de minhas investigações
superficiais desde acima, toda imitação pára; as escavações sob a décima-quinta
camada são buracos loucos e brutos; e, para quais profundezas eles descem, não
tenho desejo de saber.
“Sou
perseguido por fantásticas especulações no tocante à identidade da raça, que literalmente
afundou na terra e desapareceu em suas profundezas negras há tanto tempo. Uma
lenda insistia, entre índios destes arredores, que, muitos séculos antes da
chegada dos homens brancos, seus ancestrais expulsaram uma estranha raça
estrangeira para dentro das cavernas das Colinas de Dagoth, e a trancou ali
para que morresse. Que não morreram, mas sobreviveram de alguma forma por, pelo
menos, muitos séculos, é evidente. Quem eram, de onde vieram e qual foi seu
destino final, nunca se saberá. Antropólogos podem catar alguma evidência das
pinturas na camada mais alta, mas não pretendo que ninguém venha saber sobre
essas tocas. Alguns destes desenhos obscuros retratam inconfundivelmente índios
em guerra com homens evidentemente da mesma raça que os artistas. Estes
modelos, eu me aventuraria a dizer, lembram mais o tipo caucasiano que o
indígena.
“Mas está
chegando a hora de minha visita ao meu amado irmão. Irei pela porta no Cabo do
Contrabandista, e retornarei pelo mesmo caminho. Alcançarei a tumba antes do
meu irmão, por mais rápido que ele venha – e eu sei que ele virá. Então, quando
o ato estiver feito, sairei da tumba, e nenhum homem colocará novamente o pé
nestes corredores. Pois me certificarei de que a tumba não será aberta, e uma
conveniente explosão de dinamite derrubará rochas suficientes dos penhascos
acima, para selar de forma eficaz a porta no Cabo do Contrabandista para
sempre”.
Conrad pôs a
agenda dentro do bolso.
- Louco ou são
– ele disse sombriamente –, Jonas Kiles é um verdadeiro demônio. Não estou
muito surpreso, mas estou levemente chocado. Que plano infernal! Mas ele errou
em uma coisa: ele aparentemente supunha que Job viria sozinho para o túmulo. A
prova de que ele não calculou o bastante.
- Basicamente.
– respondi – Mas, no que diz respeito a Job, Jonas teve sucesso em seu plano
diabólico: ele conseguiu matar o irmão, de alguma forma. Evidentemente, ele
estava na tumba quando Job entrou. Ele, de alguma forma, o aterrorizou até a
morte, e então, evidentemente percebendo nossa presença, escapuliu pela porta
secreta.
Conrad sacudiu
a cabeça. Um nervosismo crescente ficava evidente em suas maneiras, à medida
que ele continuava a leitura do diário. De vez em quando, ele parava e erguia a
cabeça em atitude de escuta.
- O’Donnel,
não acredito que foi Jonas a quem Job viu no caixão... mudei um tanto de opinião.
Uma perversa mente humana estava inicialmente por trás de tudo isto, mas alguns
aspectos deste assunto, eu não posso atribuir à humanidade.
“Aquele grito
que ouvimos no Cabo, a condição desta sala, a ausência de Jonas, tudo indica
algo ainda mais obscuro e sinistro que o plano de assassinato feito por Jonas
Kiles”.
- O que você
quer dizer? – perguntei inquieto.
- Suponha que
a raça que cavou estes túneis não morreu! – ele sussurrou – Suponha que seus
descendentes ainda vivam, em algum estado de existência anormal, nos fossos
negros sob os andares dos corredores! Jonas menciona, em seus apontamentos, que
ele pensou ter ouvido sons furtivos, como o de coisas rastejando desde abaixo!
- Mas ele
morou nestes túneis durante uma semana. – adverti.
- Você esquece
que o poço que leva aos fossos foi obstruído até hoje, quando ele removeu as
rochas. O’Donnel, eu creio que os fossos mais baixos são habitados, que as
criaturas acharam seu caminho até estes corredores, e que foi a visão de uma
delas, dormindo no caixão, que matou Job Kiles!
- Mas isto é
completa loucura! – exclamei.
- Mas estes
túneis já foram habitados em tempos passados e, de acordo com o que lemos, os
habitantes devem ter decaído a um nível incrivelmente baixo de vida. Que prova
temos de que seus descendentes não continuaram vivendo nos horríveis buracos
negros que Jonas viu sob o compartimento mais baixo? Ouça!
Ele apagou a
lanterna e ficamos na escuridão por alguns minutos. De algum lugar, ouvi um
fraco e deslizante barulho rastejante. Deslizamos furtivamente para dentro do
túnel.
- É Jonas
Kiles! – eu sussurrei, mas uma sensação gelada subiu e desceu por minha
espinha.
- Então, ele
estava se escondendo lá embaixo. – murmurou Conrad – Os sons vêm da escada...
como se algo rastejasse de baixo. Não ouso acender a lanterna... se ele estiver
armado, pode sacar sua arma.
Eu me
perguntava por que Conrad, que tinha nervos de ferro na presença de inimigos
humanos, estaria tremendo como uma folha. Eu me perguntava por que pingos gelados
de horror sem nome estariam percorrendo minha espinha. E logo eu estava eletrizado.
De algum lugar de trás do túnel, na direção pela qual havíamos chegado, ouvi
outro som suave e repelente.
E, naquele
instante, os dedos de Conrad afundaram como aço em meu braço. Na escuridão tenebrosa
sob nós, duas faíscas amarelas e oblíquas cintilaram subitamente.
- Meu Deus! –
veio o sussurro chocado de Conrad – Não é Jonas Kiles!
Enquanto
falávamos, outro par se juntou ao primeiro – subitamente, a escuridão bem
abaixo de nós estava viva com flutuantes brilhos amarelos, como estrelas
malignas refletidas num golfo anoitecido. Eles fluíam escada acima em nossa
direção, silenciosos exceto por aquele detestável som deslizante. Um nojento
cheiro terroso fluía até nossas narinas.
- Para trás,
em nome de Deus! – ofegou Conrad, e começamos a recuar da escada, em direção ao
túnel pelo qual tínhamos chegado. Então, veio subitamente a investida de algum
corpo pesado através do ar, e, girando, atirei cega e a queima-roupa na
escuridão. E meu grito, quando o tiro iluminou momentaneamente as sombras, foi
ecoado por Conrad. No instante seguinte, corríamos pelo túnel como homens
correndo do inferno, enquanto, atrás de nós, algo caía pesadamente, se debatia
e espojava no chão, em suas convulsões de morte.
- Acenda sua lanterna.
– ofeguei – Não podemos nos perder nestes labirintos infernais.
O raio de luz
apunhalou a escuridão à nossa frente, e nos mostrou o corredor externo, onde
havíamos visto pela primeira vez a seta. Lá, nós paramos por um instante, e
Conrad dirigiu sua luz de volta ao túnel. Só vimos a escuridão vazia, mas, além
daquele curto raio de luz, só Deus sabe que horrores rastejavam pela escuridão.
- Meu Deus!
Meu Deus! – Conrad ofegou – Você viu? Você viu?
- Não sei! –
ofeguei – Vislumbrei algo semelhante a uma sombra voadora, no clarão do tiro.
Não era um homem... tinha a cabeça semelhante à de um cão...
- Eu não
estava olhando naquela direção. – ele sussurrou – Eu olhava escada abaixo,
quando o clarão de sua arma cortou a escuridão.
- O que você
viu? – minha pele estava úmida de suor frio.
- Palavras
humanas não são capazes de descrever! – ele gritou – A terra negra ganhou vida,
como se houvesse vermes gigantes. A escuridão se aglomerando com vida blasfema.
Em nome de Deus, vamos sair daqui... por este corredor, até o túmulo!
Mas, quando
demos um passo adiante, fomos paralisados por sons furtivos à nossa frente.
- Os
corredores estão inçados deles! – sussurrou Conrad – Rápido! Pelo outro caminho!
Este corredor segue a linha da colina e deve levar até a porta no Cabo do Contrabandista.
Até o dia da
minha morte, eu me lembrarei daquela fuga através daquele negro corredor
silencioso, com o horror que se movia furtivamente aos nossos calcanhares. Por
um momento, achei que algum espectro com presas de demônio pularia sobre nossas
costas, ou sairia da escuridão à nossa frente. Então, Conrad, dirigindo sua luz
turva para a frente, deu um soluço ofegante de alívio.
- A porta,
finalmente. Meu Deus, o que é isto?
Quando sua
lanterna brilhara sobre uma pesada porta com tranca de ferro, com uma chave
pesada na fechadura maciça, ele havia tropeçado sobre algo que jazia caído ao
chão. Sua luz mostrava uma contorcida forma humana, sua destruída cabeça
jazendo numa poça de sangue. O rosto estava irreconhecível, mas conhecíamos a
forma magra, ainda vestida em roupas de túmulo. A verdadeira Morte havia
finalmente alcançado Jonas Kiles.
- O grito
quando passamos pelo Cabo esta noite! – sussurrou Conrad – Era seu guincho de
morte! Ele havia retornado aos túneis, após se mostrar para seu irmão... e o horror
caiu sobre ele na escuridão!
Súbito,
enquanto nos erguíamos sobre o corpo, ouvimos novamente aquele maldito e
deslizante ruído rastejante na escuridão. Enlouquecidos, saltamos até a porta;
giramos violentamente a chave e abrimos bruscamente a porta. Com um soluço de
alívio, cambaleamos até a noite enluarada. Por um instante, a porta se abriu
atrás de nós; logo, quando nos viramos para olhar, uma rajada feroz de vento a
fechou.
Mas, antes que
ela se fechasse, uma figura medonha saltou em nossa direção, meio iluminada
pelos esparsos raios de lua: o esparramado corpo mutilado e, sobre ele, uma
cinza monstruosidade bamboleante – um horror de olhos flamejantes e cabeça de
cão, tal como loucos vêem em negros pesadelos. Logo, a porta que se fechara
sumiu de vista, e fugimos através da inclinação sob o luar móvel. Ouvi Conrad
balbuciar:
- Crias dos
fossos negros de loucura e noite eterna! Obscenidades rastejantes fervilhando
no lodo das profundezas inimagináveis da terra... o horror supremo do retrocesso...
o ponto mais baixo da degeneração humana... bom Deus, seus ancestrais eram homens!
Os fossos sob a décima-quinta camada, para dentro de quais infernos de blasfemo
horror negro eles afundam, e por quais hordas demoníacas são povoados? Deus
proteja os filhos dos homens daqueles... Aqueles que moram sob as tumbas!
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão e Fernando Neeser de
Aragão.