PREFÁCIO:
A PRINCÍPIO,
EU NÃO TINHA a intenção de contar o que havia acontecido com Esaú Cairn, nem
sequer dissipar o mistério que cercou seu desaparecimento. Foi Cairn em pessoa
quem me fez mudar de opinião. Sem dúvida, sentiu o desejo natural e humano de
contar ao mundo – um mundo ao qual havia renegado, da mesma forma que seus
habitantes – sua estranha história e a daquele planeta, que estes jamais
poderão alcançar. O que ele desejava dizer e narrar é sua história. De minha
parte, recuso-me a divulgar o papel que desempenhei neste intercâmbio; por isso
calarei sobre os meios pelos quais pude enviar Esaú Cairn de sua terra natal
para um planeta que faz parte de um sistema solar, desconhecido inclusive pelos
astrônomos mais avançados. Tampouco revelarei de que maneira consegui
posteriormente comunicar-me com ele e escutar sua história de sua própria boca,
com uma voz que se fazia ouvir espectralmente, através do cosmos.
Mas posso
afirmar uma coisa: nada foi premeditado. Encontrei o Grande Segredo totalmente
por acaso, durante uma experiência científica, e jamais sonhei em utilizá-lo de
modo prático até a famosa noite em que Esaú Cairn se introduziu em meu laboratório,
encoberto pela escuridão... um homem encurralado, ao qual o sangue humano cobria
as mãos. Foi o acaso que o conduziu ali, o instinto cego do animal que busca um
esconderijo no qual possa travar seu último combate.
Igualmente
posso afirmar, de forma definitiva e categórica, que, ainda que todas as provas
estejam contra ele, Esaú Cairn não é – nem jamais foi – um criminoso. Naquele
assunto, ele foi unicamente um pião envolto num aparato político corrompido,
que se voltou contra ele quando se negou a obedecer novas ordens e foi
consciente de sua situação. Em termos gerais, seus atos nesta vida, atos que
poderiam sugerir uma vida violenta e indisciplinada, respondem somente por seu
espírito, deveras particular.
A ciência
começa a perceber de que há uma verdade mais profunda na expressão popular
"nascido fora de sua época".
Certas naturezas não estão de acordo com certas fases ou períodos da história
da humanidade, e estas naturezas, quando a sorte as projeta para uma época que
é estranha a suas reações e emoções, sofrem grandes dificuldades para
adaptar-se a seu meio. Isto não é nada além de um novo exemplo das leis impenetráveis
da Natureza; basta, às vezes, uma única contração cósmica ou uma ligeira brecha
para que sejam desviadas, com resultados catastróficos para o indivíduo e para
as massas.
Muitos homens
nasceram fora de sua época; Esaú Cairn havia nascido fora de seu próprio tempo.
Não era débil de espírito nem um selvagem primitivo, e sua inteligência era
muito superior à média; contudo, não havia sido feito para os tempos modernos,
nos quais se sentia exilado. Nunca conheci um homem de tamanha inteligência e
que fosse tão incapaz de integrar-se a uma civilização feita para a máquina.
(Perceberão
que falo dele no passado; Esaú Cairn prossegue vivendo no que concerne ao
cosmos, porém, para a Terra, está morto, já que nunca mais tornará a vê-la.).
De natureza
agitada, não suportava nenhum contratempo, nem qualquer autoridade. Não tinha
nada de fanfarrão, e, ao mesmo tempo, negava-se a dobrar-se ao que a seus olhos
era uma violação de seus direitos, ainda que fossem os mais ínfimos. Era primitivo
em suas cóleras, com um temperamento de tal bravura que não cedia em nada a ninguém
deste planeta. Sua vida foi uma sucessão de repressões. Inclusive nas provas de
atletismo, tinha de conter-se, com medo de ferir seus adversários. Em uma
palavra, Esaú Cairn era um fenômeno: tratava-se de um homem cujo corpo, e
também espírito, estavam mais em harmonia com os tempos primitivos.
Nascido no
sudoeste dos Estados Unidos, descendia de uma família de pioneiros, e pertencia
a uma raça na qual a violência era uma tradição; estava familiarizado com a
guerra e seus ódios tenazes e a luta constante contra o homem e a natureza. A
região montanhosa na qual passou sua infância seguia esta tradição. O combate –
o confronto físico – era um modo de vida para ele. Sem este confronto,
sentia-se e mostrava-se instável e incerto. Por sua particular constituição
física, o gozo pleno desse confronto – de forma legítima, num ringue ou num
campo de futebol americano – fora-lhe negado. Sua carreira de jogador de
futebol americano estava marcada por numerosos incidentes – golpes e lesões
infligidas aos homens que o encaravam – e acabou apontado como um homem brutal,
coisa que não era necessária; que se empenhava em machucar seus adversários e
não para vencer uma partida. Aquilo era algo injusto. As feridas ocasionadas
eram resultado unicamente do uso de sua força prodigiosa, sempre superior à dos
homens que se lhe opunham. Cairn não era um gigante de espírito lento e
temperamento fleumático, como normalmente são os homens muito fortes; vibrava
com uma vida impetuosa, ardia com uma energia dinâmica. Se ele se deixava levar
pelo prazer do embate, e não se obrigava a controlar sua própria força, o
resultado eram membros partidos ou fraturas de crânio em seus adversários.
Por essa razão
abandonou os estudos universitários, decepcionado e cheio de amargura, para
converter-se em boxeador profissional. Novamente o destino se aferrava a seus
passos. Durante seu treinamento, inclusive antes de seu primeiro combate no ringue,
teve a desgraça de ferir mortalmente seu sparing.
Tão logo os jornalistas souberam do incidente, apregoaram-no de modo
desproporcional. O resultado foi que retiraram a licença de Cairn.
Desorientado,
insatisfeito, percorreu o mundo como um Hércules incapaz de encontrar repouso,
em busca de uma saída para a imensa vitalidade que nele havia, buscando
inutilmente uma forma de vida suficientemente selvagem e rude para satisfazer
seus febris desejos, herdados dos dias rubros e brumosos da juventude do mundo.
Sobre a última
explosão de fúria cega que o desterrou para sempre da vida e do mundo pelo qual
errava feito um estranho, tenho a dizer bem poucas palavras. O sucedido criou
sensação durante nove dias, e os jornalistas o exploraram com grandes manchetes
sensacionalistas. Era uma história tão velha quanto o mundo... Um governo corrupto,
um político desonesto, e um homem escolhido, contra sua vontade, para ser utilizado
como um instrumento, enfim, servir de marionete.
Cairn, uma
pessoa inquieta e cansada da monotonia de uma vida para a qual não fora feito,
foi o instrumento ideal... durante certo tempo. Mas Cairn não era nem um criminoso,
nem um imbecil. Compreendeu seu jogo mais depressa do que esperavam, e se opôs
firmemente, de modo surpreendente, já que não o conheciam realmente.
Assim, pois, e
de tal forma, as conseqüências não teriam sido tão violentas, se o homem que
utilizou Cairn e arruinou sua reputação tivesse sido mais inteligente. Acostumado
a ter os homens sob seus pés e a vê-los arrastarem-se para pedir clemência, senhor Blayne não podia compreender que
tinha diante de si um homem para o qual seu poder e fortuna não significavam
coisa alguma.
Cairn havia
aprendido a controlar rudemente a si mesmo; foi preciso um insulto grosseiro e
um mau passo da parte de Blayne para fazê-lo perder a cabeça. Pela primeira vez
em sua vida, a natureza selvagem de Cairn se inflamou e explodiu. Toda uma vida
enclausurada por proibições e repressões vazou para o exterior e converteu-se
num murro que arrebentou o crânio de Blayne, como se fosse uma casca de ovo, o
que o deixou estendido no chão, morto, atrás da escrivaninha da qual havia
governado toda a cidade durante inúmeros anos. Cairn não era estúpido. E,
enquanto a bruma escarlate da raiva e da ira se dissipava diante de seus olhos,
compreendeu que não poderia escapar da vingança da quadrilha política que
controlava a cidade.
Não foi por
medo que fugiu da casa de Blayne; foi porque era empurrado por seu instinto
primitivo; e também porque buscava um lugar mais apropriado para enfrentar seus
perseguidores, e bater-se até a morte.
E foi o acaso
que o conduziu até meu laboratório.
Tão logo
entrou, quis sair novamente, para evitar que eu acabasse implicado no caso, mas
o persuadi para que ficasse e me contasse sua história. Havia muito tempo eu já
esperava uma catástrofe daquele tipo. O fato de haver se contido por tanto
tempo demonstrava seu temperamento de aço. Sua natureza era tão selvagem e
indômita quanto a de um leão de juba espessa.
Não tinha
nenhum plano... somente a intenção de se fortalecer em algum lugar, de esperar
a chegada da polícia e bater-se até ser acorrentado. A princípio concordei com
ele, pois não via uma alternativa melhor. Eu não era tão ingênuo a ponto de
acreditar que tivesse a mais ínfima oportunidade, se chegasse a ser julgado,
com todas as provas que apresentariam contra ele. Depois me veio bruscamente
uma idéia à mente – tão fantástica e incrível, mas, contudo, tão lógica! E
expus tudo ao meu companheiro. Falei do Grande Segredo, e dei-lhe provas de
suas possibilidades.
Resumindo,
disse-lhe que seria melhor tentar a sorte lançando-se através do espaço, que
permanecer ali e esperar a morte certa.
Ele aceitou.
Não havia lugar no universo que pudesse ser suscetível de vida humana. Mas eu
havia estudado e sondado os mistérios – mistérios que ultrapassam o conhecimento
dos homens –, e contemplado universos muito além dos universos conhecidos.
Minha escolha recaiu sobre o único planeta no qual sabia que podiam existir
seres humanos: o planeta selvagem, primitivo e estranho que eu havia batizado
com o nome de Almuric.
Cairn
informou-se comigo de todos os riscos e incertezas da aventura. Mas não teve
medo... e o fizemos. Esaú Cairn deixou seu planeta natal para chegar a um mundo
que flutua, longínquo, no espaço distante... um mundo desconhecido, insólito e
extraordinário.
Almuric (fragmento)
(por Robert E.
Howard)
Escrito em 1934
CAPÍTULO I
A TRANSIÇÃO
FOI TÃO RÁPIDA e instantânea que só me pareceu que havia se passado um segundo,
entre o momento em que me instalei na estranha máquina do professor Hildebrand,
e o momento em que me encontrei de pé, à luz do sol que inundava uma imensa
planície. Não havia a menor dúvida. Havia sido transportado para outro mundo. A
paisagem era menos grotesca e fantástica do que eu havia imaginado; porém,
indiscutivelmente, era diferente de tudo que pudesse existir na Terra.
Antes de
prestar demasiada atenção ao que me rodeava, examinei minha própria pessoa,
para ver se havia sobrevivido àquela viagem terrífica sem nenhuma lesão grave.
Aparentemente, estava são e salvo. As diferentes partes de meu corpo
funcionavam com sua força habitual. Mas estava inteiramente nu. Hildebrand
havia-me advertido que as substâncias inorgânicas não resistiriam à
transmutação. Só a matéria viva podia atravessar sem perigo e sem danos as
intrincadas trincheiras que separam os planetas. Afortunadamente para mim, não
havia chegado a um reino de gelo e neve. Um calor pesado, como de verão, banhava
a planície. Os raios do sol acariciavam agradavelmente meus membros nus.
Era uma
planície imensa, que se estendia por toda parte, coberta por uma erva abundante
e verde. Ao longe, a erva era mais alta e pude ver o brilho d'água. Aquele fenômeno
se produzia em toda parte ao longo da planície. Discerni a rota sinuosa de
vagos rios, aparentemente não muito importantes, e pontos negros que se
espalhavam através da erva nas cercanias dos rios. Mas fui incapaz de
determinar sua natureza. Não obstante, era evidente que não havia sido
transportado para um planeta desabitado, ainda que eu não estivesse em posição
de poder adivinhar a natureza de seus habitantes. Minha imaginação podia apenas
povoar aquelas vastas extensões com formas e sombras de pesadelo.
É uma sensação
aterrorizante a de ser transportado bruscamente de seu mundo natal para um
planeta distinto, desconhecido e completamente diferente. Dizer que não estava
atemorizado por aquela idéia, que não tremia e que não sentia uma sensação de
insignificância, seria uma hipocrisia de minha parte.
Eu, que jamais
havia conhecido o medo, me converti em uma massa de nervos que se retorcia e
saltava, e dei uma olhada assustada para minha própria sombra. Fui consciente
da extrema debilidade do homem; meu corpo robusto, meus músculos pujantes, pareciam-me
tão débeis e irrisórios quanto o corpo de um recém-nascido. Como poderia fazer
frente àquele mundo desconhecido? Naquele preciso instante, teria voltado à Terra
de boa vontade e teria enfrentado a justiça que me esperava, tudo antes que
ficar e confrontar os terrores sem nome com os quais minha imaginação povoava
aquele mundo que descobrira. Mas não tardei em comprovar que meus músculos – aos
quais depreciava naquele preciso instante – seriam capazes de me fazer triunfar
sobre perigos bem maiores do que poderia imaginar.
*
* *
Um ligeiro
ruído às minhas costas me fez virar e, estupefato, vi o primeiro habitante de
Almuric que encontrei. E aquela visão, ainda que ameaçadora e impressionante, quebrou
o gelo que travava minhas veias e fez reaparecer em meu interior um pouco da
coragem que se debilitava pouco a pouco em mim, pois aquilo que é tangível e
concreto – ainda que perigoso – não pode jamais ser tão aterrador quanto o
Desconhecido.
À primeira
vista, e um pouco aturdido, pensei que se tratasse de um gorila o que se achava
diante de mim. Em seguida àquele pensamento, percebi que se tratava de um homem,
mas que aquele homem não se parecia em nada aos homens da Terra nem a qualquer
outra coisa semelhante.
Não era muito
mais alto que eu, mas sim muito mais corpulento e musculoso, com ombros
quadrados e fortes membros, com músculos tão marcados quanto cordas. Trajava
uma tanga de um material que parecia seda, uma cinta de couro dobrada formando
um amplo cinturão, com uma longa empunhadura sobressaindo. Calçava sandálias de
correias altas. Percebi aqueles detalhes em uma fração de segundo, pois minha atenção
logo se fixou, com fascinação, no rosto da criatura.
É difícil
representar ou descrever um rosto daqueles. O homem tinha a cabeça fundida
entre os ombros, musculosos, e seu pescoço era tão grosso e curto que quase não
se via. A mandíbula era quadrada e poderosa, e quando ergueu os finos e amplos
lábios com atrevimento, entrevi presas brutais. Tinha uma barba curta e rala
que cobria-lhe o queixo; o lábio superior era adornado por um bigode. O nariz
era muito rudimentar, com grandes fossas abertas. Os olhos eram pequenos e
injetados de sangue, cinzentos como gelo. Logo pude ver a testa, muito cabeluda
e negra na região das sobrancelhas, com a frente baixa e fugidia, que se inclinava
e desaparecia sob uma vegetação de pêlo liso e muito abundante. As orelhas eram
pequenas e coladas ao crânio.
A cabeleira e
a barba eram de uma cor negra quase azulada, muito escura; os membros e o corpo
da criatura estavam quase totalmente recobertos de uma pelagem da mesma cor. Na
realidade, não era tão peludo quanto um macaco, mais possuía mais pêlos que
qualquer ser humano que jamais vi. Em seguida, percebi que aquele ser, hostil
ou não, tinha um aspecto impressionante. Um poder incrível emanava de sua
pessoa. Dureza, ferocidade e uma força brutal. Sua ossatura era poderosa e
muito ampla. Sob a pele cabeluda, saltavam músculos que pareciam mais duros que
o aço. Além disso, aquela perigosa força não era apenas expressada pelo corpo.
Seu aspecto, seu porte, seu olhar, refletiam uma força física terrífica,
respaldada por uma mente cruel e implacável. Logo que cruzei meu olhar com o
seu, injetado de sangue, senti que uma onda de ferocidade nos atravessou. Sua
estranha atitude era arrogante e provocativa. Senti que meus músculos se
tensionavam e endureciam instintivamente.
Mas meu
sentimento foi cortado instantaneamente pela estupefação, ao ver que se
expressava num inglês perfeito.
- Thak! Mas
que tipo de homem é você? – A voz era dura, seca e insultuosa. Não havia nenhum
respeito ou limitação nela. Seu comportamento não se modificara, era ainda o instinto
primitivo. Novamente, senti que me invadia uma onda de ódio, mas me contive.
- Sou Esaú
Cairn – respondi cortante, e logo me calei sem saber como explicar minha
presença em seu planeta.
Seu olhar
arrogante percorreu rapidamente meus membros sem pêlos e meu rosto imberbe.
Quando voltou
a falar, o fez com um desprezo insuportável.
- Por Thak! És
um homem ou uma mulher?
Como única
resposta, apliquei-lhe um murro que o lançou rodopiando ao solo.
Aquele gesto
foi totalmente instintivo. Novamente havia sido traído por minha fúria
primitiva. Mas não tive tempo de reprovar minha atitude. Com um grito de raiva
bestial, meu inimigo se ergueu de um salto e lançou-se sobre mim, grunhindo e
espumando. Enfrentei-o, peito contra peito, sendo tão temerário quanto ele no
tocante à ira. Instantes mais tarde encontrei-me defendendo seriamente minha vida.
Eu, que sempre
havia sido obrigado a refrear e conter minha força por medo de machucar meus
semelhantes, pela primeira vez em minha vida me encontrava nas garras de um
homem muito mais forte do que eu. Apercebi-me daquele fato no primeiro assalto;
e, somente com grandes esforços, foi que consegui livrar-me do seu poderoso
abraço.
O combate foi
breve e mortal. O que me salvou foi o fato de meu adversário ignorar totalmente
a arte do pugilato. Ele podia – e o fez – assestar golpes poderosos com os punhos
cerrados, mas seus golpes eram mal-dirigidos e careciam totalmente de método e
precisão. Por três vezes, me vi bastante mal para poder sair de suas garras,
que, de outro modo, me teriam partido a coluna vertebral. Ele não sabia se esquivar
aos golpes. Nenhum homem na Terra teria sobrevivido ao terrível castigo ao qual
o submeti. Contudo, ele prosseguia lançando-se contra mim, estendendo as poderosas
mãos para me agarrar e derrubar. Tinha as unhas tão afiadas quanto garras. Logo
comecei a sangrar por cerca de vinte feridas. Não chegava a compreender por que
ele não desembainhava o punhal. Talvez porque se acreditasse capaz de
esmagar-me com as mãos nuas... o que parecia ser verdade. Finalmente, e meio
cego pelos murros, começou a sangrar pelas orelhas e pela boca partida. Quis
sacar a arma. E foi aquilo que me permitiu obter a vitória.
Desvencilhando-se
com a metade do corpo, levantou-se abandonando todas as precauções e sacando a
adaga. Ao mesmo tempo, enfiei-lhe a esquerda no estômago com toda a força de
meu corpo e de minhas pernas. Perdeu a respiração e lançou um grito enquanto
meu punho entrava em seu ventre até a munheca. Titubeou e abriu a boca bruscamente.
Meu punho direito se achatou contra sua mandíbula gotejante. Aquele murro saiu
de minhas espáduas, com todo meu peso e força. Caiu como um boi no matadouro e
ficou estendido no chão, imóvel. O sangue manchava-lhe a barba. O último golpe
havia-lhe arrebentado a boca, da comissura dos lábios até as orelhas.
Deslocara-lhe a mandíbula.
*
* *
Recuperando-me
da fúria do combate, com os músculos ainda doloridos pelas presas terríficas,
movi as articulações – tinha os dedos tensos e em carne viva – e baixei o olhar
para minha vítima, perguntando-me se acabava de decidir minha própria sorte.
Com certeza, a partir daquele momento não poderia esperar mais que uma recepção
hostil dos habitantes de Almuric. Olho por olho, dente por dente. Que ao menos
fosse por uma boa razão! Inclinei-me e despojei meu adversário da tanga, do
cinturão e da arma para vesti-los eu mesmo. Uma vez isto feito, senti certa confiança
em mim mesmo. Pelo menos estava meio vestido e meio armado.
Examinei o
punhal com grande interesse. Nunca tinha visto uma arma tão mortal: a lâmina
tinha quase cinqüenta centímetros de comprimento, de fio duplo, e era mais afiada
que uma navalha. Era larga na base e terminava em uma ponta diamantina. As
guardas e a empunhadura eram de prata, recobertas de uma substância parecida
com pele. A lâmina era, indiscutivelmente, de aço, mas de uma qualidade que eu
jamais havia encontrado. Toda ela era uma obra de arte do armeiro, e parecia
indicar que provinha de uma cultura elevada.
Após haver
admirado minha nova arma, voltei a observar minha vítima. O homem começava a
voltar a si. O instinto me fez olhar ao redor, pela pradaria. Ao longe, ao sul,
vi um grupo de silhuetas que dirigiam-se para nós. Seguramente tratavam-se de
homens, e estavam armados. Pude ver os reflexos do sol no aço. Talvez
pertencessem à tribo de meu adversário. Se me encontrassem perto de seu companheiro
inconsciente, vestido com os troféus da conquista, sua atitude quanto a mim era
fácil de imaginar.
Procurei
rapidamente ao redor por um caminho de retirada ou um refúgio, fosse qual
fosse, e vi que a planície, a certa distância, acabava em umas colinas pouco
elevadas e cobertas de plantas. Havia outras colinas, ou montanhas mais importantes,
que se elevavam por detrás destas. Estavam ordenadas como uma serra. Com outro
olhar, percebi que as longínquas formas humanas haviam desaparecido entre as ervas
altas que bordejavam um dos rios, pelos quais deveriam passar antes de chegar
ao lugar onde eu me encontrava.
Sem esperar
mais, dei a volta e corri a grande velocidade para as colinas. Só afrouxei o
passo quando cheguei às primeiras ladeiras, onde me aventurei a olhar para
trás. Estava ofegante e o coração me golpeava o peito de modo que me sufocava.
Ainda podia ver meu adversário. Era uma forma minúscula na imensidão da
planície. Ao longe, o grupo que tratava de evitar havia aparecido e se dirigia diretamente
para o homem estendido no solo. Comecei a subir por uma pendente suave, suando
e tremendo pelo esforço. Uma vez chegado ao cume, olhei novamente para trás. As
silhuetas rodeavam meu desgraçado adversário. Então, desci rapidamente pela
pendente contrária e não voltei a vê-los.
Depois de uma
hora de carreira, cheguei a uma região muito acidentada, como nunca havia
visto. Por todas as partes havia abruptas pendentes, semeadas de grandes pedras
equilibradas que ameaçavam desmoronar e esmagar o viajante imprudente. Havia muitos
blocos de pedra nua, de cor avermelhada. A vegetação era rara, com exceção de algumas
árvores cujas ramagens eram tão largas quanto altos eram os troncos, além de
uma variedade vegetal rasteira e espinhosa; em algumas cresciam frutos e bagas
de uma cor muito especial. Colhi algumas e vi que as frutas que continham eram
grandes e carnosas, mas não me atrevi a comer. Começava a sentir fome.
Mas a sede me
preocupava mais que a fome, e ao menos esta poderia satisfazer. Ainda que
fazê-lo quase me custasse a vida. Desci por uma pendente muito escarpada e
cheguei a um vale estreito, rodeado de altos blocos de rocha; ao pé dos blocos
crescia abundante a vegetação rasteira das bagas.
No meio do
vale havia uma grande lagoa, aparentemente alimentada por uma fonte. A água
corria continuamente para o centro da lagoa, e um pequeno riacho saía dela,
descendo para o vale.
Aproximei-me
da lagoa com avidez. Agachando-me – uma erva espessa cobria a margem –, enfiei a
cabeça na água cristalina. A água também podia ser venenosa, mas tinha tanta
sede que corri o risco. Tinha um gosto algo estranho – coisa que sempre senti
ao beber a água de Almuric –, mas era deliciosamente fresca e doce. Foi tão
agradável para meus lábios secos que após sufocar a sede deixei-me ficar
estirado à margem da lagoa, desfrutando daquela sensação de tranqüilidade. Foi
um erro. Comer e beber rapidamente, dormir pouco, não permanecer muito tempo no
mesmo lugar... são as primeiras regras da vida selvagem; e quem não as observa
não vive muito tempo.
O calor do
sol, o rumor da água, a voluptuosa impressão de descanso e saciedade após a
fadiga e a sede... tudo aquilo atuou em mim como ópio e me deixou sonolento.
Mas um instinto não de todo consciente deve ter me alertado ao ouvir um ligeiro
roçagar... não era o murmúrio do riacho. Inclusive, antes que meu cérebro
interpretasse o ruído corretamente – algo como o que produziria um corpo
volumoso ao mover-se entre as ervas –, voltei-me empunhando o punhal.
No mesmo
instante, fui ensurdecido por um rugido formidável, seguido de um potente salto
pelo ar, e uma forma gigantesca caiu sobre o lugar no qual me encontrava no
momento anterior. Passou tão perto de mim, que suas garras afiadas me
arranharam os músculos. Não tive tempo de ver a natureza de meu agressor... só
tive a confusa impressão de que era enorme, ligeiro e parecido com um felino.
Girei para o lado a tempo de ver que a fera bufava e se lançava contra mim,
para golpear-me; a criatura atacou. Senti como suas garras entravam em minha
carne, dolorosamente; ao mesmo tempo, a água gelada tragou-nos a ambos. Soou um
miado contido e meio estrangulado, como se a fera tivesse engolido bastante
água. Havia algo ao meu lado que se debatia na água furiosamente, salpicando
lama ao meu redor. Quando alcancei a superfície, vi uma grande forma coberta de
lodo que desaparecia entre os arbustos, próximo dos maciços rochosos. O que era
não posso dizer, mas parecia mais com um leopardo do que com qualquer outra coisa;
contudo, era maior que qualquer outro animal da mesma espécie que já havia
visto. Examinando as margens rapidamente percebi que não havia mais inimigos, e
me arrastei para sair da lagoa, tiritando depois da imersão. A adaga ainda
estava na bainha, pois não havia tido tempo de sacá-la. Se não tivesse virado
para cair na lagoa, teria desembainhado; e, se tivesse arrastado meu agressor
comigo, isso poderia ter representado minha morte. Era evidente que aquele
animal tinha uma aversão inata à água, como qualquer outro felino.
Percebi que
tinha uma profunda ferida na coxa e quatro arranhões no ombro, onde havia sido
golpeado pelas garras. A ferida na perna sangrava abundantemente. Enfiei a
perna na água gelada, urrando no momento em que a cruel e atroz dor me
atravessava ao sentir o contato da água na pele em carne viva. Tinha a perna
quase intumescida, quando parou de sangrar.
Não sabia o
que fazer. Estava faminto e a noite se aproximava rapidamente, e ignorava se o
leopardo voltaria ou se qualquer outro predador rondaria por ali, à caça de
alguma presa. E, além de tudo, estava ferido. Um homem civilizado logo arrefece
e abandona o combate. Aquela ferida seria considerada por pessoas civilizadas
como razão suficiente para permanecer imóvel durante várias semanas, como um
inválido. Segundo os critérios da Terra, eu era forte e duro; no entanto, peguei-me
examinando a ferida com certo desespero e perguntando-me como iria curá-la. Alguns
instantes depois, aquela pergunta tornou-se um assunto secundário.
*
* *
Havia começado
a subir pelo vale, a caminho dos blocos de rocha, com a esperança de encontrar
uma gruta. Efetivamente, o ar fresco indicava que a noite não ia ser tão quente
quanto o dia. No mesmo instante, um clamor informe foi iniciado muito próximo
da entrada do vale. Voltei-me rapidamente e olhei inquieto para aquela direção.
Franqueando a crista surgiu o que tomei por uma matilha de hienas, a não ser
pelo alvoroço que faziam, o qual era muito mais demoníaco do que o poderia
fazer qualquer hiena da Terra. Não tive ilusões sobre seus propósitos. Vinham
por mim, com toda certeza.
A necessidade
tem poucos limites. Um instante antes, movia-me coxeando e lentamente, e
doía-me todo o corpo. Ao ver a matilha, corri desesperadamente para os blocos, como
se estivesse totalmente descansado e não tivesse nenhum arranhão. Cada passo me
causava uma dor aguda na coxa; a ferida havia aberto e sangrava abundantemente.
Apertei os dentes com força e fiz um duplo esforço.
Meus perseguidores
uivavam e corriam em minha direção, a uma velocidade tão terrível que quase
abandonei toda esperança de alcançar as árvores, antes que me alcançassem e
derrubassem. Suas mandíbulas se fechavam às minhas costas, quando subi pelas
ramagens das árvores e pus-me a escalar os galhos mais altos com um suspiro de
alívio. Mas, para meu horror, as hienas subiram pelos galhos, atrás de mim. Um
desesperado olhar para baixo mostrou-me que não se tratavam de verdadeiras
hienas; diferiam da espécie que eu conhecia – do mesmo modo que tudo em Almuric
difere sutilmente de seu equivalente na Terra. Aquelas feras tinham garras
curvas como os felinos e seus corpos eram suficientemente leves para permitir-lhes
subir nas árvores da mesma forma que os linces.
Dominado pelo
desespero, dispunha-me a lutar por minha vida, quando vi no paredão uma
saliência rochosa, bem acima de minha cabeça. Naquele lugar, a parede era profundamente
inclinada e as ramas da árvore a tocavam. Agarrei-me obstinadamente à parede
perigosamente abrupta, e consegui içar meu corpo lacerado e dolorido até a beirada,
onde fiquei prostrado, olhando meus perseguidores um pouco mais abaixo. As
hienas saltavam das ramagens mais altas e uivavam para mim como almas condenadas.
Estava claro que suas atitudes trepadoras não incluíam os paredões. Depois de
uma tentativa – na qual uma daquelas feras saltou na direção da saliência,
arranhou de forma frenética a borda rochosa e caiu no solo gritando horrivelmente
–, as alimárias deixaram de tentar alcançar-me.
Porém não
renunciaram à sua presa. As estrelas apareceram no céu, em estranhas
constelações desconhecidas que brilhavam com uma luz esbranquiçada num céu aveludado;
logo, uma lua dourada e enorme se ergueu acima dos despenhadeiros e verteu por
sobre as colinas uma luz fantástica. Meus guardiães continuavam postados nas ramagens
mais abaixo, uivando com ódio feroz e fome voraz.
O ar era gelado
e formou neve na rocha nua sobre a qual me achava. Tinha o corpo rígido e
anquilosado. Havia atado o cinturão ao redor da perna ferida como um torniquete;
a corrida devia ter rompido algumas veias, pois o sangue corria de modo alarmante.
Nunca passei uma
noite tão lamentável. Estava estendido sobre uma borda gelada, tremendo de
frio. Embaixo, os olhos ardentes e famintos de meus perseguidores se erguiam
contra mim e me observavam fixamente. Nas colinas escuras, ressoavam os rugidos
e uivos de monstros desconhecidos. Mugidos, gritos e lamentos atravessavam a noite.
E eu estava ali, nu, ferido, morrendo de frio, esfomeado, aterrado, na mesma
situação em que devia ter estado algum de meus ancestrais na longínqua Idade da
Pedra em meu planeta natal.
Compreendi
então por que nossos ancestrais pagãos adoravam o sol. Quando a fria lua
desapareceu e o sol de Almuric, com um halo dourado, surgiu acima das mais distantes
montanhas, pus-me a chorar de alegria. Abaixo de mim, as hienas grunhiram, se
agitaram, clamaram durante alguns instantes e logo desceram para procurar uma
presa mais fácil. Lentamente, o calor do sol penetrou por meus membros
amortecidos. Levantei-me rígido para saudar a chegada do dia, o mesmo que deve
ter feito aquele ancestral esquecido nos primeiros tempos da aurora da Terra.
Uns instantes
mais tarde, eu deixava a borda e descia pela árvore para recolher as nozes que
haviam em abundância entre os talos vizinhos. Desfalecia de fome e tomei uma decisão:
preferia morrer envenenado, ali mesmo, do que de inanição. Quebrei as cascas
espessas e mastiguei com avidez as carnudas nozes. Não podia me lembrar de uma
comida terrestre – nem sequer a mais refinada – que me parecesse mais
deliciosa. Não tive nenhum resultado pernicioso; as nozes eram excelentes e
nutritivas. Começava a dominar aquele meio, ao menos em relação à comida. Havia
passado por um dos obstáculos que se opunham à vida em Almuric.
*
* *
Contar
detalhadamente o que se passou nos meses seguintes seria fastidioso. Abriguei-me
nas colinas ao custo de sofrimentos e perigos que nenhum homem na Terra jamais
conheceu em milhares de anos. Sinto-me orgulhoso em dizer que só um homem de
força e temperamento excepcional conseguiria sobreviver como eu. E não me contentei
apenas em sobreviver. Finalmente, consegui levar uma existência normal. No
começo, não me atrevia a deixar o vale, onde estava certo de encontrar comida e
água. Construí uma espécie de ninho na borda rochosa, com galhos e folhas, no
qual dormia pela noite. Dormir? O termo é equivocado. Abrigava-me ali, tentando
não morrer de frio, lutando ferozmente para sobreviver à noite. De dia dormia um
pouco, e finalmente aprendi a dormir em qualquer lugar e a qualquer momento, e
tão sensivelmente que o menor ruído me despertava. O resto do meu tempo, eu dedicava
a explorar meu vale e as colinas vizinhas; colhia e comia nozes. E minhas
modestas explorações não corriam sem incidentes.
Às vezes,
precisava correr a toda pressa para os paredões ou para as árvores, com a morte
perseguindo-me de modo atroz. As colinas eram infestadas de animais ferozes, e
todos eles pareciam ser carnívoros.
Foi aquele
fato que me fez permanecer no vale, onde ao menos me encontrava em relativa
segurança. O que me fez finalmente deixá-lo foi a razão que sempre impulsionou
a raça humana a emigrar e avançar – desde o primeiro antropomorfo até o
primeiro colono vindo da Europa: a busca por comida. As provisões de nozes se
esgotavam rapidamente. As árvores começavam a se esvaziar. Eu não era o único
responsável por isso, ainda que possuísse uma fome feroz como conseqüência de
meus constantes exercícios; mas também havia outros que comiam as nozes...
criaturas enormes e peludas, parecidas com ursos, e animais parecidos com
babuínos recobertos de espessa pelagem. Aqueles animais comiam nozes, mas eram
onívoros a julgar pela atenção que me davam. Os ursos eram bastante fáceis de
evitar; eram montanhas de carne e músculos, mas não podiam subir nas árvores e
tinham péssima visão. Em seguida, aprendi a temer e a odiar os babuínos. Perseguiam-me
quando me viam; podiam correr e subir, e os paredões abruptos não os detinham.
Um deles me
perseguiu até meu abrigo e trepou no alto da árvore para chegar até a borda.
Pelo menos era essa sua intenção, mas o homem é sempre muito perigoso quando se
vê acossado. Eu já fora perseguido demais. Quando a monstruosidade simiesca se
agarrou à saliência rochosa, como se fosse um homem, cravei-lhe o punhal entre
os ombros com tal furor que literalmente preguei-a na rocha; a ponta afiada enfiou-se
bem uns três centímetros na pedra do paredão.
Aquele
incidente me mostrou tanto a dureza da lâmina quanto a força crescente de meus
músculos. Eu, que me havia contado entre os homens mais fortes de meu mundo original,
acreditava ser um dos mais débeis em Almuric. Contudo, podia contornar aquela
deficiência, graças tanto ao meu cérebro quanto aos meus músculos, e começava a
perceber isso.
Como precisava
estar endurecido para sobreviver, endureci-me. Minha pele, bronzeada pelo sol e
curtida pelos elementos, tornou-se insensível ao calor e ao frio – algo que eu não
acreditava que fosse possível. Músculos que até então havia ignorado possuir se
fizeram evidentes. Adquiri uma força que nenhum terrestre conheceu há muitos
séculos.
Pouco tempo
antes de deixar meu planeta natal, um renomado especialista em cultura física
havia declarado que eu era o homem mais bem-formado da Terra. À medida que me
endurecia pelo contato com a vida rude de Almuric, compreendi que aquele especialista
não sabia coisa alguma sobre verdadeiro desenvolvimento físico. E comigo se passava
o mesmo. Se tivesse sido possível colocar juntos o homem que eu fora e aquele
em que me havia convertido, o primeiro pareceria ridiculamente fofo, pesado e
torpe, se comparado com o gigante moreno e musculoso que me tornei.
Pela noite já
não tremia de frio, e a trilha mais rochosa já não me feria os pés nus. Podia
escalar um paredão abrupto com a mesma agilidade de um macaco; podia correr durante
horas sem a menor fadiga; em distâncias curtas, seria preciso um cavalo de corrida
para me subjugar em velocidade. As feridas – que eu nem sequer havia tratado,
salvo com banhos de água gelada – cicatrizaram por si sós, como se a própria
Natureza curasse as feridas daqueles que vivem em seu seio.
Conto tudo
isso para que percebam o tipo humano que tomava forma naquele molde selvagem.
Sem meus encarniçados esforços para converter-me em algo tão duro quanto a
rocha ou o aço, jamais poderia sobreviver aos acontecimentos sinistros e
sangrentos pelos quais passaria naquele implacável planeta.
Quando percebi
que aquela nova força nascia em mim, recobrei a segurança. Empertigava-me
orgulhosamente e olhava com desafio para meus vizinhos bestiais. Já não fugia
diante de um babuíno. Acabei por declarar-lhes uma guerra aberta e odiava-os
tanto quanto se fossem inimigos humanos. Além disso, eles comiam as nozes de
que eu precisava.
Logo
aprenderam a não seguir-me até o abrigo.
E veio o dia
em que me atrevi a medir forças com um deles em combate singular. Não
esquecerei jamais a imagem daquele babuíno espumando e grunhindo, enquanto saía
do matagal e lançava-se sobre mim, nem tampouco me esquecerei do olhar horrível
em seus olhos quase humanos. Minha determinação se enfraqueceu, mas era
demasiado tarde para fugir. Sustive o assalto e atravessei-lhe o coração com o
punhal, enquanto a fera fechava os longos braços ao redor do meu corpo, para me
esmagar.
Mas havia
outros animais que rondavam pelo vale, e com eles não tentei me bater: hienas,
leopardos de dentes de sabre, maiores e mais poderosos que um tigre da Terra, e
ainda mais ferozes; criaturas gigantescas parecidas com alces, carnívoros de
mandíbulas afiadas semelhantes às dos crocodilos; ursos monstruosos; enormes
javalis de cerdas tensas que pareciam invulneráveis às punhaladas. E havia outros
monstros que só se aproximavam pela noite, os quais nunca vi com precisão.
Aquelas feras misteriosas moviam-se silenciosas, ainda que algumas lançassem
estranhos lamentos estridentes ou graves rugidos que faziam o solo tremer. Como
o Desconhecido é sempre o mais ameaçador, tinha o sentimento de que aqueles
monstros da noite eram ainda mais terríveis que os horrores familiares que me perseguiam
durante o dia.
Lembro-me que
uma noite acordei sobressaltado e vi que estava estendido na borda rochosa,
totalmente tenso, com os ouvidos atentos, em meio a uma escuridão silenciosa e
opressiva. A lua havia-se ocultado e as trevas cobriam o vale. Não havia
grunhidos de babuínos, nem risotas de hiena que turbassem o sinistro silêncio.
Algo avançava pelo vale; escutava o ligeiro ruído rítmico da erva, que delatava
a passagem de um corpo enorme, mas, na escuridão, podia apenas distinguir uma
forma gigantesca e vaga. Parecia ser mais comprida do que alta... de certo modo,
era como se estivesse anormalmente proporcionada. A coisa seguiu seu caminho ao
longo do vale. Após sua passagem, foi como se a noite lançasse um profundo
suspiro de alívio de forma audível. Os ruídos noturnos recomeçaram, e tombei
novamente para voltar a dormir com a sensação imprecisa de que um horror
indizível passara, durante a noite, muito próximo de mim.
Já disse que
disputava com os babuínos a propriedade das nozes que me alimentavam. Devido ao
meu apetite e ao daqueles animais, chegou o momento em que tive de deixar o
vale para ir mais além, em busca de alimento. Durante minhas explorações, cada
vez mais longas, percorri a região vizinha e esgotei suas provisões. Assim
parti em busca de aventuras, dirigindo-me para sudeste. Não me estenderei em
minhas peregrinações. Errei durante numerosas semanas pelas colinas, meio morto
de fome, atracando-me, ameaçado por bestas ferozes, dormindo nos galhos altos
das árvores ou – o que era mais perigoso – em abruptos penhascos quando chegava
a noite. Fugi, lutei, matei, fui ferido. Oh, posso assegurar que minha viagem
foi agitada e fértil em incidentes.
Levava a vida
primitiva dos selvagens. Não tinha companhia, nem livros, nem roupas, nem
qualquer dessas coisas que marcam a civilização. Segundo os critérios de um homem
civilizado, era um desgraçado. Mas não me sentia assim. Desfrutava daquela
vida. Todo meu ser crescia e se desenvolvia. Posso afirmar uma coisa: a vida
natural da humanidade é uma luta feroz pela existência contra as forças da
natureza, e qualquer outra forma de vida é algo artificial, desprovido de
verdadeiro significado.
Minha vida não
era monótona; transbordava de aventuras que requeriam cada fração de minha
inteligência e força física. Ao alvorecer, quando deixava meu abrigo temporário,
sabia que veria o pôr-do-sol seguinte graças tão somente à minha audácia,
energia e rapidez de movimentos. Aprendi a conhecer o sentido de cada uma das
brisas na ondulante erva, de cada matagal que pudesse esconder um inimigo, de
cada bloco de pedra. A Morte se ocultava em todas as partes e revestia um
milhar de formas. Era-me impossível relaxar na vigilância, nem sequer durante o
sono. Quando fechava os olhos, à noite, não tinha nenhuma certeza de tornar a
abri-los pela manhã. Esta frase tem mais sentido do que pode parecer à primeira
vista. De modo geral, o homem civilizado não vive plenamente; está sobrecarregado
de massas de tecidos musculares atrofiados e de gordura inútil. A vida
sossegada o debilita; tem os sentidos adormecidos. Ao desenvolver o intelecto,
sacrificou muito mais do que imagina.
Percebia que
eu também havia estado meio morto em meu planeta natal. Mas, em Almuric, vivia
no mais amplo sentido do termo; vibrava, ardia e transbordava de vida desde a
raiz dos cabelos até as plantas dos pés. Cada tendão, veia e osso estava cheio
da dinâmica corrente da vida que cantava, gritava e gargalhava em mim. Estava
sempre muito ocupado, procurando comida e salvando minha vida, para deixar-me
submergir pelas inibições e pelos mórbidos e tortuosos complexos que atormentam
o homem civilizado. A todas essas pessoas de mente complicada que reclamarem que
a psicologia de uma vida assim seja tão simplista, só lhes direi que, durante
minha vida naquela época, a ação violenta e contínua – e a necessidade de ação –
não deixaram lugar para os exames introspectivos aos quais se dedicam aqueles
cuja segurança e alimento cotidiano estão assegurados pelo trabalho dos demais.
Minha vida era primitivamente
simples; vivia completamente no presente, dia a dia. Minha vida na Terra
parecia um sonho impreciso e distante.
Durante minhas
caminhadas – e, desde que deixara o vale, havia percorrido enormes distâncias –,
não vi nenhum sinal da presença humana, ou mesmo algo que vagamente se parecesse
aos seres humanos.
*
* *
Foi no mesmo
dia em que vi uma extensão de planícies entre os vales, que me encontrei
bruscamente na presença do primeiro ser humano. Aquele encontro foi totalmente
inesperado. Enquanto avançava por uma meseta nas regiões montanhosas, coberta por
uma grande quantidade de pedaços de rocha, apareceu diante de meus olhos,
subitamente, uma cena... uma cena impressionante por seu primitivo significado.
Ante mim, o
terreno descia em uma suave pendente para formar uma baixada não muito
profunda; o solo desaparecia entre as ervas altas, indicando a presença de uma fonte.
No centro da baixada havia um homem, parecido com o que eu havia encontrado
quando cheguei a Almuric, que mantinha uma luta desigual com um leopardo de dentes
de sabre. Abri os olhos desmesuradamente, estupefato, pois não achava que um
ser humano pudesse enfrentar um animal como aquele e sobreviver.
A trajetória
cintilante de uma espada brilhava entre o monstro e sua presa; a pele manchada
de sangue indicava que o animal havia sido atingido mais de uma vez. Mas aquilo
não poderia durar; esperava que a qualquer momento o homem caísse, derrubado
sob o corpo gigantesco de seu adversário.
Enquanto
aquele pensamento se fixava em minha mente, desci pela suave pendente. Não
devia nada àquele desconhecido, mas seu corajoso combate fazia vibrar todas as fibras
de minha alma. Não gritei; antes corri silenciosa e furtivamente, com o punhal
brilhando na mão. Quando chegava perto deles, o grande felino saltou. A espada
voou da mão do homem e este foi derrubado pelo corpo gigantesco. Quase
simultaneamente, atingi o leopardo com um golpe formidável de minha lâmina.
Com um berro
estridente, soltou sua vítima, deu uma guinada e lançou uma terrível patada
enquanto eu me esquivava de um salto. A fera começou a contorcer-se sobre a erva.
Lançava terríveis rugidos e arranhava freneticamente o solo com as garras, banhando-o
com a horrível chuva de sangue e entranhas que saía de seu corpo.
Era um
espetáculo capaz de desencorajar o homem mais endurecido, e me alegrei quando a
fera teve uma convulsão e se imobilizou definitivamente.
Voltei-me para
o homem, mas não tive muitas esperanças de encontrá-lo vivo. Tinha visto como
as terríveis mandíbulas do gigantesco carnívoro haviam-no agarrado pela
garganta enquanto caía.
Jazia no solo,
banhado em um oceano de sangue, com a garganta horrivelmente destroçada. Via
vibrar a veia jugular, posta às claras, mas intacta. Uma das enormes unhas havia
aberto o lado do homem da axila até a cintura, e tinha o músculo da coxa retalhado
de um modo horrível; vi os ossos expostos e que um jorro de sangue escapava das
veias rompidas. Contudo, para meu estupor, não só o homem estava vivo, como
também consciente. De qualquer modo, enquanto olhava-o fixo e surpreso, seus
olhos se tornaram vítreos e perderam todo o brilho.
Arranquei uma
tira de pano de minha tanga e fiz-lhe um torniquete ao redor da coxa; aquilo
deteve um pouco a hemorragia. Contemplei-o com desespero. Aparentemente, agonizava
apesar do vigor e da vitalidade dos habitantes daquelas selvagens regiões. Com
efeito, o homem era tão feroz e de tão peludo aspecto – ainda que menos corpulento
– quanto aquele que eu havia enfrentado em meu primeiro dia em Almuric.
Enquanto estava
ali, desiludido, algo me roçou a orelha silvando ameaçadoramente e cravou-se
com um golpe seco na inclinação que havia às minhas costas. Vi uma flecha, que ainda
tremia. Um grito de raiva chegou a meus ouvidos. Lançando furiosos olhares ao
meu redor, vi uma meia dúzia de homens peludos correndo em minha direção. Não deixavam
de disparar setas enquanto o faziam.
Lançando um
grunhido instintivo, saltei para o alto da pendente; o silvo dos projéteis ao
redor de minha cabeça concedia-me asas. Uma vez alcançada a proteção do matagal,
não detive o passo, e segui correndo adiante. Evidentemente, os homens de Almuric
eram tão hostis quanto os animais, e era bom evitá-los por hora.
Percebi que
minha cólera se dissipava quando me vi enfrentado um fantástico dilema. Havia
entendido alguns dos gritos que os homens lançavam enquanto me perseguiam. E
aquelas palavras eram em Inglês, e exatamente como com o adversário de meu
primeiro combate, eu havia compreendido aquele idioma. Em vão revirei o cérebro
em busca de uma solução. Já havia notado que os objetos inanimados e os seres
viventes – que copiavam estreitamente seus equivalentes terrestres –
apresentavam sempre alguma diferença chocante, além da substância, da qualidade
ou do método de ação. Quem sabe, sob certas condições, a vida tenha evoluído de
modo quase paralelo nos dois planetas, até o ponto de produzir uma linguagem
idêntica? Aquilo seria contrário ao senso comum. Mas, no entanto, não podia pôr
em dúvida a prova que me davam os ouvidos. Renunciei a questionar-me mais sobre
aquele incrível enigma; era uma inútil perda de tempo.
Talvez tenha
sido aquele breve incidente, ou a fugaz visão das distantes savanas, o que fez
nascer em mim o cansaço e o fastio daquela região de áridas colinas na qual eu
havia me aventurado tão audazmente. O fato de ver homens – ainda que diferentes
e estranhos – despertou em meu peito o desejo da companhia humana, e aquele
desejo frustrado logo se converteu em uma viva repulsa pelos lugares em que eu me
achava. Não esperava encontrar nas planícies seres humanos de intenções
amistosas; contudo, decidi me arriscar, sem levar em conta os perigos que sem
dúvida me esperavam. Antes de deixar as colinas, algum capricho me fez cortar a
barba e o cabelo hirsuto, que haviam crescido, com a ajuda de meu punhal, tão
afiado quanto uma navalha. Por que o fiz, não saberia dizer. Talvez tenha sido
o instinto natural do homem que se dirige para um novo país, e deseja causar
boa impressão.
*
* *
No dia
seguinte, desci para as planícies cobertas de erva. Estendiam-se para o leste e
o sul até onde alcançava a vista. Dirigi-me para o leste e percorri naquele
mesmo dia muitos quilômetros, sem incidentes notáveis. Flanqueei várias torrentes
de águas sinuosas; ao longo das margens, a erva se erguia acima da minha
cabeça. Entre as ervas, pude ouvir as passadas pelo lodo de grandes animais de
alguma espécie desconhecida; fiz um amplo desvio para evitá-los.
Não tardei em
felicitar-me por aquele detalhe de prudência.
Nas enseadas
dos cursos d'água, havia uma multidão de aves de todas as formas e cores;
algumas eram silenciosas e outras lançavam continuamente gritos penetrantes, enquanto
giravam acima da água e afundavam bruscamente, em busca de alguma presa.
Mais à frente,
nas planícies, encontrei rebanhos de animais pastando – pequenas criaturas
parecidas com cervos, e um curioso animal, semelhante a um porco roliço, com patas
traseiras excepcionalmente longas. Avançava com enormes saltos, como se fosse
um canguru. Era um espetáculo cômico, e ri até que me doesse o estômago. Mais
tarde, vi que era a primeira vez que ria – salvo algumas risotas de selvagem
satisfação ao descobrir um inimigo – desde minha chegada a Almuric.
Naquela noite,
dormi entre as ervas altas, não muito longe de um riacho, e poderia ter sido
presa de algum carnívoro procurando comida. Mas a sorte esteve ao meu lado
naquela noite. Nas planícies retumbavam os formidáveis rugidos dos monstros que
caçavam, mas nenhum se aproximou do meu precário refúgio. A noite, cálida e
agradável, contrastava surpreendentemente com as que havia passado nas colinas
sinistras e geladas.
No dia
seguinte, ocorreu um fato de capital importância. Ainda não havia comido carne
em Almuric, salvo quando uma fome feroz havia me forçado a comê-la crua. Havia,
em vão, procurado uma pedra que soltasse faíscas, para acender uma fogueira. As
rochas eram de um tipo particular, desconhecido na Terra, mas naquela manhã nas
planícies, encontrei uma lasca de pedra cinzenta, em meio à erva, e, após
algumas tentativas, descobri que aquela pedra possuía algumas das propriedades
do sílex. Golpeando-a com o punhal, fui finalmente recompensado com uma fagulha
na erva seca; avivei a chama e fiz fogo... o qual logo custou-me bastante
apagar.
Naquela noite
cerquei-me de um círculo de chamas. Alimentava regularmente o fogo com erva
seca e umas plantas de longos talos que ardiam lentamente. Sentia-me relativamente
seguro, ainda que umas formas gigantescas rondassem próximas a mim, no seio das
trevas. Escutei o deslizar de patas enormes e vi o brilho de olhos ferozes.
Durante minha
viagem pelas planícies, alimentei-me dos frutos que encontrava. Vi que os
pássaros comiam-nos. Aqueles frutos eram de sabor agradável, porém faltos do valor
nutritivo das bagas das colinas. Dirigi olhares de gula para os animais
parecidos com cervos que se afastavam de mim quando me aproximava, considerando
a possibilidade de fazer um bom assado, ainda que ignorasse como os capturar e
matar.
Assim, durante
dias, errei sem fim pelas imensas planícies, até que cheguei a ver uma cidade
de enormes muralhas. Contemplei-a quando já caía a noite. Apesar do meu ardente
desejo de me aproximar para examiná-la, decidi acampar e esperar a chegada da
aurora. Perguntei-me se os habitantes daquela cidade veriam minha fogueira, e
se enviariam alguém para investigar, para descobrir quem eu era e quais eram
minhas intenções.
Uma vez caída
a noite, deixei de enxergá-la, mas as últimas luzes do sol poente haviam-na
mostrado com claridade: erguia-se, sombria e impressionante, para o céu, a
leste. Àquela distância não pude detectar nenhum sinal de vida, mas tive um
vago vislumbre de imensas muralhas e torres delgadas, de tom esverdeado.
Recostei-me,
no centro do círculo de fogo, e enquanto grandes corpos sinuosos deslizavam
entre as ervas sentia-me fixamente observado por olhos ferozes. Minha imaginação
pôs-se a trabalhar enquanto me perguntava como seriam os habitantes daquela
misteriosa cidade. Pertenceriam à mesma raça de trogloditas selvagens e peludos
com os quais já me havia encontrado? Duvidava, pois, pelo que via; aqueles
seres primitivos seriam incapazes de construir tais muralhas. Talvez descobrisse
uma raça que alcançara um alto nível de civilização. Talvez... naquele
instante, imagens demasiado imprecisas e fantásticas para serem descritas surgiram
no fundo de minha mente.
A lua
ergueu-se por trás da cidade e seu brilho estranhamente dourado fez reaparecer
as impressionantes muralhas. A cidade parecia ameaçadora e sombria ao ser banhada
pela lua; havia algo bestial e sinistro em seu aspecto. Enquanto mergulhava no
mundo dos sonhos, pensei que, se antropóides eram capazes de construir uma cidade,
esta seria parecida àquele colosso que se destacava à luz da lua.
CAPÍTULO II
A AURORA
ENCONTROU-ME caminhando pela planície. Dirigir-se tão resoluta e abertamente à
cidade – que talvez estivesse cheia de seres hostis – seria considerado por alguns
sinal inequívoco de loucura, mas eu aprendera a correr os riscos mais insensatos,
e a curiosidade me devorava; e, sobretudo, estava cansado de levar uma vida tão
solitária.
Quanto mais me
aproximava, mais se destacavam os detalhes da cidade. Parecia mais uma
fortaleza do que uma vila; as muralhas, e as torres que se erguiam por detrás e
acima delas, eram aparentemente construídas com enormes blocos de pedra
esverdeada grosseiramente talhados. Não fora feito nenhum esforço para
igualá-los, alisá-los ou decorá-los. O conjunto dava uma sensação de
brutalidade e selvageria, algo que sugeria um povo feroz e rude, que amontoava
pedras para se proteger de seus inimigos.
Até aquele
momento, não havia visto nenhum sinal de seus habitantes. A cidade podia estar vazia
de habitantes humanos. Mas o longo caminho que conduzia até seus portões
maciços era batido, como se normalmente fosse utilizado por muita gente. Não
havia bosques nem jardins ao redor da cidade: a erva ia até os pés da muralha.
Durante o longo caminho que me conduziu através da planície até os portais da
cidade, não vi nada que se parecesse muito ou pouco a um ser humano. Mas,
quando alcancei a sombra projetada pelos portões, vi rapidamente cabeças de
negros e hirsutos cabelos movendo-se pelos estreitos parapeitos. Detive-me e
lancei a cabeça para trás, chamando-os. O sol acabava de erguer-se por cima das
torres, e seu brilho atingiu-me em cheio os olhos. No preciso instante em que
abri a boca, ressoou uma forte detonação, como um disparo de fuzil; uma nuvem
de fumaça branca saiu de uma torre, e algo me golpeou a cabeça com um terrível
impacto... e então perdi a consciência.
Quando voltei
a mim, não foi de modo gradual, mas sim instantâneo, com a mente alerta. De fato,
meu poder de recuperação era imenso. Estava estendido num piso de pedra nua, em
uma ampla sala. As paredes, o teto e o solo eram grandes lousas de pedra esverdeada.
De uma janela com barras, muito alta numa das paredes, entrava a luz do sol e
iluminava a sala; salvo um banco de bom tamanho, toscamente lavrado, não havia
móveis.
Uma pesada
corrente me rodeava a cintura. Vi que a fechava um cadeado bastante singular. A
outra ponta da corrente achava-se presa a uma grossa argola, incrustada na
parede. Tudo relacionado com aquela cidade dava a impressão de ser maciço.
Levando uma
mão à cabeça, percebi que me haviam posto como bandagem um pano sedoso ao tato.
Tinha uma forte dor de cabeça. Evidentemente, o projétil – fosse qual fosse –
que me haviam lançado das muralhas apenas resvalara, arranhando-me ligeiramente
o couro cabeludo e fazendo-me desmaiar. Procurei o punhal; naturalmente, havia
sumido.
Vociferei
encolerizado. Desde que me encontrava em Almuric, me aterrorizava a idéia do
que me esperava; mas, ao menos, havia estado livre até então. Porém, a partir daquele
momento, estava nas mãos de sabe Deus quais criaturas. Tudo que sabia era que
os habitantes daquela cidade tinham intenções hostis. Mas minha confiança em mim
mesmo – excessiva – não diminuía apesar disso, e eu não tinha medo. Sentia certo
pânico que tomava forma em meu interior – algo comum a todos os seres selvagens,
quando se vêem presos e subjugados –, mas lutei contra aquela sensação. A ela
seguiu-se uma onda de furor irracional. Levantei-me de um salto – a corrente
era suficientemente longa para permitir-me aquele movimento – e comecei a sacudir
os grilhões, tentando rompê-los.
***
Prosseguia
ocupado naquela tarefa – a vã manifestação de um ressentimento primitivo –,
quando um ligeiro ruído soou às minhas costas. Voltei-me apressado, tensionando
os músculos, disposto a atacar ou me defender. O que vi me deixou paralisado.
Havia uma
jovem na entrada da sala. Salvo pelos vestidos, não era em nada diferente das
mulheres que eu havia conhecido na Terra. Contudo, sua esbelta silhueta
indicava uma agilidade superior à das fêmeas que havia conhecido até então.
Tinha os cabelos de um negro intenso e a pele era da cor do alabastro. Seus
membros torneados eram mal dissimulados por um tênue vestido, parecido com uma
túnica, sem mangas e muito decotado, que deixava ver quase a totalidade de seus
seios de marfim. Trazia a túnica presa à cintura, a qual lhe chegava até uns
poucos centímetros acima dos joelhos. Calçava graciosas sandálias. Fitava-me numa
postura de atemorizada fascinação; tinha os olhos negros desmesuradamente abertos,
os lábios escarlates entreabertos. Quando me voltei e observei-a cheio de
curiosidade, fez um movimento de recuo e lançou uma viva exclamação de surpresa
ou temor, saindo precipitadamente da sala.
Olhei-a desaparecer
com estranheza. Se os outros habitantes da cidade pareciam-se com ela, a
impressão que dava a maciça e brutal arquitetura era tão só uma ilusão, pois aquela
jovem parecia produto de uma civilização aprazível e refinada. Apenas seu traje
sugeria uma certa barbárie.
Enquanto
refletia sobre aquela inesperada aparição, escutei um ruído de passos pesados,
e logo vozes duras que discutiam veementes. Um instante mais tarde, um grupo de
homens penetrava na sala. Detiveram-se ao ver que eu havia recobrado os
sentidos e que estava de pé. Sem deixar de pensar na jovem, contemplei-os com
surpresa. Pertenciam à mesma raça dos outros seres que havia visto: imensos, cobertos
de pêlos, com aspecto feroz, a cabeça inclinada para diante de modo simiesco e
feições impressionantes. Notei que alguns tinham a pele mais escura, mas todos eram
morenos e de aspecto terrível; a impressão do conjunto era de uma selvageria
sombria e implacável. Aquela ferocidade era algo instintivo neles; ardia em
seus olhos de cor cinza gélida, refletia-se no estorcer de seus lábios, grunhia
em suas vozes ásperas.
Todos estavam
armados, e suas mãos pareciam buscar de modo instintivo as empunhaduras das
armas, enquanto continuavam contemplando-me furiosamente, sacudindo as cabeças
de hirsutos cabelos.
- Thak! – exclamou um deles; ou, melhor
dizendo, rugiu, pois todos tinham a voz tão forte quanto uma tempestade. – Despertou.
- Acredita que
pode falar ou entender o idioma humano? – grunhiu outro.
Durante todo
aquele tempo estive calado, sustentando seus olhares. Novamente fiquei
estupefato por suas palavras. Logo percebi que não se expressavam em Inglês.
A coisa era
tão anormal que me impressionou. Não falavam nenhum idioma da Terra, daquilo
estava consciente, e, no entanto, entendia-os com a única exceção de alguns termos
que, aparentemente, não possuíam equivalente na Terra. Não tentei explicar-me
aquele fenômeno de aspecto impossível, e respondi ao que havia falado por
último.
- Posso falar
e entendê-los – grunhi. – Quem são vocês? Que cidade é esta? Por que me
atacaram? E por que me prenderam?
Soltaram
grunhidos de surpresa, alisando ferozmente os bigodes, sacudindo a cabeça e
maldizendo com violência.
- Ele fala,
por Thak! – disse um terceiro. – Eu disse, ele veio de além do Cinturão!
- Além do meu
traseiro, isto sim! – disse outro grosseiramente. – É um monstro, uma maldita
aberração, um degenerado de pele lisa que nunca deveria ter nascido, ou ao qual
não deveriam ter deixado viver!
- Perguntem-lhe
o que faz com o punhal do Quebra Ossos – sugeriu um outro.
Ao ouvir aquilo,
um deles avançou e, olhando-me severa e acusadoramente, brandiu uma arma tirada
da bainha. Imediatamente reconheci meu punhal.
- Roubou-o de
Logar? – perguntou.
- Não roubei
nada! – repliquei secamente. Tinha a impressão de ser uma fera selvagem, à qual
espectadores insensíveis e estúpidos molestam com um bastão entre as grades da
jaula. Meus acessos de furor – parecidos em tudo às emoções daquele planeta
selvagem – não podiam ser refreados.
- Arrebatei o
punhal a um homem que o trazia em seu cinturão, durante um luta – acresci.
- Matou-o? –
perguntaram com incredulidade.
- Não –
murmurei. – Lutamos com as mãos nuas, mas ele quis me apunhalar. Derrubei-o com
um murro.
Um rugido
seguiu-se às minhas palavras. Primeiro acreditei que lançavam gritos de raiva,
mas logo compreendi que discutiam entre si.
- Pois digo
que mente! – Aquele mugido de touro dominou o tumulto. – Sabemos que Logar, o
Quebra-Ossos, não é homem que se deixe vencer e roubar por um homem sem pêlos e
de pele lisa, como este. Ghor, o Urso, poderia enfrentar Logar. Ninguém mais!
- No entanto,
está com seu punhal – fez notar alguém.
O clamor
voltou. Num instante, todos gritavam e vociferavam, brandindo os punhos cabeludos
com sinais ameaçadores, buscando furtivamente os cabos das espadas, lançando-se
desafios e insultos.
Esperava
assistir uma luta, um massacre geral. Mas, o que parecia investido de certa
autoridade sacou a espada e começou a golpear o banco com a empunhadura,
cobrindo com seu mugido de touro as vozes de todos os demais.
- Silêncio!
Silêncio! Se mais alguém abrir a boca, arrebento-lhe a cabeça! – Quando o
tumulto sossegou os outros se contentaram em olhar para ele com ódio. Prosseguiu,
com a voz tão tranqüila quanto se nada tivesse acontecido: – O assunto do
punhal pouco importa. – Possa ser que tenha surpreendido Logar enquanto dormia
e atacou-o, ou talvez tenha roubado, ou possa ser que tenha simplesmente
encontrado. Por acaso somos irmãos de Logar para nos preocuparmos com seu destino?
Um grunhido
geral seguiu-se às suas palavras. Manifestamente, o homem chamado Logar não era
muito popular entre eles.
- A questão é
a seguinte: o que vamos fazer com esta criatura? Devemos reunir o conselho e
tomar uma decisão. Evidentemente, não é comestível.
Sorriu ao
dizê-lo; aparentemente, era uma piada bastante macabra.
- Poderíamos
fazer com sua pele um couro de boa qualidade – sugeriu alguém, num tom que me
deu a impressão de que brincava.
- Muito macio –
retrucou um terceiro.
- Não foi o
que pareceu quando o trouxemos – replicou o que havia falado. – Parece uma
malha de aço.
- Bah! – disse
o outro com desprezo. – Vou demonstrar quão delicada é sua carne. Observem
enquanto corto algumas fatias.
Sacou a adaga
e se aproximou, enquanto os outros observavam com vivo interesse.
Durante todo
aquele tempo, meu furor não havia feito mais do que crescer, tanto que a sala
começou a revirar diante de meus olhos, sumindo em uma bruma escarlate.
Naquele
instante, compreendendo que aquele valentão tinha na verdade a intenção de
provar em minha pele o fio da sua espada, transformei-me num louco furioso.
Girando, agarrei a corrente com as duas mãos e enrolei-a ao redor dos pulsos
para poder usá-la melhor. Logo, apoiando um dos pés na parede, comecei a puxar
a corrente com todas as minhas forças. Todos os músculos de meu corpo se
tensionaram e distenderam como cordas; o suor escorria-me pelo corpo. Com um
barulho ensurdecedor, a pedra cedeu e a argola de ferro saltou, arrancada da
parede.
Caí por terra e
rolei de costas, aos pés de meus captores. Lançaram alguns rugidos de surpresa
e, na seqüência, caíram sobre mim.
*
* *
Respondi aos
seus mugidos com um uivo estridente de prazer sanguinário e, lançando-me no
seio do combate, comecei a agitar os punhos como se estivesse armado com maças.
Oh, foi uma boa peleja enquanto durou! Não tentaram me apunhalar; contentaram-se
em esmagar-me e me imobilizaram sob seu número. Giramos de um lado para outro
na sala, como uma massa ondeante e furiosa, trocando golpes e injúrias. Todos
aqueles gritos, brados, blasfêmias e imprecações formavam uma barafunda de todos
os diabos. Em dado momento, pareceu-me ver de relance umas mulheres – parecidas
à que eu vira anteriormente – na entrada da sala, mas não poderia confirmá-lo.
Tinha firmemente apertada entre os dentes uma orelha peluda, com os olhos
cheios de suor e estrelas – depois de uma forte pancada que levara no nariz – e,
com aquele amontoado de corpos robustos que não paravam de me golpear, minha vista
não estava muito boa.
Contudo,
respondia aos golpes muito bem: orelhas rasgadas, narizes massacrados, dentes
quebrados e voando aos pedaços pelos impactos de meus punhos duros como aço. Os
uivos dos feridos eram uma música melodiosa para meus ouvidos doloridos. Mas
aquela satânica corrente que me rodeava a cintura não deixava de me fazer cambalear
e se enrolava ao redor de minhas pernas. A bandagem não tardou em ser
arrancada; a ferida no couro cabeludo abriu-se e me vi coberto de sangue. Cego,
tropecei e perdi o equilíbrio. Esperneando e bufando, lançaram-me por terra e me
imobilizaram, atando-me braços e pernas.
Os
sobreviventes se afastaram e caíram pelo chão, onde ficaram sentados, com mostras
de dor e esgotamento, enquanto que eu, recobrando a voz, insultava-os copiosamente.
Senti uma satisfação orgulhosa ao ver o espetáculo de todos aqueles narizes ensangüentados,
olhos roxos, orelhas arrancadas e dentes quebrados. Soltei inclusive uma
gargalhada quando um deles anunciou em meio a uma chuva de injúrias que tinha
um braço partido. Outro jazia por terra, desfalecido, e tiveram que reanimá-lo.
Fizeram-no jogando sobre ele um balde de água gelada. Alguém – a quem não podia
ver de onde me encontrava, atado e estirado no solo – fora buscar o balde.
Tinha a idéia de que se tratava de uma mulher, que veio depois de um rugido peremptório.
- Sua ferida
voltou a abrir – disse um deles apontando-me. – Vai sangrar até morrer.
- Que seja! –
grunhiu outro, girando no chão, dobrado em dois. – Ele me acertou na barriga.
Vou morrer. Tragam vinho.
- Se está
agonizando, não precisa de vinho – respondeu brutalmente o que parecia ser o
chefe, cuspindo fragmentos de dentes partidos. – Trate-lhe a ferida, Akra.
Akra se
aproximou arrastando os pés, sem demonstrar muito entusiasmo, e inclinou-se
sobre mim.
- Não mova a
maldita cabeça – grunhiu.
- Não me
toque! – vociferei. – Não quero dever nada a você. Verá, se me tocar com suas
patas imundas!
Exasperado,
plantou-me a mão na cara e empurrou-me violentamente para trás. Foi um erro de
sua parte. Fechei as mandíbulas em seu polegar e apertei. Soltou um uivo suficientemente
alto para romper-me os tímpanos, e foi apenas com a ajuda de seus companheiros
que conseguiu libertar o dedo massacrado. Louco de dor, lançava gritos
incoerentes. Bruscamente, deu-me uma patada que me alcançou na testa com uma
força terrível. Minha cabeça, projetada para trás, golpeou violentamente as
pernas do maciço banco. Uma vez mais, perdi a consciência.
Quando voltei
a mim, notei que novamente me haviam tratado e enrolado a ferida na cabeça.
Tinha os pulsos e tornozelos presos, e a corrente havia sido fixada a uma nova argola,
reposta na pedra, e, pelas aparências, mais firmemente que a anterior. Era
noite. Pela janela podia ver o céu repleto de estrelas. Uma tocha, colocada em
um nicho da parede, ardia e esparzia uma luz singularmente branca. Havia um
homem sentado no banco, com os cotovelos postos sobre os joelhos e o queixo
apoiado nos punhos; fitava-me detidamente. No banco, perto dele, havia uma
enorme bandeja de ouro.
- Depois desse
último golpe, pensei que não se recuperaria – disse finalmente.
- Vão precisar
de mais do que isso para acabar comigo – grunhi. – São um bando de palermas.
Sem a ferida e a corrente, teria acabado com todos vocês.
Meus insultos
pareceram mais interessá-lo do que encolerizá-lo. Involuntariamente, apalpou um
enorme galo cheio de sangue que tinha no crânio, e perguntou:
- Quem é você?
De onde veio?
- Não é da sua
conta – repliquei secamente.
Deu de ombros
e, pegando a bandeja com uma mão, sacou da adaga com a outra.
- Em Koth,
ninguém morre de fome – declarou. - Vou deixar esta comida ao alcance de suas
mãos, e poderá comer. Mas aviso: se tentar me acertar ou morder, eu te apunhalo!
Contentei-me
em grunhir ferozmente. Ele inclinou-se e deixou a bandeja, afastando-se
rapidamente. Observei que a comida era uma espécie de refogado que acalmava
tanto a fome quanto a sede. Quando acabei de comer, senti-me de melhor humor.
Ao ver que meu guardião voltava à carga, respondi suas perguntas.
- Chamo-me
Esaú Cairn – eu disse. – Sou americano e venho do planeta Terra.
Ele meditou sobre
aquelas palavras durante um instante, e em seguida perguntou:
- São regiões
situadas além do Cinturão?
- Não sei do
que está falando – respondi.
Ele sacudiu a cabeça:
- Eu também;
não compreendo suas palavras. Mas, se não sabe o que é o Cinturão, não pode ter
vindo das regiões situadas além dele. Sem dúvida, são só fábulas, de qualquer
modo. Mas, de onde vinha quando se aproximou pela planície? Era sua a fogueira
que vimos das torres a noite passada?
- Suponho que
sim. Durante vários meses, vivi nas colinas do oeste. Desci das planícies faz
algumas semanas.
Ele escancarou
os olhos, fitando-me fixamente:
- Nas colinas?
Sozinho e com apenas um punhal como arma?
Claro, e daí? –
perguntei.
*
* *
Ele sacudiu a
cabeça, como se estivesse dominado pela dúvida.
- Há algumas
horas lhe chamei de mentiroso. Agora, custa-me fazê-lo.
- Qual o nome
desta cidade? – perguntei.
- Koth, da
tribo dos kothianos. Nosso chefe é Khossuth, o Quebra-Crânios. Eu sou Thab, o
Ligeiro. Encarregaram-me de vigiá-lo enquanto os guerreiros iam ao conselho.
- Qual é a
natureza desse conselho? – interessei-me.
- Devem
decidir o que vão fazer com você; estão discutindo desde o pôr do sol, mas
ainda não chegaram a uma conclusão.
- E qual é o
motivo de seu desacordo?
- Ora –
respondeu –; é que alguns querem enforcá-lo, e outros, apedrejá-lo.
- Suponho que
nem mesmo pensaram na idéia de me libertar – eu disse com certa amargura.
Ele olhou-me
friamente:
- Não seja
estúpido – disse em tom de reprovação.
Naquele
momento, passos ligeiros soaram lá fora, e a jovem que eu antes havia visto
entrou nas pontas dos pés. Thab observou-a com desagrado.
- Que veio
fazer aqui, Altha? – perguntou.
- Só queria
ver o estrangeiro outra vez – respondeu a jovem com voz doce e melodiosa. –
Nunca vi um homem como ele. Sua pele é quase tão lisa quanto a minha, e não tem
pêlos no rosto. E que estranhos são seus olhos! De onde vem?
- Pelo que
disse, veio das colinas – murmurou Thab.
A garota
arregalou os olhos:
- Mas, além
das bestas selvagens, ninguém vive nas colinas! Será uma espécie de animal? Os
guerreiros dizem que pode falar e entender nosso idioma.
- É verdade –
grunhiu Thab, acariciando delicadamente suas feridas. – Também arrebenta
crânios de homens com os punhos nus, que são mais duros e pesados que maças.
Veja! É um demônio furioso. Se te pegar, quando acabar com você, não restarão
nem migalhas para os abutres.
- Não vou me
aproximar dele – assegurou. – Contudo, Thab, não me parece tão terrível. Olha,
não me olha com cólera. Que vão fazer com ele?
- A tribo
decidirá – respondeu. – Provavelmente terá que lutar com um leopardo, e com as
mãos nuas.
Ela juntou as
mãos num gesto de compaixão, algo que não tivera ocasião de ver em Almuric
anteriormente.
- Oh, Thab! Por
quê? Não fez nenhum mal; veio sozinho, sem armas. Os guerreiros dispararam
contra ele sem provocações... e agora...
Ele olhou-a
com irritação:
- Se eu
dissesse ao seu pai que está preocupada com o prisioneiro... – Evidentemente não
era uma ameaça vã. A jovem estremeceu de terror.
- Não diga
nada a ele! – implorou. Depois se contradisse: – Oh, que importa! É algo
bestial! Ainda que meu pai me açoite até que o sangue me espirre pelos pulsos,
continuarei dizendo que é bestial!
E, com aquilo,
saiu correndo da sala.
- Quem é essa
garota? – perguntei.
- Altha, filha
de Zal, o Lanceiro.
- E quem é
Zal?
- Um daqueles
homens aos quais você maltratou tão cruelmente há pouco.
- Custa-me
acreditar que tal garota possa ser filha de um homem assim...
Como não
encontrava as palavras adequadas, decidi ficar quieto.
- Qual o problema
com Altha? – perguntou. – Não é diferente das outras mulheres.
- Quer dizer
que todas as mulheres são como ela e todos os homens são como você?
- Mas é
claro... levando em conta as particularidades de cada indivíduo. É diferente
entre seu povo? Quer dizer... sempre e quando não seja um fenômeno, uma
exceção?
- O que talvez
seja... – comecei a dizer, surpreso. Naquele instante, outro guerreiro entrou
na sala e disse:
- Vim substituí-lo,
Thab. Os guerreiros decidiram que Khossuth resolva a questão e vão esperar sua
volta, amanhã pela manhã.
Thab se foi e
o outro se sentou no banco. Não tentei falar com ele. Minha cabeça dava voltas –
pelas contradições que via e ouvia – e sentia necessidade de dormir. Não tardei
em submergir num sono profundo, sem sonhos.
Sem dúvida,
minha mente ainda estava muito afetada pelos golpes recebidos. De outro modo,
teria despertado sobressaltado, em guarda, ao sentir que algo me tocava o cabelo.
De fato, acordei apenas em parte. Pelas pálpebras meio abertas pude ver, como
num sonho, o rosto de uma jovem muito próximo ao meu, de olhos negros dilatados
por uma fascinação temerosa, lábios rubros entreabertos. O perfume de sua
opulenta cabeleira me impregnou. Tocou timidamente minha face e logo se afastou,
rápida, lançando uma ligeira exclamação, como se aterrada pela audácia do próprio
gesto. O guarda roncava no banco. A tocha havia se consumido quase por completo,
e difundia uma luz fraca. Lá fora, a lua já se ocultara. Apercebi-me vagamente
de tudo aquilo, antes de voltar a mergulhar no sono. Um rosto me apareceu em
sonhos, um rosto esplêndido e iluminado.
CAPÍTULO III
ACORDEI
ENVOLTO PELA LUZ cinzenta e fria do amanhecer, à hora em que o carrasco vai
buscar o condenado. Havia um grupo de homens junto a mim, e soube que um deles
era Khossuth, o Quebra-Crânios.
Era mais alto
que os outros, e mais magro, quase descarnado em comparação. Tal magreza fazia
com que seus largos ombros parecessem ainda mais poderosos, quase anormais. Seu
rosto e corpo eram cheios de velhas cicatrizes. Tinha a pele morena, e
aparentemente era maior; sua silhueta impressionante e terrível expressava um
escuro barbarismo.
Com os olhos
fixos em mim, acariciava o punho da espada. Tinha o olhar tenebroso e distante.
- Dizem que
afirma ter vencido Logar de Thurga em combate leal – disse finalmente, e sua
voz era cavernosa e espectral, de um modo que eu não saberia descrever.
Não respondi e
continuei com os olhos firmes sobre ele, sustendo seu olhar, em parte fascinado
por seu aspecto estranho e ameaçador, em parte ardendo com aquela cólera que,
aparentemente, não me abandonava fazia algum tempo.
- Por que não
responde? – grunhiu.
- Porque já
estou cansado de ser chamado de mentiroso – repliquei em voz áspera.
- Que veio
fazer em Koth?
- Vim porque
estava farto de viver sozinho, rodeado de feras selvagens. Sou um estúpido.
Esperava encontrar seres humanos cuja companhia fosse preferível à dos leopardos
e babuínos. Mas percebo que me equivoquei.
Ele cofiou os
retorcidos bigodes.
- Os homens
disseram que você luta como um leopardo furioso. Thab me informou que você não
se apresentou diante dos portais da cidade como um inimigo faria. Aprecio os
homens valentes. Mas o que posso fazer? Se te devolvo a liberdade, você nos odiará
pelo que aconteceu, e seu ódio é terrível, não cabe dúvida.
- E por que
não aceitar-me no seio de sua tribo? – sugeri casualmente.
Khossuth sacudiu
a cabeça:
- Não somos
yagas para ter escravos.
- E nem eu sou
escravo – grunhi. – Deixe-me viver em sua cidade, como um de vocês. Caçarei e
lutarei ao seu lado. Sou tão capaz quanto qualquer um de seus guerreiros.
Ao ouvir
aquilo, um homem se afastou de Khossuth e veio em minha direção. Era mais alto
que todos os que havia visto em Koth até então; e não apenas mais alto, mas também
mais entroncado, mais maciço. Os pêlos de seus membros eram mais espessos e de
uma cor especial: eram mais rubros que negros.
- Isso você terá
que provar! – rugiu. – Liberte-o, Khossuth! Os guerreiros falaram tanto de sua
força que quero comprovar! Liberte-o para que possamos lutar, apenas nós dois!
- Ele está
ferido, Ghor – respondeu Khossuth.
- Pois
tratem-no até que suas feridas tenham fechado e cicatrizado – recomendou o
guerreiro com impaciência, movendo curiosamente os braços, como se para que começassem
naquele preciso instante.
- Seus punhos
têm a força de marretas – advertiu alguém.
- Pelos
demônios de Thak! – mugiu Ghor, com o olhar faiscando e erguendo os braços
peludos. – Admita-o no seio da tribo, Khossuth! Que passe pela prova! Se sobreviver...
por Thak, só então poderá dizer que é um homem de Koth!
- Vou pensar –
respondeu Khossuth após um momento de silêncio.
Aquilo
provisoriamente encerrava o assunto. Todos saíram da sala atrás dele. Thab foi
o último a sair. Quando chegou à porta, fez-me um gesto que tomei por um sinal
de ânimo. Assim, apesar de tudo, aqueles seres estranhos não eram totalmente
desprovidos de sentimentos de compaixão ou amizade.
O dia passou
sem incidentes. Thab não retornou. Outros guerreiros levaram-me comida e bebida;
deixei que tratassem minha ferida mudassem a bandagem. À vista daquele
tratamento mais humano, o furor de besta selvagem que havia em mim se transformou
em raciocínio humano. Mas a fúria permanecia oculta no fundo de meu ser, disposta
a surgir e desencadear-se à primeira afronta que se fizesse à minha dignidade.
Não voltei a
ver a jovem Altha. Em várias ocasiões, ouvi um ruído de passos ligeiros, no
exterior da sala, mas não tinha como saber se se tratava dela ou de alguma
outra mulher.
Ao cair da
noite, um grupo de guerreiros irrompeu a sala e anunciou que eu ia ser
conduzido diante do conselho, onde Khossuth escutaria todos os argumentos e
decidiria minha sorte. Fiquei surpreendido ao saber que se apresentariam argumentos
em meu favor. Fizeram-me prometer que não os atacaria e, depois, tiraram a
corrente que me mantinha preso ao muro, mas deixaram os grilhetes nos pulsos e
tornozelos.
Escoltado
daquela maneira, saí do quarto e me encontrei num grande corredor iluminado por
tochas de luz branquíssima. Não havia nem pinturas, nem móveis, nem qualquer
outra decoração... só uma impressão quase opressiva de arquitetura colossal.
Seguimos por
vários corredores, todos iguais em enormidade e desalento, de paredes rugosas e
tetos elevados, até que finalmente chegamos a um vasto espaço circular, arrematado
por um domo. Na parede do fundo erguia-se um trono de pedra sobre um estrado, e
no trono encontrava-se o velho Khossuth, impregnado de uma sombria majestade, vestido
com a matizada pele de um leopardo. Diante dele, formando um amplo semicírculo,
estava sentada a tribo; os homens, com as pernas cruzadas, sentados em peles
estendidas sobre as lousas de pedra e, atrás deles, as mulheres, sentadas em
bancos recobertos de peles.
Era uma
multidão extraordinária. O contraste entre os homens cobertos de pêlos e as
mulheres de corpo esbelto e pele clara, de traços agraciados, não deixava de
ser chocante. Os homens trajavam calções e calçavam sandálias de correias
longas; alguns traziam sobre os poderosos ombros capas de pele de pantera. As
mulheres vestiam-se da mesma forma que a jovem Altha; vi esta última entre as demais.
Calçavam leves sandálias, e algumas estavam descalças, e vestiam curtas túnicas
ajustadas na cintura. Aquilo era tudo.
As diferenças
entre os sexos eram igualmente visíveis entre as crianças, e isso desde a mais
tenra idade. As meninas eram tranqüilas, de corpo delicado e gestos graciosos. Os
meninos pareciam macacos, ainda mais que os adultos.
Disseram-me
que sentasse em um bloco de pedra que havia diante do estrado, um pouco para o
lado. Sentado entre os guerreiros, vi Ghor; agitava-se com impaciência, movendo
involuntariamente os potentes bíceps. Os debates começaram quando ocupei meu
lugar. Khossuth anunciou, simplesmente, que escutaria todos os argumentos e, depois,
encarregou um homem para se ocupar da minha defesa; aquilo novamente me surpreendeu,
mas aparentemente se tratava do costume habitual daquele povo. O homem
escolhido foi o chefe subalterno dos guerreiros, com o qual eu havia lutado em
minha cela; chamava-se Gutchiuk Cólera de Tigre. Lançou-me um olhar envenenado quando
se aproximou coxeando, sem muito entusiasmo. Ainda mostrava as marcas do nosso
encontro anterior.
Deixou a
espada e a adaga no estrado, e os guerreiros sentados na primeira fila fizeram
o mesmo. Em seguida, fitando os demais com ar feroz, Khossuth perguntou quais eram
as razões pelas quais Esaú Cairn – pronunciou meu nome deformando-o de um modo
incrível – não devia ser aceito no seio da tribo.
Aparentemente,
as razões eram muitas. Uma meia dúzia de guerreiros se levantou de um salto e
puseram-se a vociferar – ao mesmo tempo em que Gutchiuk, ocupando-se da sua
tarefa, rebatia seus argumentos. Sentia-me já condenado. Mas a partida estava
longe de ser concluída; de fato, apenas começara. A princípio, Gutchiuk não fez
muito empenho em minha defesa, mas os ataques do bando adversário fizeram-no
apaixonar-se por minha causa. Seus olhos não tardaram em começar a brilhar, com
a mandíbula crispando-se agressivamente, e pôs-se a bradar e a rugir tão fortemente
quanto os outros. A julgar pelos argumentos que apresentava – ou melhor, troava
–, poderia crer-se que ele e eu éramos amigos de infância.
Ninguém em
particular fora designado para apresentar argumentos contra mim. Todos os que
desejassem podiam opinar. E se Gutchiuk convencesse alguém com sua oratória,
aquele novo personagem unia sua voz à dele. Já havia vários homens do meu lado.
Os gritos de Thab e os mugidos de Ghor disputavam espaço com os bramidos de meu
advogado; logo outros se uniram à minha causa.
Tal debate era
impossível de conceber para um terrestre, a menos que assistisse a ele. Era uma
verdadeira feira, pois três vozes respondiam a outras quinhentas, todas elas falando
de uma só vez. Se Khossuth compreendia algo daquela algaravia insensata, não
sou capaz de dizer. Mas meditava sombriamente acima da multidão descontrolada, como
um deus severo contemplando as piedosas aspirações da humanidade.
O fato de os
homens não terem trazido as armas indicava grande sabedoria. As querelas
apaixonadas freqüentemente costumam degenerar, levando a críticas a respeito
dos ancestrais ou dos costumes pessoais. As mãos buscavam as bainhas vazias e
os bigodes se eriçavam de modo belicoso. De vez em quando, Khossuth erguia a
voz, dominando o clamor, e restabelecia uma aparência de ordem.
Todos os meus
esforços para seguir os debates foram em vão. Meus adversários se lançavam a
longas diatribes que pareciam totalmente carentes de sentido, e meus partidários
rechaçavam suas objeções de modo igualmente ilógico. Jogavam ao rosto exemplos
que remontavam à mais longínqua antiguidade, relativos a casos igualmente empoeirados.
Para complicar
ainda mais as coisas, os oradores se embaralhavam freqüentemente em meio a suas
exposições, ou se esqueciam de que lado estavam e começavam a defender com
ardor a causa contrária. Não parecia haver fim para aqueles debates, nem limite
algum à resistência dos que os mantinham. À meia-noite, prosseguiam uivando tão
forte e ameaçando-se com o punho, como se tivessem acabado de começar.
As mulheres
não participavam dos debates.
Começaram a se
ausentar discretamente, pouco depois da meia-noite. Finalmente, nos bancos
restou apenas uma pequena e solitária figura. Era Altha, que seguia – ou tentava
seguir – as deliberações com inusitado interesse.
Eu há muito
renunciara a isso. Gutchiuk prosseguia defendendo-me valentemente, com as veias
inchadas nas têmporas, o cabelo e a barba eriçados. Ghor soluçava de raiva e
suplicava a Khossuth que o deixasse quebrar algumas cabeças.
- Oh! – gemia,
levantando os braços para o alto. – Por que tive de viver para ver o dia em que
os homens de Koth se tornaram víboras e serpentes, com corações de abutre e intestinos
de sapo?
Eu tinha a
impressão de achar-me num manicômio. Finalmente, apesar do debate, e do fato de
minha vida estar em jogo, adormeci no banco de pedra e comecei a roncar
pacificamente enquanto os homens de Koth discutiam, golpeando-se nos peitos cabeludos
e soltando mugidos, enquanto o estranho planeta Almuric seguia girando sob as
estrelas, que ignoravam a existência dos homens, sem preocupar-se com eles,
fossem terráqueos ou não.
Amanhecia
quando Thab me sacudiu, acordando-me, a gritar:
- Vencemos! Você
fará parte da tribo, se enfrentar Ghor e sair vitorioso da luta!
- Quebrarei
sua espinha! – grunhi, e voltei a dormir.
CAPÍTULO IV
ASSIM TEVE
INÍCIO MINHA VIDA entre os homens de Almuric. Havia iniciado minha nova vida
como um selvagem nu, mas subira o primeiro degrau na escada da evolução: havia
me tornado um bárbaro. Pois os homens de Koth eram bárbaros, apesar de sua
indústria, de suas armas de aço e torres de pedra. Seu equivalente não existe
hoje na Terra, nem nunca existiu. Mas continuarei com minha história. Em
primeiro lugar, quero contar como foi meu combate com Ghor, o Urso.
Tiraram-me os
grilhões e me conduziram a uma torre de pedra, flanqueando as muralhas da cidade.
Fiquei ali até que todas as minhas feridas cicatrizaram. Os guerreiros levavam-me
comida e bebida regularmente; também cuidavam atentamente de minhas feridas,
ainda que estas não fossem muito graves se fosse compará-las com as que me infligiram
as feras selvagens, que sararam sem a ajuda de ninguém. Mas queriam que eu me
encontrasse em plena forma, para o combate que decidiria ou não minha admissão
no seio da tribo de Koth... já que, se fosse vencido, pelo que diziam de Ghor,
não teriam que se preocupar por minha sorte... ocupar-se-iam dela os chacais e
os abutres.
Todos eram
muito reservados quanto às suas relações comigo, exceto Thab, o Ligeiro, que
dava mostras de franca cordialidade. No tempo em que estive encerrado na torre,
não vi Khossuth, Ghor ou Gutchiuk. Nem tampouco à jovem Altha.
Os dias nunca
me haviam parecido tão longos e fastidiosos. Não estava nervoso por sentir medo
de Ghor; honestamente, duvidava de minhas capacidades para vencê-lo, mas havia
arriscado minha vida tantas vezes, inclusive quando todas as chances estavam
contra mim, que todo medo havia sido extirpado de minha alma. Mas, durante os
meses anteriores, havia vivido como uma pantera das montanhas; naqueles
momentos, o fato de estar preso – enjaulado – em uma torre de pedra, onde meus
movimentos eram limitados, restringidos, controlados, era algo insuportável. Se
minha prisão tivesse durado mais um dia, asseguro que teria perdido qualquer
controle sobre mim mesmo; teria lutado para abrir passagem até a liberdade, ou
morrido no decorrer da tentativa. De fato, toda a energia contida em mim estava
como que encoberta, a ponto de alcançar o ponto de ruptura, e aquilo me concedia
uma terrível reserva de poder nervoso, o qual me mantinha em forma para a
batalha que se avizinhava.
Nenhum homem
da Terra poderia igualar a força e o vigor dos homens de Koth. Levavam uma vida
de bárbaros, enfrentavam contínuos perigos, combatendo inimigos tanto humanos
quanto bestiais. No entanto, levavam vida de homens, e eu havia levado a de uma
fera selvagem.
Enquanto
passeava impacientemente pelo cárcere da torre, pensava em um grande lutador,
um campeão da Europa, com quem eu havia lutado em combate privado e amistoso.
Declarou que eu era o homem mais forte que já havia conhecido. Se eu pudesse me
ver na torre de Koth! Estou seguro de que poderia ter arrancado seus bíceps
como se fossem de tecido podre, ou quebrar-lhe a espinha apenas deixando-o cair
sobre meu joelho, ou abrir-lhe o peito de um só murro. Quanto à rapidez dos
movimentos, o atleta mais treinado da Terra teria parecido lerdo e pesado em comparação
com a agilidade e o impulso de tigre, que se ocultavam em meus membros de
músculos de aço.
Contudo, eu sabia
que a prova seria bem dura quando chegasse o momento de encarar o gigante
chamado Ghor, o Urso. Parecia, efetivamente, um urso, enorme e coberto de pêlos
castanhos.
Thab, o
Ligeiro me contou alguns de seus combates triunfais, e nunca ouvi relatos tão
temíveis; aquele homem avançava pela vida deixando atrás de si uma trilha de
membros arrancados, espinhas quebradas e cabeças moídas. Nenhum homem pudera
fazer-lhe frente em um combate com as mãos nuas – ainda que alguns afirmassem
que Logar, o Quebra Ossos, a ele se equiparasse.
Logar – eu soube
então – era o chefe de Thugra, uma cidade inimiga de Koth. Todas as cidades de
Almuric são inimigas entre si; o povo de Almuric é dividido em uma multidão de
pequenas tribos que estão constantemente em guerra. O chefe de Thugra era
chamado de Quebra Ossos como tributo à sua força demolidora. O punhal que eu
havia tirado dele era sua arma favorita, uma lâmina famosa, forjada, ao que
Thab dissera, por um ferreiro sobrenatural. Thab chamava àquele ser um gorka, e eu encontrava, naqueles relatos,
certas analogias com os anões que trabalhavam o metal nos antigos mitos germânicos
do meu próprio mundo.
Thab me
ensinou muitas coisas sobre seu povo e sobre seu planeta, mas voltarei a falar
sobre isso posteriormente. Finalmente Khossut fez-me uma visita, constatou que
minhas feridas haviam cicatrizado, considerou meus músculos e meu corpo
bronzeado com uma sombra de respeito em seu olhar frio e sonhador, e declarou
que estava apto a combate.
*
* *
Havia caído a
noite, quando me levaram através das ruas de Koth. Olhava com surpresa os muros
gigantescos que se erguiam acima de mim e que faziam parecerem anões os habitantes
da cidade. Em Koth tudo havia sido construído de modo desmesurado. As muralhas
e os edifícios não eram de uma altura excepcional em comparação com seu volume,
mas o conjunto era impressionante. Minha escolta conduziu-me a uma espécie de
anfiteatro próximo ao muro exterior. Aquele lugar, de forma ovalada, era
cercado por enormes blocos de pedra que se elevavam em gradações para dar
assento aos espectadores. O espaço aberto em seu centro era de terra batida,
coberta por uma grama espessa. Ao redor haviam levantado uma espécie de
barreira de cordas de couro trançado, aparentemente para evitar que os lutadores
esmagassem o crânio um do outro contra as pedras que obstruíam o fosso. O
cenário era iluminado por tochas.
Os
espectadores já estavam ali; os homens ocupavam os assentos inferiores, as mulheres
e crianças se sentavam nos mais elevados. Meu olhar percorreu aquele oceano de rostos,
lisos e peludos, para pousar, enfim, num rosto que reconheci. Senti um leve estremecimento
de prazer ao ver Altha, sentada e olhando-me com seus olhos negros e atentos.
Thab me fez um
sinal para que eu entrasse na arena, e o fiz, imaginando se os combates de mãos
nuas de outrora, em meu próprio planeta, haviam-se dado em ringues tão rudimentares
quanto aquele, sobre um gramado. Thab e os outros guerreiros que me haviam
escoltado ficaram de fora. Acima de nós, meditava o velho Khossuth, vestido com
peles de leopardo e sentado sobre uma pedra esculpida que se sobressaía da primeira
fila.
Olhei acima de
Khossuth para o céu escuro e cheio de estrelas, cuja rara beleza não deixava de
me fascinar, e pus-me a rir diante da incongruência da situação... eu, Esaú
Cairn, era obrigado conquistar com suor e sangue o meu direito de existir
naquele mundo estranho, cuja existência não era sequer imaginada pelos
habitantes do meu próprio planeta.
Vi que um
grupo de guerreiros se aproximava pelo outro lado. Uma enorme silhueta se
erguia entre eles. Ghor, o Urso, lançou-me um olhar fulgurante através do
ringue, e seus punhos peludos afastaram as correias de couro. Soltando um
rugido, pulou-as e, de um salto, estava diante de mim. Era a imagem da
ferocidade... louco de raiva porque, totalmente por acaso, eu o havia precedido
na arena.
Do grosseiro
trono acima de nós, o velho Khossuth brandiu uma lança, desferindo-a contra o
chão. Seguimos sua trajetória com o olhar. No momento em que a ponta da lança
encontrava a grama do solo, fora do círculo de couro, nos lançamos um contra o
outro como duas massas de aço, ossos e músculos vibrando com vida selvagem e
anseios de destruição.
Salvo por uma
espécie de calção de couro, mais uma tanga que uma veste, ambos estávamos nus.
As regras do combate eram simples; era proibido golpear com os punhos ou com as
palmas das mãos, os joelhos ou cotovelos, dar murros, morder ou arrancar um
olho do adversário. Fora isso, tudo era permitido.
Ao primeiro
impacto de seu corpo peludo com o meu, compreendi que Ghor era mais forte que
Logar. Privado de minhas melhores armas naturais – os punhos –, Ghor levava vantagem.
Era uma
montanha cabeluda de músculos de aço, e movia-se com a rapidez e a agilidade de
um enorme felino. Habituado a tais combates, conhecia truques que eu ignorava.
Além disso, tinha a cabeça tão fundida aos ombros, que era praticamente impossível
estrangular um pescoço tão compacto e grosso.
O que me
salvou foi a vida selvagem que havia levado nos meses passados. Estava
endurecido como nenhum outro homem – que vivera como homem – jamais estivera antes.
Possuía uma rapidez de movimentos superior e, ao fim das contas, maior resistência.
Há pouco a
contar sobre o combate. O tempo deixou de compor-se de fragmentos distintos,
para fundir-se na bruma cega de uma eternidade que rugia furiosa. Não havia ruídos,
com exceção de nossos grunhidos, do sussurro das tochas movidas pela brisa e do
impacto de nossos pés na grama, ou de nossos corpos ao golpear-se
violentamente. Éramos de igual força e nenhum dos dois podia prevalecer rapidamente.
Ali não havia imobilização pelos ombros do adversário, como acontecia na Terra.
O combate continuaria até que um de nós – ou os dois – caísse por terra, morto
ou inconsciente.
Ainda hoje me
surpreendo ao pensar em nossa resistência e vigor. À meia-noite, prosseguíamos
lutando. O mundo inteiro girava diante de meus olhos e era colorido de vermelho,
quando me livrei de um aperto homicida. Uma dor atroz invadia todo o meu corpo.
Tinha ligamentos arrebentados e alguns músculos tensos, como que mortos. O sangue
escorria de meu nariz e da boca. Estava meio cego e dominado pela vertigem,
depois de minha cabeça atingir não sei quantas vezes a terra endurecida. Minhas
pernas tremiam. Tinha a respiração curta e dolorosa. Mas podia ver que Ghor não
estava em melhor estado. A ele também sangrava o nariz e a boca; e, além disso,
saía sangue por suas orelhas. Titubeava ao enfrentar-me; seu torso peludo
erguia e baixava, sacudindo-se. Cuspiu sangue e, com um rugido que mais parecia
um seco estertor, se lançou de novo contra mim. Reunindo todas as minhas
declinantes forças para um último esforço, agarrei pela munheca o punho que
vinha em minha direção, girei rapidamente, me inclinei e puxei seu braço por
cima de meu ombro, levantando meu adversário do solo.
O impulso de
seu ataque facilitou a tarefa. Girou por cima de minhas costas e caiu por
terra, golpeando o solo com a cabeça e os ombros. Caiu como um fantoche, girou sobre
si mesmo e ficou inerte. Por um instante, cambaleei por cima dele, ao mesmo
tempo em que o povo de Koth soltava uma sonora exclamação... e uma onda de
trevas ocultou as estrelas e as tochas vacilantes. Caí atravessado sobre o
corpo imóvel de meu adversário.
Soube, mais
tarde, que todo mundo havia acreditado que ambos estávamos mortos. Foi preciso
várias horas para nos reanimar. Como puderam nossos corações resistir a uma tensão
tão terrível e a tais esforços, é o que ainda me pergunto, sendo um tema que me
maravilha. Os homens disseram que aquele foi o combate mais longo ocorrido na arena.
Ghor estava
gravemente ferido, mesmo para um kothiano. Aquela última queda havia quebrado
seu ombro e fraturado o crânio, sem falar das feridas menos graves que havia
sofrido antes. Quanto a mim, tinha três costelas quebradas, e os ligamentos, músculos
e membros tão arrebentados e feridos, que, durante vários dias, fui incapaz até
mesmo de me levantar da cama. Os homens de Koth cuidaram de nossas feridas e contusões,
com uma habilidade e competência que sobrepujavam em muito as da Terra; mas, em
sua maior parte, foi nossa notável vitalidade primitiva que nos permitiu voltar
a ficar em pé. Quando uma criatura que vive em estado selvagem se fere, em
geral, ou morre rapidamente ou se restabelece muito depressa.
Perguntei a
Thab se Ghor ia me odiar pela derrota que lhe havia causado; Thab foi incapaz
de responder: Ghor não havia sido vencido anteriormente.
Mas minhas
inquietudes sobre aquele tema logo se dissiparam. Sete robustos guerreiros
irromperam na câmara que me haviam destinado. Traziam uma liteira, na qual se achava
estendido meu adversário. Estava tão cheio de curativos que deu trabalho reconhecê-lo.
Mas sua voz troante permitiu-me identificá-lo com rapidez. Havia obrigado seus amigos
a levarem-no daquele modo – para poder me visitar –, quando pude sair da cama.
Não me guardava rancor. Em seu grande coração, simples e primitivo, não havia
nada além de admiração pelo homem que lhe havia infligido a primeira derrota de
sua vida. Contou nosso homérico combate com um entusiasmo que fez tremer o
teto, e expressou com rugidos seus veementes desejos de ver-se logo totalmente
restabelecido. Assim poderíamos combater ombro a ombro os inimigos de Koth.
Levaram para
sua casa sem que parasse de mugir sua admiração e seus sanguinários projetos
para o futuro. Uma imensa alegria me dilatou o coração. Sentia um profundo afeto
por aquele filho da magnânima natureza, que era mais homem – um homem de verdade
– que todos os engodos civilizados que eu havia conhecido na Terra.
E foi assim
que eu, Esaú Cairn, passei de selvagem a bárbaro. Na imensa sala do conselho,
dominada por uma cúpula e na presença de todos os homens da tribo, quando fui
capaz, postei-me diante do trono de Khossuth, o Rompe-Crânios, e ele cortou com
sua própria espada, acima de minha cabeça, o misterioso símbolo de Koth.
Depois, com suas próprias mãos, passou ao redor de minha cintura o equipamento
de um guerreiro kothiano... o largo cinturão de couro do escudo de aço, um
punhal e uma longa espada com uma ampla guarda de prata. Os guerreiros
desfilaram ante mim, e cada chefe punha sua palma sobre a minha e pronunciava
seu nome, e eu o repetia, e ele repetia o nome que me haviam dado: Mão de
Ferro. Aquela parte da cerimônia foi a mais cansativa, pois havia quatro mil guerreiros
e quatrocentos deles eram chefes de um grau ou outro. Mas aquilo era parte do
rito de iniciação e, quando terminou, eu era tão kothiano como se tivesse
nascido na tribo.
Na sala da
torre, na mesma pela qual passeava como um tigre enquanto Thab falava comigo –
e mais tarde, como membro da tribo –, soube tudo o que os habitantes de Koth sabiam
acerca de seu estranho planeta.
Eles e seus
semelhantes, disseram, eram os únicos e verdadeiros seres humanos de Almuric,
ainda que existisse uma misteriosa raça de seres que habitava bem mais ao sul, os
yagas. Os kothianos eram guras, um termo que se aplica a todos de sua raça e
que significa homem. Havia muitas tribos guras, cada uma das quais vivia numa
cidade distinta, e cada cidade era semelhante a Koth. Nenhuma tribo possuía mais
que quatro ou cinco mil guerreiros, com o número correspondente em mulheres e
crianças.
Nenhum homem
de Koth jamais dera uma volta inteira pelo mundo, mas iam muito longe durante
as caçadas e expedições guerreiras, e haviam sido transmitidas muitas lendas de
geração em geração, concernentes a seu mundo – que, naturalmente, denominavam
com uma palavra que corresponderia à nossa para a Terra, ainda que, após certo tempo,
alguns deles adquirissem o costume de dizer Almuric ao falar de seu planeta.
Longe, ao norte, havia um país de gelo e neve, onde não vivia nenhum ser
humano, ainda que, segundo alguns, gritos singulares retumbassem pela noite,
provenientes dos picos glaciais e, às vezes, viam-se sombras na neve. À menor
distância, para o sul, erguia-se uma barreira natural que nenhum homem jamais
havia atravessado... uma gigantesca muralha de rochas que, segundo as lendas,
rodeava o planeta; por isso havia recebido o nome de Cinturão. O que havia além
do Cinturão, ninguém sabia. Alguns acreditavam que era a borda do mundo e que
mais além só existia o vazio do espaço. Outros sustentavam que, após ele, se
estendia outro hemisfério. Acreditavam – o que me parece totalmente lógico –
que o Cinturão separava os hemisférios norte e sul de seu mundo, e que o
hemisfério sul era habitado por homens e animais. Contudo, os partidários dessa
teoria eram incapazes de dar a menor prova e eram tomados, geralmente, como
românticos excessivamente imaginativos.
De qualquer
modo, as cidades dos guras estavam disseminadas pelas planícies imensas que se
estendiam entre o Cinturão e a região gelada. O hemisfério norte não possuía
nenhum rio importante. Havia rios, grandes planícies, alguns lagos aqui e ali,
ocasionais extensões florestais escuras e espessas, colinas áridas e algumas
montanhas. Os rios mais importantes corriam para o sul e precipitavam-se em abismos
abertos no Cinturão.
As cidades dos
guras eram construídas, invariavelmente, em meio às planícies, e sempre a
grande distância umas das outras. Sua arquitetura era resultado da evolução singular
de seus construtores... aquelas fortalezas, de penhascos amontoados para a defesa,
refletiam sua natureza, rude, primitiva, maciça, desprezando qualquer
ostentação e adorno visível, sem nada saber de arte.
Em muitos
pontos de vista, os guras se pareciam aos homens da Terra; em outros, eram
diferentes de um modo desconcertante. As diversas fases de sua evolução têm tão
pouca relação com o que aconteceu na Terra, que me é difícil explicar sua forma
de vida e seu desenvolvimento.
Quanto a Koth –
e o que disser para Koth pode ser aplicado a qualquer outra cidade gura –, seus
homens eram dotados para a guerra, a caça e a fabricação de armas. Esta última
ciência ensinam a toda criança, mas raramente é posta em prática. Não precisam
fabricar armas novas: sólidas e duráveis, são transmitidas de geração a
geração, ou são roubadas dos inimigos.
O metal é
utilizado unicamente para as armas ou para algumas partes de vestimenta, como
broches ou fivelas de cinturão. Ninguém usa adornos – tanto homens quanto mulheres
– e o uso de dinheiro é desconhecido. Não há nenhum sistema de câmbio. Não
existe relação comercial de nenhum tipo entre as cidades, e os únicos negócios que se utilizam são simples
trocas. O único tecido empregado pelos guras é uma espécie de seda, tecida a
partir das fibras de uma curiosa planta, que cresce perto dos muros da cidade.
Há outras plantas que proporcionam vinho, frutos e legumes. A carne fresca – o principal
alimento dos guras – é conseguida mediante a caça, uma atividade que é tanto um
entretenimento quanto uma ocupação.
Assim, os
habitantes de Koth são muito hábeis trabalhando o metal, tecendo seda e em sua
forma particular de agricultura. Têm uma linguagem escrita muito rudimentar,
uns hieróglifos que traçam em folhas parecidas com papiros, com a ajuda de uma
pluma parecida com uma adaga e que molham no sumo púrpura de uma estranha flor;
mas bem poucos kothianos, exceto os chefes, sabem ler ou escrever. Não possuem
literatura; ignoram tudo acerca da pintura, da escultura ou das artes mais elevadas. Evoluíram até o nível de
cultura que era imprescindível para suas necessidades vitais; então, deixaram
de progredir. Aparentemente desafiando as leis que nós, os terráqueos, consideramos
imutáveis, permanecem numa situação estacionária: nem avançam, nem retrocedem.
Como quase
todos os povos bárbaros, possuem uma forma de poesia frustrada, quase
exclusivamente dedicada às batalhas, rapinas e triunfos bélicos. Não possuem
bardos ou trovadores, mas cada um dos homens da tribo conhece as baladas
populares de seu próprio clã, e, depois de algumas jarras de cerveja, são dados
a berrar a níveis altíssimos, capazes de romper os tímpanos.
Essas canções
são transmitidas oralmente e, do mesmo modo, não há história escrita, de modo
que os eventos antigos são muito vagos, e às vezes se misturam a lendas improváveis.
Ninguém sabe
qual é a idade da cidade de Koth. Suas pedras gigantescas desafiam os elementos
e são indestrutíveis; poderiam estar ali há dez ou dez mil anos. Pessoalmente,
estimo que a construção da cidade remonte a pelo menos quinze mil anos. Os
guras são uma raça muito antiga, apesar de sua exuberante barbárie que os faz
parecer um povo jovem e de recente aparição. No que concerne à evolução da raça
– de qual animal descende, qual foi seu ancestral comum, quais as migrações e
cisões tribais –, não se sabe absolutamente nada. Os guras ignoram o conceito
de evolução, e não sabem nada acerca de seu desenvolvimento até sua presente
condição. Supõem que – como a eternidade – sua raça não teve começo nem terá
fim, e que eles sempre foram o que são agora. Não possuem lendas que expliquem
a criação.
*
* *
Consagrei a
maior parte de minhas notas aos homens de Koth. Mas suas mulheres não são menos
dignas de um comentário detalhado. Descobri que a diferença de aspectos entre
os sexos não era tão inexplicável, afinal. É simplesmente o resultado da evolução
natural, cujas raízes se encontram na enorme ternura que os machos guras demonstram
por suas mulheres. Foi para proteger suas mulheres – estou certo disso –, que amontoaram
semelhantes blocos de pedra e se refugiaram em tão grosseiras cidades; e é estranho,
pois a natureza inata do macho gura é definitivamente nômade.
A mulher,
cuidadosamente protegida e preservada dos perigos – além disso, não tem que
realizar tarefas penosas, um preço comum às mulheres bárbaras da Terra –,
evoluiu segundo um processo natural até seu estado atual, que já descrevi. Os
homens, pelo contrário, levam uma vida incrivelmente ativa e rude. Sua
existência é uma dura batalha pela sobrevivência, e assim tem sido desde o dia
em que o primeiro macaco se pôs em pé sobre Almuric. Evoluíram do modo especial
como o fizeram para cobrir suas necessidades. Representam, isso está claro, uma
raça altamente especializada, adaptada de modo perfeito à vida selvagem que
levam. E seu aspecto grotesco não é resultado de uma degeneração ou
subdesenvolvimento.
Correndo todos
os riscos e assumindo todas as responsabilidades, os homens estão investidos
com toda a autoridade. A mulher gura não tem nada a dizer sobre o governo da
cidade e da tribo, e a autoridade de seu companheiro sobre ela é absoluta,
salvo com uma exceção: a mulher tem o direito de recorrer, em caso de um abuso,
ao conselho dos chefes. Sua liberdade de ação é limitada; poucas mulheres saem
da cidade na qual nascem, a menos que sejam raptadas por uma tribo inimiga
durante uma incursão.
Contudo, sua
sorte está longe de ser tão desgraçada quanto possa parecer. Disse que uma das
características do macho gura é sua enorme ternura por suas mulheres. Infligir
maus tratos a uma mulher é um caso extremadamente raro, e algo não-tolerado
pela tribo.
A monogamia é
a regra. Os guras não se dedicam aos noivados nem às palavras doces, nem
tampouco aos outros adornos superficiais da galanteria, mas tratam suas mulheres
com justiça e uma rude deferência, parecidas com a atitude dos antigos colonos
americanos.
As tarefas das
mulheres guras são pouco numerosas e consistem, principalmente, em trazer
filhos ao mundo e educá-los. Não fazem outros trabalhos penosos além de tecer a
seda a partir das plantas que a produzem. Possuem certa inclinação pela música,
e tocam um pequeno instrumento de corda, bastante parecido com um alaúde, e também
cantam. Têm o espírito mais aberto e dão provas de maior sensibilidade que os
homens. São inteligentes, alegres, afetuosas, delicadas e dóceis. Têm suas
próprias distrações, e o tempo não parece passar para elas. É impossível
persuadir uma delas a se aventurar além das muralhas da cidade. Sabem dos
perigos que rodeiam as cidades e levam uma vida feliz, protegidas por seus
ferozes companheiros e amos.
De muitos
pontos de vista, os homens parecem, como já disse, pertencer aos povos bárbaros
que existiram na Terra. E, em muitas coisas, suponho que os vikings seriam parecidos.
São honestos, desprezam o roubo e a mentira. Gostam da guerra e da caça, mas
não são inutilmente cruéis, salvo quando estão loucos de raiva ou dominados por
algum desejo sanguinário. Só nesse caso podem se converter em verdadeiros
demônios. Falam sinceramente, e mantêm um comportamento brutal; encolerizam-se
facilmente, mas se acalmam de igual modo, a não ser quando se encontram frente
a um inimigo hereditário. Possuem um inegável senso de humor, ainda que
bastante limitado, e um feroz amor por sua tribo e sua cidade, e uma verdadeira
paixão pela liberdade individual.
Suas armas
consistem em espadas, punhais, lanças e uma arma de fogo bastante parecida com
uma carabina – de um só disparo, que é carregada pela culatra e de curto alcance.
A matéria inflamável não é a pólvora que conhecemos. Não tem equivalente na
Terra. Possui ao mesmo tempo as propriedades do impacto e da explosão. A bala é
de uma substância muito parecida com o chumbo. Essas armas são empregadas
principalmente nas guerras contra outras tribos; para a caça, empregam apenas
arcos e flechas.
Há sempre três
grupos de caçadores fora da cidade; é muito raro, aliás, que todos os
guerreiros se encontrem de uma só vez na cidade. Os caçadores às vezes ficam
ausentes por semanas, quando não meses inteiros. Mas há sempre mil guerreiros
na cidade para rechaçar qualquer ataque eventual, ainda que os guras não tenham
por costume assediar as cidades inimigas. Suas cidades são muito difíceis de
conquistar de assalto, e é impossível reduzir seus habitantes pela fome, pois
conseguem uma grande parte de seus alimentos dentro de seus próprios muros.
Além disso, em cada cidade há uma fonte inesgotável de água pura. Os caçadores
buscam caça freneticamente nas colinas onde vivi por algum tempo, e a reputação
desses sítios é a de possuir mais variedade de formas de vida animal selvagem que
em qualquer outra parte de Almuric. Os caçadores mais audazes se dirigem às
colinas, em grupos importantes, ainda que só permaneçam nelas alguns dias. O
fato de eu ter vivido nas colinas durante vários meses me dera mais prestígio e
admiração entre aqueles ferozes guerreiros que o de ter vencido Ghor, o Urso.
Oh, aprendi muitíssimas
coisas sobre Almuric. Como esta é uma crônica, e não um ensaio, vejo-me
obrigado a passar por cima dos costumes, do modo de vida e das tradições de
seus habitantes. Aprendi tudo quanto podiam me dizer, e compreendi muito mais.
Os guras não eram os primeiros habitantes de Almuric, ainda que eles mesmos se
tivessem por tais. Falaram-me de ruínas muito antigas – de cidades que não
haviam sido construídas pelos guras –, que eram vestígios de raças
desaparecidas. Aquelas, supunham, haviam sido contemporâneas de seus
ancestrais, porém – pelo que saberia mais tarde – haviam surgido e logo desaparecido
de modo terrível, antes que o primeiro gura começasse a amontoar pedras para
construir a primeira de suas cidades primitivas. De qualquer modo, acabei por saber
o que nenhum gura sabia... mas isso ainda fará parte desta história.
Entretanto,
falaram-me também de curiosos seres não-humanos: os yagas. Era uma raça
terrível de homens alados que viviam muito longe, ao sul, perto do Cinturão, na
sinistra cidade de Yugga, no pico de Yuthla, junto ao rio Yogh, no reino de
Yagg, onde nenhum homem vivo jamais havia se aventurado. Os yagas, pelo que
diziam os guras, não eram verdadeiros homens, e sim demônios com forma humana.
Saíam regularmente de Yugga para assediar os homens, levando a espada do
massacre e a tocha da destruição, raptando as jovens guras para uma escravidão
da qual tudo se ignorava, pois ninguém havia jamais escapado do reino de Yagg.
Alguns pensavam que aquelas donzelas eram entregues como alimento a algum
monstro ao qual os yagas veneravam, e outros afirmavam que aqueles monstros só
possuíam um objeto de veneração: eles mesmos. Sabia-se apenas uma coisa: sua
soberana era uma rainha negra chamada Yasmeena. Já havia mais de mil anos ela
reinava no sinistro pico de Yuthla, e sua sombra se estendia pelo mundo para
fazer os homens tremerem de terror.
Os guras me
falaram de outros seres, criaturas estranhas e terríveis, monstruosidades com
cabeça de cão que viviam ocultas nas ruínas das cidades sem nome; de colossos
que habitavam na obscuridade e cuja passagem fazia tremer o solo; de fogos que
revoluteavam como morcegos inflamados atravessando os céus escurecidos; de
coisas que vagavam pelos profundos bosques, coisas escamosas que se arrastavam
e que não se podia ver, mas que atacavam os homens implacavelmente. Falaram de
grandes morcegos, cujo riso enlouquecia os homens; de formas descarnadas e odiosas
que passeavam pelas colinas durante o crepúsculo. Falaram de coisas que nunca
existiram em meu planeta natal para atormentar o sono dos homens. Pois a Vida,
em Almuric, tem muitas formas estranhas, e a vida normal não é a única Vida que
povoa este planeta.
Mas contarei
tudo quando chegar o momento, sobre os pesadelos que ouvi e sobre os que vi com
meus próprios olhos, porque já me atrasei demais com minha própria história. Um
pouco de paciência, portanto; mesmo que tudo passe muito depressa em Almuric,
meu relato será um pouco mais resumido que os eventos que nele se desenvolvem.
Estive por
vários meses em Koth, adaptando-me à vida de seus habitantes. Caçava, festejava,
bebia cerveja e bradava como se fosse um deles. Ali não era limitado e não conhecia
nenhum tipo de trava, ao contrário da Terra. Até aquele momento, nenhuma guerra
tribal me havia permitido provar minhas forças, mas havia bastantes lutas a mãos
limpas na cidade, em combates amistosos, e rinhas de bêbados, pois os
guerreiros não faziam outra coisa além de esvaziar violentamente as jarras de
bebida para depois bradar seus desafios por cima das mesas cheias de cerveja. Saboreava
minha nova existência sem o menor freio; e ali, ao contrário de minha vida nas
colinas, tinha uma companhia humana que encaixava perfeitamente com o que exigia
meu espírito. Eu não necessitava de arte, nem literatura, nem intelectualismo;
caçava, me embebedava, pedia cerveja, lutava; abria os robustos braços e
abraçava a vida como se a envolvesse. E naquelas rinhas e disputas de bêbado,
quase esqueci a delicada silhueta que permaneceu sentada, tão pacientemente, na
sala do conselho sob a grande cúpula.
CAPÍTULO V
HAVIA SAÍDO
SOZINHO PARA CAÇAR e me aventurara muito longe. Passei várias noites nas
planícies. Estava voltando para Koth, sem pressa, mas ainda me encontrava a muitas
milhas da cidade, sendo incapaz de divisar suas torres delgadas, ocultas pela
vegetação ondulante da savana. Não saberia dizer quais eram meus pensamentos
enquanto avançava com passo rápido, com a carabina nos braços, mas não havia dúvida
de que eram ocupados por umas pegadas que vira, às margens de um pântano, e em
moitas esmagadas que claramente indicavam a passagem de uma grande fera – a mesma
cujos odores transportados pela brisa ligeira camuflavam.
Fossem quais
fossem meus pensamentos, viram-se bruscamente interrompidos por um grito
penetrante. Voltando-me, percebi uma silhueta esbelta e branca que corria para
mim através da espessa vegetação. Atrás dela, ganhando terreno a cada passo, surgiu
um desses grandes pássaros carnívoros que estão entre os mais perigosos habitantes
das pradarias. Têm mais de dois metros e meio de altura e se parecem bastante
aos avestruzes, salvo pelo bico, que forma uma enorme arma encurvada com um
metro de comprimento e tão afiada quanto uma cimitarra. Uma bicada poderia
partir um homem em dois, e as grandes patas armadas de garras daquele monstro
seriam capazes de esquartejá-lo.
Aquela
verdadeira montanha de destruição se movia a uma velocidade terrível, e compreendi
que o monstro alcançaria a jovem antes que eu pudesse me dirigir até eles.
Maldizendo a obrigação que me forçava a demonstrar minha habilidade com as
armas de fogo – que não era das maiores –, levantei a carabina e apontei tão
cuidadosamente quanto pude. A jovem se encontrava na linha de tiro e eu não
podia correr o risco de apontar para o enorme corpo do monstro, por medo de
atingi-la. Devia tentar destroçar a grande cabeça do animal, que pendia de modo
desconcertante na extremidade do longo pescoço arqueado.
Foi mais sorte
que habilidade o que me permitiu acertar. Logo após a detonação, a cabeça
gigantesca se projetou bruscamente para trás, como se o monstro houvesse golpeado
um muro invisível. As asas atrofiadas varreram os ares com um ruído trovejante
e, em seguida, dando alguns passos incertos, a fera tropeçou e caiu por terra.
A jovem caiu
no mesmo instante, como se a mesma bala tivesse atingido a ambos. Corri para
ela, inclinei-me e vi com surpresa que se tratava de Altha, a filha de Zal, erguendo
para mim seus olhos negros e misteriosos. Após assegurar-me rapidamente de que
não lhe ocorrera nada – salvo o medo e o esgotamento –, voltei-me para o
pássaro trovão e me certifiquei de que estava realmente morto: seu cérebro,
pouco abundante, se esparramava por um estreito furo que lhe atravessava o
crânio.
Voltando-me
novamente para Altha, fitei-a severamente.
- O que faz
fora da cidade? – perguntei. – Acaso perdeu o juízo, para se arriscar indo tão
longe pela planície, e ainda por cima sozinha?
Não respondeu,
mas seu olhar se nublou – como se eu a houvesse ferido – e lamentei ter falado
tão duramente. Abracei-a.
- Você é uma
garota muita estranha, Altha – eu disse. – Não se parece com as outras mulheres
de Koth. Dizem que é voluntariosa e rebelde sem motivo. Não compreendo. Por que
arriscou sua vida?
- O que pensa
fazer agora? – perguntou.
- Ora... te
levar pra casa, naturalmente.
O olhar da
jovem nublou-se de um modo peculiar:
- Vai me
devolver em casa e meu pai me açoitará. Mas fugirei outra vez... e outra... e
outra!
- Por quê? –
perguntei com estupor. – Não pode ir a parte alguma. Alguma fera selvagem te
devorará.
- E daí? –
replicou a jovem. – Talvez eu queira ser devorada.
- Então por
que fugia diante do pássaro-trovão?
- O instinto
de conservação é difícil de vencer – admitiu.
- Mas por que
deseja morrer? – insisti. – As mulheres de Koth são felizes, e você mesma não
tem motivos para invejar nenhuma delas.
Abriu os
braços e olhou fixamente para a imensa planície.
- Comer, beber
e dormir não é tudo na vida – respondeu com uma voz estranha. – Os animais o
fazem.
Perplexo,
passei a mão pela espessa cabeleira. Havia escutado aqueles mesmos sentimentos
expressados de muitos modos sobre a Terra, mas era a primeira vez que os ouvia na
boca de um habitante de Almuric. Altha prosseguiu, com voz baixa e distante,
quase como se falasse consigo mesma:
- A vida é
muito dura para mim. Por alguma razão desconhecida, não me convém o mesmo que
aos outros. Firo-me com suas agudas arestas. Busco algo que não existe... e que
nunca existiu.
Desgostoso com
suas insólitas palavras, tomei com uma das mãos suas mechas opulentas e a
obriguei a voltar a cabeça, para poder observar seu rosto atentamente. Seu enigmático
olhar se cruzou com o meu; havia, em seus olhos, um estranho fulgor que jamais
havia visto.
- Já era
difícil antes da tua chegada – disse. – Agora, é ainda mais difícil...
Estupefato,
soltei-a e a jovem afastou a cabeça.
- E por que
iria eu fazer as coisas mais difíceis? – perguntei.
- De que é
feita a vida? – replicou. – A vida que levamos é toda a vida? Não há nada além
de nossas aspirações materiais?
Cocei a
cabeça, cada vez mais perplexo.
- Nossa – eu disse
–; na Terra, conheci muita gente que não fazia nada, além de perseguir um sonho
nebuloso ou um ideal, mas nunca soube se o alcançaram. Em meu planeta, havia
muita gente que andava tateando, tentando atingir coisas invisíveis, mas, pelo
que sei, nunca chegaram à plenitude e felicidade que pude encontrar em Almuric.
- Pensei que
fosse diferente – disse-me, evitando olhar-me nos olhos. – Quando te vi
estendido, ferido e preso, com a pele lisa e os olhos tão puros, pensei que
devia ser mais doce que os outros homens. Mas você é tão insensível e feroz quanto
os outros. Passa dias e noites massacrando animais, lutando com os outros, se
enchendo de cerveja e arrotando.
- O mesmo que
todos fazem – protestei.
Altha baixou a
cabeça:
- Por isso não
fui feita para esse tipo de vida, e preferia estar morta.
Senti-me
envergonhado de modo pouco razoável. Veio-me à cabeça a idéia de que uma
terráquea teria achado a vida em Almuric grosseira e limitada de modo insuportável,
mas me parecia igualmente inconcebível que uma mulher nascida naquele planeta
distante pudesse sentir semelhantes sentimentos. Se as outras mulheres às quais
tinha visto desejavam receber mais doçura, mesmo que a nível superficial, da
parte de seus companheiros, eu nunca havia percebido. Aparentemente, estavam
satisfeitas de ter abrigo e proteção, e sentiam-se alegremente resignadas aos torpes
costumes dos homens. Procurei algumas palavras, mas não encontrei nenhuma, pois
era, e ainda sou, pouco versado em assuntos de discursos corteses. Fui
bruscamente consciente de minha rudeza, de minhas maneiras estúpidas e
bárbaras, e aquilo me desconcertou.
- Vou levá-la
para Koth – eu disse, com impotência.
Ela encolheu
os adoráveis ombros:
- E poderá
olhar enquanto meu pai me açoita.
Ao ouvir aquilo,
recuperei a fala:
- Ele não te
açoitará – repliquei encolerizado. – Se ousar fazer isso, eu mesmo quebro a
espinha dele!
A jovem ergueu
para mim o rosto vivamente, com os olhos demonstrando um súbito interesse. Meu
braço havia encontrado o caminho que a rodeava pela cintura e a olhei nos
olhos; meu rosto estava muito próximo do seu. Seus lábios se entreabriram e, se
aquele instante febril tivesse durado um pouco mais, ignoro o que teria
acontecido. Mas, bruscamente, toda cor desapareceu de seu rosto e um grito de
terror brotou de seus lábios entreabertos. Seu olhar se cravava em algo que se
encontrava atrás de mim, às minhas costas. Subitamente, um revolutear terrível
retumbou no ar.
Dei a volta,
girando num dos joelhos, e vi que o céu acima de mim estava repleto de formas
escuras. Os yagas! Os homens alados de Almuric! Havia chegado a tomá-los por
criaturas míticas; contudo, ali estavam, com todo seu misterioso horror.
Tive tempo de
dar-lhes uma breve olhada enquanto me erguia de um salto, utilizando como
bengala a carabina vazia. Vi que eram altos e delgados, muito musculosos, de forte
ossatura, com a pele cor de ébano. Pareciam homens normais a não ser por
aquelas grandes asas membranosas, de morcego, que sobressaíam de seus ombros.
Salvo por tangas estavam nus, e armados com curtas espadas curvas.
Pus-me de pé
enquanto o primeiro se lançava contra mim, brandindo a cimitarra, e sustive seu
ataque golpeando-o com a carabina. A culatra esmagou o estreito crânio como uma
casca de ovo. Um instante depois, giravam e agitavam o ar ao meu redor. As lâminas
curvadas pareciam raios cintilantes que me ameaçavam por todos os lados. Felizmente,
atrapalhavam-se entre si, tamanho era seu número e tantas as suas asas.
Descrevendo um
círculo ao meu redor com o cano da carabina, quebrei e afastei as brilhantes
lâminas. Durante a furiosa batalha, golpeei um yaga pela frente; deixei-o sem sentidos
a meus pés. Naquele instante, um grito de desespero soou às minhas costas. O
combate cessou bruscamente.
Todo o bando
se distanciou e se dirigiu rapidamente para o sul. Fiquei petrificado. Nos
braços de um deles se debatia e gritava uma silhueta branca e esbelta, que
estendia os braços para mim e implorava. Altha! Haviam se apoderado dela pelas
minhas costas. Transportavam-na para a sorte – fosse qual fosse – que lhe
estava reservada na negra cidadela do mistério, longe, ao sul. A terrível
velocidade, com a qual os yagas voavam pelo céu, havia feito com que
percorressem uma distância enorme. Não tardaram a se perder de vista.
Enquanto
permanecia imóvel, absorto, senti um movimento aos meus pés. Baixando o olhar, descobri
uma de minhas vítimas, apalpando o crânio, ainda atordoada. Com um gesto
vingador, brandi o cano da carabina para reduzir-lhe a polpa o cérebro. Mas, inspirado
pela facilidade com a qual o raptor de Altha a havia alçado pelos ares, mesmo
com aquele peso extra, uma idéia cruzou-me subitamente a cabeça.
Sacando o
punhal, obriguei meu cativo a se levantar. Uma vez em pé, vi que era mais alto
que eu, com os ombros quase tão amplos, ainda que os membros fossem mais secos e
nervudos do que maciços. Seus olhos negros, ligeiramente oblíquos, se cravavam
em mim com o olhar imóvel de uma serpente venenosa.
- Os guras me
haviam dito que alguns yagas falavam um idioma parecido com o seu. Vai me levar
pelos ares atrás de seus companheiros – falei.
Ele encolheu
os ombros e me respondeu com uma voz singularmente áspera:
- Não posso
voar com você às costas... é muito pesado.
- Isso é muito
triste para você – eu disse com severidade.
Obriguei-o a
voltar-se e saltei às suas costas, apertando-o fortemente com as pernas ao
redor da cintura. Passei-lhe o braço esquerdo pelo pescoço; o punhal, que
trazia na mão direita, tocava-o por trás. Havia conservado o equilíbrio, mesmo
com o peso de meu corpo. Abriu as imensas asas.
- Voa! -
grunhi em seu ouvido, forçando em sua carne a ponta da adaga. – Voa, maldito,
ou te arranco o coração!
Suas asas
começaram a bater no ar e nos elevamos lentamente acima do solo. Foi uma
experiência ao mesmo tempo nova e surpreendente, mas não prestei nela muita
atenção. O rapto de Altha me havia enfurecido até a loucura.
*
* *
Quando
alcançamos uma altura de uns mil pés, busquei com o olhar os raptores. Vi-os à
distância, uma simples mancha de pontos negros no céu, ao sul. Obriguei minha
recalcitrante montaria a voar na mesma direção.
Apesar de
minhas ameaças – pois eu não fazia outra coisa além de gritar ao yaga que
voasse mais depressa –, os pontos no céu não tardaram em desaparecer.
Prossegui, contudo, dirigindo-me para o sul, convencido de que, ainda que não conseguisse
alcançá-los, cedo ou tarde chegaria a ver o grande pico escuro, no qual,
segundo as lendas, vivia aquele povo misterioso.
Estimulado
pelo punhal, o yaga começou a voar a uma velocidade satisfatória, ao menos,
considerando a carga que levava às costas. Sobrevoamos as savanas durante
horas. Logo, ao meio-dia, a paisagem mudou. Passamos por cima de um bosque, o
primeiro que eu via em Almuric. As árvores pareciam erguer-se a uma considerável
altura.
Foi quase ao
pôr-do-sol que vi o final do bosque e, na pradaria que abria mais além, as
ruínas de uma cidade. Uma coluna de fumaça se alçava em volutas dos escombros. Perguntei
à minha montaria se poderiam ser seus companheiros, que acampavam para comer.
Sua única resposta foi um grunhido.
Sobrevoávamos
o bosque a baixa altitude quando um súbito clamor me fez olhar para o solo.
Passávamos justamente por cima de uma clareira na qual se desenvolvia uma feroz
batalha. Um bando de hienas seguia os passos de um animal gigantesco parecido
com um unicórnio e tão enorme quanto um bisão. Meia dúzia de corpos destroçados
e pisoteados testemunhavam o furor com que se defendia o animal.
Pude ver como
corneava a última hiena viva com seu chifre de marfim, tão afiado quanto uma
espada, e como a lançava pelos ares, rasgada e dilacerada, a uma distância de cinco
metros.
Enquanto
olhava com fascinação aquela cena, afrouxei – sem dúvida, involuntariamente –
as pernas em torno do yaga. No mesmo instante, com um movimento convulsivo e
uma súbita torção, o yaga se libertou e me fez cair de lado. Pilhado pela
surpresa, tentei agarrar-me a algo, mas só encontrei o vazio. Precipitando-me
para o solo a uma velocidade vertiginosa, golpeei terrivelmente a vegetação
abaixo... exatamente diante do unicórnio enlouquecido!
Tive uma visão
breve e temível da enorme massa que se erguia acima de mim, percebendo a cabeça
que se inclinava e apontava o chifre em minha direção. Levantei-me cambaleante
sobre um dos joelhos e agarrei, no mesmo movimento, o corno de marfim com a mão
esquerda, tentando afastá-lo, enquanto que, com a direita, golpeava com o punhal
tentando atravessar a imensa veia jugular.
Mas algo me
acertou o crânio com um terrível impacto, e as trevas me engoliram.
CAPÍTULO VI
SEM DÚVIDA,
FIQUEI INCONSCIENTE POR apenas alguns minutos. Quando voltei a mim, minha
primeira sensação foi notar um peso enorme sobre meus membros e todo o corpo.
Tentei me levantar e percebi que estava estendido debaixo do corpo sem vida do
unicórnio. No mesmo instante em que a lâmina de meu punhal cortou-lhe a jugular,
o imenso chifre devia ter-me golpeado a cabeça enquanto o corpo caía sobre mim.
Só o solo úmido e esponjoso que havia sob meu corpo havia permitido que me
salvasse de ser esmagado e reduzido a polpa. Sair de baixo daquela massa foi um
trabalho de titã, mas, finalmente, consegui livrar-me dela e me levantar.
Estava vacilante, dolorido e sem fôlego; tinha o cabelo cheio de manchas de
sangue quase secas do monstro, que igualmente manchava-me os membros. Meu
aspecto devia ser horrível, mas não perdi tempo em limpar-me. Meu corcel havia
desaparecido e o círculo de árvores
limitava meu campo de visão.
Escolhendo a
maior das árvores, nela subi tão depressa quanto me foi possível, até as
ramagens superiores, e percorri o bosque com meu olhar. Vi que, a coisa de uma
hora de marcha rápida, o bosque se fazia menos espesso, para o sul, e que depois
havia uma planície. A fumaça ainda elevava-se em finas volutas da cidade
abandonada. Pude ver naquele preciso instante como meu antigo cativo descia ao
solo e pousava entre as ruínas. Após lançar-me no vazio, deve ter voltado para ver
se eu mostrava algum sinal de vida, e para descansar uns instantes depois do
longo vôo.
Soltei uma
imprecação; a oportunidade que tinha de chegar até eles sem que suspeitassem
havia desvanecido. Depois, me surpreendi. O yaga mal havia descido quando
novamente abandonou a cidade, voando como um foguete. Sem a menor dúvida, se dirigia
para o sul, atravessando o céu a uma velocidade que me deixou de boca aberta. Por
que razão fugia assim? Se eram seus companheiros que acampavam nas ruínas, por
que não havia ficado com eles? Talvez tivesse descoberto que haviam partido e,
simplesmente, não fazia mais que segui-los. Contudo, seu comportamento parecia
estranho, sobretudo, tendo em vista o modo como havia se acercado das ruínas,
sem se apressar. O vôo apavorado dava uma idéia de evidente pânico.
Perplexo,
sacudindo a cabeça, desci da árvore e me encaminhei para as ruínas tão depressa
quanto pude, abrindo caminho através do espesso bosque, sem prestar atenção aos
movimentos das folhas, aos murmúrios e grunhidos da vida que despertava ao
mesmo tempo em que as sombras desciam.
Havia caído a
noite quando saí do bosque, mas a lua flutuava no céu e estendia uma luz
estranha e irreal sobre a planície. A pouca distância, as ruínas brilhavam com
um resplendor espectral. Os muros não eram construídos com o esverdeado e
grosseiro material empregado pelos guras. Ao aproximar-me, vi que eram feitos
com blocos de mármore. Aquele fato suscitou em minha mente uma vaga inquietação.
Recordei as lendas que me haviam contado os kothianos, a propósito das cidades
de mármore convertidas em ruínas, habitadas por criaturas de voracidade
vampírica. Aquelas ruínas se encontravam em lugares desabitados do planeta.
Ninguém conhecia suas origens.
Um meditabundo
silêncio recobria os muros derrubados e as colunas deslocadas, enquanto fui
avançando entre as ruínas. Em meio às brancas asperezas e brilhantes superfícies,
flutuavam sombras negras e espessas de aparência quase líquida. Deslizei silencioso
de um pântano de trevas para outro, empunhando a espada, esperando tanto uma emboscada
dos yagas quanto o ataque de alguma fera que rondasse entre as ruínas. Reinava
um extremo silêncio, algo que eu nunca antes havia encontrado em Almuric.
Nenhum leão rugia na distância, nenhuma ave noturna deixava escutar seus
estranhos gritos. Sentia-me como o último habitante de um mundo morto.
Cheguei a um
grande espaço descoberto, rodeado por um círculo de pilares quebrados, que,
antigamente, devia ter sido uma praça. Bruscamente me detive e fiquei imóvel, enquanto
minha pele se arrepiava.
Em meio à
grande praça, ardiam as brasas de um fogo moribundo, acima do qual assavam uns
pedaços de carne, em espetos fincados no solo. Evidentemente, os yagas haviam
preparado aquele fogo e se dispunham a comer; mas não chegaram a tocar na comida.
De um modo que poderia aterrorizar o mais valente dos homens, jaziam espalhados
pela praça.
Nunca antes
havia contemplado uma carnificina parecida. A praça estava cheia de mãos, pés,
cabeças arrancadas, pedaços de carne, entranhas, manchas de sangue. As cabeças
eram como bolas tenebrosas que tivessem rodado sobre o mármore leitoso, vindas
das sombras; os dentes pareciam esboçar um sorriso, os olhos brilhavam palidamente
à luz da lua. Algo havia atacado os
homens alados enquanto estavam sentados ao redor do fogo... algo que havia se lançado sobre eles
para esquartejá-los e fazê-los em pedaços. Entre os restos de carne viam-se
marcas de presas, e alguns ossos haviam sido quebrados, aparentemente para extrair-lhes
a medula.
Um calafrio
subiu e desceu por minha espinha dorsal. Que animal, se não o homem, poderia
quebrar ossos daquela maneira? Pois, do modo como estavam espalhados os restos
sangrentos, não parecia ser produto do ataque de feras selvagens; mais parecia
um ato de vingança, um desejo sanguinário ou um furor bestial.
E onde estava
Altha? Seus restos não se encontravam entre os de seus raptores. Lançando um
olhar para a carne nos espetos, o aspecto dos mesmos me fez estremecer. Tremendo
de horror, vi que minhas mais negras suspeitas podiam ter fundamento. O que
aqueles malditos yagas haviam posto para assar eram os restos de um corpo humano.
Dominado pela náusea e por uma angústia indizível, examinei mais de perto os lamentáveis
pedaços de carne. Soltei um profundo suspiro de alívio ao reconhecer os membros
grossos e musculosos de um homem e não os mais delicados de uma mulher.
Contudo, depois daquilo, considerei sem a menor emoção os restos espalhados e ensangüentados...
tudo que restava dos yagas.
Mas onde
estava a jovem? Havia escapado da carnificina para fugir e ocultar-se nas
ruínas, ou havia sido capturada e levada pelos assassinos? Varrendo com o olhar
as torres, os blocos de pedra derrubados e as colunas banhadas na estranha luz
lunar, fiquei consciente de uma aura maléfica, de uma ameaça que se ocultava
entre os escombros. Senti o olhar feroz de olhos invisíveis.
Não obstante,
comecei a examinar o solo, indo de um lado a outro pela grande praça. Não
tardei em descobrir um rastro de sangue – as gotas brilhavam sombriamente sob a
luz da lua – que se estendia até um labirinto de colunas de ângulos
vertiginosos. Na falta de melhor ocupação, segui o rastro. Talvez ele me conduzisse
até os assassinos dos homens alados.
Passei sob a
sombra de pilares gigantes e maciços, que me faziam sentir como um anão, e
entrei numa construção de muros arruinados, cobertos de líquens. Pelo teto caído
e as janelas abertas, a lua vertia sua luz de uma brancura fungosa, que fazia
com que as sombras fossem ainda mais negras. Um quadrado de claridade lunar
incidia sobre as lajes que marcavam a entrada de um corredor para o qual me
conduziam as gotas escuras e secas. Avancei tateando pelo corredor e estive a
ponto de quebrar o pescoço ao resvalar nos degraus que havia um pouco mais
adiante. Desci por eles rapidamente e cheguei até um piso uniforme. Titubeei.
Dispunha-me a voltar quando fiquei galvanizado ao escutar um som... meu coração
se acelerou e o sangue começou a correr loucamente por minhas veias. Nas
trevas, debilmente e ao longe, acabara de retumbar um chamado:
- Esaú! Esaú Cairn!
Altha! Não
podia ser mais ninguém! Contudo, um tremor gelado me atravessou e me eriçaram
os cabelos da nuca. Quis responder, mas a prudência me impediu. Seguramente,
ela não podia saber que eu me encontrava onde pudesse ouvi-la. Talvez chamasse
como uma criança aterrorizada, chamando alguém que não pode escutá-la. Segui pelo
túnel escuro tão depressa quanto me atrevia, na mesma direção da qual havia
percutido o grito. Tinha o coração na garganta e me sentia sufocado.
Minha mão
tateava na escuridão e deu com a entrada de uma porta. Estaquei, farejando o ar
como um animal selvagem, a presença de algum ser vivo próximo a mim. Girando os
olhos para perscrutar aquela escuridão negra como piche, pronunciei o nome de
Altha em voz baixa. Duas luminárias se acenderam no seio das trevas, dois raios
amarelados que estudei durante alguns instantes antes de perceber que eram dois
olhos. Eram tão grandes quanto minha mão, redondos e com um brilho que não
saberia descrever. Atrás daqueles olhos, tive a impressão de sentir uma massa
enorme e sem forma. Submergiu-me simultaneamente uma onda de medo instintivo e
retrocedi até o subterrâneo, apressando-me por ele, na mesma direção que levava
anteriormente. Uma vez de volta ao corredor, escutei um ligeiro movimento, como
se uma gigantesca massa fofa se arrastasse pelo solo; percebi igualmente um
débil ruído, como o que é produzido pela seda raspando na pedra.
Dei uns vinte
passos e voltei a parar. O túnel parecia interminável; além disso, dele se
bifurcavam novos túneis que se distanciavam e conduziam para as trevas. Não
havia maneira de saber qual era o certo. Enquanto pensava, escutei novamente o
chamado:
- Esaú! Esaú Cairn!
* * *
Armando-me de
coragem – frente a que perigos, eu ignorava –, parti novamente na direção da
qual me havia chegado aquela voz espectral. Que distancia percorri daquele
modo, não poderia dizer. Parei uma vez mais, desconcertado.
- Esaú! Esaú Cairn!
O grito subiu
até uma nota estridente, que desapareceu subitamente com um estalido de riso
inumano que me congelou o sangue nas veias.
Não era a voz
de Altha. Soube durante todo o tempo... que aquela não podia ser a voz de
Altha. Contudo, a outra eventualidade era tão inexplicável que havia me negado
a escutar o que minha intuição afirmava e minha razão se negava a reconhecer.
Então, de
todas as direções, de todos os lados, subiu um terrível clamor... vozes estridentes
que gritavam meu nome no tom maléfico dos demônios. Os túneis, até aquele momento
silenciosos, ressoavam e devolviam os ecos daquela horrível barafunda. Permaneci
imóvel, absorto e aterrorizado, do mesmo modo como devem fazer os condenados
nas tenebrosas antecâmaras do inferno. Conheci o terror frio, o horror da
estupefação, da desesperação... e, em seguida, um furor cego me submergiu.
Lançando um rugido sanguinário, lancei-me contra os sons que pareciam mais próximos...
e golpeei em cheio uma parede, enquanto retumbavam milhares de vozes inumanas, que
expressavam uma odiosa alegria. Dando meia-volta feito um touro ferido, investi
de novo, desta vez para a entrada de outro túnel. Correndo para o fundo, louco
de fúria e ardendo de desejo de alcançar meus carrascos, cheguei a uma vasta e
tenebrosa sala, no interior da qual um raio de lua projetava um brilho espectral.
E, novamente, ouvi o som de meu nome – mas, desta feita, com acentos humanos,
repletos de medo e angústia:
- Esaú! Oh,
Esaú!
Ao mesmo tempo
em que respondia àquele grito com um rugido selvagem, vi Altha, destacando-se
na débil claridade lunar. Estava estendida no solo, com as mãos e os pés envolvidos
pelas sombras. Mas notei que, no extremo de cada um dos membros da jovem, havia
uma forma vaga e abaixada.
Investi, com
um uivo de desejo sanguinário. As trevas se animaram bruscamente com uma vida
repugnante e formas tangíveis formigaram ao meu redor. Morderam-me com dentes
afiados, mãos simiescas tentaram me agarrar e dilacerar. Mas foram incapazes de
me deter. Girando a espada em grandes círculos, abri caminho através das massas
compactas de formas sinuosas, avançando lentamente para a jovem que gritava e
se contorcia no solo, em meio a um quadrado de luz lunar.
Debatia-me num
lodo imundo no seio daquela horda de criaturas que se lançavam contra mim, me mordendo
e arranhando. Rodeavam-me por todas as partes e chegavam-me até a cintura, mas
não conseguiam me derrubar. Alcancei o quadrado banhado pela lua. As criaturas que
seguravam Altha a soltaram e retrocederam diante da ameaça sibilante do fio de
minha espada. A jovem se levantou de um salto e se agarrou a mim. Enquanto a
horda tenebrosa se lançava sobre nós para submergir-nos na onda de seu furor,
vi uma escadaria meio arruinada que conduzia para cima. Empurrei Altha pelos
degraus e me voltei para cobrir sua retirada.
A escadaria
estava na penumbra; contudo, os degraus conduziam para uma sala inundada pela
luz, que se derramava através do teto desabado. Combati na escuridão total, e
só o tato e a audição guiavam meus golpes. A luta se desenrolava num silêncio
apenas quebrado por meus roucos suspiros, o ciciar da espada e o som dos ossos
ao serem cortados.
Subi
retrocedendo pela vacilante escadaria, lutando a cada passo, coberto por um
suor frio apenas pela idéia de ser atacado pelas costas. Se as criaturas se
lançassem contra nós da parte superior da escadaria, estaríamos perdidos – mas,
pelo jeito, a totalidade da horda se encontrava embaixo. Que tipo de criaturas
enfrentava, eu ignorava... só sabia que eram providas de garras e presas. E,
percebera, ao tocá-las, que eram miúdas e retorcidas, recobertas por uma pelagem
espessa e simiesca.
Quando cheguei
à câmara que havia acima dos túneis, pude ver pouca coisa. A claridade lunar,
que se infiltrava pelo teto desabado, era apenas um raio delgado em meio às
trevas. Só percebia formas vagas na penumbra que me rodeava... sombras que
subiam para mim como uma massa agitada que quisesse me dilacerar, e que logo
caíam para trás, forçadas pelos golpes de minha lâmina.
Lançando Altha
às costas, atravessei retrocedendo a sala tenebrosa e me encaminhei para uma
longa fissura que se abria na parede em ruínas. Titubeei e tropecei nos vaivens
da batalha que rugia e girava ao meu redor. Quando alcancei a greta, pela qual
Altha já havia deslizado, houve um assalto que teve por objetivo me derrubar.
Senti-me dominado pelo pânico, diante da idéia de ser abatido e coberto por
aquela horda indistinta naquela sala escura. Uma explosão de furor demente, um
salto desesperado e vacilante, e me lancei pela abertura, arrastando comigo
meia dúzia de atacantes.
Levado pelo
impulso, caí por terra. Levantei-me cambaleante e me sacudi para fazer caírem
as monstruosidades que me agarravam pelos ombros, como um urso que se liberta
de lobos. Firmando os pés no solo, desferi golpes à direita e à esquerda. E, então,
pela primeira vez vi ao que se pareciam meus adversários.
Seus corpos
eram como de macacos deformados, cobertos de pêlos brancos, e eram calvos.
Tinham cabeças caninas, com orelhas pequenas e muito juntas. Mas seus olhos eram
como de serpentes... o mesmo olhar envenenado e fixo, sem pálpebras.
De todas as
formas de vida que tive ocasião de encontrar neste estranho planeta, nenhuma me
inspirou tanto desalento quanto estas monstruosidades anãs. Afastei-me dos corpos
destroçados, enquanto uma nova onda de criaturas escapava pela abertura.
O efeito
daquela chusma emergindo da parede rachada era quase insuportável e me produziu
náuseas: eram como vermes que se retorciam para sair de um crânio esmagado e
lavado pela intempérie.
Dando a volta,
peguei Altha e, levando-a debaixo do braço, atravessei correndo o espaço
descoberto. As criaturas se lançaram em nossa direção, correndo tanto sobre as quatro
patas quanto de pé, erguidas como homens. Subitamente, seu riso demoníaco fez-se
ouvir novamente; vi que estávamos emboscados. Diante de mim, surgiram outras
criaturas, vindas de uma entrada subterrânea. Qualquer caminho de retirada
havia sido obstruído.
Uma base
gigantesca, cuja coluna havia despencado, erguia-se diante de nós. Alcancei-a
de um salto, depositei a jovem sobre o parapeito de pedra lascada e me voltei
para dar aos nossos perseguidores o pior tributo que pudesse. O sangue me
escorria pelos membros e torso de vinte ou mais feridas, caindo aos pés da base
sobre a qual me achava. Agitei-me violentamente, para afastar dos olhos o suor
que me cegava.
Acercaram-se e
formaram um amplo semicírculo ao meu redor. Uma vez seguros de ter a presa, se
mostravam mais prudentes. Nunca estive tão horrorizado e desesperançado quanto
naquele instante, apoiado na coluna de mármore e enfrentando monstros abomináveis
do mundo subterrâneo.
Mas minha
atenção foi atraída por um movimento nas sombras sob a parede rachada pela qual
havíamos saído. Algo emergia da abertura... algo enorme, negro e volumoso. Vi
um resplendor amarelado. Olhei-o fascinado, mesmo quando os demônios de pêlo
branco avançavam contra mim. A coisa saiu por completo da rachadura. Vi-a recortada
nas sombras da parede, uma massa esquálida de trevas em cujo seio cintilavam dois
olhos amarelos. Com um sobressalto, compreendi que eram os mesmos olhos que vira
na sala subterrânea.
Com uivos
diabólicos, os demônios peludos partiram para o ataque. No mesmo instante, a
criatura desconhecida avançou para a claridade da lua. Moveu-se com uma agilidade
e rapidez surpreendentes. Então pude vê-la claramente... era uma aranha gigantesca,
maior que um boi. Com a rapidez característica de sua espécie, lançou-se no
meio dos monstros de cabeça de cão antes que o primeiro pudesse sentir o toque
de minha espada. Sua vítima soltou um grito horrível. Os outros, voltando-se,
se dispersaram e fugiram uivando em todas as direções. A criatura se voltou e
partiu contra eles com uma velocidade e ferocidade terríveis. A enorme
mandíbula da aranha destroçou-lhes os crânios, os ferrões jorrando veneno
aprisionando-os, a massa gigantesca esmagando seus corpos. Num único instante,
a sala se transformou numa carnificina, onde não havia nada além de mortos e
agonizantes. Acomodada em meio às suas vítimas, a monstruosa criatura negra e
peluda fixou em mim os olhos terrivelmente inteligentes.
Era a mim que
tinha seguido. Eu a despertara em seu antro subterrâneo e ela havia seguido o
odor de sangue fresco em minhas sandálias. Massacrara os outros, pois tão somente
haviam cruzado seu caminho.
Enquanto
permanecia erguida sobre as oito patas arqueadas, vi que diferia das aranhas da
Terra não só pelo tamanho, mas também pelo número de olhos e pelo formato das
mandíbulas. Altha deu um grito, quando a monstruosidade veio rapidamente para
mim.
Porém, onde as
presas e garras de mil criaturas bestiais resultavam vãs ao enfrentar aquelas
negras mandíbulas, o cérebro e os músculos de um só homem foram mais valiosos.
Agarrando um pesado bloco de pedra, ergui-o num instante por cima da cabeça e
logo o lancei contra a enorme massa que se aproximava. A pedra a golpeou
exatamente entre as enormes patas peludas; uma onda de matéria esverdeada e
nauseabunda minou do torso esmagado. O monstro, golpeado em plena corrida, se
retorceu sob o bloco de pedra que o prendia ao solo. Escapando, avançou
novamente para mim com passo incerto, arrastando atrás de si as patas
quebradas. Um brilho infernal se refletia em seus olhos. Arranquei
freneticamente outro projétil da pedra lascada da base, e em seguida outro, e mais
outro. Lancei um dilúvio de mármore sobre o horror que se retorcia em
convulsões até cair imóvel, banhado numa confusão terrível de patas negras e
peludas, entranhas e sangue.
Peguei Altha
nos braços, e atravessei correndo as sombras dos monólitos, das torres e das
colunas. Deixei de correr somente quando a cidade do silêncio e do mistério estava
muito longe às nossas costas. Vi que a lua flutuava acima das imensas
pradarias.
Não havíamos
trocado uma só palavra, desde o instante em que libertara a jovem na sala
subterrânea cheia de vampiros. Naquele momento, justamente quando baixei os olhos
para falar com ela, percebi que sua cabeça de negros cabelos repousava em meu
braço; o rosto lívido da jovem se erguia para o céu e tinha os olhos fechados.
Um calafrio de terror me atravessou, mas um rápido exame me indicou que não
estava morta, apenas desmaiada. Aquilo dava provas de todo o horror que havia
vivido: as mulheres de Koth não desmaiam assim tão facilmente.
Eu a estendi
sobre o solo recoberto de ervas e contemplei-a com impotência. Observei, como
se pela primeira vez, a branca firmeza de seus membros torneados, as formas convidativas
de sua esbelta silhueta. Os cabelos negros caíam-lhe como uma cascata de seda
sobre os ombros de alabastro; um dos tirantes da túnica havia se rompido, descobrindo
seios juvenis, firmes e cheios, de mamilos rosados. Conscientizei-me de uma
vaga agitação no fundo de meu ser, que era quase um sofrimento.
Altha abriu os
olhos e ergueu-os para mim. Seus negros olhos brilharam aterrorizados; lançou
um grito e abraçou-me freneticamente. De modo instintivo, apertei-a entre meus
braços; no abraço de meus músculos de aço, senti o tremor de seu corpo delicado
e as batidas frenéticas de seu coração.
- Não tenha
medo – eu disse, com uma voz que me parecia desconhecida e que me custava
articular. – O perigo passou.
Senti que seu
coração voltava a bater normalmente – de tão forte que ela se abraçava a mim! –
antes que parassem seus suspiros de terror. Mas ficou em meus braços por muito
tempo, com os olhos fixos nos meus, sem dizer nada, até que, incomodado, a soltei
e ajudei-a a sentar na grama.
- Quando
sentir-se com forças para andar – eu disse –, colocaremos uma distância maior
entre nós e... aquilo.
Com um movimento
da cabeça, indiquei as ruínas distantes.
- Mas você
está ferido! – ela exclamou subitamente, enquanto as lágrimas escorriam de seus
olhos. – Está sangrando! Oh, tudo culpa minha. Se não tivesse fugido...
Pôs-se a
chorar como qualquer jovem da Terra.
- Não fique
inquieta por estes arranhões – respondi; mesmo que, interiormente, não deixasse
de me perguntar se as presas daquela chusma seriam ou não venenosas. – São apenas
feridas superficiais. Vamos, pare de chorar!
Conteve as
lágrimas obedientemente e, ato contínuo, com um gesto ingênuo, enxugou os olhos
com a túnica. Não queria lembrar-lhe os horríveis momentos pelos quais acabara
de passar, mas tinha curiosidade em saber uma coisa.
- Por que os
yagas pararam nas ruínas? – perguntei. – Não sabiam que essas cidades eram
habitadas por esse tipo de criaturas?
- Estavam com
fome – respondeu com um estremecimento. – Haviam capturado um adolescente... despedaçaram-no
vivo, mas ele não soltou um grito sequer para pedir-lhes clemência... e sim
muitos para maldizê-los. Depois, o assaram... – Sufocou-se, dominada pela
náusea.
- Então os
yagas são canibais – murmurei.
- Não. São
demônios. Enquanto estavam sentados ao redor do fogo, os Cabeças de Cão
lançaram-se sobre eles. Só os vi quando já estavam em cima de nós. Fizeram em
pedaços os yagas, como chacais atacando um cervo. Depois, me levaram para os
subterrâneos. O que tinham a intenção de fazer, só Thak sabe. Ouvi-os dizer...
mas é muito obsceno... prefiro me calar.
- Mas por que
gritavam meu nome? – perguntei surpreendido.
- Em meu
terror, eu disse seu nome – respondeu. – Escutaram e imitaram. Quando você
chegou, sabiam quem era. Não me pergunte como. Eles também são demônios.
- Este planeta
está infestado de demônios – sussurrei. – Mas por que me chamou, e não a seu
pai?
Ela ruborizou-se
ligeiramente e, em vez de responder, começou a ajeitar os tirantes da túnica.
Ao ver que uma
de suas sandálias havia caído, voltei a colocá-la em seu pé delicado. Enquanto eu
me ocupava em tais afazeres, ela me perguntou de modo inesperado:
- Por que te
chamam de Mão de Ferro? Seus dedos são vigorosos, mas seu tato á tão delicado
quanto o de uma mulher. Nunca os dedos de um homem me tocaram de modo tão
delicado. O máximo que fariam é me machucar.
- É pelo
sentimento que se encontra por trás da mão – respondi. – Nenhum dos homens que
enfrentei em combate jamais se lamentou de que meus punhos fossem suaves. É a meus
inimigos que desejo machucar, não a você.
Seus olhos
brilharam:
- Não me faria
mal algum? E por quê?
O absurdo da
pergunta me emudeceu.
CAPÍTULO VII
O SOL JÁ SE
HAVIA LEVANTADO, QUANDO empreendemos a longa marcha que nos levaria até Koth.
Demos uma ampla volta para oeste, para evitar a cidade demoníaca da qual
havíamos escapado. O sol se fez inabitualmente cálido. Não soprava a menor
brisa; a ligeira brisa da manhã soprara em borrascas irregulares e, depois,
havia desaparecido completamente. O céu, sempre sem nuvens, havia adquirido um
tom ligeiramente acobreado. Altha o examinava com inquietude. Como resposta à
minha pergunta, disse que temia uma tempestade. Até aquele momento, havia
suposto que o tempo era sempre sereno e cálido nas planícies; claro, ventoso e
frio nas colinas. Não me havia passado pela cabeça a idéia de tempestades.
Os animais que
víamos compartilhavam a inquietude de Altha. Rodeamos o bosque por suas
margens, pois Altha se negou a atravessá-lo até que a tempestade passasse. Como
quase todos os habitantes das planícies, sentia uma desconfiança instintiva
pelos bosques espessos. Enquanto avançávamos rapidamente para a planície, vimos
rebanhos de herbívoros irem e virem confusamente. Um bando de porcos selvagens passou
perto de nós, movendo-se em saltos gigantescos de oito ou dez metros. Um leão
surgiu bruscamente diante de nós e lançou um rugido; mas, em seguida, baixou a
cabeça e se afastou pesarosamente, indo perder-se na alta vegetação.
Eu perscrutava
o céu constantemente em busca de nuvens, mas não vi nenhuma. Apenas o tom
acobreado do horizonte se fazia mais escuro e começava a estender-se, tingindo
a totalidade do céu. Tingiu primeiramente de um cobre apagado e, depois, de um
negro escuro. O sol brilhou durante um momento, como uma tocha oculta por um
véu, rasgando com fogo o domo sombrio até que também ele desapareceu por completo.
Uma escuridão quase tangível pareceu flutuar no ar durante uns instantes, e
depois desceu bruscamente e recobriu o mundo, fundindo-o nas trevas absolutas
onde o sol nunca brilha, nem a lua, nem as estrelas. Nunca imaginara que as
trevas pudessem ser tão impenetráveis. Poderia perfeitamente ser um espírito
cego e descarnado errando através dos escuros abismos do espaço, se não
escutasse o ruído da erva sob meus pés e o cálido e doce contato do corpo de
Altha roçando no meu. Comecei a temer que caíssemos num rio, ou que fôssemos de
encontro com alguma fera selvagem tão cega quanto nós.
Tentava
alcançar um dos montes de pedra esgalhados que às vezes se encontram nas
planícies. As trevas nos envolveram antes que pudéssemos chegar até um deles,
mas, tateando, tropecei em uma pedra de consideráveis dimensões. Agarrei-me a
ela e puxei Altha para mim, abrigando-a com meu próprio corpo o melhor que
podia. O silêncio inanimado da planície desaparecida na escuridão via-se
rasgado, de vez em quando, por alguns ruídos... os sons da erva, a surda
passagem de cascos, estranhos mugidos e sussurros. Em certo momento, uma grande
manada de alguma espécie animal passou a galope muito perto de nós, e me
felicitei por haver encontrado um refúgio... sem a proteção daquelas pedras,
teríamos sido pisoteados. Novamente cessaram todos os ruídos, e o silêncio foi
tão absoluto quanto as trevas. Depois, de algum lugar, veio um retumbante e
estranho mugido.
- O que é
isso? – perguntei inquieto, incapaz de identificar o som.
- É o vento! –
disse Altha, tremendo e apertando-se contra mim.
Não soprava em
rajadas contínuas; aqui e ali se deslocava em borrascas violentas e
caprichosas. Como uma alma condenada, gemia e se lamentava. Esmagou as ervas próximas
de nós. Finalmente, seu sopro nos atingiu como uma chicotada. Desequilibrados,
caímos ao solo, ralando as costas na pedra. Aquela simples borrasca súbita nos
golpeava como se recebêssemos as pancadas de um gigante invisível.
Quando nos
levantamos, fiquei imóvel. Algo passava perto de nosso refúgio... algo tão
enorme quanto uma montanha, e sua passagem fazia o solo tremer. Altha se aferrou
a mim num abraço desesperado, e senti que meu coração golpeava freneticamente
contra meu peito. Meu cabelo se eriçou ao mesmo tempo em que um terror sem nome
se apoderava de mim. A coisa estava à
nossa altura. Estacou, como se notasse nossa presença. Houve um curioso som, como
o produzido por membros imensos da textura do couro. Algo varreu o ar acima de
nós; depois senti que me tocava a coxa. O mesmo objeto tocou o braço nu de
Altha, que se pôs a gritar, com os nervos desfeitos.
Um terrível
bramido acima de nossas cabeças nos ensurdeceu, e algo despencou sobre nós
através das trevas, desferindo um bote gigantesco. Dei uma estocada para o alto,
às cegas. Senti que a lâmina da espada afundava em matéria tangível. Um líquido
quente salpicou-me o braço. Em seguida, soltando outro terrível bramido – que
expressava mais sofrimento do que cólera –, o monstro invisível se afastou com
seu passo pesado, que fez o solo tremer, enquanto seus bramidos dominavam os
lamentos do vento.
*
* *
- Por Deus, o
que foi isso? – exclamei sem fôlego.
- Um dos Seres
Cegos – sussurrou Altha. – Nenhum homem jamais os viu; vivem nas trevas da
tempestade. De onde vêm, ou para onde vão, ninguém sabe. Mas veja, as trevas
derretem.
Derreter era o termo exato. As trevas
pareceram escorrer, deslizando em finos e longos rodopios. O sol brilhou novamente;
o céu reapareceu, azul, de um horizonte a outro. Mas a terra via-se como raiada
de modo fantástico por grupos de treva, de sombras tangíveis que flutuavam
acima da planície, com amplos espaços cheios de luz solar entre si. A cena
poderia ser uma paisagem sonhada por um usuário de ópio. Um cervo assustado
atravessou correndo um dos lados de luz solar e desapareceu bruscamente num
acúmulo de trevas; reapareceu tão subitamente quanto havia sumido na luz. Não
havia transição progressiva da luz para a escuridão; os contornos dos pontos de
treva eram tão claros e definidos, que pareciam cinturões de ébano sobre um
fundo de ouro e esmeraldas. Até onde minha vista alcançava, o mundo estava
cheio de listras e estrias negras. Era impossível ver através delas, mas
começavam a apagar-se, separar-se e desaparecer.
Justamente
diante de nós, um daqueles rodamoinhos de trevas moveu-se e desvaneceu,
revelando a silhueta de um homem – um gigante peludo, empunhando uma espada, que
me lançou um olhar abrasado, tão surpreso quanto eu. Em seguida, várias coisas
aconteceram ao mesmo tempo. Altha gritou:
- Um thugran! –
e o desconhecido saltou golpeando, sua espada retinindo ao entrar em choque com
a minha.
Só guardo uma
recordação caótica dos segundos que se seguiram. Houve um torvelinho de golpes
e defesas, um breve entrecruzar de aço; então a ponta de minha espada atingiu o
coração de meu adversário, saindo entre suas omoplatas. Puxei a lâmina com uma
torção brutal ao mesmo tempo em que me ajoelhava, contemplando-o com estupor. Sempre
me perguntara como me sairia num duelo com arma branca frente a um inimigo aguerrido.
Aquele duelo começara e acabara e eu era completamente incapaz de me recordar
como havia derrotado meu adversário. Tudo tinha acontecido muito depressa e impetuosamente
– não tive tempo para pensar de modo consciente – meus próprios e treinados instintos
de lutador atuaram por mim.
Perto de nós,
começaram a retumbar gritos furiosos. Girando sobre os calcanhares, percebi
cerca de vinte guerreiros cabeludos que surgiam dentre as pedras. Era muito
tarde para fugir. Num instante, estavam sobre mim, e me encontrei em meio a uma
voragem de espadas que giravam e cintilavam. Como consegui detê-las, ainda que
fosse tão só por alguns momentos, não sei dizer. Mas o fiz, e ainda tive a
satisfação de notar como minha espada chocava-se contra outra, rodeava a guarda
e cortava o ombro de meu adversário. Um momento depois, outro inimigo se
agachou para evitar uma estocada e golpeou-me com sua lança na panturrilha.
Enlouquecido pela dor, apliquei-lhe um talho que lhe abriu o crânio em dois até
o pescoço. Mas alguém me acertou com a culatra da carabina na cabeça.
Esquivei-me parcialmente do golpe, pois, do contrário, quebraria meu crânio.
Mas o golpe ainda assim foi forte, e ao impacto seguiram-se as trevas que de
mim se apoderaram.
Voltei a mim
com a sensação de estar deitado no fundo de um bote agitado pela tempestade.
Então, percebi que tinha os pés e as mãos atados, e que me levavam sobre uma liteira,
feita com um feixe de lanças. Dois gigantescos guerreiros me transportavam, sem
fazer nenhum esforço para que minha viagem fosse agradável. Via apenas o céu,
as costas cobertas de pêlos do guerreiro que avançava adiante de mim e –
voltando a cabeça para os lados – o rosto feroz do guerreiro que ia às minhas
costas. Este, ao ver que eu tinha aberto os olhos, grunhiu uma palavra para seu
companheiro. Deixaram-me cair ao solo. A queda redobrou minha dor de cabeça,
enquanto que outra mais lacerante irradiava de minha perna ferida.
- Logar! –
gritou um deles. – O cão despertou. Se quiser levá-lo até Thugra, diga-lhe que
ande. Já estou farto de carregá-lo.
Escutei um
ruído de passos e, depois, acima de mim, apareceu uma forma gigantesca e um
rosto que me pareceu familiar. Era uma face cruel e brutal; da comissura da
boca gesticulante à ponta da poderosa mandíbula, estendia-se uma lívida
cicatriz.
- Olá, Esaú
Cairn – disse o homem. – Voltamos a nos encontrar!
Não respondi
àquele comentário tão evidente.
- E então? –
brincou. – Não se lembra de Logar, o Quebra-Ossos, cão despelado?
Acentuou a
frase, dando-me um golpe selvagem nas costelas. Um grito de protesto – uma voz
de mulher – ressoou perto de nós; ouviu-se uma corrida precipitada, e Altha
abriu caminho entre os guerreiros, caindo de joelhos ao meu lado.
- Seu bruto! –
gritou, com os esplêndidos olhos brilhando de fúria. – Golpeia-o quando não
pode se defender, mas não se atreveria a enfrentá-lo num combate leal!
- Quem deixou
que escapasse esta gata kothiana? – rugiu Logar. – Thal, eu lhe disse para
evitar que ela se aproximasse deste cão.
- Mordeu-me a
mão – grunhiu um guerreiro bastante alto, ao se aproximar. Sacudiu a pata
peluda para que caísse uma gota de sangue. – Seria como tentar segurar uma pantera
furiosa!
- Está bem,
levante-se – ordenou Logar. – Fará o resto do caminho a pé.
- Mas ele está
ferido na perna! – gemeu Altha. – Não pode andar.
- Por que não
acabamos com ele agora mesmo? – perguntou um dos guerreiros.
- Porque seria
uma morte muito suave! – grunhiu Logar, enquanto um brilho avermelhado surgia
em seus olhos injetados de sangue. – Este cão me acertou com uma pedra
covardemente, pelas costas, e roubou meu punhal. – Vi que, naquele momento, trazia-o
novamente ao cinto. – Irá para Thugra; uma vez lá, esperará o momento em que o
matarei. Levante-se!
Soltaram minhas
pernas sem qualquer delicadeza. A que fora ferida pela lança estava tão
adormecida que quase não podia me manter em pé, quanto menos andar. Obrigaram-me
a avançar, aplicando-me chutes e murros, espetando-me com a ponta de suas
lanças e espadas, por entre os soluços de Altha, dominada por um impotente
furor. Finalmente, dirigiu-se a Logar.
- Você não
passa de um covarde mentiroso! – uivou. – Ele não te acertou com uma pedra...
mas sim com os punhos, como todos sabem, ainda que seus desprezíveis escravos não
se atrevam a dizê-lo abertamente...
O punho nodoso
de Logar atingiu a mandíbula de Altha, lançando-a para trás e fazendo-a cair ao
chão a uma dezena de passos. Permaneceu estendida, imóvel. Uma fonte de sangue
escapava de sua boca. Logar emitiu um grunhido de feroz satisfação, mas seus
guerreiros guardaram silêncio.
O castigo
corporal, moderado, não era uma prática desconhecida entre os guras, mas uma
brutalidade tão excessiva e gratuita era repugnante para qualquer guerreiro que
tivesse um mínimo código de honra. Por isso, os bravos de Logar se irritaram,
sem que, não obstante, protestassem em voz alta.
Quanto a mim,
fui momentaneamente cegado pela loucura escarlate do furor que se inflamava em
meu interior. Lançando um urro sanguinário, libertei-me com uma sacudida
brutal, fazendo perderem o equilíbrio os dois homens que me seguravam; nós três
caímos por terra. Os outros thugranos nos separaram e levantaram, alegrando-se
em poder descarregar em meu corpo sua cólera frustrada, tarefa que cumpriram
alegremente com os pés e as empunhaduras de suas espadas. Mas eu não sentia os
golpes que choviam sobre mim. O mundo era algo vermelho que dançava à minha
frente; havia perdido a faculdade da fala. Eu só conseguia grunhir de modo
bestial enquanto me debatia e puxava selvagemente as ataduras que me
aprisionavam. Não tardei a ficar estendido no chão, esgotado. Meus captores me
obrigaram a levantar e começaram a golpear-me para me fazer andar.
- Podem me
bater até a morte – rugi, quando enfim recobrei a voz –, mas não vou me mover
até que um de vocês se ocupe da jovem.
- Essa gata
está morta – grunhiu Logar.
- É mentira,
cão! – respondi furioso. – Porco miserável! Covarde! Você não daria um golpe
forte o suficiente para matar uma criança!
Logar começou
a produzir uns sons incoerentes, louco de raiva, mas um de seus guerreiros – um
dos que haviam me espancado e ainda arfava de cansaço — se aproximou de Altha,
dizendo que ainda dava sinais de vida.
- Deixe-a! –
rugiu Logar.
- Vá para o
inferno! – grunhiu o guerreiro. – Aprecio isso tanto quanto você, mas se o fato
de levá-la conosco fizer esse demônio sem pêlos andar, eu a levarei, mesmo que
tenha de carregá-la nos braços. Ele não é humano; apliquei-lhe tantos golpes
que estive a ponto de morrer de esgotamento, mas ele continua em melhor estado que
eu!
Daquele modo,
Altha, algo segura uma vez em pé, acompanhou-nos quando voltamos a nos pôr em
marcha para Thugra.
*
* *
Andamos
durante vários dias. Caminhar era um suplício para mim, por causa de minha
perna ferida. Altha persuadiu os guerreiros para que a deixassem tratar minhas feridas;
sem ela, com toda certeza, teria morrido. Meu corpo estava ferido em muitos lugares
- as feridas recebidas durante o combate nas ruínas encantadas –, e eu me
sentia dolorido e contundido da cabeça aos pés pelo castigo infligido pelos thugranos.
Davam-me água e comida suficientes apenas para manter-me vivo. E assim, tonto,
esgotado, torturado pela sede e pela fome, destroçado, caminhei pelas ondulantes
planícies sem fim. Fiquei feliz no dia em que vi as muralhas de Thugra
erguerem-se na distância, ainda que isso significasse que meu fim estava
próximo. Altha não fora maltratada durante a marcha, mas a impediram de me prestar
ajuda e consolo: só permitiram que tratasse minhas feridas. Todas as noites, ao
despertar de um sono quase bestial pelo extremo esgotamento, eu a ouvia
soluçar. Conservo especialmente essa recordação – no seio das confusas e caóticas
impressões daquela terrível viagem: Altha soluçando na noite, dominada pela
solidão e o desespero, perdida na imensidão de um mundo entregue às trevas murmurantes.
E assim
chegamos a Thugra. A cidade era quase uma réplica de Koth... as mesmas portas
imensas flanqueadas por torres, as mesmas muralhas de pedra verde e enrugada. E
os habitantes eram parecidos aos kothianos em muitos aspectos. Mas descobri que
seu regime político era uma monarquia absoluta. Logar era um déspota primitivo,
e sua vontade era lei. Era cruel, implacável, libidinoso e arrogante. Contudo,
devo reconhecer uma coisa: mantinha sua autoridade, graças à força e ao valor
de sua pessoa. Em três ocasiões, durante meu cativeiro em Thugra, eu o vi matar
um guerreiro rebelde em combate singular – em uma dessas ocasiões enfrentou,
com as mãos nuas, a espada de seu adversário. Apesar de seus defeitos, eu admirava
a força daquele homem de energia impetuosa, ativa e implacável, que reprimia
qualquer oposição com brutalidade. Parecia um vento furioso, que dobrava diante
de si tudo que ficasse em seu caminho.
Possuidor de
uma incrível vitalidade, era extremamente orgulhoso de suas proezas físicas;
penso que era aquilo que explicava sua personalidade superior. Por isso
tinha-me um ódio tão feroz. Por isso havia mentido a seu povo, dizendo que eu o
golpeara com uma pedra. Por isso, enfim, se negava a enfrentar-me em combate
singular e demonstrar suas palavras. Em seu coração ocultava-se o medo... não
medo a qualquer tipo de mal corporal que eu pudesse causar-lhe, mas sim medo de
que eu novamente o dominasse e ridicularizasse diante de seu povo. Era a
vaidade que fazia de Logar um bruto implacável.
Trancaram-me
num calabouço e prenderam-me com correntes à parede. Logar vinha todos os dias
para zombar de mim e me injuriar. Manifestamente, desejava esgotar todas as
formas de tortura mental antes de começar com a física. Eu ignorava o que
acontecera com Altha. Não voltara a vê-la desde nossa chegada a Thugra. Logar
afirmava que a haviam levado ao seu palácio. Descreveu-me com grande riqueza de
detalhes as indignidades lúbricas que a faziam sofrer – ao menos, disso se vangloriava.
Eu não acreditava em nada porque sentia que, se fosse verdade, a levaria à
minha cela para torturá-la diante de meus olhos. Mas a fúria na qual me
submergiam seus obscenos relatos não poderia ser mais violenta, nem mesmo se as
cenas que pintava se desenrolassem ali mesmo.
Era agradável
ver que os thugranos não pareciam aprovar a atitude de Logar, pois não eram
piores que outros guras, e todos os guras possuem, como raça, uma decência
inata diante das mulheres. Mas o poder de Logar era tão absoluto que ninguém se
atrevia a protestar. Contudo, o guerreiro que me levava comida me disse que
Altha havia desaparecido, pouco depois de nossa chegada a Thugra. Logar mandara
alguns guerreiros procurá-la, mas os homens não puderam encontrá-la.
Aparentemente, ou havia conseguido escapar de Thugra ou se ocultava em alguma
parte da cidade.
E os dias
passaram, lentamente.
CAPÍTULO VIII
ERA MEIA-NOITE
QUANDO DESPERTEI bruscamente. A tocha do calabouço tremulava.
O guarda, que
se postava à porta havia muito tempo, tinha partido. Lá fora, a noite estava
plena de ruídos. Imprecações, uivos e disparos se misturavam com o entrechocar
das espadas; acima de todo aquele estrépito erguiam-se os gritos das mulheres.
Escutei, igualmente, um som curioso... como um bater de asas nos ares. Sacudi
as correntes, enlouquecido pelo desejo de saber o que acontecia. Havia um
combate na cidade, daquilo não duvidava, mas se era uma guerra civil ou o
ataque de alguma tribo inimiga, não podia saber.
Passos
acelerados retumbaram pelo corredor, e Altha irrompeu pela cela. Trazia o
cabelo despenteado e em desordem, a roupa feita em farrapos; um terror
indizível brilhava em seus olhos.
- Esaú! – gritou.
– O fim se abateu sobre Thugra, vindo do céu! Milhares de yagas atacam a
cidade! Lutam nas ruas e nos telhados... rios de sangue escorrem pelas sarjetas
e as ruas estão cheias de cadáveres! Veja! A cidade está sendo devorada pelas
chamas!
Pelas altas
janelas, atravessadas por grades, vi uma luz difusa. O seco crepitar das chamas
retumbava em alguma parte. Altha soluçou ao tentar desatar as correias que me prendiam.
Naquele mesmo dia, Logar começara com as torturas físicas. Encontrava-me preso
ao teto por uma cinta de couro atada ao redor dos pulsos, de modo que os dedos
dos pés mal permitiam que eu me apoiasse num bloco de granito. Mas Logar não
havia pensado em uma coisa. Seus guerreiros usaram uma cinta de couro sem
curtir, que se estirou e me permitiu apoiar os pés no bloco de pedra. Naquela
posição, meu sofrimento foi suportável. Cheguei mesmo a dormitar, apesar daquela
postura não ser muito confortável.
Enquanto Altha
puxava em vão pelas correias, perguntei-lhe onde estivera durante todos aqueles
dias. Respondeu-me que havia escapado de Logar quando chegáramos à cidade. Umas
mulheres bondosas, que se apiedaram dela, a ocultaram e deram-lhe de comer.
Desde então, havia esperado o momento propício para ajudar-me a escapar.
- E agora –
gemeu aflita, retorcendo as mãos – não posso fazer nada: não consigo desfazer
este maldito nó!
- Procure um
punhal! – ordenei. – Depressa! – Mas, no momento em que se voltou, soltou um
grito e fez um movimento de recuo, tremendo de medo, ao mesmo tempo em que uma
silhueta terrível atravessava o umbral com passos cambaleantes.
Era Logar, com
a cabeleira e a barba enroscadas e avermelhadas, com os pêlos do torso poderoso
secos e enegrecidos. Em seus olhos banhados em sangue bailava a luz da loucura,
enquanto avançava para mim com passos titubeantes. Levantou o punhal que eu
mesmo lhe arrebatara muito tempo atrás.
- Cão! –
crocitou. – Thugra está condenada! Os demônios alados surgiram do céu, como
abutres que se lançam sobre o cadáver de um boi! Matei e massacrei tantos deles
que estou a ponto de arrebentar! Contudo, cada vez chegam mais deles. Ah, mas
lembrei-me de você! Não poderia descansar em paz no inferno se soubesse que
ainda está com vida. Vou enviá-lo para lá antes de mim; depois voltarei às
ruas, para lutar até a morte!
Altha deu um
grito e adiantou-se para me proteger, mas Logar foi mais rápido. Erguendo-se
nas pontas dos pés, agarrou-me pela cintura e brandiu o punhal. Quando se dispunha
a golpear, dei-lhe uma joelhada, com força, que o atingiu na mandíbula. O
impacto quebrou-lhe o pescoço taurino como se fosse um galho seco. Sua cabeça
foi projetada para trás, entre os ombros, com o queixo barbado apontando para o
teto abobadado. Caiu como um touro no matadouro, e bateu violentamente com a
cabeça nas lousas de pedra.
Um riso
abafado retumbou no umbral. Recortando-se no dintel da porta, havia uma grande
forma de ébano, com as asas meio abertas; tinha na mão escarlate uma cimitarra tingida
de sangue. Demarcada pela luz de cor rubro-escura que havia às suas costas, podia-se
dizer que se tratava de um demônio de asas negras, em pé diante das portas do Inferno,
iluminado pelas chamas. Seus olhos sem compaixão me fixaram de modo enigmático
e, em seguida, o olhar cruel se dirigiu rapidamente da forma caída nas lousas para
a silhueta de Altha, agachada a meus pés.
Gritando algo
por cima do ombro, o yaga adentrou o calabouço seguido por uma vintena de
criaturas da sua espécie. A maior parte deles estava ferida, e traziam as espadas
tingidas de sangue.
- Levem-nos –
disse o que havia chegado primeiro, apontando a Altha e a mim.
- Por quê? –
perguntou um deles.
- Quem já viu
um homem de pele branca e olhos azuis? Seguramente interessará a Yasmeena. Mas
cuidado. Tem os músculos de um leão.
Um deles
agarrou Altha pelo braço e a arrastou para fora da sala, enquanto ela se
debatia em vão e voltava a cabeça para pousar sobre mim um olhar aterrorizado.
Os outros, mantendo-se a uma prudente distância, lançaram sobre meus pés uma
rede de seda. Uma vez aprisionadas minhas pernas, se apoderaram de mim e
ataram-me com cordas de seda que nem um leão seria capaz de romper. Só depois
de ter-me bem amarrado, cortaram a correia de couro pela qual eu estava preso.
Dois deles me ergueram e levaram-me do calabouço. Saímos para a rua, onde me
aguardava uma visão de pesadelo.
Os muros de
pedra estavam a salvo, naturalmente, mas a estrutura dos edifícios estava em
chamas. A fumaça subia em espessas e turbulentas espirais, atravessadas por
línguas de fogo. Num segundo plano fuliginoso, havia formas escuras que se
retorciam e convulsionavam, como as almas dos condenados. Através daquelas
negras nuvens, passavam coisas que pareciam meteoros em chamas e que, depois, compreendi
que não eram mais que homens alados portando tochas.
Pelas ruas, em
meio a uma chuva de destroços e paredes que desabavam, nas casas incendiadas,
nos telhados, se desenvolviam cenas horripilantes. Os homens de Thugra combatiam
com o furor de panteras moribundas. Qualquer um deles teria sido um adversário
terrível para um yaga em combate singular, mas os demônios alados os sobrepujavam
em número, e sua agilidade diabólica nos ares equilibrava a força superior e a
coragem dos homens-macaco. Lançando-se do alto, golpeavam com suas curvas espadas,
para logo voar novamente e pôr-se fora de alcance, antes que suas vítimas pudessem
contra-atacar. Se três ou quatro demônios atacavam em uníssono a um só inimigo,
o massacre era certo e rápido. A fumaça não parecia entorpecê-los, mas não se
podia dizer o mesmo de seus inimigos humanos. Alguns demônios, postados nos
telhados, retesavam os arcos e alvejavam os grupos de humanos aprisionados em
meio às ruas.
A matança não
tinha lugar em um só campo de combate. Corpos alados e corpos peludos jaziam
por toda parte nas ruas inundadas de sangue. As carabinas crepitavam e numerosos
demônios, alcançados em pleno vôo, caíam ao solo batendo as asas desesperadamente.
As espadas desciam loucamente, desmembrando corpos, e, quando as mãos de um
gura louco de desespero chegavam à garganta de um yaga, este morria de forma
atroz.
Contudo, a
maior carnificina – era evidente – ocorria nas fileiras thugranas. Cegos e
sufocados pela fumaça, disparavam às cegas, e quase nenhuma bala alcançava seu
objetivo. Submersos pelo número, desconcertados pela tática aquilina de seus
implacáveis inimigos, combatiam em vão, e caíam destroçados ou cheios de flechas.
Aparentemente,
o objetivo principal dos yagas era a captura de mulheres. Incessantemente,
via-se homens alados descendo e voando entre os torvelinhos de fumaça, levando
em seus braços uma jovem que uivava freneticamente.
Oh, era um
espetáculo arrepiante! Não creio que tal barbárie e crueldade tão demoníacas
jamais tenham se desenrolado sobre a Terra, mesmo quando, em certas épocas, seus
habitantes eram ainda mais sanguinários. Aqueles não pareciam seres humanos
enfrentando outros seres humanos, mas sim representantes de duas formas de vida
diferentes combatendo-se, desprovidos de compaixão ou compreensão de qualquer
tipo.
Mas o massacre
não foi completo. Os yagas deixavam agora a cidade que haviam devastado;
erguiam-se aos céus, levando consigo suas cativas nuas, que se debatiam desesperadamente.
Os sobreviventes continuavam nas ruas, disparando encarniçadamente contra os
vencedores, que se distanciavam; evidentemente, preferiam eles mesmos matarem suas
companheiras a deixar que as levassem para a triste sorte que lhes era
reservada.
Vi um
agrupamento formado por uma centena de combatentes, gesticulando e desferindo
golpes no teto mais alto da cidade... os yagas para libertarem-se e escapar, os
guras para lançá-los por terra e fazê-los em pedaços. A fumaça girava ao redor
deles, as chamas lambiam seus cabelos e os inflamavam; então, com formidável
estrépito, o teto cedeu e desabou, precipitando vencedores e vencidos para uma morte
ardente. A ensurdecedora tormenta de chamas devoradoras enchia-me os ouvidos
quando meus captores levaram-me pelos ares, afastando-se rapidamente da cidade de
Thugra.
Após alguns
instantes de turbação e confusão, recobrei a consciência e percebi que
atravessava o céu a uma velocidade incrível, ao mesmo tempo em que, acima, embaixo,
de todas as partes, retumbava o regular bater das poderosas asas. Dois yagas
transportavam-me com uma habilidade perfeita, e me encontrava em meio a um
bando que se dirigia para o sul. O bando havia adotado uma formação triangular,
como se fossem tendas indígenas. Considerei que os yagas seriam em torno de dez
mil. Escureciam o céu matinal e sua sombra gigantesca passava rapidamente pela
planície enquanto o sol começava a surgir do horizonte.
Voávamos a uma
altura de dez mil pés. Muitos homens alados levavam, em seus braços, jovens e
mulheres guras; a facilidade com que as levavam indicava a incrível potência de
suas asas. Aqueles demônios alados eram menos musculosos que os guras, mas
davam prova de uma robustez e resistência inusitadas nos ares. Podiam voar durante
horas e a grandes velocidades, na mesma formação triangular, com seus chefes fendendo
o ar frente a eles, e podiam fazê-lo levando um peso igual ao seu quase com a
mesma velocidade.
Nossos
captores voaram durante toda a jornada, sem fazer sequer uma parada para
descansar ou comer. Ao cair da noite, desceram à planície, onde acenderam
fogueiras e acamparam. Aquela noite ficará gravada para sempre em minha memória
como uma das maiores abominações que já vi em toda minha vida. A nós, prisioneiros,
não deram nenhum alimento, mas os yagas, sim, comeram. E sua comida foram os
pobres cativos. Estendido e impotente, fechei os olhos para não ver aquela
carnificina, e gostaria de ser surdo para não ter escutado aqueles gritos que
desfibravam o coração. O massacre dos homens eu posso suportar durante a
batalha, inclusive na mais brutal e sangrenta selvageria. Mas o de mulheres
indefesas – pelo simples prazer de matar –, que só podem gritar implorando
piedade, até que os cutelos ponham fim às suas súplicas, é algo que não posso
suportar. E, além disso, ignorava se Altha era uma das eleitas para aquele macabro
festim. Sobressaltava-me com cada grito, com cada golpe seco de uma espada decapitando
uma daquelas desgraçadas, vendo em minha mente sua adorável cabeça de negros
cabelos rolando sobre o solo afogado em sangue. Quanto ao que acontecia ao redor
das outras fogueiras, não podia saber.
Uma vez
concluída aquela abominável matança, quando os esgotados demônios deitaram para
dormir perto das fogueiras, estive prostrado, dominado pela náusea. Escutava o
rugido dos leões buscando uma presa e pensei que qualquer animal é
infinitamente mais doce que qualquer criatura de aspecto humano. De meu horror
nauseabundo, nasceu um ódio que me fortaleceu e endureceu para o futuro.
Acontecesse o que acontecesse, estava fielmente decidido a fazer com que
aqueles monstros alados pagassem por todos os sofrimentos infligido aos guras.
*
* *
As primeiras
luzes da aurora se estendiam pelo céu, quando voltamos a nos lançar aos ares.
Não houve comida. Soube que os yagas só comiam a intervalos; fartavam-se de alimento
e ficavam saciados por vários dias. Depois de algumas horas sobrevoando a
paisagem habitual das planícies, chegamos subitamente à vista de um importante
rio que atravessava a savana de um horizonte a outro; a orla norte da corrente
era flanqueada por uma estreita faixa de bosques. A água era de uma estranha
cor púrpura e espelhava como seda ao sol. À outra margem, erguia-se uma torre alta
e delgada, de uma pedra negra e brilhante que resplandecia como aço polido.
Enquanto
passávamos por cima do rio, vi que sua corrente era terrível. O murmúrio das
águas chegou até nós, e vi a agitação e os remoinhos das impetuosas águas. Cruzando
a correnteza, no mesmo lugar em que se erguia a torre, havia uns penhascos
enormes, entre os quais a água espumava ressonante. Olhando para a torre, pude
ver uma meia- dúzia de homens alados sobre o teto de ameias; alçavam e agitavam
os braços como se saudassem nossos raptores. Além do rio, mais para o sul,
estendia-se um deserto... nu, poeirento, cinzento, semeado de ossamentas brancas
esparzidas por suas areias. Ao longe, no horizonte, vi uma gigantesca massa
negra que se erguia em direção ao céu.
Foi-se
destacando poderosamente no horizonte, enquanto nos dirigíamos para ela com
rapidez. Poucas horas depois, a alcançamos e fui capaz de distinguir todos os
seus detalhes. Tratava-se de um bloco gigantesco de rocha negra parecida com o
basalto, erguendo-se no coração do deserto. Um grande rio corria junto à sua
base, e seu cimo era coroado com torres negras, minaretes e castelos. Assim,
pois, não era um mito, mas sim uma fantástica realidade... Yugga, a Cidade
Negra, a fortaleza do povo alado.
O rio,
atravessando o árido deserto, golpeava contra o paredão e dividia-se para
formar um fosso natural. As águas lambiam as abruptas paredes montanhosas. Em
um dos lados, havia-se formado uma ampla praia arenosa; nela se estendia outra
cidade. Seu estilo arquitetônico era muito diferente ao dos edifícios que se
erguiam na gigantesca montanha. As casas eram simples cabanas de pedra, pobres,
de teto liso e sem alicerce. Uma única construção era mais importante: um
edifício sombrio, parecendo um templo, anexo à parede da montanha.
Aquela cidade
baixa era protegida por um muro de pedra maciça, que a rodeava por completo, à
margem da água, unido em cada um de seus extremos ao paredão rochoso que se
erguia por detrás da cidade. Vi seus habitantes e percebi que não eram nem
yagas nem guras. Eram baixos e delgados; sua pele era de uma singular cor
azulada. Seus rostos eram mais parecidos com os dos humanos da Terra, mas não
refletiam a inteligência dos machos guras. Tinham as feições pesadas, estúpidas
e rancorosas. As mulheres eram um pouco mais alegres que os homens. Vi aqueles
seres estranhos, não somente na cidade aos pés da montanha, mas também
trabalhando nos campos que se estendiam flanqueando o rio.
Contudo, não
tive ocasião de observá-los longamente, pois os yagas seguiam diretamente para
a fortaleza. Esta se alçava a uns 150 metros acima do rio. Quedei estupefato
pela perspectiva das muralhas de ameias, campanários, minaretes e jardins suspensos
sobre os tetos em terraço, que se ofereciam a meus olhos, mas tive a impressão
de que a cidade sobre o pico da montanha era construída como se fosse um
palácio, e que cada uma de suas partes se comunicava com as demais. Silhuetas
languidamente estendidas em divãs, nos terraços, se reclinavam apoiadas sobre
os cotovelos e, das dezenas de janelas, os rostos das mulheres nos observaram
enquanto pousávamos sobre um imenso teto plano que parecia uma pista de
aterrissagem. Uma vez ali, muitos homens alados se dispersaram e afastaram em várias
direções, confiando os cativos à guarda de trezentos ou quatrocentos
guerreiros. Fizeram-nos avançar como um rebanho através de uma porta gigantesca.
Aquelas desafortunadas jovens eram bem umas quinhentas, e Altha se encontrava
entre elas. Levaram-me, sem desamarrar, com elas. Eu tinha os membros
completamente anquilosados – pois as ataduras, havia bastante tempo, impediam
que o fluxo sanguíneo circulasse por minhas veias –, mas a mente permanecia
alerta e ativa.
Flanqueamos o
portal, pelo qual uma dúzia de elefantes poderia passar um junto ao outro, e
descemos por uma escadaria até chegar a um vestíbulo de dimensões similares. As
paredes, a escadaria, a abóbada e o piso eram feitos da mesma pedra negra e
brilhante, e deduzi que haviam sido todos talhados no mesmo bloco na qual se
erguia Yugga, e posteriormente polidos. Até aquele momento, eu não tinha visto
nem esculturas, nem relevos, nem a menor tentativa de decoração; contudo, não
se podia negar que um certo esplendor refletia-se nos muros colossais, e nos
tetos abobadados e negros como ébano. Uma majestade impressionante emanava daquela
arquitetura, que parecia incongruente ao considerar a bestialidade de seus
construtores. Não obstante, as altas silhuetas negras não pareciam deslocadas
enquanto seguiam sombrias pelos corredores de ébano. A Cidade Negra... não só por
suas muralhas escuras havia recebido dos guras aquele nome.
Conforme
avançávamos pelos imensos corredores, vi muitos habitantes de Yugga. Junto aos
homens alados, pude ver, pela primeira vez, as mulheres dos yagas. Apresentavam
a mesma constituição elástica, a mesma pele escura e luzidia, as mesmas feições
de ave de rapina. Mas elas não tinham asas. Vestiam-se com curtas faixas de
seda, apertadas ao redor da cintura com cinturões coalhados de pedras, e véus diáfanos
cruzavam-se por diante dos seios. Salvo pela crueldade quase tangível que
expressavam seus rostos, eram belas. Seus traços escuros eram retos e
claramente marcados; seus cabelos não eram crespos.
Vi outras
mulheres, centenas de filhas dos guras de negra cabeleira e pele branca. Mas
havia mais: jovens de baixa estatura, de corpo delicado e pele amarela, e
mulheres de tom acobreado. Aparentemente, todas elas eram escravas do povo
negro. Aquelas mulheres eram, para mim, algo novo e inesperado. Todas as formas
de vida fantástica, que havia encontrado até aquele momento, eram mencionadas
nos relatos ou nas lendas dos kothianos. Os Cabeças de Cão, a aranha gigante, o
povo alado, sua negra cidadela e seus escravos de pele azul... pelo menos, tudo
aquilo estava nas lendas. Mas nenhum homem ou mulher de Koth me havia falado
sobre mulheres de pele amarela ou acobreada.
Pertenciam aqueles
prisioneiros exóticos a outro planeta; haviam chegado a Almuric do mesmo modo
que eu, oriundos de um mundo estranho?
Enquanto
meditava naquele novo mistério, flanqueei – sempre levado por dois yagas – um gigantesco
portão de bronze, guardado por vinte guerreiros alados. E encontrei-me com os
cativos em meio a uma imensa sala de forma octogonal, cujas paredes eram
decoradas com escuras tapeçarias. O piso era recoberto por um tapete – uma matéria
espessa, muito parecida com couro –, e o ar estava impregnado de incenso e perfumes
embriagantes.
No fundo da
sala, amplos degraus de ouro lavrado conduziam a um estrado recoberto de couro,
no qual jazia languidamente uma jovem de pele negra. Apenas ela, dentre todas
as mulheres yagas, possuía asas. Vestia-se como as outras e não portava nenhum
adorno, salvo um cinturão com gemas engastadas do qual despontava a empunhadura
de uma adaga repleta de pedras preciosas. Sua beleza era surpreendente e inquietante,
como a beleza de uma estátua sem alma. Percebi imediatamente que era a menos
humana dos inumanos habitantes de Yugga. Seus olhos de ar sonhador falavam de
sonhos que iam além do entendimento dos homens. Seu rosto era o de uma deusa
que ignorava a piedade e o medo.
Ao redor do
divã que ocupava, em atitude de humildade e servidão, havia cerca de vinte jovens,
totalmente nuas, de pele branca, amarela e acobreada.
O chefe de
nossos captores avançou para o estrado real e inclinou-se respeitosamente. Estendendo
as mãos diante de si – com as palmas para baixo e os dedos abertos – disse:
- Oh,
Yasmeena, Rainha da Noite: entregamos-te os frutos de nossa conquista!
A jovem
reclinou-se sobre um dos cotovelos e, enquanto seu olhar estranho e terrível
passeava sobre os cativos temerosamente inclinados, um calafrio percorreu-os,
como se o vento soprasse sobre os trigais. Desde a mais tenra infância, as
meninas guras aprendiam – por relatos e tradições – que o pior destino possível
era serem capturadas pelo povo da cidade negra. Yugga era um reino místico de
inúmeros horrores, no qual reinava um arqui-demônio, Yasmeena. Naquele momento,
aquelas jovens trêmulas se encontravam diante do próprio vampiro. O que havia
de estranho se muitas delas desfaleciam?
No entanto,
seu olhar passou rapidamente por elas e pousou em mim, seguro por dois
guerreiros. Vi um brilho de interesse resplandecendo naqueles olhos escuros e luminosos,
e ela perguntou ao chefe:
- Quem é esse
bárbaro de pele branca, e com tão pouco pêlo como nós, vestido como um gura,
mas que, contudo, com eles não se parece?
- O
encontramos cativo dos thugranos, Amante da Noite! – respondeu. – Sua Majestade
deveria interrogá-lo. E agora, Oh, sombria beleza, se tiveres por bem designar
as miseráveis criaturas que servirão à tua graça, para que as outras possam ser
repartidas entre os guerreiros que participaram da expedição...
Yasmeena
assentiu, olhando-me fixamente, e, com uns gestos rápidos da mão, apontou uma
dúzia de jovens, as mais formosas, entre as quais se encontrava Altha. Estas foram
apartadas. Às demais levaram da sala.
Yasmeena
analisou-me durante um longo momento, sem dizer nada, até que se dirigiu ao que
parecia ser seu conselheiro:
- Gotrah, este
homem está esgotado. Dá mostras de ter feito uma grande viagem e de haver
padecido escravidão, e ainda tem uma ferida aberta na perna. Seu aspecto, tal
qual está agora mesmo, ofende o meu olhar. Levem-no, banhem-no, dêem-lhe de
comer e beber e enfaixem-lhe a ferida da perna. Depois disso, tragam-no a mim.
Daquele modo,
meus captores, com um suspiro de cansaço, levantaram-me de novo e levaram-me da
sala real. Seguimos por um sinuoso corredor, subimos uma trama de escadarias e
entramos, finalmente, num local onde uma fonte manava do solo, borbulhando. Ali,
após prender-me correntes de ouro às munhecas e tornozelos, cortaram as ataduras
que me apertavam. Tal foi a dor, quando a circulação do sangue se reativou por
minhas veias, que só tive tempo de perceber que me arrastavam, nu, para o
banho. Lavaram-me cuidadosamente – eu tinha o corpo e os membros recobertos de
suor, sangue e lama – e deram-me um novo calção de seda escarlate. Trataram-me
a ferida na panturrilha e, em seguida, uma escrava de pele acobreada apareceu
com bandejas de ouro cheias de comida. Não me atrevi a tocar na carne – devido
ao fato de minhas sinistras suspeitas sobre sua origem –, mas comi com
voracidade os frutos e as nozes, e bebi longamente de um vinho de cor verde, o
qual achei delicioso e refrescante.
Depois disso,
invadiu-me tal torpor que me deixei cair num divã de veludo e não tardei a
dormir profundamente. Despertei quando alguém começou a sacudir-me violentamente.
Era Gotrah. Inclinado sobre mim, vi que trazia na mão um pequeno punhal. Ao
vê-lo, todos os meus selvagens instintos foram estimulados. Fiz quanto pude
para quebrar-lhe o crânio a golpes de punho. Só a corrente que me rodeava as
munhecas me impediu. Retrocedeu, soltando uma maldição.
- Não vim para
cortar sua garganta, bárbaro – declarou num tom seco –, ainda que reconheça que
isto me agradaria. A jovem kothiana disse a Yasmeena que tens por costume cortar
os pêlos que recobrem seu queixo, e é desejo da rainha vê-lo assim. Tome, pegue
esta lâmina e arrume-se. Não tem ponta, mas irei me manter a uma prudente distância
enquanto espero. Olha, aqui tem um espelho.
Ainda meio
sonado – acho que haviam posto alguma droga no vinho verde, mas por que razão
não saberia dizer –, apoiei o espelho com moldura de prata na parede e comecei
a me barbear. Minha barba havia crescido bastante durante meus sucessivos
cativeiros. Foi um barbear a seco, mas estava com a pele tão resistente quanto
couro curtido, e a lâmina tinha o fio mais afiado que qualquer uma das navalhas
que eu já empregara na Terra.
Quando acabei,
Gotrah emitiu um grunhido ao notar como mudara meu aspecto e pediu-me que devolvesse
a lâmina. Como não valia de nada conservá-la – pois seria ridículo usá-la como
arma –, lancei-a para ele e voltei a dormir.
Quando
despertei novamente, foi de modo natural e levantei-me, examinando atentamente
o lugar no qual me encontrava. A sala era desprovida de qualquer ornamento, e
mobiliada tão só com o divã, uma pequena mesa de ébano e um banco coberto de
pele. Só possuía uma porta, fechada e, sem dúvida, com o ferrolho trancado por
fora, e uma janela. As correntes estavam presas a uma argola de ouro encastoada
no muro por detrás do divã, mas eram bastante longas para permitir-me dar
alguns passos até a fonte e até a janela. Esta contava com barras de ouro, e
por elas contemplei os terraços, as torres e minaretes que cercavam meu horizonte.
Até aquele
momento, os yagas haviam me tratado muito bem; perguntei-me como estaria Altha,
e se o fato de fazer parte da corte da rainha lhe traria certos privilégios ou
lhe garantiria uma relativa segurança.
Gotrah voltou,
acompanhado por meia dúzia de guerreiros. Soltaram as correntes da argola e me
escoltaram pelo corredor; depois subimos por uma longa escadaria. Não me levaram
à sala do trono, mas sim a outro aposento, menor, em uma torre. O local era tão
cheio de peles e coxins que parecia acolchoado. Fez-me pensar no antro cálido e
sedoso de uma aranha, e a aranha negra estava ali... estendida com languidez
sobre um divã de veludo, olhando-me fixamente com ávida curiosidade. Não estava
rodeada de escravos. Os guerreiros me encadearam à parede – aparentemente, cada
parede daquele maldito palácio possuía uma argola na qual prender os cativos –
e, em seguida, nos deixaram a sós.
Encostei-me às
peles e coxins, achando seu contato macio irritante à minha pele... meu corpo,
duro como aço, não estava acostumado a uma vida cômoda. Durante um longo momento,
que considerei fastidioso, a rainha de Yugga contemplou-me em silêncio. Seu
olhar tinha uma qualidade hipnótica; senti seu impacto claramente. Mas tinha
tão profunda a impressão de ser uma fera selvagem aprisionada, como num
espetáculo de feira, que não podia sentir nenhuma emoção além de uma crescente
cólera. Combati-a. Um arrebatamento de furiosa loucura talvez me permitisse arrebentar
as correntes pouco sólidas que me prendiam e livrar o mundo de Yasmeena, mas
Altha e eu seguiríamos como prisioneiros daquela montanha da qual, segundo as lendas,
era impossível escapar, exceto pelo ar.
- Quem és? –
perguntou Yasmeena bruscamente. – Já vi homens de pele ainda mais lisa que a
tua, mas é a primeira vez que vejo um homem branco sem pêlos.
Antes que
pudesse perguntar-lhe onde havia visto homens sem pêlos, senão entre meu
próprio povo, ela continuou:
- E nunca vi
olhos semelhantes aos teus. Parecem lagos de fundo gelado; contudo, brilham e
ardem como a chama azulada que sempre arde sobre Xathar. Qual o teu nome? De
onde vens? A garota, Altha, diz que vieste das regiões desérticas para acabar
em sua cidade, e que enfrentaste vitoriosamente seus campeões. Mas ignora qual
é teu país de origem, ou ao menos isso pretende. Fala, e não mintas.
- Falarei, mas
vai pensar que minto – grunhi. – Sou Esaú Cairn, a quem os homens de Koth
chamam Mão de Ferro. Venho de outro mundo, que se encontra em outro sistema solar.
A sorte, ou o capricho de um sábio – aos seus olhos pareceria um mago –
enviou-me a este planeta. A sorte, novamente, me fez encontrar os kothianos. E
foi também a sorte que me trouxe a Yugga. Bem, já falei. Agora é contigo
acreditar ou não.
- Pois
acredito – respondeu. – Nos tempos antigos, os homens iam de estrela em estrela.
Mesmo agora, há seres que cruzam o cosmos. Tenho a intenção de estudá-lo. Você
viverá... por certo tempo, pelo menos. Mas sempre trará essas correntes, pois
em seus olhos se lê o furor de uma besta sanguinária, e sei que me faria em
pedaços se tivesse oportunidade para tanto.
- E Altha? –
perguntei.
- Sim, o quê? –
Parecia surpresa pela pergunta.
- Que fizeram
com ela? – inquiri.
- Servirá a
mim, como as outras, até que deixe de me agradar. Mas como pode falar de outra
mulher enquanto está em minha presença? Deve saber que suas palavras me irritam.
Seus olhos
começaram a cintilar. Em minha vida, eu já havia visto olhos como os de
Yasmeena. Transformavam-se a cada uma de suas mudanças de humor, com cada novo
capricho; refletiam paixões, cóleras e desejos que sobrepujavam os mais loucos
sonhos da humanidade.
- Não
empalidece – disse em voz baixa. – Homem, você sabe o que acontece quando
Yasmeena se desgosta? O sangue corre como água. Yugga se enche de uivos de dor,
e os próprios deuses correm e se escondem horrorizados.
O modo como
disse gelou-me o sangue, mas meu furor primitivo não se acalmou. A sensação de
minha força me submergiu, e percebi que eu poderia arrancar a argola de ouro da
pedra e destroçá-la, antes que ela tivesse tempo de levantar-se do divã. Pus-me
a rir, e em meu riso vibrava um desejo sanguinário. Yasmeena, sobressaltada,
considerou-me atentamente.
- Ficou louco
para rir assim? – perguntou-me. – Não, não há alegria em seu riso... é o rugido
de um leopardo encurralado. Você tem a intenção de lançar-se sobre mim e
matar-me; mas, se o fizer, a garota, Altha, sofrerá as conseqüências de seu
crime. Contudo, você me interessa. Nenhum homem havia rido diante de mim. Você viverá...
por algum tempo. – Bateu palmas e os guerreiros entraram. – Levem-no de volta –
ordenou. – Mantenham-no encarcerado até que eu mande buscá-lo de novo.
E assim, teve
início meu terceiro cativeiro em Almuric, na cidadela negra de Yugga, no pico
de Yuthla, perto do rio Yogh, no reino de Yagg.
CAPÍTULO IX
APRENDI MUITAS
COISAS SOBRE OS COSTUMES daquele povo terrível. Os yagas reinavam em Almuric
desde os tempos que remontavam além da memória dos homens. Possa ser que em
outros tempos fossem humanos, muito tempo atrás, mas duvido. Estou convencido
que representam um ramo distinto da árvore da evolução, e que foi somente um
incrível cúmulo de circunstâncias – uma aberração – o que lhes deu seu aspecto,
tão parecido ao do homem, em lugar das formas abissais revestidas pelos habitantes
que silvam suas blasfêmias nas Trevas Exteriores.
De muitos
pontos de vista, pareciam humanos, superficialmente, mas estudada em
profundidade sua mentalidade, descobriam-se aspectos totalmente inexplicáveis e
desconhecidos para a humanidade.
De um modo
geral, são mais inteligentes que os guras. Mas são totalmente desprovidos da
decência, da honestidade, da coragem e da virilidade dos homens-macaco. Os
guras se deixam levar facilmente, são brutais e selvagens quando se enfurecem;
mas há nos yagas uma crueldade estudada que faz com que os guras pareçam apenas
crianças mal-educadas. Os yagas não têm piedade nem em seus momentos mais
tranqüilos; quando estão encolerizados, seus desabafos são terríveis de contemplar.
Formam uma horda
considerável; os guerreiros, por si sós, são vinte mil. Há mais mulheres do que
homens e, com os escravos – cada macho e fêmea yaga possuía um bom número deles
–, a cidade de Yugga era bastante povoada. De fato, me surpreendi ao conhecer
as multidões que habitam ali, considerando a relativa pequenez do pico de
Yuthla, no qual a cidade se encontra edificada. Mas sua extensão era maior
verticalmente que horizontalmente. Os castelos e as torres se elevavam muito acima
no ar, e inumeráveis salas e corredores foram lavrados na própria rocha. Quando
os yagas começavam a sentir-se um pouco apertados, contentavam-se em massacrar
os escravos. Não vi crianças; as perdas de homens durante as batalhas eram relativamente
poucas, e as epidemias e enfermidades eram desconhecidas. Os filhos só eram
engendrados a intervalos regulares, aproximadamente a cada três séculos. A
última criança era já adulta; a seguinte se encontrava em alguma parte das
indefinidas brumas do futuro.
Os senhores de
Yugga não trabalham, e sua vida se consagra inteiramente ao prazer e à
voluptuosidade. Seus conhecimentos e refinamentos sensuais teriam coberto de vergonha
o libertino mais desenfreado da Roma decadente. Seus excessos só eram interrompidos
pelas expedições lançadas contra o mundo exterior, cujo único objetivo era conseguir
novos escravos.
A cidade
situada aos pés da montanha chamava-se Akka, e o povo de pele azulada era
conhecido por akkis, ou akkas. Estavam submetidos aos yagas desde o princípio dos
tempos. Trabalhavam como estúpidas bestas de carga, cultivavam frutos e plantas
comestíveis; executavam as ordens de seus amos, aos quais consideravam não como
seres superiores, mas como verdadeiros deuses. Veneravam Yasmeena como uma
divindade. Apesar de seus trabalhos penosos e contínuos, não eram maltratados.
As mulheres são feias e bestiais. Os seres alados possuem um grande sentido estético,
ainda que seu interesse pela beleza das espécies inferiores seja sádico e
pervertido. Os akkis nunca penetram na cidade superior, salvo quando devem
efetuar algum trabalho demasiado duro para as escravas. Então, sobem e descem
por meio de longas escadas de seda lançadas do alto do pico. Não há caminho que
permita alcançá-lo, pois os yagas não precisam disso. Como é impossível escalar
a montanha, o povo alado não precisa temer sequer um levante dos akkis.
As mulheres
yagas são igualmente prisioneiras no maciço de Yuthla. Suas asas são
cuidadosamente cerceadas ao nascer. Só as jovens yagas destinadas a tornarem-se
rainhas de Yugga estão livres desta sorte. A operação não tem outro fim que não
preservar a supremacia dos machos. Nunca consegui saber de que modo, em que
época distante, os homens de Yugga adquiriram a supremacia sobre as mulheres,
pois, julgando por Yasmeena, as mulheres aladas eram superiores aos
companheiros em agilidade, resistência, coragem e, inclusive, força. O fato de
cercear-lhes as asas as impedia de desenvolver sua superioridade.
Yasmeena era o
exemplo do que uma mulher alada podia ser. Era mais alta que as outras mulheres
yagas, estas sendo mais altas que as guras. As formas de Yasmeena eram
voluptuosas, mas os músculos de aço de um felino se ocultavam em seus membros
finamente torneados. Era jovem; todas as mulheres de Yugga pareciam jovens. A
duração da vida média de um yaga é de novecentos anos. Yasmeena reinava em Yugga
havia quatrocentos. Três princesas aladas de sangue real já haviam disputado o
direito ao trono, e ela matara as três, lutando com as mãos nuas na sala
octogonal do trono. Enquanto fosse capaz de defender a coroa contra
pretendentes mais jovens que ela, seguiria reinando.
*
* *
O destino das
mulheres escravas em Yugga era horrível. A qualquer momento, podiam ser
despedaçadas para depois serem assadas e comidas, e sua vida era sempre atormentada
pelos caprichos cruéis de seus amos. Yugga se parecia mais com o Inferno do que
qualquer outro lugar. Ignoro o que acontecia nos palácios dos nobres e dos guerreiros,
mas sei o que ocorria cotidianamente no palácio da rainha. Não havia um só dia
ou uma só noite, em que as paredes sombrias não devolvessem os ecos dos gritos
e das súplicas piedosas por clemência, misturados com insultos ou risos lascivos.
Não consegui
habituar-me a isso, por mais endurecido que esteja tanto física quanto
mentalmente. Penso que o único motivo que me permitiu não enlouquecer foi o
sentimento de que devia conservar a razão e proteger Altha, se pudesse. E eu não
podia fazer grande coisa: estava encarcerado em uma sala, e não tinha a menor
idéia do lugar onde ela se encontrava detida, exceto que se achava em alguma
parte do palácio de Yasmeena, onde estava a salvo da luxúria dos homens alados,
mas não da crueldade de sua senhora.
Em Yugga,
escutei sons e contemplei cenas sobre os quais prefiro calar... ainda que
sempre atormentem meus sonhos. Os yagas – tanto os homens quanto as mulheres – praticam
maldades de modo franco e com toda candura. Seu cinismo bane os escrúpulos
normais de pudor e decência. Sua natureza bestial é expressa abertamente, sem a
menor vergonha. Saciam seus lúbricos desejos, um após outro, e se entregam a
abomináveis torturas com seus escravos sem tentar sequer ocultar-se.
Consideram-se deuses, e acreditam estar acima das considerações que guiam ordinariamente
os seres humanos. As mulheres são ainda mais depravadas que os homens, se é que
tal coisa é possível. Não me atrevo a contar os maus tratos de inusitado refinamento
que fazem padecer as trêmulas escravas. São especialistas em todas as artes de
tortura, tanto mental quanto física. Mas basta. Só digo que não posso
repeti-lo.
Aqueles dias
de cativeiro foram como um pesadelo impreciso. Pessoalmente, eu não era
maltratado. Todos os dias, dava um passeio, bem escoltado, ao redor do palácio
como um animal enjaulado ao qual obrigam a fazer algum exercício. Ia sempre
acompanhado por sete ou oito guerreiros armados até os dentes, e sempre
acorrentado. Muitas vezes, durante aqueles passeios, pude ver Altha, dedicada
às tarefas domésticas, mas ela sempre desviava os olhos e se afastava
rapidamente. Compreendi por que se comportava assim, e não tentei falar com
ela. Havia posto sua vida em perigo quando falei dela com Yasmeena. Mais valia
que a rainha a esquecesse, se fosse possível. Quanto mais se esquecesse de seus
escravos, mais a salvo estariam.
Encontrei em
mim – em alguma parte, de algum modo – a força para controlar minha negra
cólera, meu cego furor. Quando me sentia dominado pela vertigem, dominado pelo desejo
de arrebentar as correntes e entregar-me a um holocausto de matança, continha-me
freneticamente, ainda que à custa de muitos esforços. E o furor me roia interiormente,
cristalizando-se em ódio. E assim passaram-se os dias, até que chegou a noite
em que Yasmeena reclamou minha presença.
CAPÍTULO X
YASMEENA
APOIOU O QUEIXO NAS MÃOS delicadas e olhou-me fixamente com seus imensos olhos
escuros. Estávamos sozinhos, em uma sala na qual nunca antes havia estado. Era
noite. Eu estava sentado em um divã de frente para ela, e haviam-me tirado as
correntes. Fora-me oferecida uma liberdade temporária, se eu prometesse não causar-lhe
nenhum dano e se me deixasse encadear docilmente quando ela me pedisse. Prometi
que sim. Nunca fui um homem muito esperto, mas o ódio me havia aguçado a mente.
Jogava um jogo arriscado.
- Em que está
pensando, Esaú Mão de Ferro? – ela perguntou.
- Tenho sede –
respondi.
Ela apontou um
recipiente de cristal ao alcance de minha mão:
- Beba um
pouco de vinho dourado... mas só um pouco, pois do contrário ficará embriagado.
É o vinho mais embriagador do mundo. Mesmo eu ficaria várias horas inconsciente
se bebesse muitas taças... e você não está acostumado.
Saboreei o
vinho. Efetivamente, seu conteúdo alcoólico era elevado.
Yasmeena
estirou-se sobre o leito e perguntou:
- Por que me
detesta? Não te trato bem?
- Nunca disse
que te detestava – contradisse. – És linda. Mas és cruel.
Ela encolheu
os ombros alados:
- Cruel? Sou
uma deusa. De que valem a crueldade ou a piedade? É algo bom para os homens. E
a humanidade só existe para comprazer-me. Por acaso, toda a vida não emana de
mim?
- Seus
estúpidos akkis podem acreditar nisso – repliquei –, mas eu sei que é diferente,
da mesma forma que sabes.
Ela pôs-se a
rir, sem sentir-se ofendida:
- Bem, claro,
talvez eu não seja capaz de criar vida, mas posso perfeitamente destruí-la
quando quiser. Possa ser que eu não seja uma deusa, mas custaria muito a você
convencer todos esses idiotas aos quais governo de que não sou poderosa. Não,
Mão de Ferro; os deuses são apenas outro dos inúmeros nomes que o poder possui.
Eu sou o poder neste planeta; conseqüentemente, sou uma deusa. E seus amigos
cobertos de pêlos, os guras... a quem adoram?
- Adoram Thak;
pelo menos, reconhecem Thak como seu criador e protetor. Não possuem ritos
regulares de adoração, nem templos, nem altares ou sacerdotes. Thak é o Ser Peludo,
o deus de forma humana. Brada nas tormentas e ruge nas colinas com a voz do
leão. Aprecia os homens valentes e detesta os fracos, mas não lhes faz nenhum
mal, e ajuda-os. Quando nasce uma criança de sexo masculino, lhe confere força
e coragem; quando um guerreiro morre, sobe à morada de Thak, um reino de
planícies celestiais, de rios e montanhas, onde abunda a caça e onde residem os
espíritos dos guerreiros mortos. Caçam, lutam e fazem incursões por toda a eternidade,
da forma que faziam quando estavam vivos.
Ela riu-se com
desprezo:
- Porcos
ignorantes! A morte é o esquecimento. Nós adoramos apenas nossos corpos, e a
eles oferecemos suntuosos sacrifícios com os corpos desse pequeno povo estúpido.
- Seu domínio
não durará eternamente – vi-me forçado a observar.
- Tudo começou
muito antes da aurora cinzenta do início dos tempos. Da obscura montanha de
Yuthla, meu povo contemplou inumeráveis eras. Antes que as cidades dos guras
surgissem nas planícies, nós já morávamos no país de Yagg. Sempre fomos os
senhores. Da mesma forma que reinamos sobre os guras, reinamos sobre a raça
misteriosa que antes vivia nas planícies, antes que os simiescos guras iniciassem
sua lenta evolução; a raça que erigiu as cidades de mármore, cujas ruínas
atemorizam à luz da lua, pereceu tragada pela noite.
"Histórias!
Eu poderia contar-lhe histórias que fariam com que perdesse a razão! Poderia
falar de raças que surgiram das brumas do mistério, que caíram sobre o mundo
como ondas impetuosas e que desapareceram nas brumas do esquecimento. Nós, aqui
em Yugga, vimos aparecerem e extinguir-se, e todas se inclinaram ante o jugo de
nossa divindade. Observamos, não durante séculos ou milênios, mas durante
ciclos inteiros.
"Por que
nosso reino não duraria para sempre? Como poderiam os guras tornarem-se como
nós? Viu o que acontece quando meus gaviões surgem do céu, em plena noite, para
lançar-se contra as cidades dos homens-macaco. Como poderiam nos atacar aqui,
em nossa própria morada? Para alcançar a terra de Yagg, primeiro teriam de
cruzar o Rio Vermelho, e suas águas são demasiado impetuosas para que possam
cruzá-las a nado. O rio só pode ser atravessado pela Ponte das Rochas; e ali há
sentinelas com olhos de águia, que montam guarda dia e noite. Uma vez, os guras
tentaram nos atacar. Os vigias passaram um informe de sua chegada, e os homens
de Yagg se prepararam. Lançaram-se sobre eles em meio ao deserto, fazendo cair
do céu uma chuva de flechas, e exterminaram-nos. Os poucos sobreviventes
morreram de sede, dominados por delírios.
"Suponhamos
que uma horda, após pagar o preço de uma batalha feroz, pudesse cruzar o
deserto e chegar a ver a montanha de Yuthla. Ainda teria que atravessar o rio
Yogh, e, uma vez flanqueado, teriam de enfrentar as lanças dos akkis. E depois?
Não encontrariam meio de escalar o paredão. Não; nenhum gura entrará como
inimigo em Yugga. E se, por algum capricho dos deuses, tal coisa acontecesse”,
as esplêndidas feições da mulher alada fizeram-se ainda mais cruéis e sinistras
“antes de conhecer a derrota, libertaríamos o Horror Final para perecer entre as ruínas de minha cidade”, sussurrou,
quase para si mesma.
- Que quer
dizer? – perguntei, sem compreendê-la.
- Há segredos
dissimulados por trás das tapeçarias de veludo; os mais negros segredos –
declarou. – Nem pense em sondá-los, pois os próprios deuses se afastam tremendo
deles. Eu não disse nada... e você não ouviu nada. Não se esqueça!
Houve um longo
silêncio; depois, fiz uma pergunta que eu estivera ruminando durante certo
tempo:
- De onde vêm
essas jovens de pele acobreada e amarela que há entre suas escravas?
- Já olhou
para o sul, das mais altas torres, com tempo claro, e viu uma linha ligeiramente
azulada que contorna o céu em torno do horizonte? É o Cinturão que rodeia este mundo.
Além desse Cinturão, se encontram as raças das quais provêm essas escravas.
Cruzamos esse Cinturão em nossas incursões, do mesmo modo que fazemos com os
guras, ainda que com menos freqüência.
Dispunha-me a
fazer novas perguntas sobre aquelas raças desconhecidas, quando chamaram
timidamente da porta. Yasmeena agitou-se, irritada ao ver-se molestada, e ordenou
algo secamente. Uma aterrada voz feminina informou que Gotrah pedia uma
audiência. Yasmeena dirigiu uma maldição à mulher, dizendo-lhe que Gotrah podia
ir para o inferno. Mas pareceu mudar de opinião.
- Não, devo ver
Gotrah – disse, levantando- se. – Theta! Oh, Theta! Onde está essa maldita
escrava? Tenho eu que fazer as coisas? Mandarei açoitá-la por esta insolência.
Espere-me aqui, Mão de Ferro. Preciso falar com Gotrah.
Com passo
ligeiro, ela atravessou a sala cheia de coxins e cruzou a porta. Enquanto a fechava
às suas costas, fui dominado por algo que não era mais que uma inspiração. Não tinha
nenhuma razão particular para fingir embriaguez. Foi uma intuição, ou talvez o
destino, que me fez atuar como atuei. Agarrando a jarra de cristal que continha
o vinho dourado, esvaziei-o num grande recipiente que ocultei atrás de uma
cortina. Havia bebido o bastante para que meu hálito cheirasse a álcool.
Depois, ao
ouvir um ruído de passos e vozes no corredor, me estendi desmaiado no divã com
a jarra vazia próxima de minha mão aberta. Ouvi que a porta se abria, e houve
um instante de silêncio, tão espesso que era quase tangível. Como uma pantera
encolerizada, Yasmeena bradou:
- Pelos
deuses, ele esvaziou a jarra! Veja como está! Completamente bêbado! Bah! O ser
mais nobre se torna abominável quando está embrutecido pela bebida. Bem, vamos
a nossos assuntos. Não precisamos temer que ouça nossa conversa.
- Não seria
preferível que chamasse o guardião para que o levasse até sua câmara? –
respondeu a voz de Gotrah. – Não podemos correr riscos... este segredo não é
conhecido por ninguém, além da rainha de Yugga e seu conselheiro.
Senti que se
inclinavam sobre mim para observar-me atentamente. Agitei-me ao mesmo tempo em
que soltava surdos roncos, como se tivesse sonhos de bêbado. Yasmeena pôs-se a
rir.
- Não há o que
temer. Não se recuperará antes do amanhecer. Yuthla poderia abrir-se em dois e
submergir nas águas do Yogh, sem sequer interromper seus sonhos. Que imbecil!
Esta noite, ele poderia ter se tornado o senhor do mundo, pois pensava em fazer
dele o senhor da rainha do mundo... por uma noite. Mas o leão não abandona sua
fúria, assim como o bárbaro não abandona a bestialidade.
- Por que não
o tortura? – grunhiu Gotrah.
- Porque quero
um homem, e não um palhaço desancado. Além disso, não dominaria seu espírito
nem pelo fogo, nem pelo aço. Não. Sou Yasmeena, e quero que faça amor comigo antes
de lançá-lo como pasto aos abutres. Puseste Altha, a kothiana, entre as Virgens
da Lua?
- Sim, rainha
das estrelas escuras. Em um mês e meio, a partir desta noite, bailará a dança
da lua com as outras jovens.
- Perfeito.
Mantenha-as sob vigilância dia e noite. Se este tigre souber dos meus projetos
para a eleita de seu coração, nem correntes nem ferrolhos poderão detê-lo.
- Cento e cinqüenta
homens vigiam as virgens – respondeu Gotrah. – Nem sequer Esaú Mão de Ferro
poderia com todos eles.
- Bem. Agora,
falemos de outro assunto. Trouxe o pergaminho?
- Sim.
- Nesse caso,
vou assiná-lo. Dê-me a pena.
Escutei o
ruído do papiro e o som rascante de uma ponta afiada.
- Leve-o –
disse a rainha – e deposite-o sobre o altar, no lugar habitual. Como afirmo
neste escrito, amanhã pela tarde me revelarei em carne e osso diante de meus
leais súditos e adoradores, esses porcos akki de pele azulada, ahahahaha! Como me
diverte ver o terror animal pintado em seus rostos estúpidos, quando surjo das
sombras da tela dourada e estendo os braços acima deles para abençoá-los. São
tão idiotas... Durante inumeráveis séculos, nunca descobriram a porta secreta e
a escadaria que conduz de seu templo a esta câmara.
- Isso não tem
nada de estranho – retrucou Gotrah. – Ninguém, além de seu sacerdote, entra no
templo, salvo em ocasiões especiais, e mesmo ele é demasiado supersticioso para
ver o que há por detrás da tela. De qualquer modo, a porta secreta é invisível
por fora.
- Muito bem –
disse Yasmeena. – Vai-te.
Ouvi que
Gotrah se movia, e logo escutei um ruído. Ardendo de curiosidade, arrisquei-me
a abrir um olho a tempo de ver como Gotrah desaparecia por uma escura abertura,
que se abrira no centro do piso de pedra. Após isso, o alçapão foi selado atrás
dele. Fechei os olhos a toda velocidade
e mantive-me imóvel, escutando os passos de pantera de Yasmeena enquanto esta
percorria nervosamente a sala.
Em dado
momento aproximou-se, inclinando-se sobre mim. Senti o olhar ardente da rainha
e escutei-a jurar entre dentes. Golpeou-me raivosamente no rosto com algum objeto,
certamente um adereço de jóias, o qual me lacerou a pele e me fez sangrar um
pouco. Mas continuei prostrado, sem mover um músculo sequer. Yasmeena não
tardou a voltar-se e sair da sala, resmungando.
Assim que a
porta se fechou às suas costas, levantei-me vivamente e examinei o piso,
procurando a abertura pela qual Gotrah havia desaparecido. Uma grossa alfombra
que parecia feita de pele fora retirada do solo, no centro da sala, mas
procurei em vão nas lousas negras e polidas qualquer interstício que pudesse
indicar o deslocamento do alçapão secreto. Esperava que Yasmeena voltasse a
qualquer momento, e o coração me martelava no peito. Subitamente, sob minha
mão, um painel do piso se destacou e começou a levantar-se. Com um salto de
felino, pulei para trás e me ocultei por detrás do divã, observando como o
alçapão se erguia lentamente. A estreita cabeça de Gotrah surgiu, e logo os
ombros alados e o corpo.
Ergueu-se no
interior da sala. Enquanto se voltava para fazer descer novamente o alçapão,
saltei por cima do divã e aterrissei em seus ombros.
Caiu sob meu
peso. Fechei os dedos em torno de sua garganta e consegui afogar o grito que ia
lançar. Tentou levantar-se e debateu-se sob meu corpo; um horror explícito apareceu
em seu rosto, quando ergueu a face. Estava de costas, entre os coxins. Quis
empunhar a adaga do cinturão, mas impedi-o com o joelho. Inclinando-me sobre
ele, dei rédea solta à raiva insana que tinha por sua raça maldita. Estrangulei-o
lentamente, com deleite, observando com avidez como seus traços se
convulsionavam, como seus olhos vidravam. Devia estar morto há vários minutos
quando o soltei.
Levantei-me e
olhei pela abertura. A luz das tochas da sala real iluminava um poço estreito,
em cujo interior haviam entalhado uma série de pequenos degraus. Evidentemente,
aquela escadaria conduzia às entranhas da montanha de Yuthla. Pela conversa que
havia escutado, desembocava no templo dos akkis, na cidade aos pés do paredão
rochoso. Seguramente não seria mais fácil fugir de Akka que de Yugga. Não
obstante, hesitava; partia-me o coração a idéia de abandonar Altha em Yugga.
Mas não havia outra solução. Não sabia em que parte da cidade demoníaca
encontrava-se prisioneira. Recordei que Gotrah dissera que um grande grupo de
guerreiros as vigiava, a ela e às outras virgens.
As virgens da
Lua! Um suor gelado escorreu-me da testa quando descobri bruscamente o
significado completo daquela frase. O que era exatamente a festa da Lua, eu ignorava,
mas havia surpreendido alusões e fragmentos de conversas entre as mulheres
yagas, e sabia que se tratava de saturnais abjetas, durante as quais o frenesi
total do êxtase erótico se misturava com os estertores e últimos suspiros das
desgraçadas sacrificadas no altar do único deus reconhecido pelo povo alado...
sua luxúria inumana.
Um furor
homicida me submergiu, ao imaginar Altha perecendo de um modo tão horrível... e
aquilo me fortificou em minha determinação. Meu plano estava completamente traçado...
devia escapar, tentar chegar a Koth e voltar com homens suficientes para poder
libertar Altha e os outros cativos. Meu coração tremeu, quando pensei em todos
os perigos que teria de enfrentar... mas não havia outra solução.
Arrastei o
corpo de Gotrah para fora da sala, pela porta que Yasmeena havia usado, e
atravessei um corredor sem encontrar ninguém. Ocultei o cadáver por detrás de
umas cortinas. Estava certo de que o encontrariam logo, mas, quando isto
acontecesse, talvez já estivesse a uma boa distância. Sua presença em um
aposento diferente ao do alçapão, afastaria as suspeitas acerca do modo como eu
escapara, e levaria Yasmeena a pensar que me eu ocultava em alguma parte de
Yugga.
Mas precisava
tentar a sorte. Se me demorasse, alguém acabaria por me ver. Voltei à sala,
desci pelo poço e baixei o alçapão às minhas costas. Encontrei-me na mais completa
escuridão, mas meus dedos tatearam até encontrarem o ferrolho que fechava o alçapão.
Pelo menos, poderia voltar por ali se não conseguisse abrir a porta que havia
ao fim da escadaria. Desci os degraus com precaução no seio das trevas, com a
desagradável sensação de que me arriscava a cair em um fosso, ou a dar de cara
com algum sinistro habitante daquele mundo subterrâneo. Mas não aconteceu nada.
Finalmente, cheguei ao extremo da escadaria e avancei tateando por um corredor
que conduzia até uma parede de pedra. Meus dedos encontraram um puxador de
metal; puxei-o com todas as minhas forças, e senti que um painel da parede
cedia ante meus esforços. Vi-me deslumbrado por uma luz tênue. Cambaleando,
olhei para fora com certa ansiedade.
Tinha diante
dos olhos uma câmara de teto abobadado; era inquestionavelmente uma capela. Meu
campo de visão era limitado por uma imensa tela de ouro cinzelado, bem de
frente para mim, cujas bordas brilhavam com reflexos escuros naquela estranha
luz.
Saindo da
porta secreta, olhei prudentemente pelo outro lado da tela. Vi uma sala imensa,
com a austera simplicidade e o maciço aspecto que caracteriza a arquitetura de Almuric.
Era um templo, o primeiro que via em Almuric. A abóbada desaparecia entre
espessas sombras; as paredes eram negras e brilhavam com um reflexo insano, e
sem a menor decoração. O santuário estava vazio, com exceção de um bloco de
pedra cor de ébano, um altar evidentemente, sobre o qual brilhava a chama
apagada que havia observado. A luz parecia emanar de uma enorme jóia escura que
havia sobre o altar. Vi escoadouros com manchas escuras nas laterais do túmulo.
Um rolo de pergaminho branco estava depositado sobre a pedra fuliginosa... a
mensagem de Yasmeena aos seus adoradores. Encontrava-me no santuário dos
akkas... Havia descoberto a origem e o fundamento das crenças religiosas
daquele povo: as manifestações ou aparições sobrenaturais da deusa, e a chegada
ao templo da própria deusa. Era estranho notar que toda uma religião descansasse
na ignorância dos fiéis a respeito de uma escadaria subterrânea. Ainda mais
estranho para uma mente terrestre era que só a forma mais baixa de humanidade
possuiria uma religião com dogma e ritos... algo considerado pelos povos da
Terra como sinal certo das raças mais evoluídas!
Mas o culto
dos akkas era obscuro e irreal. A atmosfera daquele templo estava impregnada de
mistério e horror. Sem muito esforço, imaginei os adoradores de pele azulada aterrorizados
ao ver surgir por detrás da tela dourada a deusa alada, como uma divindade
vinda do vazio cósmico e adquirindo uma forma material.
Fechando a
porta secreta às minhas costas, deslizei sem ruído para o templo. Havia um
homem estendido nos degraus nus, roncando sonoramente: um homem magro de pele
azulada, vestido com uma túnica fantástica. Sem dúvida, havia dormido tranqüilamente
durante a espectral visita de Gotrah.
Tinha de
passar por cima dele para sair do templo. O fiz tão delicadamente quanto um
gato que avançasse por um solo molhado. Tinha na mão a adaga de Gotrah, mas o
sacerdote não despertou. Mais um instante e estava fora. Aspirei longamente o
ar noturno, que chegava até mim com o odor do rio.
O templo se
encontrava mergulhado nas sombras da montanha. Era uma noite sem lua; só o
brilho das estrelas cintilava aos milhões acima de Almuric. Não vi nenhuma luz
na cidade, nenhum movimento. Os akkis dormiam profundamente.
Tão furtivo
quanto um fantasma, segui rapidamente pelas estreitas ruelas, passando ao lado
das grosseiras cabanas de pedra. Não vi nenhum ser humano, até que cheguei ao
muro. A ponte levadiça que cruzava o rio estava levantada; diante da grande
porta, havia um homem de pele azulada, que dormitava apoiado na lança. Os
sentidos dos akkis eram tão pesados quanto os das bestas de carga. Poderia
apunhalar o guardião, mas não via a utilidade de cometer um assassinato, a
menos que me visse forçado a isso. Não me ouviu, mesmo quando passei a menos de
40 passos dele. Silenciosamente, escalei o muro e, silenciosamente, entrei na
água.
Atravessei o
rio nadando com vigor – a correnteza não era muito rápida –, e cheguei à margem
oposta. Ali me detive algum tempo para beber longamente das geladas águas do rio;
depois, me pus a caminho. O deserto coberto pelas sombras se estendia ante mim.
Tentaria atravessá-lo com o passo rápido que devora milhas, o passo rápido dos
apaches de meu Sudoeste natal.
Nas trevas que
precediam a aurora, alcancei a orla do Rio Vermelho. Descrevi um longo círculo
para evitar a torre de vigia, que se recortava vagamente contra o céu coberto de
estrelas. Enquanto me comprimia contra a escarpada margem e escrutava a impetuosa
corrente cheia de violentos remoinhos, meu coração se contraiu. Compreendi que
cair naquele torvelinho era loucura, sobretudo com a fadiga que me dominava. O
nadador mais robusto que a Terra ou Almuric houvesse engendrado ficaria desamparado
em meio àqueles vórtices.
Só uma coisa
restava a fazer: tentar chegar à Ponte das Rochas antes da aurora, e arriscar-me
na desesperada tarefa de procurar cruzá-la sob o olhar dos vigias. Era igualmente
uma loucura, mas eu não tinha escolha.
A aurora
começou a branquear o deserto, quando ainda me encontrava a uma boa distância
da Ponte. Olhando para a torre – que parecia surgir da noite e revestir-se com
contornos mais claros –, vi que uma forma tomava impulso num dos parapeitos e
alçava vôo em minha direção. Um dos vigias tinha me visto. Um plano audaz
veio-me à cabeça. Comecei a titubear, dei alguns passos pouco seguros e caí
sobre a areia, não muito longe da margem. Escutei o bater das asas sobre mim
enquanto a desconfiada harpia descrevia círculos no céu. Depois, percebi que o
yaga descia para o solo. Devia estar sozinho de guarda, e viera para
informar-se da natureza daquele viajante solitário, sem despertar seus companheiros.
Observando-o
através das pálpebras entreabertas, vi-o posar no solo, perto, e que se
aproximava com aspecto de suspeita, empunhando a cimitarra. Finalmente, empurrou-me
com o pé, como para averiguar se estava ainda com vida. Instantaneamente fechei
o braço em suas pernas e o atraí para o solo, sobre mim. Um só grito saiu de seus
lábios, um grito meio apagado enquanto meus dedos buscavam e apertavam-lhe a
garganta. Ao mesmo tempo em que ele se debatia e agitava as asas, eu o fiz
rodar e me pus sobre seu corpo. O yaga não podia empregar a cimitarra numa luta
corpo-a-corpo. Torci-lhe o braço, até que seus dedos inertes soltaram a
empunhadura da arma. Depois, o apertei ainda mais, sufocando-o para obrigá-lo a
submeter-se. Antes que pudesse recobrar
por completo os sentidos, atei-lhe os pulsos sobre o ventre com a ajuda de seu
cinturão, coloquei-o em pé e saltei às suas costas, cruzando as pernas diante
do seu peito. Fechei o braço esquerdo ao redor de seu pescoço e apertei-o; com
a mão direita ameacei-o com a adaga de Gotrah.
Em poucas
palavras, em voz baixa, disse-lhe o que devia fazer se quisesse viver. O
sacrifício não é parte da natureza dos yagas, nem sequer pelo bem da sua raça.
Não tardamos a elevar-nos aos céus, através das primeiras luzes que encarnavam
a alvorada, para cruzar as impetuosas águas do Rio Vermelho. Distanciamos-nos
rapidamente da terra dos yagas, dirigindo-nos para as brumas azuladas do noroeste.
Tradução: Damnus Vobiscum.
Revisão: Fernando
Neeser de Aragão.
Agradecimento
especial: Ao howardmaníaco e amigo Rogério Silvério de Farias.