A Mão de Nergal (fragmento original)

(por Robert E. Howard)

1.

O campo de batalha jazia em silêncio. Entre poças púrpuras, figuras ainda se moviam, parecendo refletir o fantástico céu crepuscular tingido de vermelho. Figuras furtivas esgueiravam-se na grama alta. Aves de rapina caíam sobre amontoados mutilados, trazendo um rufar de asas sombrias. Como arautos do Destino, uma ondulante fileira de garças batia asas lentamente em direção aos juncos da margem do rio. Nenhum rumor de rodas de carroça, repiques ou trombetas perturbava aquela quietude cega. O silêncio da morte seguia-se ao clangor da batalha.

Porém, uma figura se movia através daquele campo de ruínas dispersas, apequenado pelo imenso céu opaco e carmesim. O sujeito era um cimério, um gigante de juba negra e olhos azuis flamejantes. Sua tanga, presa por um cinto ao quadril, e suas sandálias de tiras altas estavam respingadas de sangue. A grande espada que arrastava com a mão direita estava ensangüentada até o cabo. Um terrível ferimento em sua coxa o fazia mancar enquanto andava. Cauteloso, embora impaciente, movimentava-se entre os mortos, saltando de cadáver em cadáver, xingando raivosamente o tempo todo. Outros haviam passado antes dele. Nenhum bracelete, adaga cravejada de jóias ou peitoral de prata motivava sua busca. Ele era um lobo que há muito tempo percorria aquela carnificina, enquanto os chacais levavam os despojos.

Passando os olhos pela planície atulhada, não via nenhum corpo vestido ou se movendo. As facas dos mercenários e dos ajudantes de acampamento trabalharam bastante. Abandonando sua busca inútil, perscrutou sem objetivo definido a extensão além da planície, até o local onde as torres da cidade brilhavam fracamente no crepúsculo. Então virou-se rapidamente na direção de um grito torturado que chegou aos seus ouvidos. Aquilo significava um homem ferido, mas vivo, portanto presumivelmente não saqueado. Embora mancasse, andou rapidamente na direção do som, e ao chegar ao limite da planície, afastou os primeiros juncos e olhou para a figura que se contorcia debilmente aos seus pés.

Era uma garota ali deitada. Estava nua, seus membros alvos lanhados e feridos. Havia crostas de sangue em seus cabelos longos e escuros. Uma agonia cega se projetava de seus olhos escuros, e ela gemia, delirante.

O cimério ficou um tempo olhando para ela, e seus olhos foram momentaneamente nublados por algo que, em outro homem, poderia sugerir uma expressão de pena. Ergueu a espada para encerrar o sofrimento da garota, mas quando a lâmina pairou sobre seu corpo, ela choramingou como uma criança que sofre. A longa espada imobilizou-se em pleno ar. Por um instante, o cimério quedou-se imóvel como uma estátua de bronze. Em seguida, embainhando a lâmina com uma súbita resolução, inclinou-se e levantou a garota em seus braços fortes. Ela resistiu de forma incerta, mas sem forças. Carregando-a com cuidado, ele cambaleou uma boa distância em direção à margem do rio coberta de juncos.


2.

Na cidade de Yaralet, quando a noite chegava, as pessoas barravam as janelas, trancavam as portas e permaneciam dentro das casas tremendo, com velas acesas diante de seus deuses caseiros até que a aurora iluminasse os minaretes. Nenhuma sentinela andava pelas ruas, nenhuma meretriz maquiada espreitava nas sombras, nenhum ladrão esgueirava-se ardilosamente por ruelas sinuosas. Os malfeitores, assim como as pessoas honestas, evitavam os lugares escuros, reunindo-se em tocas malcheirosas ou em tavernas à luz de velas. Do entardecer ao amanhecer, Yaralet era uma cidade silenciosa, com ruas vazias e desoladas.

O povo não sabia exatamente o que temia. Porém, dispunha de amplas evidências de que não era contra sonhos vazios que suas portas eram trancadas. Os homens falavam de sombras furtivas, avistadas através de janelas barradas, formas apressadas, estranhas à sanidade e à humanidade. Falavam sobre portas arrombadas durante a noite e de gritos e gemidos humanos seguidos por um silêncio significativo. Falavam do sol nascente brilhando sobre portas demolidas, que se abriam para casas vazias cujos ocupantes nunca mais foram vistos.

Mais estranho ainda, falavam do ruído furtivo de rodas de carroças fantasmas pelas ruas vazias na escuridão antes do amanhecer, e aqueles que as ouviam não se atreviam a olhar. Uma criança olhou, uma vez, e enlouqueceu instantaneamente para morrer em seguida, gritando e espumando, sem dizer o que vira ao olhar pela janela escurecida.

Certa noite, enquanto o povo de Yaralet tremia em suas casas trancadas, um estranho conclave acontecia na pequena câmara, forrada de veludo e iluminada à vela, pertencente a Atalis. Alguns o consideravam um filósofo, outros, malfeitor. Atalis era um homem esbelto e de altura média, com uma cabeça esplêndida e feições de um mercador esperto. Estava vestido com um manto de rico tecido, e sua cabeça raspada denotava sua devoção ao estudo das artes. Enquanto falava, gesticulava inconscientemente com a mão esquerda. A mão direita descansava em seu colo num ângulo não natural. De tempos em tempos, um espasmo de dor contorcia sua expressão, e então seu pé direito, escondido sob o longo manto, retorcia-se de forma aflitiva sobre o tornozelo.

Ele estava falando com alguém que a cidade de Yaralet conhecia, e louvava, pelo nome de príncipe Than. O príncipe era um homem alto e elegante, jovem e inegavelmente belo. Os contornos firmes de seus membros e a têmpera de aço de seus olhos cinzas desmentiam a sugestão levemente afeminada de seus cabelos negros e encaracolados e seu gorro de veludo emplumado.




Tradução: Cláudio S. Carina.


Fontes: Conan O Cimério, Vol.2, Ed. Conrad e http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2000%20-%20The%20Coming%20of%20Conan%20The%20Cimmerian%20-%20FF.txt
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