Marchadores de Valhalla

(Por Robert E. Howard)


O céu estava lívido, melancólico e repulsivo, com o azul do aço manchado, cruzado por bandeiras de um vermelho pálido. Destacadas contra a indistinta mancha avermelhada, estendiam-se as colinas achatadas que são os cumes dessa árida terra alta, uma lúgubre extensão de areias à deriva e árvores ressecadas, salpicada de campos estéreis, onde as pessoas consomem suas vidas terrivelmente inúteis num trabalho sem frutos e num amargo desejo.

Eu havia subido, coxeando, um rochedo que se erguia acima dos demais, rodeando cada lado pelos ressecados bosques de carvalhos. A terrível tristeza e a monótona desolação das paisagens que se estendiam diante de mim, transformavam minha alma em pó e cinzas. Me deixei cair sobre um tronco meio apodrecido, e a agonia melancólica dessa terra triste pesou duramente sobre mim. O sol vermelho, meio oculto pelos redemoinhos de poeira e coberturas de nuvens, estava se pondo; pendia à altura de uma mão sobre a margem ocidental. Mas seu ocaso não dava glória alguma às entristecidas dunas. Seu brilho escuro só fazia acentuar a tremenda desolação da terra.

De repente, percebi que eu não estava só. Uma mulher havia saído do espesso carvalhal e permanecia imóvel, observando-me. Olhei-a maravilhado, em silêncio. A beleza era tão escassa em minha vida que, a duras penas, era capaz de reconhecê-la, mas sabia que aquela mulher era inconcebivelmente formosa. Não era alta nem baixa; magra, porém de constituição admirável. Não lembro de seu vestido; tenho a vaga impressão de que ia adornada rica, porém modestamente. Mas lembro da estranha beleza de seu rosto, emoldurado na escura glória ondulante de sua cabeleira. Seus olhos capturaram os meus como um ímã; não consigo dizer qual era sua cor. Eram escuros e luminosos, com uma luz que nunca tinha visto nos olhos de alguém. Ela falou, e sua voz, de estranho sotaque, era desconhecida aos meus ouvidos e tão dourada quanto sinos distantes.

- Por que está triste, Hialmar?

- Está me confundindo, senhorita. – respondi – Meu nome é James Allison. Você estava procurando alguém?

Sacudiu lentamente a cabeça.

- Vim para contemplar a terra mais uma vez. Não imaginei encontrá-lo aqui.

- Não estou lhe entendendo. – eu disse – Nunca lhe vi antes. Você é nativa deste país? Não fala como uma texana.

Sacudiu a cabeça.

- Não. Mas conheci esta terra há muito... muito, muito tempo.

- Não parece tão velha. – disse bruscamente – Me desculpe por eu não levantar-me. Como vê, só tenho uma perna, e a subida até aqui era tão longa que me vejo obrigado a sentar-me e descansar.

- A vida lhe tratou duramente. – ela disse com doçura – Mal havia lhe reconhecido. Seu corpo está tão mudado...

- Deve ter me conhecido, antes que eu perdesse a perna... – disse, com amargura - embora eu possa jurar que não me lembro de você. Eu tinha apenas quatorze anos, quando um mustang caiu em cima de mim e esmagou-me a perna de tal modo, que precisou ser amputada. Quisera Deus que fosse meu pescoço.

Assim falam os aleijados com os desconhecidos: não tanto suplicando simpatia, mas com o grito desesperado de uma alma torturada além de toda a tolerância.

- Não fique triste. – disse calmamente – A vida toma, mas também dá...

- Ah, não me venha com discurso sobre a resignação e o bom ânimo! – gritei selvagemente – Se eu tivesse o poder de estrangular a cada pomposo otimista do mundo! Vou me alegrar de quê? O que hei de fazer, senão sentar-me e esperar a morte que se arrasta lentamente em minha direção por causa de um mal incurável? Não tenho lembranças para me alegrarem, nem futuro para olhar, exceto alguns anos mais de dor e aflição, e logo o negrume do absoluto esquecimento. Nunca houve beleza alguma em minha vida, nesta terra selvagem e esquecida.

Os diques de minha omissão haviam se quebrado e meus sonhos amargos, há muito tempo contidos, transbordaram; e tampouco parecia estranho que eu escoasse minha alma a esta estranha mulher, que eu jamais vira antes.

- A terra lembra. – ela disse.

- Sim, mas eu não compartilho suas lembranças. Eu poderia ter amado a vida e viver intensamente como um vaqueiro, mesmo aqui, antes que os colonos transformassem o país de uma terra aberta numa sucessão de sítios atacados. Eu poderia ter vivido intensamente como caçador de búfalos, guerreiro índio ou explorador, mesmo aqui. Mas nasci fora de meu tempo, e até as proezas desta era cansada me foram negadas.

Ninguém pode explicar a amargura de sentir-se acorrentado e indefeso, e sentir como se o sangue ressecasse em minhas veias, e os sonhos brilhantes se desvanecessem em meu cérebro. Provenho de uma raça inquieta, lutadora e errante. Meu tataravô morreu em El Álamo, junto a David Crockett. Meu avô cavalgou com Jack Hayes e Bigfoot Wallace, e caiu com três quartos da brigada de Hood. Meu irmão mais velho caiu em Vimy Ridge, lutando com os canadenses, e o outro morreu no Argonne. Meu pai é um aleijado também, dormita o dia todo sentado em sua cadeira, mas seus sonhos estão cheios de boas recordações, pois a bala que quebrou-lhe a perna o feriu enquanto atacava na colina de San Juan.

Mas, o que tenho eu para sentir, sonhar ou pensar?

- Deveria recordar-se. – ela disse em voz baixa – Mesmo agora, os sonhos deveriam chegar a ti como os ecos de alaúdes distantes. Eu me lembro! Como me arrastei de joelhos até você, e como me perdoaste... sim, e o estrondo da terra que cedia... por acaso, nunca sonha que está se afogando?

Me sobressaltei.

- Como pode saber disso? Vez ou outra, senti o redemoinho das águas espumantes que se erguem como uma montanha verde sobre mim, e despertei, ofegando e sufocado... mas, como você sabe?

- Os corpos mudam; a alma permanece sonolenta e intacta. – respondeu enigmaticamente – Até o mundo muda. Esta é uma terra desolada, dizes, mas suas lembranças são antigas e mais maravilhosas que as do Egito.

Balancei a cabeça, surpreso.

- Ou está louca, ou eu estou. O Texas tem lembranças gloriosas de guerras, conquista e drama... mas o que são seus escassos séculos de história, comparados com a antiguidade do Egito... em antiguidade, quero dizer?

- Qual a peculiaridade do estado como um todo? – perguntou ela.

- Não sei exatamente o que quer dizer. – respondi – Se refere-se à geologia, a peculiaridade que me surpreendeu é o fato de que a terra não é mais que uma sucessão de grandes chapadas, ou conjuntos de prateleiras, erguendo-se desde o nível do mar até os mil e duzentos metros de altura, como os degraus de uma escada gigantesca, interrompidos por colinas com bosques. A última é o Caprock e, por cima disso, começam as Grandes Planícies.

- Outrora, as Grandes Planícies estenderam-se até o Golfo. – disse – Há muito, muito tempo, o que agora é o estado do Texas era uma vasta chapada que descia suavemente até a costa, mas sem os acidentes e desníveis de hoje. Um poderoso cataclismo quebrou a terra no Caprock, o oceano rugiu por cima dele e o Caprock transformou-se na nova linha costeira. Depois, era após era, as águas recuaram lentamente, deixando os degraus tal e como são hoje. Mas, ao recuarem, arrastaram às profundidades do Golfo muitas coisas estranhas... acaso não lembra das vastas planícies que transcorriam, do crepúsculo até os escarpados por cima do mar resplandecente? E a grande cidade que dominava esses escarpados?

Olhei-a, assombrado. Repentinamente, inclinou-se em minha direção, e o esplendor de sua estranha beleza quase me dominou. Meus sentidos vacilaram. Ela pôs as mãos diante de meus olhos com um gesto estranho.

- Verás! – gritou agudamente – Veja... o que você vê?

- Vejo as dunas de areia e os bosques ressecados enegrecerem-se sob o pôr-do-sol. – respondi, como um homem que fala lentamente, em transe – Vejo o sol descansando no horizonte ocidental.

- Você vê largas planícies que se estendem até os escarpados resplandecentes! – gritou – Você vê as agulhas e a cúpula dourada da cidade, cintilando ao crepúsculo! Você vê...

Como se a noite houvesse caído repentinamente, a escuridão me submergiu e a irrealidade, na qual a única coisa existente era sua voz, urgente, imperiosa...

Senti o tempo e o espaço desvanecerem-se – uma sensação de girar sobre golfos ilimitados, com ventos cósmicos que sopravam contra mim –, e logo contemplei nuvens que se retorciam, irreais e luminosas, que cristalizaram numa estranha paisagem... familiar, mas fantasticamente estranha. Vastas planícies sem árvores perdiam-se à distância até confundirem-se com horizontes brumosos. À distância, ao sul, uma ciclópica cidade negra erguia seus picos contra o céu do entardecer e, mais além, brilhavam as águas azuis de um mar tranqüilo. E, mais perto, uma fila de figuras movia-se através do terreno. Eram homens altos, de cabeleira amarela e frios olhos azuis, arrumados com couraças de malha e capacetes com chifres, e usavam escudos e espadas.

Um destacava-se dos demais por ser baixo, embora de forte constituição, e moreno. E o guerreiro alto de cabeleira loira que caminhava a seu lado... por um fugaz momento, houve um claro sentimento de dualidade. Eu, James Allison do século XX, vi e reconheci o homem que era nessa época distante e nessa terra estranha. A sensação se dissipou quase imediatamente, e eu era Hialmar, um filho dos Loiros, sem conhecimento de qualquer outra existência, passada ou futura.

Mas, enquanto narro a história de Hialmar, serei obrigado a interpretar um pouco do que vi, fiz ou fui, não como Hialmar, como o eu moderno. Reconhecerão essas interpretações em seu lugar. Mas lembrem-se que Hialmar era Hialmar, e não James Allison; que não sabia nem mais nem menos que suas experiências, limitado pelas fronteiras de sua própria vida. Eu sou James Allison e fui Hialmar, mas Hialmar não era James Allison; os homens podem olhar para dez mil anos no passado; ele não pode ver adiante um momento sequer.


Éramos quinhentos e tínhamos a vista cravada nas negras torres que erguiam-se contra o azul do mar e do céu. Havíamos guiado nosso percurso por elas o dia inteiro, desde que o primeiro brilho vermelho da aurora havia revelado-as a nossos olhos maravilhados. Um homem podia enxergar bem longe nessas planícies claras e cheias de capim; à primeira vista, pensamos que a cidade estava próxima, mas andamos o dia todo e ainda estávamos a milhas de distância.

Espreitava-nos a idéia de que era uma cidade-fantasma... um dos espectros que haviam nos perseguido em nossa longa marcha através dos amargos desertos poeirentos a oeste, onde, nos céus ardentes, vimos espelhados lagos calmos, cercados de palmeiras, rios serpenteantes e cidades espaçosas, todas as quais se dissipavam quando nos aproximávamos. Mas esta não era uma miragem nascida do sol, da poeira e do silêncio. Perfilados no céu claro do entardecer, vimos facilmente os gigantescos detalhes das pequenas torres maciças e os sóbrios contrafortes; as torres com ameias e o titânico muro.

Em que era obscura eu, Hialmar, caminhei com os homens de minha tribo através daquelas planícies, até uma cidade sem nome? Não sei dizê-lo. Faz muito tempo que o povo de cabelos amarelos ainda morava em Nordheim e chamavam-se, não arianos, mas vanires ruivos e aesires de cabeleira dourada. Foi antes que as grandes migrações de minha raça povoassem o mundo, embora migrações menores já tivessem começado. Encontrávamos-nos a anos de viagem de nosso lar natal do norte. Terras e mares jaziam entre ele e nós. Ah, aquela longa, longa viagem! Nenhuma migração de povo algum, nem as do meu próprio povo, que foram épicas, conseguiu igualá-las. Levaram-nos ao redor do mundo – do norte nevado às vastas planícies e os vales da montanha, cultivados pelo pacífico povo moreno... às cálidas e asfixiantes florestas, que fediam a podridão e transbordavam de vida... através das terras do leste, que ardiam com cores duras e primitivas sob as ondulantes palmeiras, onde raças antigas viviam em cidades de pedra talhada... subindo outra vez pelo gelo e pela neve, e através de um braço gelado do mar... logo descendo pelas desolações nevadas, onde homens atarracados, que comiam gordura de baleia, fugiram gritando de nossas espadas; ao sul e ao leste, através de montanhas gigantescas e bosques titânicos, solitários, colossais e desolados como o Éden depois que o homem fora expulso... sobre as abrasadoras areias do deserto e as planícies ilimitadas, até que por fim, além da silenciosa cidade negra, vimos novamente o mar.

Alguns envelheceram nessa viagem. Eu, Hialmar, havia chegado à idade adulta. Quando dei meu primeiro passo no longo caminho, era um menino; agora eu era um jovem adulto, um guerreiro experimentado, de membros poderosos, com os ombros largos e quadrados, a garganta musculosa e um coração de ferro.

Éramos todos homens fortes... gigantes além da compreensão dos homens modernos. Não existe hoje na terra homem tão forte quanto o mais fraco de nossa partida, e nossos poderosos tendões tinham velocidade tão cegante que, a seu lado, os movimentos do mais bem-treinado dos atletas modernos pareceriam lentos, desajeitados e pesados. Nossa fortaleza era mais que física; nascidos de uma raça lupina, os anos de nomadismo e luta com homens, animais e todas as formas de elementos haviam instalado em nossas almas o próprio espírito do selvagem... o poder intangível que esvoaça no longo uivo do lobo cinza, que ruge no vento do norte, que dorme na poderosa agitação dos rios turbulentos, que ressoa nos açoites do vento gelado, do bater das asas da águia, e espreita no silêncio pensativo dos lugares espaçosos.

Já disse que era uma viagem estranha. Não era a migração de uma tribo inteira, homens, mulheres loiras e crianças nuas. Éramos todos homens, aventureiros para os quais até os caminhos do nomadismo e da guerra eram muito aprazíveis. Havíamos empreendido o trajeto sozinhos, conquistando, explorando e vagando, levados apenas pelo nosso impulso paranóico de ver além do horizonte.

A princípio, éramos mais de mil; agora éramos quinhentos. Os ossos dos demais embranqueceram ao longo daquela rota que circundava o mundo. Agora nosso chefe era Asgrimm, envelhecido nesse vagar interminável... um lutador magro, amargo, caolho e semelhante a um lobo, que sempre mordiscava sua barba grisalha.

Vínhamos de muitos clãs, mas todos eram aesires de cabeleira dourada, com exceção do homem que andava a meu lado. Era Kelka, meu irmão de sangue, e um picto. Juntara-se a nós entre as colinas selváticas de uma terra distante que marcava a migração mais oriental de sua raça, onde os atabaques de seu povo batiam incessantemente através da noite calidamente estrelada. Era baixo, de membros robustos, e tão mortífero quanto um gato da selva. Os aesires eram bárbaros, mas Kelka era um selvagem. Atrás dele, jazia o caos abismal da selva negra cheia de gritos. Em seu passo cauteloso havia a garra do tigre; em suas mãos de unhas negras, a presa do gorila, e o fogo que arde nos olhos de um leopardo ardia nos seus.

Ah, éramos uma horda endurecida, e havíamos deixado nosso rastro de sangue e de brasas fumegantes em muitas terras! Não me atrevo a repetir as matanças, rapinas e massacres que deixávamos às nossas costas, pois vocês recuariam horrorizados. Sois de uma era mais branda e aprazível, e não podem entender esses tempos selvagens, quando uma matilha de lobos selvagens destroçava a outra, e a moral e costumes da vida diferiam dos de hoje, como os pensamentos de um lobo cinza assassino dos de um gordo cão promíscuo, que cochila diante da lareira.

Esta longa explicação lhes foi dada para que possam entender que tipos de homens cruzavam essa planície em direção à cidade, e com tal entendimento interpretar o que veio depois. Sem essa compreensão, a saga de Hialmar não passa de um caos uivante, sem rima nem significado.

A visão da grande cidade não nos assustou. Havíamos devastado, com as mãos ensangüentadas, outras cidades em outras terras além do mar. Muitos conflitos haviam ensinado-nos a evitar o combate contra forças superiores, quando possível, mas não tínhamos medo. Estávamos igualmente dispostos à guerra e ao banquete da amizade, como escolhesse o povo da cidade.

Haviam nos visto. Estávamos próximos o bastante para distinguir as fileiras de hortos, campos e vinhedos fora dos muros, e a figuras dos trabalhadores que fugiam em direção à cidade. Vimos um brilho de lanças nos edifícios, e ouvimos o rápido pulso dos tambores de guerra.

- Será guerra, irmão. – disse Kelka guturalmente, preparando firmemente seu escudo no braço esquerdo.

Pegamos nossos cinturões e agarramos as armas... não de cobre e bronze, como nosso povo ainda trabalhava na distante Nordheim, mas de aço afiado, forjado por um povo vencido e hábil, na terra das palmeiras e elefantes, cujos guerreiros armados de aço não haviam sido capazes de deter-nos.

Paramos na planície, a uma distância comedida dos grandes muros negros que pareciam construídos com blocos gigantescos de pedra basáltica. Asgrimm tomou a frente de nossas fileiras, desarmado, com as mãos erguidas e as palmas abertas, em sinal de conversa. Mas uma flecha cravou-se no chão perto dele, traçando um arco desde as pequenas torres, e ele recuou até nossas fileiras.

- Guerra, irmão! – falou Kelka, com chamas vermelhas brilhando em seus olhos negros.

E, naquele momento, as enormes portas se abriram e delas surgiram fileiras de guerreiros, com suas plumas de guerra agitando-se sobre eles entre o faiscar das lanças. O sol poente brilhava como fogo entre seus polidos capacetes de cobre.

Eram altos, de corpo esbelto e pele escura, embora nem marrons nem negros, com traços firmes e aquilinos. Suas armaduras eram de cobre e couro, e seus escudos estavam cobertos de verde. Suas lanças, suas espadas elegantes e longas adagas eram de bronze. Avançaram em perfeita formação; eram uns mil e quinhentos, uma maré de plumas em movimento e lanças faiscantes. Atrás deles, os edifícios estavam cheios de espectadores.

Não houve conversa. Enquanto se aproximavam, o velho Asgrimm gritou como um lobo na caçada e nos preparamos para enfrentar o ataque. Não íamos em formação; corremos em direção a eles como lobos, e vimos o desprezo em seus rostos de falcão, ao nos aproximarmos. Não tinham arcos e nenhuma flecha foi disparada de nossas filas que corriam, nem se arremessou uma lança. Só queríamos chegar ao corpo-a-corpo. Quando estávamos a um tiro de dardo, enviaram-nos uma chuva de lanças, a maioria das quais ricocheteavam em nossos escudos e cotas-de-malha, e depois, com um rugido gutural, nosso ataque lançou-se ao alvo.

Quem disse que a ordenada disciplina de uma civilização degenerada pode defrontar-se com a pura ferocidade da barbárie? Lutavam para combater como uma só unidade; nós lutamos como indivíduos, lançando-nos de cabeça contra suas lanças e talhando como loucos. Toda sua primeira linha caiu sob nossas espadas sibilantes; as filas posteriores recuaram e hesitaram, quando seus guerreiros sentiram o impacto brutal de nossa incrível força. Se houvessem agüentado, poderiam ter nos cercado, com seu número superior e nos degolado. Mas não conseguiram resistir. Abrimos nosso caminho como um arado numa tormenta de golpes martelantes, rompendo suas linhas e pisoteando seus mortos enquanto prosseguíamos inexoravelmente adiante. Sua formação de batalha se dissolveu; lutaram contra nós homem a homem, e a batalha tornou-se uma carnificina. Pois em força individual e ferocidade, não conseguiam comparar-se a nós.

Ceifamo-los como milho; colhemos-lhes como sementes maduras! Ah, quando revivo essa batalha, parece que James Allison cede lugar ao encouraçado e potente Hialmar, com a loucura da guerra em seu cérebro e o canto de guerra nos lábios. E estou novamente embriagado pelo canto das espadas, o derramar do sangue quente e o rugido da matança.

Romperam filas e fugiram, atirando suas lanças. Lhes perseguimos, derrubando-os enquanto corriam, até as próprias portas, através das quais precipitaram-se os primeiros, fechando-as em nossa cara e na dos infelizes que eram os últimos na fuga. Sem poderem chegar à área de segurança, arranharam e golpearam os inflexíveis portões até que lhes esfaqueamos. Logo, foi a nossa vez de golpear as portas, até que uma chuva de pedras e toras, vinda de cima, esmagou a cabeça de três ou quatro guerreiros, e recuamos a uma distância segura. Ouvimos as mulheres berrando nas ruas, e os homens entraram em formação nas paredes, disparando-nos flechas sem grande habilidade.

Os corpos dos mortos cobriam a planície, desde o ponto em que as tropas se defrontaram até a soleira dos portões e, onde havia caído um aesir, caíra meia-dúzia de guerreiros emplumados.

O sol tinha se posto. Fizemos nosso acampamento diante das portas e, durante toda a noite, ouvimos prantos e gemidos dentro dos muros, onde o povo gritava por aqueles cujos corpos imóveis nós recolhemos e amontoamos a certa distância. Ao amanhecer, pegamos os cadáveres dos trinta aesires que haviam caído no combate e, deixando arqueiros para vigiar a cidade, levamo-los aos lisos escarpados que desciam 150 metros até a praia de areia branca. Encontramos caminhos tortuosos que levavam pra baixo e, com nossa carga, abrimos caminho até a margem da água.

Ali, com barcas de pesca varadas na areia, fizemos uma grande jangada e nela amontoamos madeira. Sobre a pilha, estendemos os guerreiros mortos, vestidos com seus coletes, suas armas ao lado, e cortamos o pescoço dos doze prisioneiros que fizéramos, manchando as armas e os flancos da jangada com seu sangue. Logo ateamos fogo à madeira e lançamos a jangada ao mar. Afastou-se boiando sobre a superfície da água azulada, até não ser mais que um brilho vermelho, dissipando-se no amanhecer.

Logo subimos pelas veredas e nos alinhamos diante da cidade, entoando nossos cânticos guerreiros. Pegamos nossos arcos e um homem após outro foi caindo das torres, atravessados por nossas longas flechas. Das árvores que encontramos, crescendo nos jardins fora da cidade, construímos escadas de assalto e colocamos-nas contra os muros. Subimos por elas, sob a chuva de flechas, lanças e vigas que caía sobre nós. Lançaram-nos chumbo derretido, e quatro guerreiros arderam como formigas numa labareda. Então, lançamos novamente nossas setas, até que nenhuma cabeça emplumada apareceu nos edifícios.

Protegidos por nossos arqueiros, colocamos de novo as escadas. Enquanto nos preparávamos para a subida que nos faria ultrapassar os muros, numa das torres que se erguiam sobre os portões apareceu uma figura que nos parou de repente.

Era uma mulher, uma mulher como não víamos há muitos anos... cabelo dourado flutuando livremente ao vento, leitosa pele branca brilhando à luz do sol. Nos chamou em nossa própria língua, hesitante, como se não a usasse há muitos anos.

- Esperem! Meus amos têm algo a dizer-lhes.

- Amos! – Asgrimm cuspiu a palavra – A quem uma mulher dos aesires chama de amos, a não ser aos homens de seu próprio clã?

Não pareceu entender, mas respondeu:

- Esta é a cidade de Khemu, e os amos de Khemu são os senhores desta terra. Me mandam dizer que não podem enfrentar-lhes em batalha, mas dizem que terão pouco benefício se escalarem estes muros, pois matarão suas mulheres e crianças com suas próprias mãos, e vão incendiar os palácios, de modo que vocês só tomarão uma pilha de pedras em ruínas. Mas, se perdoarem a cidade, lhes mandarão presentes de ouro e jóias, ricos vinhos e raros manjares, e as moças mais belas da cidade.

Asgrimm esticou a barba, resistiu em esquecer o saque e o derramamento de sangue; mas os homens mais jovens rugiram:

- Perdoa a cidade, velho urso! Do contrário, matarão as mulheres... e vagamos durante várias luas sem que houvesse uma mulher.

- Jovens idiotas! – grunhiu Asgrimm – Os beijos e as palavras de amor das mulheres se dissipam e murcham, mas a espada canta uma nova canção a cada golpe. Será o falso atrativo das mulheres ou a brilhante loucura da matança?

- Mulheres! – rugiram os jovens guerreiros, fazendo entrechocar suas espadas – Deixe que nos enviem suas garotas, e perdoaremos sua maldita cidade.

O velho Asgrimm girou, com uma careta de amargo desprezo, e chamou a moça de cabeleira dourada na torre.

- Eu arrasaria seus muros e pulverizaria seus capitéis, e empaparia as cinzas com o sangue de seus amos. – disse – Mas meus jovens são estúpidos! Envia-nos mulheres e comida... e os filhos dos chefes, como reféns.

- Assim será feito, meu senhor. – respondeu a garota.

Tiramos as escadas de assalto e nos recolhemos ao acampamento.

Logo as portas giraram, abrindo-se de novo, e delas saiu uma procissão de escravos nus, carregando recipientes dourados que continham manjares e vinhos tais como nós nunca sabíamos existir. Eram guiados por um homem de rosto aquilino, com um manto de penas coloridas, trazendo na mão uma vara de marfim e, nas têmporas, um círculo de cobre em forma de serpente enroscada, com a cabeça levantada na frente. Por seu porte, era evidente que tratava-se de um sacerdote, e pronunciou seu nome, Shakkaru, apontando a si mesmo. Com ele, chegou meia dúzia de jovens, vestidos com calças de seda, cinturões com jóias, alegres plumas e tremendo de medo. A jovem de cabelos amarelos permanecia na torre e nos disse que aqueles eram os filhos dos príncipes, e Asgrimm fê-los provar o vinho e a comida antes que nós comêssemos ou bebêssemos.

Para Asgrimm, os escravos trouxeram jarras de âmbar cheias de ouro em pó, uma capa de flamejante seda escarlate, um cinturão com uma fivela de ouro e jóias, e um enfeite para a cabeça, feito de cobre polido e adornado com penas grandes.

Balançou a cabeça e murmurou:

- O ouro falso e o brilho são pós de vaidade e dissipam-se com o passar dos anos, mas o fio da matança jamais fica cego, e o odor do sangue recém-derramado é bom para o olfato de um velho.

Mas colocou os adornos, e depois chegaram as moças – criaturas jovens e esbeltas, flexíveis e de olhos escuros, escassamente adornadas com sedas brilhantes – e ele escolheu a mais bela, embora meditabundo, feito um homem que escolhia um fruto amargo.

Havia muitas luas desde que vimos mulheres, salvo as rechonchudas criaturas, manchadas de fumaça, dos comedores de gordura de baleia. Os guerreiros agarraram as aterradas garotas com um apetite selvagem... mas meu espírito estava deslumbrado pela imagem da moça de cabelos dourados na torre. Não havia lugar em minha mente para outro pensamento. Asgrimm me pôs para vigiar os reféns e me deu ordens para matá-los sem piedade, caso o vinho ou a comida estivessem envenenados, ou se alguma mulher apunhalasse um guerreiro com uma adaga oculta, ou se os homens da cidade nos atacassem repentinamente.

Mas os homens vieram apenas recolher os corpos de seus mortos e, com grandes e estranhos rituais, cremaram-nos num grande promontório que dominava o mar.

Logo outra procissão aproximou-se de nós, mais longa e elaborada que a primeira. Os chefes dos guerreiros caminhavam aos lados, sem armas, com seus enfeites substituídos por túnicas e capas de seda. Diante deles marchava Shakkaru, levantando sua vara de marfim, e, entre as filas, jovens escravos, só com mantos curtos de plumas de ouro, levavam uma liteira de mogno polido, com dossel e incrustada de jóias.

Dentro dela, estava sentado um homem frágil, com uma curiosa coroa em sua delgada e proeminente cabeça. Junto à liteira, caminhava a moça de pele branca que havia falado da torre. Chegaram diante de nós e os escravos se ajoelharam, ainda segurando a liteira, enquanto os nobres apartavam-se para cada lado, caindo de joelhos. Somente Shakkaru e a garota permaneceram em pé.

O velho Asgrimm encarou-os, fraco, hirsuto, desconfiado, seu rosto cheio de rugas, ensombrecido pelas negras plumas que agitavam-se sobre ele. E pensei em quão natural aspecto de rei ele tinha, em pé entre seus gigantescos guerreiros e de espada na mão, comparado com o homem que repousava, estendido na liteira levada por escravos.

Mas eu só tinha olhos para a garota, que vi cara a cara pela primeira vez. Vestia apenas uma curta túnica sem mangas e com gola baixa, de seda azul, que chegava a uma mão acima dos joelhos, e nos pés usava suaves sandálias de couro verde. Tinha os olhos grandes e tranqüilos, a pele mais clara que o leite mais branco e sua cabeleira capturava o sol num ondulante brilho dourado. Havia uma suavidade em sua forma esbelta, que jamais eu tinha visto em mulher alguma dos aesires. Havia uma feroz beleza em nossas mulheres, mas esta moça era tão formosa e sem essa ferocidade. Não crescera numa terra desolada, como elas, onde a vida era uma batalha implacável pela existência, tanto para o homem quanto para a mulher. Mas não me demorei em tais pensamentos; simplesmente permaneci imóvel, deslumbrado por sua loira irradiação, enquanto ela traduzia as palavras do rei e as respostas, os roucos grunhidos de Asgrimm.

- Meu senhor lhe disse, “Escute, eu sou Akkheba, sacerdote de Ishtar e rei de Khemu. Que reine a amizade entre nós. Nós precisamos uns dos outros, pois vocês são homens que vagam cegamente numa terra desolada, como disse minha bruxaria, e a cidade de Khemu precisa de espadas afiadas e braços poderosos, pois vem contra nós um inimigo, vindo do mar, que não podemos rechaçar sozinhos. Permaneçam nesta terra, emprestem suas espadas, tomem nossos presentes para o vosso prazer e nossas jovens como esposas. Nossos escravos trabalharão por vocês, e a cada dia lhes sentarão diante de mesas que rangerão sob as carnes, os pescados, os cereais, o pão branco, os vinhos e as frutas. Usarão belos vestidos e morarão em palácios de mármore com leitos de seda e fontes brilhantes”.

Asgrimm compreendeu o discurso, pois havíamos visto as cidades da terra das palmeiras; mas só ao falar em inimigos e manejo de espadas, seus frios olhos azuis resplandeceram.

- Ficaremos. – respondeu, e rugimos nosso assentimento – Ficaremos e arrancaremos o coração dos inimigos que vierem contra nós. Mas acamparemos fora dos muros, e os reféns ficarão conosco, noite e dia.

- Está bem. – disse Akkheba, com uma régia inclinação de sua delgada cabeça.

Os nobres de Khemu ajoelharam-se diante de Asgrimm, e teriam beijado-lhe as sandálias em longas tiras. Mas ele insultou-os e recuou, aborrecido e desconfortável, enquanto seus guerreiros rugiam com áspera alegria. Depois, Akkheba regressou em sua liteira, balançando-se nos ombros de seus escravos, e nos alojamos para um longo descanso de nossas andanças. Olhei, um longo tempo, para a intérprete de cabeleira dourada, até que os portões da cidade fecharam-se atrás dela.

Assim, permanecemos fora dos muros e, dia após dia, o povo nos trazia comida e vinho; e enviaram-nos mais garotas. Os trabalhadores vieram e trabalharam nos jardins, campos e vinhedos, sem nos temerem, e as barcas de pesca zarparam... estreitas embarcações com proas curvadas e velas de seda com desenhos de listras. Finalmente aceitamos o convite do rei, e fomos numa massa compacta, os reféns no centro com espadas desembainhadas no pescoço, através das portas gradeadas de ferro, para o interior da cidade.

Por Ymir, como eram grandes os edifícios de Khemu! Com toda certeza, os senhores atuais da cidade tinham sido gerado por deuses, pois, do contrário, quem poderia erguer esses muros de basalto, com 24 metros de altura e 12 metros de base? Ou construir essa grande cúpula dourada, que erguia-se a mais de 150 metros por cima das ruas pavimentadas de mármore?

Enquanto caminhávamos pela espaçosa rua, ladeada por colunas, até a grande praça do mercado, de espadas na mão, as portas e janelas estavam cheias de rostos ansiosos, fascinados e assustados. As conversas da praça do mercado pararam de repente, quando entramos nela e as pessoas afastaram-se das barracas e pontos, para que passássemos. Estávamos alerta como tigres, e o mais leve incidente bastaria para fazer-nos explodir num repentino estalo de massacre. Mas o povo de Khemu era sábio e não houve provocação alguma.

Os sacerdotes chegaram, se inclinaram diante de nós e conduziram-nos ao grande palácio real, de mármore e pedra negra. Ao lado do palácio havia um grande pátio aberto, pavimentado com lajes de mármore, e deste pátio umas escadas de mármore, largas o bastante para subirem dez homens lado a lado, levavam até um estrado onde o rei subia ocasionalmente para dirigir-se à multidão. Esta ala era de construção mais velha que o restante do palácio e tinha um teto inclinado de pedra, cuidadosamente talhado, abrupto e empinado, que erguia-se sobre todos os outros pináculos da cidade, com exceção da cúpula dourada. A beirada desta ladeira de tijolos estava apenas alguns pés acima do estrado, e nenhum aesir jamais viu o que esta ala continha; o povo dizia que era o harém de Akkheba.

Além deste pátio, estavam as misteriosas casas, com frontispícios de colunas, dos sacerdotes inferiores, aos dois lados de uma larga rua pavimentada de mármore, e, mais além, a alta cúpula dourada que coroava o grande templo de Ishtar. Por todos os lados, erguiam-se torres resplandecentes e capitéis de safira, mas a cúpula brilhava serenamente sobre todas elas, igual à brilhante glória de Ishtar que, disse-nos Shakkaru, brilhava sobre as cabeças dos homens. Digo que Shakkaru nos disse; nos poucos dias que haviam passado entre nós, os jovens príncipes haviam aprendido muito de nosso idioma rude e simples. E, mediante sua tradução e através de sinais, os sacerdotes de Khemu conversaram conosco.

Conduziram-nos às altas portas dos templos, mas, observando através das fileiras de grandes colunas de mármore o misterioso e escuro interior, tememos uma cilada e nos recusamos a entrar. Eu procurava ansiosamente, o tempo todo, a jovem dos cabelos dourados, mas não a via em parte alguma. Não mais necessária como intérprete, o silêncio da cidade havia engolido-a.

Após esta primeira visita, voltamos ao nosso acampamento do lado de fora dos muros, mas regressamos vez ou outra, primeiro em grupos e depois, quando nossas suspeitas se acalmaram, em grupos menores ou sozinhos. Todavia, não dormíamos dentro da cidade, embora Akkheba nos convidasse a erguermos nossas tendas na grande praça do mercado, se nos desagradavam os palácios de mármore que nos oferecia. Nenhum de nós jamais havia morado numa casa de pedra ou atrás de muros altos. Nossa raça morava em tendas de peles curtidas, ou choças de barro e bambu, e nós, os da longa viagem, dormíamos sobre o solo nu tão freqüentemente quanto os lobos. Mas, de dia, vagabundeávamos através da cidade, maravilhando-nos diante de seus prodígios, tomando o que queríamos nas barracas, para desespero dos mercadores, e entrando nos palácios, com precaução, mas ao nosso bel-prazer, para sermos atendidos por mulheres que nos temiam, mas pareciam fascinadas por nós. O povo de Khemu era maravilhosamente bom para aprender; logo falavam nossa língua tão bem quanto nós, embora sua pronúncia fosse difícil para nossas bárbaras línguas.

Mas tudo isto levou tempo. No primeiro dia após visitarmos a cidade, alguns de nós voltamos a ela, e Shakkaru nos guiou ao palácio dos altos sacerdotes, que estava unido ao templo de Ishtar. Ao entrar, vi a moça dos cabelos dourados, polindo um rechonchudo ídolo de cobre com um pedaço de seda. Asgrimm pôs uma pesada mão no ombro de um dos jovens príncipes.

- Diga ao sacerdote que terei esta garota para mim. – grunhiu.

Antes que o sacerdote pudesse responder, uma raiva vermelha invadiu meu cérebro e caminhei em direção a Asgrimm, como um tigre em direção a seu rival.

- Se algum de nós tomar essa mulher, será Hialmar. – grunhi, e Asgrimm virou-se como um gato, diante do ronronar denso e assassino de minha voz.

Encaramos-nos tensamente, com as mãos nos cabos das espadas. Kelka sorriu como um lobo, e começou a deslizar em direção às costas de Asgrimm, desembainhando cautelosamente sua longa faca, quando Akkheba falou através do refém.

- Não, meus senhores, Aluna não é para nenhum de vocês, nem para qualquer outro homem. É a donzela da deusa Ishtar. Peçam qualquer outra mulher da cidade e ela será de vocês, até mesmo a favorita do rei; mas esta mulher está consagrada à deusa.

Asgrimm grunhiu e não insistiu no assunto. O mistério incensado do templo havia impressionado até mesmo sua alma feroz, e embora os aesires não considerassem em demasia os deuses de outros povos, ele não desejava, contudo tomar uma moça que havia estado em comunhão tão estreita com a divindade. Mas minhas superstições eram mais fracas que meu desejo por Aluna. Voltei novamente, vez ou outra, ao palácio dos sacerdotes e, embora não gostassem muito de minha visita, não quiseram ou não ousaram me dizer que não; e, com tão pobre fundamento, comecei meu galanteio.

O que direi de minhas habilidades para cortejar? A outra mulher, teria arrastado até minha tenda, puxando sua longa cabeleira, mas mesmo sem a proibição sacerdotal, havia algo em meu interesse por Aluna que afastava minhas mãos da violência. Cortejei-a como nós, aesires, fazemos com nossas belezas flexíveis e ferozes... ostentando proezas e com relatos de rapina e matanças. E é verdade, sem exagero, que meus relatos de batalha e massacres me atrairiam a mais esquiva das mais selvagens belezas de Nordheim. Mas Aluna era delicada e amável, e crescera no templo e no palácio, ao invés da choça de bambu e do campo gelado! Minhas ferozes fanfarrices assustavam-nas; não as entendia. E, por uma estranha perversidade da Natureza, era esta mesma falta de compreensão que tornava-a mais atraente para mim. Ao mesmo tempo, a selvageria que ela temia em mim fazia-a me olhar com mais interesse do que tinha para com os homens suaves de Khemu.

Mas, em minhas conversas com ela, tive conhecimento de sua chegada a Khemu, e sua saga era tão estranha quanto a de Asgrimm e nossa partida. Não podia dizer grande coisa de onde vivera sua infância, carecendo de conhecimentos geográficos, mas havia sido muito longe ao leste, cruzando o mar. Lembrava de uma costa desolada, açoitada pelas ondas, míseras cabanas de lama e bambu, e pessoas de cabeleira loira, como ela. Assim, cheguei a crer que ela provinha de um ramo dos aesires que indicava a migração mais ocidental de nossa raça nessa época. Tinha talvez nove ou dez anos quando fora capturada, numa incursão à aldeia por homens morenos em galeras... não sabia quem eram, e meu conhecimento dos tempos não me indica, pois na época, os fenícios ainda não haviam lançado-se ao mar, nem tampouco os egípcios. Não posso fazer mais do que supor que eram homens de alguma raça antiga, sobreviventes de outra era, como o povo de Khemu... destruídos e esquecidos diante da ascensão de raças mais jovens.

Levaram-na, e uma tormenta empurrou-lhes em direção ao oeste e sul durante muitos dias, até que sua galera encalhou nos recifes de uma ilha estranha, onde homens pintados correram até a praia e mataram os sobreviventes para seus caldeirões de cozinha. Por algum capricho, perdoaram a garota de cabelos amarelos e, colocando-a numa grande canoa com gesticulantes crânios ao longo das bordas, remaram até avistar as águas de Khemu nos altos escarpados.

Ali, venderam-na aos sacerdotes de Khemu para que fosse donzela da deusa Ishtar. Eu supunha que sua posição era sagrada e reverenciada, mas descobri que era de outro modo. O verme da suspeita removeu-se em minha alma contra os khemuri, ao dar-me conta, em suas palavras, do cruel e amargo desprezo que tinham por pessoas de outras raças mais jovens.

Sua posição no templo não era honrosa nem digna e, embora servisse à deusa, não tinha honras, exceto a de que nenhum homem, exceto os sacerdotes, podiam tocá-la. Era, de fato, uma simples criada, sujeita à fria crueldade dos sacerdotes aquilinos. Para eles, não era bela; para eles, sua alva pele e sua brilhante cabeleira dourada não eram mais que as marcas de uma raça inferior. E até eu, que não era muito inclinado a exercitar meu cérebro, tive a vaga idéia de que, se uma garota loira era tão desprezível a seus olhos, a traição devia espionar por trás das honras que rendiam a homens da mesma raça.

Através de Aluna, aprendi um pouco sobre Khemu, e algo mais dos sacerdotes e príncipes. Como povo eram muito antigos. Se proclamavam descendentes dos semilendários lemurianos. No passado, suas cidades haviam coberto o golfo sobre o qual dominava Kheum. Mas algumas foram engolidas pelo mar, algumas outras caíram diante dos selvagens pintados das ilhas e outras foram destruídas por guerras civis, de modo que agora, durante quase mil anos, Khemu havia reinado em solitária majestade. Seu único contato havia sido com o errante povo pintado das ilhas, o qual, até um ano antes, vinha regularmente em suas longas canoas de proa alta para comerciar com âmbar cinza, cocos, dentes de baleia e o coral obtido de suas ilhas; e mogno, peles de leopardo, ouro virgem, presas de elefante e minério de cobre, obtido em algum distante e desconhecido continente tropical ao sul.

O povo de Khemu era uma raça que desaparecia. Embora fossem milhares, muitos eram escravos, descendentes de mil gerações de escravos. Sua raça não era mais que uma sombra de sua antiga grandeza. Mais alguns séculos e eles se extinguiriam, mas no mar, em direção ao sul, invisível além do horizonte, aguardava uma ameaça que podia varrer a todos da existência em um só golpe.

O povo pintado havia deixado de chegar para comercializar em paz. Haviam chegado em canoas de guerra, com o estrondo das lanças nos escudos cobertos de pele, e um bárbaro cântico guerreiro. Havia surgido um rei entre eles, o qual havia unido as tribos rivais, e agora lançava-os contra Khemu... não seus antigos senhores, pois o velho império do qual Khemu fora parte havia desmoronado antes que esse povo chegasse às ilhas, desse continente distante que era o berço de sua raça. Este rei não era como eles; era um gigante de pele branca, como nós, com enlouquecidos olhos azuis e cabelos vermelhos como o sangue.

O povo de Khemu tinha visto-o. À noite, suas canoas de guerra, repletas de lanceiros pintados, haviam atracado na costa e, ao amanhecer, os assassinos subiram as passagens do escarpado, matando os pescadores que dormiam em choças ao longo da praia, massacrando os trabalhadores que se preparavam para lavrar os campos e atacando os portões. Contudo, os grandes muros resistiram, e os atacantes cansaram-se do assalto e se retiraram. Mas o rei ruivo permanecera diante dos portões, balançando pelos longos cabelos a cabeça decepada de uma mulher, e gritou seu sangrento juramento, de regressar com uma pequena frota de canoas de guerra que faria o mar enegrecer, e derrubar as torres de Khemu no pó manchado de vermelho. Ele e seus assassinos eram os inimigos que tínhamos sido pagos para combater, e aguardávamos sua chegada com selvagem impaciência.

E, enquanto esperávamos, nos acostumamos mais e mais às coisas da civilização, tanto quanto uns bárbaros podem acostumar-se em tão pouco tempo. Ainda acampávamos fora dos muros e, dentro deles, continuávamos com as espadas nas mãos, mas era mais por precaução instintiva do que por medo de traição. Até Asgrimm pareceu adormecer com uma sensação de segurança, especialmente depois que Kelka, enlouquecido pelo vinho que lhe deram, matou três khemurianos na praça do mercado e não houve vingança de sangue, nem punição, por isso.

Vencemos nossas superstições e permitimos aos sacerdotes guiar-nos à silenciosa caverna em penumbra de um edifício, que era o templo de Ishtar. Fomos inclusive ao altar secreto, cujos fogos sagrados queimavam suavemente nas trevas perfumadas. Ali, uma uivante escrava foi sacrificada no grande altar negro com veios avermelhados, ao pé das escadarias de mármore que ascendiam na escuridão, até se perderem de vista. Essas escadas levavam à morada de Ishtar, nos disseram, e por elas subia o espírito do sacrifício para servir à deusa. O que decidi que era certo, pois quando o cadáver do altar ficou imóvel e os cânticos de adoração morreram, num murmúrio de gelar o sangue, ouvi sons de pranto bem acima de nós, e soube que a alma nua da vítima contemplava, aterrorizada, a sua deusa.

Perguntei logo a Aluna se, alguma vez, ela tinha visto a deusa, e tremeu de medo, dizendo que só o espírito dos mortos via Ishtar. Ela, Aluna, jamais pusera o pé na escadaria de mármore que levava à casa da deusa. Era chamada a donzela de Ishtar, mas seus deveres eram cumprir os caprichos dos sacerdotes de rosto aquilino e das mulheres nuas de olhos malignos, que os serviam e que deslizavam como sombras escuras entre as trevas purpúreas das colunas.

Mas o descontentamento crescia entre os guerreiros, e cansaram-se da comodidade, do luxo e até das mulheres de pele escura, pois, na estranha alma dos aesires, só a sede da batalha escarlate e a vagabundagem permanecem constantes. Asgrimm conversava diariamente com Shakkaru e Akkheba sobre os tempos antigos; eu estava acorrentado pelo desejo por Aluna, e Kelka se embriagava todo dia nas tabernas, até cair inconsciente na rua. Mas os outros bradavam contra a vida que levávamos, e perguntavam a Akkheba sobre o inimigo que deveriam aniquilar.

- Tenham paciência. – disse Akkheba – Eles virão, e com seu rei ruivo entre eles.

O amanhecer ergueu-se sobre as águas resplandecentes de Khemu. Os guerreiros haviam começado a passar as noites, assim como os dias, na cidade. Eu fiquei bebendo com Kelka na noite anterior, e dormi com ele na rua, até a brisa matutina expulsar a fumaceira do vinho em meu cérebro. Procurando Aluna, desci a rua pavimentada de mármore e entrei no palácio de Shakkaru, que estava unido ao templo de Ishtar. Atravessei as grandes estâncias exteriores, onde mulheres e sacerdotes ainda dormiam, e ouvi repentinamente, atrás de uma porta fechada, o som de fortes golpes sobre delicada carne nua. Misturados com eles, havia um pranto lastimoso e uma voz conhecida que, entre soluços, pedia clemência.

A porta estava bem fortalecida, era de mogno reforçado com prata, mas arrebentei-a como se fosse uma frágil placa de madeira. Aluna encolhia-se no chão, com sua curta túnica revolta, diante de um sacerdote de rosto afilado que, com fria maldade, açoitava-a com um cruel chicote que deixava vergões vermelhos em sua carne nua. Quando eu entrei, ele virou-se e seu rosto ficou acinzentado. Antes que ele pudesse mover-se, cerrei o punho e lhe dei tal golpe que esmaguei-lhe o crânio como uma casca de ovo, além de quebrar-lhe o pescoço.

O palácio inteiro ondulava avermelhado diante de meus olhos enlouquecidos. Talvez não fosse nem tanto a dor que o sacerdote causara a Aluna – pois a dor era a coisa mais comum nessa vida feroz –, mas o modo de proprietário como havia infligido-a... o saber que os sacerdotes haviam-na possuído... todos eles, talvez.

Um homem não é melhor nem pior que seus sentimentos para com as mulheres de seu sangue, o que é a única e autêntica prova de consciência racial. Um homem se apropriará da mulher do estranho, se sentará com ele para comer carne e não sentirá inquietar-se sua consciência de raça. É somente ao ver um estrangeiro em posse de uma mulher de seu sangue, ou tentando consegui-la, que percebe a diferença entre raça e laço. Assim, eu, que apertara em meus braços mulheres de muitas raças, que era irmão de sangue de um picto, enlouqueci de fúria diante da visão de um estranho pondo as mãos sobre uma mulher aesir.

Creio que foi o fato de vê-la, escrava de uma raça estranha, e a lenta ira que isso causou, o que primeiro me levou em direção a ela. Pois as raízes do amor afundam no ódio e na fúria. E sua doçura e amabilidade, tão pouco familiares para mim, fizeram cristalizar essa primeira e vaga sensação.

Permaneci com a testa franzida diante dela, enquanto ela gemia a meus pés. Não coloquei-a de pé, nem limpei suas lágrimas como teria feito um homem civilizado. Se me ocorresse tal idéia, eu iria rechaçá-la, enfurecido, como indigna de um homem.

Enquanto permanecia assim, sem nem gritar meu nome, Kelka entrou correndo na sala, gritando:

- Eles vêm, irmão, como disse o velho! Os vigias dos escarpados correram à cidade com a notícia de que o mar está enegrecido pelas canoas de guerra!

Com um olhar para Aluna e uma desajeitada incoerência lutando para expressar-se, me virei para seguir com o picto, mas a moça se ergueu cambaleante e correu em minha direção, as lágrimas rolando por seu rosto e seus braços estendidos numa súplica.

- Hialmar! – gemeu – Não me abandone! Tenho medo! Tenho medo!

- Agora não posso lhe levar. – grunhi – A guerra e a matança estão diante de nós. Mas, quando voltar, levarei você comigo, e nem os sacerdotes de todos os deuses irão me deter!

Dei um rápido passo em direção a ela, minhas mãos estendendo-se com desejo... e me afastei, temendo machucar-lhe a carne terna, deixando minhas mãos vazias caírem aos meus lados. Permaneci atordoado por um instante, dilacerado por um desejo feroz, com a fala e a ação congeladas pela estranheza da emoção que me rasgava a alma. Depois me obriguei a ir embora e segui o impaciente picto pelas ruas.

O sol se erguia quando os aesires foram aos escarpados debrumados de escarlate, seguidos pelos regimentos de Khemu. Havíamos tirado os alegres enfeites do corpo e da cabeça, os quais usávamos na cidade. O sol nascente faiscava em nossos capacetes com chifres, couraças desgastadas e espadas nuas. Esquecidos os meses de ócio e libertinagem, nossas almas ardiam com a selvagem exultação da matança vindoura. Íamos a ela como a um banquete e, ao marchar, fazíamos entrechocar a espada e o escudo num ritmo tosco e trovejante, e cantávamos a canção de morte de Niord, que comeu o vermelho e fumegante coração de Heimdul. Os guerreiros de Khemu nos contemplavam, assombrados; e as pessoas que abarrotavam os muros da cidade, agitavam suas cabeças, perplexas, e intercambiavam murmúrios.

Assim chegamos aos escarpados e vimos, como havia dito Kelka, o mar negro de canoas de guerra, de proa alta e adornadas com crânios sorridentes. Dúzias dessas barcas já haviam atracado na praia e outras balançavam-se nas cristas das ondas. Os guerreiros dançavam e gritavam na areia, e seu clamor chegava até nós. Havia muitos, no mínimo três mil. Os homens de Khemu empalideceram, mas o velho Asgrimm riu como há muitas luas não ouvimos-no rir, e os anos caíram dele como uma capa gasta.

Havia meia dúzia de caminhos que levavam, através dos escarpados até a praia, e por eles deviam subir os invasores, pois os precipícios dos outros lados eram impossíveis de escalar. Alinhamo-nos diante desses caminhos e os homens de Khemu ficaram atrás de nós. Escasso papel tinham nessa batalha, mantendo-se na reserva para uma ajuda que não pedimos.

Os guerreiros pintados subiram, gritando em tumulto pelas passagens, e finalmente vimos o seu rei dominando suas enormes figuras. O sol da manhã brilhava em sua cabeleira com uma chama escarlate, e sua risada era como o sopro do vento marinho. Somente ele usava cota-de-malha e elmo, e em sua mão, sua grande espada brilhava com um resplendor prateado. Sim, era um dos vanires errantes, nosso parente ruivo de Nordheim. Nada sei de sua longa viagem, suas andanças e sua saga selvagem, mas deve ter sido mais feroz e estranha que a de Aluna ou a nossa. Por que loucura de sua alma, chegou a ser rei desses ferozes selvagens, não consigo imaginá-lo. Mas, quando viu que tipos de homens lhe enfrentavam, nova fúria penetrou em seus gritos e, sob suas ordens, os guerreiros coroaram as passagens como ondas eriçadas de aço.

Pegamos nossos arcos, e as flechas assobiaram em nuvens pelos desfiladeiros. As filas dianteiras foram desfeitas, as hordas recuaram vacilantes, logo se esticaram e voltaram de novo. Quebramos um ataque após outro, e um ataque após outro lançou-se pelas passagens com ferocidade cega. Os atacantes não usavam armadura, e nossas longas setas penetravam os escudos cobertos de pele como se fossem de pano. Não sabiam usar arco e flecha. Ao chegarem suficientemente perto de nós, atiraram suas lanças numa chuva uivante e alguns dos nossos morreram. Mas poucos deles chegaram a um tiro de lança, e menos ainda chegaram ao fim das passagens. Lembro de um guerreiro enorme, que chegou arrastando-se do desfiladeiro, feito uma serpente, espuma rubra escorrendo de seus lábios e as extremidades emplumadas das flechas sobressaindo de seu ventre, costela, pescoço e membros. Uivava como um cão raivoso e sua mordida agonizante arrancou o calcanhar de minha sandália, enquanto eu transformava sua cabeça numa ruína vermelha a pisadas.

Uns poucos conseguiram atravessar a chuva cegante de flechas e chegaram ao combate corpo-a-corpo, mas ali não lhes foi muito melhor. Nós, aesires, éramos muito mais fortes homem a homem, e nossas armaduras desviavam suas lanças, enquanto nossas espadas e machados trespassavam seus escudos de madeira como se fossem de papel. Mas eram tantos que, se não fosse por nossa posição vantajosa, todos os aesires teriam morrido nos escarpados e o sol poente teria iluminado as ruínas fumegantes de Khemu.

Nos mantivemos nos escarpados durante todo o longo dia de verão, até que, vazias nossas aljavas e desgastadas as cordas de nossos arcos, com os desfiladeiros cheios de cadáveres pintados, lançamos fora os arcos e enfrentamos os invasores mano a mano, lâmina contra lâmina. Haviam morrido como moscas nas passagens, embora muitos deles se encontrassem vivos, e o fogo de sua raiva só fazia arder com mais ferocidade, devido aos corpos, emplumados de flechas, que jaziam sob nossos pés.

Lançaram-se para cima, rugindo como uma onda, golpeando com lanças e com maças de guerra. Enfrentamos-nos num redemoinho de aço, fendendo crânios, afundando peitos, e ceifando membros de seus corpos e de seus ombros, até os desfiladeiros se tornarem uma confusão onde os homens, a duras penas, conseguiam conservar o equilíbrio nos caminhos inundados de sangue e abarrotados de cadáveres.

Quando cheguei ao rei dos atacantes, o sol poente lançava longas sombras através das praias escurecidas dos escarpados. O rei se encontrava num terreno plano, onde a ladeira inclinada corria horizontal num curto trecho antes de lançar-se novamente para cima. As flechas haviam ferido-o e as espadas, cortado-o, mas a enlouquecida labareda de seus olhos não havia se apagado, e sua voz de trovão continuava ameaçando seus ofegantes, cansados e cambaleantes guerreiros a seguirem adiante. Mas agora, embora a batalha continuasse raivosamente em outros desfiladeiros, ele se erguia entre um exército de mortos e só havia, junto a ele, dois enormes guerreiros, com as lanças cheias de sangue e miolos.

Kelka estava bem atrás de mim, quando me lancei em direção ao vanir. Os dois guerreiros pintados saltaram para me fechar o caminho, mas Kelka os enfrentou. Saltaram sobre ele pelos lados, com suas lanças assobiando. Mas, como um lobo que evita um golpe, ele se retorceu além das lâminas ensangüentadas e, por um instante, as três figuras pareceram dançar juntas; logo um guerreiro caiu, com o ventre aberto, e o outro caiu sobre ele, com a cabeça meio separada do corpo.

Enquanto eu saltava em direção ao rei ruivo, nós dois golpeamos ao mesmo tempo. Minha espada arrancou-lhe o elmo da cabeça e, sob seu tremendo golpe, sua espada e meu escudo se despedaçaram. Antes que eu pudesse golpear de novo, ele largou o cabo quebrado e me agarrou como o faria um urso. Soltei minha espada, inútil a tão curta distância e, abraçados, lutamos no alto do escarpado.

Estávamos igualados em força, mas a sua fluía dele com o sangue de vinte ferimentos. Lutando e ofegando devido ao esforço, balançamos-nos, fortemente agarrados, senti minhas têmporas latejarem e vi grandes veias inchando nas suas. De repente, ele cedeu e caímos de cabeça, rolando pelo desfiladeiro. Nessa luta inexorável, ninguém ousou tentar desembainhar uma adaga. Mas, enquanto rolávamos, senti que seus poderosos membros deixavam de ser tão férreos e, com uma vulcânica erupção de esforço, me coloquei em cima dele e cravei profundamente meus dedos em sua garganta nodosa. O suor e o sangue nublavam minha vista, minha respiração ofegava, mas afundei cada vez mais os dedos. Suas mãos começaram a tatear às cegas e, finalmente, com um dilacerante ofego de esforço, saquei minha adaga e afundei-a uma vez após outra, até que o gigante jazeu imóvel sob mim.

Quando me ergui, cambaleante, meio cego e tremendo pela desesperada contenda, Kelka ia cortar a cabeça do rei, mas eu o impedi.

Um grito gemente se ergueu dos invasores e, pela primeira vez, fraquejaram. Seu rei havia sido o fogo que lhes unia, como uma sentença a seu destino, durante o dia inteiro. Desfizeram repentinamente suas fileiras e fugiram pelos desfiladeiros, e derrubamos-nos enquanto fugiam. Seguimos-nos até a praia, matando-os como se fossem gado e, enquanto corriam para suas canoas e punham-nas pra flutuar, entramos na água até que esta nos cobriu os ombros, saciando nossa fúria louca. Quando os últimos sobreviventes, remando como loucos, ficaram a salvo, a praia estava cheia de formas imóveis, e corpos flutuantes bailavam sobre as ondas.

Só haviam cadáveres pintados na praia e nas águas, mas nos desfiladeiros, onde o combate fora mais feroz, jaziam setenta aesires mortos. Do restante de nós, poucos eram os que não tinham nenhuma marca ou ferimento.

Que matança, por Ymir! O sol descia no horizonte, quando regressamos dos escarpados, cansados, empoeirados e ensangüentados, com pouco fôlego para cantar, mas com o coração alegre por causa de nossas vermelhas façanhas. O povo de Khemu cantou por nós. Saíram da cidade com grande gritaria, aclamando-nos, e colocaram, a nossos pés, tapetes de seda cobertos de rosas e pó de ouro. Carregamos nossos feridos em liteiras. Mas, primeiro levamos nossos mortos à praia e quebramos canoas de guerra para fazer uma grande jangada, carregamos-na e ateamos fogo nela. E levamos o rei ruivo dos invasores, estendendo-o em sua grande canoa de guerra, com os cadáveres de seus chefes mais valentes a seu redor para servirem-no na terra das sombras, e lhe rendemos as mesmas honras que a nossos próprios homens.

Procurei ansiosamente por Aluna entre a multidão, mas não a vi. Haviam erguido tendas na praça do mercado, e ali colocamos nossos feridos, e curandeiros khemurianos foram até eles e curaram os ferimentos do restante de nós. Akkheba havia preparado um grande banquete de vitória pra nós, em seu grande salão, e lá fomos, manchados de poeira e sangue. Até o velho Asgrimm sorria como um lobo faminto, enquanto limpava o sangue seco de suas mãos nodosas e punha as vestimentas que lhe foram dadas.

Busquei um espaço entre as tendas onde jaziam os que estavam feridos demais para caminharem ou serem levados ao banquete, esperando que Aluna viesse me procurar. Mas não veio, e fui ao grande salão do rei, dentro do qual permaneciam firmes os guerreiros de Khemu... trezentos, para render mais honras aos aliados, disse Akkheba.

O salão tinha mais de noventa metros de comprimento, e a metade de largura. O chão era de mogno polido, meio coberto com espessos tapetes e peles de leopardo. Os muros eram de pedra lavrada, com muitas portas arcadas com placas de mogno, erguendo-se até um alto teto abobadado e meio cobertos com tapeçarias de veludo. Akkheba estava sentado num trono no final do salão, contemplando a festividade num estrado com um dossel e com fileiras de lanceiros emplumados a cada lado. Os aesires sentaram na grande mesa que corria ao longo de todo o salão, com suas roupas e couraças rasgadas, manchadas e empoeiradas; muitos com bandagens ensangüentadas, bebendo, rugindo e se empanturrando, servidos por escravos – tanto homens quanto mulheres – que faziam reverência.

Chefes, nobres e guerreiros da cidade, com suas armaduras polidas, estavam sentados entre seus aliados e, para cada aesir, me pareceu que havia pelo menos três ou quatro garotas, rindo, brincando e submetendo-se às suas toscas carícias. Suas gargalhadas erguiam-se agudas e estridentes sobre o clamor. Havia certa irrealidade na cena... uma leve tensão, uma alegria forçada. Mas não vi Aluna. Assim que dei a volta, entrei por uma das portas arcadas de mogno, cruzei uma câmara e entrei na outra. Estava tenuemente iluminada e quase esbarrei no velho Shakkaru. Recuou e pareceu muito incomodado por me encontrar, por algum motivo. Notei que sua mão agarrava sua túnica, a qual, segundo Akkheba, todos os sacerdotes usavam essa noite em nossa honra.

Me ocorreu uma idéia e expressei-a em voz alta.

- Quero falar com Aluna. – disse – Onde ela está?

Ele afastou-se de mim e, numa vaga palidez sob sua compleição robusta, num tremor oculto em sua voz, percebi que me tinha um medo mortal e desejava livrar-se de mim. A desconfiança do bárbaro se acendeu em meu interior. Num instante, agarrei-lhe o pescoço, arrancando de sua mão a longa lâmina de aspecto perverso que ele sacara da túnica.

- Onde ela está, chacal? – rugi – Diga-me, ou...

Pendia de minha mão feito um boneco, seus pés agitando-se longe do chão, sua cabeça jogada para trás até quase quebrar o pescoço. Com o medo da morte em seus olhos arregalados, sacudiu violentamente a cabeça, e eu afrouxei um pouco minha mão.

- No altar de Ishtar. – ofegou – Sacrificaram-na à deusa... perdoe minha vida... eu lhe direi tudo... todo o segredo e o plano.

Mas eu já ouvira o bastante. Girei-o, seguro pelo cinturão e joelho, e arrebentei sua cabeça contra uma coluna. Saltando em direção a uma porta exterior, corri entre filas de enormes pilares até chegar à rua.

Um silêncio imóvel reinava sobre todo o lugar. Não havia multidões na noite, como se havia pensado, celebrando a destruição de seus inimigos. As portas estavam fechadas, as janelas trancadas. Mal se reluzia alguma luz, e nem sequer vi uma sentinela. Tudo era estranho e irreal; a cidade, silenciosa e fantasmagórica, na qual o único som era a estridente e antinatural festa que surgia do grande salão de banquetes. Eu podia ver o brilho das tochas na praça do mercado, onde jaziam nossos feridos.

Tinha visto o velho Asgrimm sentado na cabeceira da mesa, com suas mãos manchadas de sangue, e sua cota-de-malha rota e empoeirada aparecendo sob o manto de seda que usava; suas débeis feições sombreadas pelas grandes plumas negras que ondulavam sobre sua cabeça. Ao longo de toda a mesa, as moças abraçavam e beijavam os aesires meio bêbados, tirando-lhes os pesados capacetes e despindo-lhes as cotas-de-malha, à medida que o vinho os aquecia.

Próximo ao fim da mesa, Kelka roia um grande osso de boi como um lobo faminto. Algumas garotas sorridentes importunavam-no, pedindo-lhe com mimos que lhes desse a espada, até que, repentinamente enfurecido pela festa e pelos incômodos, deu, à importunadora mais próxima, tamanho golpe com o osso, que esta caiu ao chão, morta ou inconsciente. Mas as risadas agudas e a selvagem diversão não diminuíram. De repente, me pareceram vampiros e esqueletos, rindo sobre um banquete de poeira e cinzas.

Me apressei pela rua silenciosa, cruzando o pátio e atravessando as casas dos sacerdotes, que pareciam desertas salvo pelos escravos. Entrei correndo no pórtico de altos pilares do templo... atravessei, correndo, as trevas profundas, tateando no escuro... irrompi na luz tênue do altar secreto... e parei, gelado. Sacerdotes menores e mulheres nuas cercavam o altar em posição de adoração, entoando o cântico do sacrifício, segurando taças de ouro para recolher o sangue que fluía pelos sulcos manchados na pedra. E nesse altar, gemendo em voz baixa, como um cervo agonizante, estava Aluna.

Sombria era a nuvem de incenso que escurecia o altar; vermelha como o fogo do inferno, a nuvem que cobria minha visão. Com um alarido inumano que ressoou horrivelmente na abóbada do teto, atirei-me para a frente e os crânios se partiram sob os golpes enlouquecidos de minha espada. Minhas lembranças desse massacre são caóticas e agitadas. Lembro de gritos frenéticos, o redemoinho de aço, o ruído dos cortes, o choque dos golpes assassinos, o estalar dos ossos, o respingar do sangue e a fuga atropelada de figuras, que arrancavam os cabelos e gritavam por seus deuses, enquanto fugiam... e eu entre eles, minha raiva silenciosa e letal, como um lobo, louco por sangue, no meio de cordeiros. Poucos conseguiram escapar.

Eu lembro, delineada claramente contra um confuso fundo avermelhado de loucura, uma esbelta mulher nua que estava próxima ao altar, imobilizada de terror. Uma taça nos lábios, seus olhos relampejantes, peguei-a com a mão esquerda e estatelei-a contra as escadas de mármore, com uma fúria que deve ter despedaçado todos os ossos de seu corpo. O resto, não me lembro bem. Houve uma breve e louca explosão redemoinhante de ferocidade, que semeou o altar de corpos mutilados. Depois me ergui solitário entre os mortos, num altar que era uma confusão total, com poças, manchas e regos de sangue, e fragmentos humanos espalhados horrível e obscenamente pelo escuro chão polido.

Minha espada era arrastada por uma mão repentinamente sem forças, quando me aproximei do altar com passos vacilantes. As pálpebras de Aluna se abriram trêmulas, quando olhei-a, minhas mãos pendendo frouxamente e todo o meu corpo flácido e indefeso.

- Hialmar! – murmurou ela.

Depois, suas pálpebras caíram, os longos cílios sombreando-lhe as jovens faces, e, com um leve suspiro, moveu sua cabeleira loira e inclinou-se como um menino que se dispõe a dormir. Toda minha alma agonizante gritava em meu interior, mas meus lábios permaneciam mudos com a falta de articulação do bárbaro. Caí de joelhos, junto ao altar, e, tocando vacilante sua forma delgada com meus braços, beijei lento e vacilante – como faria um jovem inexperiente – seus lábios moribundos. Esse ato – esse único e vacilante beijo – foi o único traço de ternura em toda a dura vida de Hialmar dos aesires.

Me levantei lentamente e permaneci próximo à garota morta, e, com igual lentidão, recolhi mecanicamente a minha espada. Ao contato familiar com o cabo, a fúria vermelha de minha raça brotou novamente em meu cérebro.

Dando um grito terrível, saltei para as escadarias de mármore. Ishtar! Haviam enviado seu espírito trêmulo à deusa e, seguindo esse espírito de perto, chegaria o vingador! Só a deusa sangrenta poderia pagar por Aluna. Meu culto eram os rituais simples do bárbaro. Os sacerdotes haviam me dito que Ishtar morava nas alturas e que os degraus levavam à sua residência. Eu supunha vagamente que subiam através de reinos nebulosos, de estrelas e sombras. Mas subi até uma altura que fazia a mente vacilar, até o altar debaixo de mim tornar-se um vago jogo de tênues luzes e sombras, e a escuridão me envolveu completamente.

Então, cheguei repentinamente, não a algum vasto domínio estrelado de divindades, mas a uma grade dourada e, atrás dela, ouvi uma mulher soluçar. Mas não era a alma nua de Aluna que gemia diante de algum trono divino, pois, morta ou viva, eu conhecia seu pranto.

Louco de fúria, agarrei as barras, que torceram-se e partiram-se em minhas mãos. Afastei-as como fibras de palha e cruzei-as de um salto, com meu grito de matança tremendo na garganta. Na tênue luz, vinda de uma tocha num nicho alto, vi que eu estava numa câmara circular com uma cúpula, cujos muros e teto pareciam ser de ouro. Havia ali leitos de veludo e almofadas de seda, e entre eles jazia uma mulher nua, chorando. Vi os vergões de um chicote em seu corpo alvo e parei, assombrado. Onde estava a deusa Ishtar?

Devo ter falado em voz alta no meu khemuriano bárbaro, pois ela levantou a cabeça e olhou pra mim com olhos escuros e brilhantes, inundados de lágrimas. Havia nela uma estranha beleza, algo exótico e distante, além do meu entendimento.

- Sou Ishtar. – ela me respondeu, e sua voz era como o som de distantes sinos dourados, ainda que quebrada pelo pranto.

- Você... – ofeguei – Você é Ishtar... a deusa de Khemu?

- Sim! – ela disse, ao mesmo tempo em que se ajoelhou, retorcendo suas mãos brancas – Oh, homem... quem quer que você seja... conceda-me um pouco de clemência, se ainda resta clemência no mundo! Corte minha cabeça e acabe com esta longa agonia!

Mas eu recuei e abaixei a espada.

- Vim para matar uma deusa ensangüentada. – grunhi – E não para degolar uma escrava soluçante. Se você é Ishtar... quem... onde... em nome de Ymir, que loucura é esta?

- Escute, e eu lhe falarei! – gritou, arrastando-se de joelhos em minha direção e agarrando minha couraça – Limite-se a ouvir, e depois conceda-me o pouco que peço... o golpe de sua espada!

“Sou Ishtar, filha do rei da obscura Lemúria, a que o mar engoliu há muito tempo. Quando menina, me casaram com Poseidon, deus do mar, e, na pavorosa e enigmática noite nupcial, quando jazia flutuando e sem dano algum sobre o seio do oceano, o deus concedeu-me o dom da vida eterna, que chegou a tornar-se maldição nos longos séculos de meu cativeiro.

“Mas vivi na purpúrea Lemúria, jovem e bela, enquanto minhas companheiras de jogos cresciam e envelheciam ao meu redor. Logo Poseidon se cansou da Lemúria e da Atlântida. Ergueu-se e sacudiu sua cabeleira espumante, e seus brancos corcéis correram sobre os muros, os pináculos e as torres escarlates. Mas me levantou suavemente sobre seu seio e me levou intacta a uma terra distante, onde vivi entre uma raça estranha e benevolente.

“Então, num dia infeliz, abordei uma galera da distante Khitai e, num furacão, afundou diante desta costa maldita. Mas, como antes, fui levada à costa sobre as ondas de meu senhor, Poseidon, e os sacerdotes me encontraram na praia. O povo de Khemu se diz descendente da Lemúria, mas era uma raça de súditos, falando uma língua mestiça. Quando falei com eles em Lemuriano puro, disseram ao povo que Poseidon havia enviado-lhes uma deusa, e o povo caiu de joelhos e me adorou. Mas os sacerdotes de então eram tão diabólicos quanto agora, necromantes e adoradores do demônio, não tendo deus algum, exceto os demônios dos Golfos Exteriores. Me trancaram nesta cúpula dourada e, usando da crueldade, arrancaram meu segredo.

“Durante mais de mil anos, fui adorada pelo povo, a quem às vezes permitiam ver-me de longe, de pé na escadaria de mármore, meio oculta pela fumaça do sacrifício, ou lhes permitiam ouvir minha voz, falando numa língua estranha como um oráculo. Mas os sacerdotes... oh, deuses de Mu, como tenho sofrido em suas mãos! Deusa do povo... escrava dos sacerdotes!”.

- Por que não os destruiu com sua bruxaria? – perguntei.

- Não sou uma bruxa – ela respondeu –, embora pudesse me ter como tal, se eu lhe contasse os mistérios que as eras me revelaram. Mas há um feitiço que eu poderia invocar... uma maldição terrível e esmagadora... se eu pudesse escapar desta prisão... se eu pudesse me erguer nua, sob o amanhecer e invocar Poseidon. Nas noites tranqüilas, eu ouço-o rugindo além dos escarpados, mas ele dorme e não ouve minhas chamadas. Mas, se eu pudesse estar diante da sua presença e chamá-lo, ele poderia ouvir-me e atender-me. Os sacerdotes são astutos... me afastaram de seus olhos e de seus ouvidos... durante mais de mil anos, não contemplei o grande monstro azul...

De repente, nos sobressaltamos os dois. Da cidade, bem abaixo de nós, erguia-se um clamor estranho e selvagem.

- Traição! – exclamou – Estão matando sua gente nas ruas! Vocês destruíram os inimigos que temiam... agora, voltam-se contra vocês!

Lançando uma maldição, desci correndo as escadarias, dei um último olhar angustiado à alva forma imóvel no altar e saí correndo do templo. Da rua, além das casas dos sacerdotes, erguia-se o entrechocar do aço, uivos de morte, gritos de fora e os trovejantes gritos de guerra dos aesires. Não morriam sozinhos. Os gritos de ódio e triunfo dos khemurianos mesclavam-se a outros, de medo e dor. Diante de mim, a rua, já não silenciosa e abandonada, fervia de homens combatendo. Das entradas das tendas, casebres e palácios, surgiam iguais enxames de uivantes habitantes da cidade, armados, para ajudarem seus soldados, que travavam uma louca batalha contra os estrangeiros de cabelos amarelos. Chamas de uma centena de fogueiras iluminavam a cena frenética, como se fossem a luz do dia.

Ao aproximar-me do pátio, que estava ao lado do palácio do rei, ao longo das ruas onde corriam homens berrando, um guerreiro aesir aproximou-se de mim, cambaleante, longe da tormenta da batalha que agitava-se à distância. Vinha sem armadura, quase encurvado, e, embora sobressaísse uma flecha de suas costas, era o próprio ventre que ele apertava com as mãos vazias.

- O vinho estava envenenado. – grunhiu – Fomos traídos e condenados. Bebemos muito e, com nossas taças, as mulheres nos seduziram para nos livrarmos de nossas espadas e armaduras. Só Asgrimm e o picto não as entregaram. Então, as mulheres fugiram repentinamente, aquele velho abutre do Akkheba abandonou o salão do banquete... e as dores nos atacaram! Oh, Ymir, minhas entranhas se retorcem como uma corda cheia de nós! Então as portas se abriram de repente e enxames de arqueiros lançaram suas flechas sobre nós... os guerreiros de Khemu desembainharam suas espadas e caíram sobre nós... os sacerdotes que enchiam o salão sacaram lâminas ocultas de suas túnicas. Escute a gritaria na praça do mercado, onde cortam as gargantas dos feridos! Ymir, um homem pode rir do aço frio, mas isto... isto... oh, Ymir!

Caiu sobre o piso, curvado como um arco, a espuma escorrendo de seus lábios e seus membros retorcendo-se em horríveis convulsões. Corri ao pátio. Na extremidade mais afastada, diante da rua em frente ao palácio, havia uma massa de figuras que lutavam.

Multidões de homens de pele escura com armaduras lutavam contra gigantes seminus de cabelos amarelos, que golpeavam e dilaceravam como leões feridos, embora suas únicas armas fossem bancos quebrados, armas arrebatadas de inimigos agonizantes ou suas mãos nuas, e cujos lábios estavam manchados com a espuma da agonia que amarrava suas estranhas. Juro por Ymir que não morreram sós; seus pés pisavam corpos mutilados, e eram como bestas selvagens cuja ferocidade não é satisfeita até extinguir-se a última e diminuta faísca de vida.

O grande salão do banquete ardia. À sua luz, vi sobre o estrado que erguia-se acima do combate, o velho Akkheba estremecendo-se de terror ante sua própria traição, com dois guardas robustos nos degraus sob ele. A luta havia se espalhado por todo o pátio e eu vi Kelka. Estava bêbado, mas isso não mudava suas qualidades mortíferas. Era o centro de um nó convulso de figuras que lutavam e cortavam, e sua longa faca se movia velozmente à luz do fogo, enquanto destroçava gargantas e ventres, derramando sangue e vísceras sobre o piso de mármore.

Com um rugido rouco e repentino, avancei sobre eles e, num instante, nos erguemos sozinhos, cercados por um anel de cadáveres.

Sorriu como um lobo, seus dentes rangendo espasmodicamente.

- Havia um demônio no vinho, Hialmar! Arranha minhas entranhas como um gato selvagem... venha, vamos matar mais alguns antes de morrer. Veja... o Velho luta seu último combate!

Dei uma rápida olhada no lugar onde, bem na frente do incendiado salão de banquetes, a frágil figura de Asgrimm se erguia sobre a matilha revolta. Vi o relâmpago de sua espada e os homens que caíam a seu redor. Por um instante, suas plumas balançaram-se sobre a horda... logo se desvaneceram e, sobre o lugar onde estava, fluiu a horda escura.

No momento seguinte, eu estava saltando em direção às escadarias de mármore, com Kelka atrás de mim. Ceifamos a fila de guerreiros nos degraus inferiores e atravessamos. Apareceram atrás de nós para nos fazer descer, mas Kelka se virou e sua longa lâmina investiu mortalmente com eles. Caíram sobre ele, de todas as direções, e ali morreu ele como vivera: apunhalando e matando em silencioso frenesi, sem pedir nem dar trégua.

Subi os degraus aos saltos, e o velho Akkheba berrou diante da minha chegada. Havia deixado minha espada quebrada enfiada no osso peitoral de um guarda. Com as mãos nuas, avancei sobre os dois guardas nos degraus superiores. Saltaram para me enfrentarem, dando navalhadas. Agarrei a lança de um e lancei-o de cabeça pelas escadarias, para que seus miolos arrebentassem ao final delas. A lança do outro atravessou minha cota e o sangue escorreu sobre a haste. Antes que pudesse soltá-la para um segundo golpe, agarrei-lhe o pescoço e quebrei-o com meus dedos. Retorcendo, em seguida, a lança e atirando-a para um lado, corri na direção de Akkheba, que gritou e ergueu-se de um salto, agarrando a beirada lavrada do curvo teto de pedra atrás do estrado. A loucura do terror deu forças e qualidade ao velho. Trepou pela inclinação feito um macaco, agarrando-se, com mãos e pés, aos adornos esculpidos e uivando o tempo todo, feito um cão espancado.

E eu lhe segui. Minha vida escapava pelo ferimento sob minha cota-de-malha. Estava empapado de sangue, mas minha vitalidade de fera selvagem não havia diminuído. Mais e mais para cima, subiu gritando e, cada vez mais pra cima, nos erguemos sobre a cidade, até balançarmos precariamente sobre o telhado, mais de cento e cinqüenta metros acima das ruas uivantes. E então ficamos imóveis, caça e caçador.

Um grito estranho e fantasmagórico soou acima do tumulto infernal, que exaltava-se sob nós, e acima dos gritos frenéticos de Akkheba. Sobre a grande cúpula dourada, bem acima de todas as outras torres, erguia-se uma figura nua, o cabelo voando ao vento do amanhecer, delineada pelo brilho vermelho da aurora. Era Ishtar, agitando os braços e gritando uma frenética invocação numa língua estranha. Nos chegou muito debilmente. Havia escapado da prisão dourada que eu quebrara. Agora erguia-se sobre a cúpula, chamando o deus de seus pais, Poseidon!

Mas eu tinha minha própria vingança para consumar. Me preparei para o salto que levaria a nós dois numa queda de cento e cinqüenta metros, para nos esborracharmos na morte... e, sob meus pés, a sólida construção se moveu. Um novo frenesi soou nos gritos de Akkheba. Com um estrondo de trovões, os distantes escarpados caíram ao mar. Houve um longo e cataclísmico choque, como se o mundo se despedaçasse, e, diante dos meus olhos assombrados, toda a vasta planície ondulou, cedeu e afundou em direção ao sul.

Grandes abismos se abriram na planície que se inclinava e, repentinamente, com um ruído indescritível, um ranger de trovões, e um estrondo de muros que caíam e torres que se inclinavam, toda a cidade de Khemu se moveu! Deslizava-se, numa vasta e caótica ruína, para o mar que erguia-se e inchava-se para acolhê-la! Nesse horror deslizante, uma torre chocava com outra, dobrando-se e desmoronando, reduzindo insetos humanos que gritavam a pó vermelho, esmagando-os com pedras que caíam. Onde eu havia contemplado uma cidade arrumada, com muros, tetos e pináculos, tudo era um louco, retorcido, dobrado e quebradiço caos de pedra trovejante, onde os capitéis balançavam loucamente sobre as ruínas e caíam entre estrondos. A cúpula ainda cavalgava sobre a catástrofe, sobre a cúpula a figura alva continuava gritando e gesticulando. Logo, com um rugido espantoso, o mar se deslocou e se ergueu, e grandes tentáculos de espuma verde se curvaram, altos como montanhas, e caíram rugindo sobre as ruínas que deslizavam, subindo cada vez mais alto, até que todo o lado sul da cidade esmagada foi escondido pelas águas verdes que se revolviam.

Por um instante, o velho telhado que agarrávamos ergueu-se sobre as ruínas, mantendo sua posição. E, nesse momento, saltei e agarrei o velho Akkheba. Seu grito de morte ressoou em meus ouvidos enquanto, sob meus dedos de ferro, senti sua carne ser esmagada como polpa apodrecida, seus tendões saltarem-lhe dos ossos e os próprios se estilhaçarem.

Os estrondos do mundo que se quebrava ressoavam em meus ouvidos, as agitadas águas esverdeadas estavam a meus pés, mas, enquanto a terra inteira parecia desmoronar e quebrar-se, enquanto a construção se desfazia sob meus pés e as trovejantes marés verdes me submergiam, afogando-me em indizíveis profundidades cintilantes, meu último pensamento foi que Akkheba morrera sob minhas mãos, antes que uma só onda o tocasse.


Me levantei, com um grito, as mãos estendidas como que para afastar as ondas trovejantes. Hesitei, atordoado pela surpresa. Khemu e o passado haviam se desvanecido. Eu estava na colina coberta de carvalhos e o sol pendia à altura de uma mão sobre os carvalhais ressecados. Só se passaram segundos desde que a mulher fizera aquele gesto diante dos meus olhos. Agora continuava me olhando com esse enigmático sorriso, que tinha menos de zombaria que de compaixão.

- O que é isto? – exclamei aturdidamente – Era Hialmar... sou James Allison... o mar era o Golfo... as Grandes Planícies corriam então até a costa, e na costa se erguia a cidade maldita de Khemu. Não! Não posso crer-lhe! Não consigo crer em minha própria razão. Você me hipnotizou... me fez sonhar...

Ela negou com a cabeça.

- Tudo passou há muito, muito tempo, Hialmar.

- Então, o que foi feito de Khemu? – exclamei.

- Suas ruínas dormem nas profundas águas azuis do Golfo, onde foram submersas nas longas eras que passaram depois da terra abrir-se, antes que as águas recuassem e deixassem estas longas estepes ondulantes.

- Mas, o que foi da mulher, Ishtar, sua deusa?

- Não era acaso a noiva de Poseidon, que ouviu seu grito e destruiu a maligna cidade? Ele levou-a, sem dano algum, sobre seu seio. Não podia morrer, era eterna. Vagou por muitas terras e viveu entre muitos povos, mas havia aprendido sua lição e ela, que havia sido escrava dos sacerdotes, transformou-se em sua senhora. Ela que havia sido uma deusa de aparência cruel, transformou-se em deusa por direito próprio, por força de sua antiga sabedoria.

“Foi Ishtar dos assírios e Ashtoreth dos fenícios; foi Militta e Belit dos babilônios, e Derketo dos filisteus. Sim, e ela foi Ísis dos egípcios e Astarté de Cartago; foi Freya dos saxões, Afrodite dos gregos e Vênus dos romanos. As raças chamam-na com muitos nomes e adoram-na de muitos modos, mas é uma só e os fogos de seus altares não se apagaram”.

Enquanto falava, ergueu seus límpidos e luminosos olhos escuros em minha direção; o último e pálido brilho do crepúsculo se refletiu na glória ondulante de sua cabeleira, negra como a noite, emoldurando a estranha beleza de seu rosto, distante e exótico além do meu entendimento. E um grito brotou de meus lábios.

- Você! Você é Ishtar! Então é verdade! E você é imortal... é a Mulher Eterna... a raiz e o broto da Criação... o símbolo da vida imperecível! E eu... eu era Hialmar, e conheci o orgulho, a batalha e terras distantes, e a brilhante glória da guerra...

- Tão certo quanto voltarás a conhecê-la, oh, fatigado – ela disse calmamente –, quando, dentro em pouco, abandonares esta máscara torta de carne quebrada e vestires um novo adorno, brilhante e esplendoroso como a armadura de Hialmar!

Então caiu a noite, e não sei pra onde ela foi, mas eu me sentei solitário na espessura da colina e o vento noturno subiu sussurrando das dunas arenosas e dos pequenos bosques ressecados, e murmurou entre os galhos tristes dos carvalhos murchos.


FIM




Tradução: Fernando Neeser de Aragão


Fonte: http://www.ebooket.net/
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