Introdução:
O conto a seguir foi baseado em conceitos apresentados nas versões originais de “A Rainha da Costa Negra” (Conan – Espada e Magia # 4) e “Revolução na Cidade Maldita” (Conan – Espada e Magia # 3), bem como nos contos “Os Tambores de Tombalku”, “As Jóias de Gwahlur” e “A Cidadela Escarlate”, além do ensaio “Anais da Era Hiboriana – parte 2” (estes quatro últimos textos, disponíveis neste site).
Embora a versão em quadrinhos de “A Rainha da Costa Negra” – uma saga de 42 capítulos, feita por Roy Thomas – esteja bem escrita, notei algumas falhas na mesma, como a desnecessária livre-adaptação de “Marchadores de Valhalla”, de Howard, em dois de seus capítulos (ESC 48), e, sobretudo, a inclusão, na ESC 55, de mercenários hirkanianos em Pelishtia antes da chegada de Akhirom (contradizendo frontalmente o que está escrito na pág. 72 de “Conan – Espada e Magia # 3” e me levando a omitir uma série de capítulos da saga, em minha Cronologia).
Como a versão que Roy Thomas fez do passado da pirata (publicada em ESC 41 e republicada em CBM 34) é a nascente de um rio de aventuras que desemboca na já desconsiderada “Barbarismo em Shem” (ESC 55), resolvi, ao apresentar os personagens, narrar a origem de Bêlit, baseado na concepção do cronista Dale Rippke, no ensaio “The Mystery of Belit” (O Mistério de Bêlit).
Aproveitei, também, para desenvolver duas pequenas referências a esta fase, feitas nos já citados contos de Howard – e omitidas por Roy Thomas na sua versão em quadrinhos. Espero que este conto, narrado em primeira pessoa por um coadjuvante – sobrevivente não apenas do principal episódio da aventura –, possa agradar aos conanmaníacos mais exigentes e detalhistas, e que possa tornar mais suportável a longa espera pela adaptação que a Dark Horse fará de “A Rainha da Costa Negra”.
Personagens:
- Conan da Ciméria: Também chamado de Amra, pelos corsários negros desta aventura, ele dispensa apresentações.
- Bêlit: Filha dos reis de Asgalun, ela foi raptada de seu palácio por piratas zíngaros, durante um ataque-surpresa à costa shemita, e transformada em amante do capitão. O navio zíngaro, de nome Tigresa, desceu a Costa Negra, em busca de mercadores stígios, para o comércio, e cidades desprotegidas, para o saque, até encontrar amigáveis reinos nativos entre as Ilhas do Sul, onde construíram uma base de operações. Então, os raptores da ex-princesa começaram a recrutar os negros daquelas ilhas, para preencherem a tripulação. Anos mais tarde, o capitão zíngaro perdeu a vida em alto-mar, durante incursão mal-sucedida a um dos Reinos Negros, ao norte, onde vários zíngaros tiveram o mesmo destino do amante de Bêlit. Esta assumiu o comando do Tigresa, através da sua habilidade em navegar e ler mapas e cartas, recrutando outros homens das Ilhas Prateadas, até a tripulação da nau ficar totalmente composta por negros, sob o comando da jovem shemita. Tida como deusa pelos piratas negros – devido às já citadas habilidades –, Bêlit passou a ser conhecida como A Rainha da Costa Negra, saqueando, não apenas os Reinos Negros, mas também os navios e cidades costeiras da Stygia, de Shem, Argos e Zingara. Entretanto, alguns dos seus comandados começaram a questionar-lhe a habilidade como líder. Então, a deusa Ishtar sorriu para Bêlit, enviando-lhe um “Adônis cimério”...
- N’Gora: Um dos subchefes dos lanceiros negros, que obedece apenas a Conan e Bêlit.
- N’Yaga: Xamã e curandeiro do navio Tigresa.
- Sakumbe: Nascido no reino negro de Suba, ele era um aventureiro e traficante, quando conheceu o pirata “Amra”. Anos mais tarde, Sakumbe se tornaria rei da cidade de Tombalku.
- Zinoatim: Narrador e ao mesmo tempo personagem da aventura. Este foi criação minha, não havendo qualquer referência a ele na saga de Conan.
- Ruthyan: Rainha de Asgalun e irmã de Bêlit, foi também criada por mim.
Conan e Bêlit – Traição em Asgalun
(por Fernando Neeser de Aragão)
Meu nome é Zinoatim. Nasci em Asgalun, capital de Pelishtia, há 1800 anos. Não conheci minha mãe (ela adoeceu e morreu, um ano depois que nasci), mas fui criado como shemita puro, apesar de minha genitora ser khitaiana. Graças a Ishtar, eu já conhecia o segredo da longevidade, quando, ainda jovem, fui escravizado pelos gazalis, um povo hiboriano pouco miscigenado, de Koth.
Fui levado, com centenas de outros escravos, para Shem, Stygia e Kush, até chegar ao deserto que separava este último reino do país de Darfar. Nossos senhores, os gazalis, haviam sido expulsos pelo rei de Koth, porque pretendiam restaurar o culto a Mitra. E, graças aos deuses, éramos bem-tratados – apesar de sermos escravos – por aquela gente de pele alva.
Encontramos uma cidade em ruínas no deserto e a reconstruímos: os gazalis, com seu conhecimento arquitetônico, e nós, com nossa força braçal. Cem anos depois, um horror desconhecido, inexplicável e sem nome tomou conta de todos nós, e fugimos quase todos para o sul, abandonando a cidade. Embora com um século de vida terrena, eu parecia ter apenas 20 anos e, ao invés de ir para o sul, viajei para o norte. Fui escravizado pelos stígios, fugi, visitei a terra de minha mãe, no Oriente distante, viajei muito mais do que qualquer outra pessoa da raça de meu pai ou de minha mãe.
Embora criado como sábio em Shem Ocidental, eu também gostava de batalhas, bebidas e mulheres, muitas mulheres... Fui mercenário incontáveis vezes e, embora magro, meus músculos eram ágeis e resistentes; e apesar de não ser muito alto, já despachei, em duelos e batalhas, vários brutamontes para a outra vida. O vinho kyrio era meu predileto... me fazia lembrar de minha terra natal, a qual eu visitava esporadicamente; e as mulheres... de qualquer cor, desde que tivessem curvas redondas e macias.
Foi então que após nove longos – e intensos – séculos de aventura na face da terra, conheci, na costa de meu país, um homem cujo nome já era lenda naquela era, à qual os nemédios chamavam de “Hiboriana”.
Eu estava, mais uma vez, na minha Asgalun natal, cidade dos belíssimos afrescos e de sábios que, como eu, conheciam o segredo de uma longevidade secular. Eu já ouvia boatos a respeito de uma irmã raptada da rainha Ruthyan, mas nunca os associei àquele enorme navio pirata, chamado Tigresa, que se aproximava da praia próxima que eu tinha ido visitar.
Por um momento, pensei em fugir de volta a Asgalun, para alertar a cidade e me refugiar nela. Mas, minha curiosidade foi maior e observei, próximo a um dos monólitos que separavam a praia da cidade, esperando ver o que ocorria.
O navio ancorou e vi duas figuras saírem dele. Era um casal, que, por ser branco, se destacava do resto da tripulação, de cor negra. A mulher, apesar da pele alva, usava a mesma roupa das nativas negras do sul: um colar fino, de feitio tão simples quanto as pulseiras, sandálias e tornozeleiras que lhe adornavam o corpo de marfim, e um saiote de seda nos quadris. Por todos os deuses, ela parecia a personificação de Ishtar, a deusa suprema do meu povo! Sua cabeleira, tão negra quanto a noite stígia, caía-lhe em cachos ondulados sobre suas costas brancas e macias. O corpo era esguio e voluptuoso ao mesmo tempo; e, mesmo de longe, dava para ver que os alvos seios nus eram grandes e firmes. O homem, por sua vez, tinha a pele bronzeada e era quase um gigante, tanto em estatura quanto em musculatura. Um elmo aesir com chifres de touro cobria-lhe a cabeleira, que embora menos comprida que a da mulher a seu lado, era tão negra quanto a da líder seminua; seu poderoso corpo era coberto por uma longa armadura de cota-de-malha negra, a proteger-lhe o tronco, braços e ambas as pernas. Um par de grevas metálicas lhe protegia, dos joelhos aos tornozelos, e uma longa capa escarlate pendia-lhe dos ombros, esvoaçando ao sabor da brisa marinha e do vento de primavera.
Ambos estavam com as espadas desembainhadas – ele, com uma longa e azulada espada reta, de duas lâminas, e ela com um sabre – e, pelo porte e andar, via-se que eles haviam nascido para a liderança. E era o que faziam. Embora um jovem negro, sem plumas na cabeça, chefiasse parte dos lanceiros presentes, ele obedecia diretamente àquele casal – que eu já percebera ser Amra e Bêlit, devido ao seu aspecto e às dezenas de guerreiros negros e seminus, que desciam à praia.
Antes que eu resolvesse me esconder, os agudos e vulcânicos olhos azuis do gigante bronzeado me viram e este dirigiu-se a mim.
- Alto lá! Quem é você e o que faz aqui? – perguntou o moreno de nome Amra, falando o Shemita num sotaque que me era desconhecido, e que embora semelhante ao acento dos poucos aesires e vanires, que encontrei pelo mundo (e cujas terras bárbaras do Norte eu jamais ousei visitar), possuía algumas diferenças. Somente mais tarde, vim saber que aquele líder guerreiro era nascido na distante Ciméria, terra vizinha à Nordheim natal dos vanires e aesires.
Sem perder a calma, me identifiquei.
- Sou Zinoatim. Estou aqui de passagem.
A mulher tomou a frente e, com uma das mãos, agarrou a gola da minha camisa. Seu rosto jovem era bonito, mesmo crispado pela fúria e com a ferocidade brilhando em seus negros olhos de azeviche, que me encaravam a poucos centímetros da face.
- Seu hirkaniano mentiroso! Você é algum espião? – bradou a mulher, cuja fala, em Shemita sem sotaque, indicava claramente que se tratava de uma conterrânea minha.
No momento seguinte, o bárbaro de nome Amra tomou a frente e pediu a Bêlit que me soltasse. Percebia-se que, embora pouco mais velho que a companheira, o cimério era menos precipitado que ela.
- Tenha calma, mulher... Primeiro, nós não sabemos se ele é hirkaniano. Apesar do aspecto oriental, ele fala sua língua sem nenhum sotaque.
- Sou daqui de Pelishtia. Tenho este aspecto porque minha mãe era de Khitai.
Tendo ouvido rumores de que Amra – “Leão”, no dialeto kushita – não costumava matar pessoas desarmadas, sorri e lhe ofereci a possibilidade de entregar-lhe a cimitarra que eu levava embainhada na minha cintura.
- Não precisa se desarmar. Você sabe que, qualquer movimento que fizer em direção à sua arma, lhe deixará perfurado por uma dúzia de lanças... Se a minha espada ou a dela não chegarem primeiro.
Percebi, então, que apesar da ameaça velada que fizera, o bárbaro do Norte – ao contrário dos corsários negros e, mais ainda, de Bêlit – demonstrava mais curiosidade que desconfiança nos intensos olhos azuis, que brilhavam em seu moreno rosto cicatrizado.
Contei-lhes minha história e percebi que a desconfiança aparecia no olhar daquele gigante em malha metálica, ao mesmo tempo em que diminuía nos olhos da jovem seminua. Ela explicou ao companheiro que, de fato, existiam naquela cidade sábios que prolongavam suas vidas para muito além do normal. O cimério resmungou qualquer coisa num idioma desconhecido – provavelmente o dele –, mas não pareceu duvidar do que ouviu. Ele também parecia ter viajado muito, embora não devesse ter mais do que 25 anos. As suas roupas, armas e acessórios vinham de países ocidentais distantes uns dos outros.
Dentre todos os presentes, havia um negro no parapeito do navio, aparentando uns trinta anos e que, desde o início, não parecia desconfiado como os outros. Aliás, pequenos detalhes, não apenas físicos, mas também na maneira bem-humorada e no olhar debochado, indicavam que aquele homem não era da mesma região onde nasceram os outros piratas.
- Bem... – disse a mulher, aproximando-se de mim sem fúria e bem menos desconfiada, com as mãos nos quadris e os ombros para a frente, a salientarem o balanço do busto alvo e dos quadris redondos – Temos uma missão para você, Zinoatim. Talvez, nesta última estadia em Asgalun, você tenha ouvido falar que os pais da rainha Ruthyan morreram aqui nesta praia, alguns anos atrás, assassinados por piratas zíngaros, e que a filha mais velha daquele casal real desapareceu e foi dada como morta.
Balancei a cabeça afirmativamente, e acrescentei:
- Também soube que Ruthyan tinha apenas dez anos de idade naquela época. Foi graças a um primo, o príncipe Uriaz, que ela tem conseguido governar sabiamente a cidade.
- Bom – sorriu ela –, o certo é que a irmã mais velha de Ruthyan não morreu. Aquela adolescente foi transformada em amante do capitão, e ele recrutou lanceiros negros entre as ilhas do sul...
Uma leve desconfiança passou por minha cabeça.
- Anos mais tarde, o capitão zíngaro, assassino dos pais da moça, perdeu a vida, juntamente com vários de seus vermes conterrâneos, num ataque mal-sucedido a um Reino Negro, e a tripulação do navio ficou composta apenas por negros, sob o comando daquela jovem shemita. Ela sabia navegar e ler mapas e cartas, e graças a isso assumiu o comando da nova tripulação. O nome dela era Bêlit, a Rainha da Costa Negra, com quem você está falando agora.
Fiquei espantado. Por Ishtar! Então, aquela pirata e a princesa desaparecida de Asgalun – para uns, raptada, e para outros, morta – eram a mesma pessoa!
- E, depois que a deusa Ishtar me presenteou com este “Adônis cimério”, meus saques aumentaram. Agora, tenho riquezas suficientes para comprar meu trono de volta. – e, sorrindo novamente, ela concluiu: – N’Gora vai lhe acompanhar até Asgalun, onde você irá preparar meu caminho de volta ao palácio e ao trono. Vocês dois espalharão para toda a cidade que “A irmã da rainha Ruthyan está viva e irá voltar”. Eu, Amra e os piratas vamos nos encarregar do restante.
Foi então que eu percebi a enorme semelhança física entre Ruthyan e Bêlit. Era como se eu estivesse vendo a própria rainha, alguns anos mais velha e, claro, com muito menos roupas.
Então, o jovem negro bem-humorado, de olhar debochado, abriu um sorriso e desceu pulando do parapeito do Tigresa.
- Também quero ir, Amra! – gritou ele – Deixe-me ajudar os dois!
Embora com 30 anos, aquele esbelto negro sorridente tinha o mesmo espírito aventureiro e bem-humorado de um adolescente.
- Eu também quero ver se consigo vender um pouco do marfim que contrabandeei na Costa Negra... – ele acrescentou, com um sorriso malandro.
O cimério quase gargalhou, enquanto dizia:
- Você não perde tempo, heim? Está bem, Sakumbe, pode ir com N’Gora e Zinoatim.
Bêlit parecia não confiar muito no homem a quem Amra chamara de Sakumbe, mas um afago de seu amante cimério, em seus longos cabelos e no pescoço ebúrneo, fê-la sorrir, contagiada pelo bom-humor de ambos – o cimério Amra e o suba Sakumbe.
* * *
“A irmã de Ruthyan está de volta!”. A frase, semeada pelos becos e tabernas de Asgalun, espalhou-se rapidamente pela cidade, até chegar aos ouvidos da rainha e de seu primo, o príncipe Uriaz.
Tudo isso, eu fiquei sabendo nos dias seguintes, enquanto Bêlit, já pronta para adentrar a sua cidade natal, arrumara o corpo com um belíssimo vestido branco, de cinto prateado; um longo manto de cetim azul nas costas; e, para realçar a exuberância de seus trajes suntuosos, uma faixa prateada em sua cabeça prendia-lhe os longos e brilhantes cabelos negros.
Segundo ouvi nas proximidades do Grande Palácio, a rainha parecia empolgada em saber da possibilidade de sua irmã Bêlit estar viva. Uriaz, por sua vez, de acordo com os comentários dos guardas, parecia cauteloso e desconfiado.
Após voltar à praia, ouvi, numa noite, o chefe de nome Amra comentar com Sakumbe sobre o fato de não gostar muito de ser consorte, ao invés de rei como sempre sonhara. Entretanto, o guerreiro da Ciméria já vivia há mais de um ano guerreando, pilhando, lutando e vivendo aventuras ao lado daquela mulher, com quem fazia amor quase todos os dias, e cujo sentimento por ela se aprofundava mais e mais.
Então, vi a fogueira iluminar o sorriso alvo daquele musculoso cimério seminu, quando ele acrescentou ao suba:
- Ao lado de uma mulher como ela, eu aceitaria até mesmo ser um simples soldado da guarda do Palácio Real!
De onde eu estava, ouvindo N’Gora me narrando o ataque a Khemi, na Stygia, sorri admirado. Eu nunca tinha visto Amra tão sorridente e com ar tão apaixonado.
* * *
Na manhã seguinte, como combinado entre Bêlit e um mensageiro da rainha Ruthyan, os portões da cidade se abriram, dando entrada a uma comitiva bastante diferente de qualquer uma que já adentrara aquela cidade. Montados em corcéis puro-sangue, estavam, lado a lado, o pirata Amra e a herdeira Bêlit. Esta última usava a luxuosa roupa que eu já descrevi, enquanto o bárbaro do norte vinha com seus tradicionais capacete, armadura e manto, além, é claro, de sua longa espada, embainhada no quadril esquerdo. Bêlit, por sua vez, segundo eu soube, trazia, sob os ricos trajes, seu punhal e espada, embainhados no cinto que segurava-lhe o saiote de seda.
Sessenta piratas negros, a pé, seminus e portando lanças, formavam uma quadrada cerca humana ao redor do casal a cavalo. Num dos vértices, ia à frente o suba Sakumbe, armado com uma lança, enquanto no outro, também na vanguarda, ia eu, usando a curta túnica branca de um militar shemita e a cimitarra na mão. Atravessamos as ruas entre olhares desconfiados, passando pelo enorme ídolo que simbolizava o deus Pteor, tão cultuado em Pelishtia quanto a deusa Ishtar e representado por uma estátua gigantesca, de um homem com cabeça de touro e as características masculinas bastante exageradas.
Logo após, havia o Grande Zigurate de sete andares – o maior de todos os que adornavam as muralhas de Asgalun –, em cujas alturas os sacerdotes liam, nas estrelas, as vontades de Ishtar, Adônis e Pteor, os deuses da minha Pelishtia natal.
Após o Grande Zigurate, chegamos ao Grande Palácio, com sua larga fachada cheia de afrescos, os quais representavam touros alados com cabeças humanas, descendentes de Pteor, Ishtar e do alado Adônis. Nas minhas longas viagens, eu ouvira falar que seres como aqueles eram esculpidos em pedra pelos antigos acheronianos. Mas o império de Acheron, extinto três mil anos antes da Era de Conan, nunca havia chegado a dominar Shem. De qualquer forma, Acheron fora fundado por stígios, um dos povos cuja cultura influenciara a shemita.
Na fachada do Grande Palácio, havia uma larga escadaria de granito, ladeada por leões esculpidos no mesmo material. Do alto daqueles longos degraus, eu vi aparecer a figura gorda e taciturna do príncipe Uriaz, que, segundo boatos, era o principal conselheiro da jovem rainha. No instante seguinte, passando pelo príncipe de barba curta sobre o rosto gordo, duas fileiras, de dezenas de guardas asgalunianos, desceram a escadaria, ladeando uma jovem alta, de seus 18 anos, com longos cabelos cor-de-ébano emoldurando um rosto cor-de-marfim, e usando longas e luxuosas roupas de seda e cetim sobre o corpo escultural, além de uma coroa de ouro sobre a delicada cabeça: a rainha Ruthyan de Asgalun!
Todo o povo a aclamava, todo o povo a admirava, gritando vivas e atirando seus lenços para o alto, em sinal de louvor e admiração àquela jovem que, desde que perdera os pais, sabia honrar a memória de ambos, que foram os governantes mais justos da capital de Pelishtia.
No entanto, o silêncio do povo fez-se cada vez maior à medida que Ruthyan caminhava em direção a Bêlit. Esta desmontou do cavalo e abriu caminho entre a fileira frontal de lanceiros negros, ao mesmo tempo em que a rainha de Asgalun pediu aos guardas pra pararem na base da escadaria do palácio, enquanto ela seguia seu caminho, aproximando-se da jovem pirata e vice-versa.
Naquele momento, em que a Rainha de Pelishtia e a Rainha da Costa Negra ficaram a apenas um metro uma da outra, o silêncio era tão grande que o mais simples grunhido poderia ser escutado por toda a multidão.
Embora um pouco distante, pude avistar o sorriso no rosto de Ruthyan, quando esta abraçou a pirata, com lágrimas de alegria a escorrerem pelo rosto.
- Bêlit, minha irmã! Por Ishtar, Adônis, Ashtoreth, Derketo e Pteor! – exclamou a rainha de Asgalun, invocando todos os deuses de Shem Ocidental – Você está viva!
Embora Bêlit estivesse de costas para mim, pude perceber a emoção da pirata shemita, ao retribuir o abraço da irmã – emoção esta, que se refletia na voz, igualmente trazida para cá pelo vento:
- Estou viva sim, irmã.
Naquele momento, a pergunta que veio à minha mente era: será que o povo de Asgalun aceitaria aquela pirata como sua nova rainha por direito de primogenitura? No que dependesse da aparente bondade de Ruthyan, tudo indicava que sim. Mas e quanto a Uriaz? Será que ele se sentiria à vontade com aquela guerreira de vontade férrea, ou será que ele criaria intrigas contra Bêlit? Embora o povo de Pelishtia nunca ficasse totalmente satisfeito com os governantes que tinha, o fato de Bêlit ser primogênita, aliado à presença de um total de cem lanceiros negros do Tigresa – os quais poderiam vir a ser a Guarda Particular da nova rainha de Asgalun – e ao possível consorte de Bêlit; consorte este que parecia lutar melhor que qualquer um ali presente... creio que tudo isso poderia ajudá-la a se manter no poder até morrer de velhice.
No instante seguinte, porém, um dos muitos homens ali presentes arremessou uma pedra, gritando:
- Morte à pirata da Costa Negra!
Ela esquivou-se da pedra, lançando-se ao chão ao mesmo tempo em que puxava a própria irmã, salvando-lhe a vida. Sakumbe, que estava mais próximo, arremessou uma lança certeira no pescoço do pretenso assassino de Bêlit.
A revelação de que Bêlit era uma pirata – companheira do famigerado Amra –, aliada ao assassinato de um pelisthio, feito por um dos comandados negros da shemita, colocou toda a população da cidade contra nós.
Um shemita de nariz adunco avançou contra mim, brandindo um punhal, mas desarmei-o com um golpe de minha cimitarra, ao mesmo tempo em que lhe abri a garganta, fazendo-o cair para trás, com a cabeça ensangüentada pendendo da própria coluna cervical.
Uma turba barrou o caminho entre o cimério e as duas jovens de sangue real, mas os hábeis lanceiros, ajudados pelo não menos hábil Amra, foram paulatinamente abrindo caminho até Bêlit e Ruthyan. Naquele instante, uma lança shemita estripou a montaria do cimério, o qual caiu de pé, brandindo a espada. Desarmado, Sakumbe arrancou a lança da barriga do cavalo moribundo e brandiu-a contra a horda que ainda barrava o caminho até os corsários negros e as duas irmãs.
Por Ishtar, nunca vi alguém lutar como aquele bárbaro da Ciméria! Independente da ajuda dos lanceiros que os acompanhava, Amra era de longe o mais perigoso e habilidoso de todos os lutadores. Praticamente invulnerável em seu capacete e armadura, ele usava sua espada de lâmina larga em movimentos tão rápidos que mal podiam ser acompanhados por olhos humanos, espetando e girando-a em círculos decepantes, ou em perigosos círculos duplos, e sem errar um único golpe; sempre furando, decepando, abrindo ou aleijando a cada rápido movimento de sua longa e pesada arma, a derramar sangue, entranhas e miolos de forma implacável.
Quando Amra se aproximou de Ruthyan e Bêlit, ele avistou Uriaz, no alto da escadaria, dando ordens para os arqueiros shemitas – cujos únicos iguais em habilidade viviam na distante Bossônia, a norte, e no ainda mais distante Vilayet, a leste.
- Preparar flechas! – gritou o príncipe de Asgalun.
Sem hesitar, Bêlit colocou a própria irmã diante de si e apontou-lhe no pescoço o punhal que trazia escondido sob as vestes luxuosas.
- Se dispararem uma só flecha, ela morre! – gritou a pirata.
Todos ficaram mudos e parados, enquanto eu, Amra (a quem eu já vira Bêlit chamar intimamente de Conan, um nome muito mais adequado a um bárbaro do Norte) e os lanceiros negros também paramos, devido ao fim dos ataques, embora continuássemos em alerta e nossa guarda não tenha ficado aberta um só instante.
Por um instante, Uriaz ficou boquiaberto, mas, no momento seguinte, com os olhos negros faiscando de ódio, ele ordenou, a contragosto, que os seus arqueiros guardassem as flechas. Cautelosamente, fomos recuando em direção ao portão oeste. O povo, assim como os guardas e talvez o príncipe, parecia amar aquela jovem rainha, pois, temendo por sua vida, não fizeram nenhum movimento em falso em direção à sua irmã pirata.
Esta, ao aproximar-se do portão – devidamente escoltada pelos lanceiros negros, a quem eu e Sakumbe acompanhávamos, e a quem Conan/Amra comandava –, ergueu a voz, dirigindo-se a Uriaz, que mesmo acompanhando-nos, soube manter uma distância segura.
- Exijo um resgate em troca da vida de sua preciosa rainha! – gritou Bêlit – Duas mil moedas do Tesouro Real para mim, ou a cabeça dela para vocês! – acrescentou, irada, a pirata que, logo depois, seguia conosco até a praia, mas não sem antes acrescentar: – Esperarei pelo resgate amanhã, na praia logo após os monólitos.
* * *
Caiu a noite sobre o litoral de Pelishtia. Ruthyan havia sido amarrada, pelos pulsos e tornozelos, ao mais elevado daqueles altos pilares de pedra, de origem desconhecida, os quais já existiam ali muito tempo antes da construção de Asgalun. Ninguém sabia que mãos construíram aqueles estranhos monumentos de pedra polida, nem a razão. Tudo o que eu sabia era que, de acordo com alguns sábios nemédios, eram de origem Pré-Cataclísmica.
Descansando e comendo à luz da fogueira, Conan e Bêlit, despidos de suas respectivas roupas, ficaram abraçados um ao lado do outro diante do fogo, usando apenas suas respectivas tangas, tão descalços e seminus quanto os negros que comandavam.
- N’Yaga! – disse Bêlit ao velho xamã do Tigresa – Vá ver se Ruthyan está com fome ou sede.
Apesar da ameaça que fizera, a Rainha da Costa Negra parecia preocupada com a alimentação da irmã. E aquilo fazia sentido, pois, se Uriaz estivesse disposto a pagar o resgate, a herdeira renegada também faria a sua parte, devolvendo Ruthyan, sã e salva, aos asgalunianos. Todavia, Bêlit já avisara ao sub-chefe N’Gora que, se ela ou Conan fossem mortos por alguém de Asgalun – à traição ou num possível ataque frontal de soldados reais –, ele tinha ordens de degolar a jovem rainha e enviar sua cabeça ao povo da cidade.
Então, quando Bêlit adormeceu em seus braços, Conan deu ordens aos corsários negros para que levassem a pirata para dormir na cabine do navio, enquanto eles fariam os preparativos para uma possível invasão de asgalunianos no dia seguinte. Caminhando em minha direção, o cimério seminu me chamou pelo nome. Então, eu lhe respondi:
- Zinoatim está morto, Amra. Tão cedo, meu nome não deve ser lembrado em minha terra. Depois que fizermos o que deve ser feito, não voltarei a Pelishtia antes que se passe pelo menos meio século, para que minhas feições possam ser esquecidas. Me chame por qualquer outro nome, por favor.
Ele me examinou atentamente e então sorriu:
- Vou chamá-lo, então, de Subbotai.
- Subbotai?
- Na minha língua natal, significa “semelhante a Bourtai”. Bourtai foi um amigo que tive em Khitai, há alguns anos. Embora você seja mais alto e bem mais corajoso que ele, além de ter traços mais ocidentais, o falecido Bourtai tinha alguns traços semelhantes aos seus. Pudera! – acrescentou Conan, rindo – Sua mãe era khitaiana, como aquele meu amigo...
Me senti bem. Aquele seria meu nome pelas próximas décadas. Então, passamos a noite e a madrugada até o amanhecer, construindo trincheiras e armadilhas – estas últimas consistiam em alçapões, com afiadas estacas de madeira no fundo e forrados com terra e capim no alto, para disfarçá-los.
* * *
Na manhã seguinte, sob o vento primaveril que soprava junto à brisa marinha, ouvi Conan me falar da primavera em sua infância, na Ciméria, e dos “quase vinte anos de combate impiedoso” que ele vinha travando. Somente muitos anos mais tarde, lendo as Crônicas Nemédias, entendi que ele se referia aos muitos entes queridos que perdera – ou pensava ter perdido – ao longo daquele tempo. Embora os pais de Conan ainda fossem vivos naquela ocasião – e ele sabia disso –, pelo menos dois parentes de “Amra” eram tidos como mortos: o avô Drogin e o irmão mais velho, de nome Chullain; além de diversos amigos e alguns amores do passado – todos mortos ou desaparecidos.
- Este vento também sopra em minha terra... – eu disse, como se já estivesse a muitos quilômetros dali – E no norte do coração de todo homem.
- Nunca é tarde demais... – o cimério acrescentou, como que me autorizando a ir embora dali, se eu quisesse, a fim de salvar minha pele. De fato, a tripulação do Tigresa era grande o bastante para repelir uma invasão. Mas, de qualquer forma, um lutador a mais seria bem-vindo, e a minha vida longa não deixava de ser uma maldição. Perdi muito mais entes queridos, mortos pela velhice, do que Conan perdera, levados pela tragédia. Isto me tornava um homem perseguido pela solidão. Então respondi:
- Não... o vento só me traria de volta um novo dia, em companhia muito pior.
O cimério sorriu diante do meu sorriso – e palavras – de amizade. Eu não tinha medo de morrer em batalha, como o bárbaro notara, mas eu tinha um verdadeiro horror pelo tédio.
Então, uma voz aguda cortou o ar matutino:
- Ei! Que história é essa de lutarem sem mim?
Era Bêlit, gritando do alto do parapeito do navio, com as curvas alvas dos seios provocando choques de paixão, cujas fagulhas se refletiam nos ardentes olhos azuis de Conan.
O cimério sorriu novamente.
- Que luta o quê, Bêlit? Uriaz ainda não enviou sua resposta.
- Pois está enviando agora... Vejam! – gritou ela, apontando para a frente, além dos monólitos.
Olhamos para trás e, surpresos, avistamos um exército de dezenas de cavaleiros shemitas se aproximando. Eu e Conan vestimos rapidamente nossos respectivos capacetes e armaduras, e nos escondemos, enquanto Bêlit, com seu punhal na mão esquerda e o sabre na direita, pulou do alto do parapeito até a areia da praia, e correu – só com as sandálias e o saiote, como sempre andava – até um outro monólito, próximo aos que escolhemos como esconderijos.
- Se eu sair viva desta, juro que faço o traidor do Uriaz comer o próprio fígado... – praguejou a pirata em voz baixa.
Percebi então que o sabre de Bêlit, apesar da lâmina curva, tinha o mesmo cabo de uma espada zíngara. Talvez tenha pertencido ao falecido pirata zíngaro, que possuíra Bêlit anos antes dele morrer e ela encontrar Conan; ou talvez tenha sido roubada de algum navio baracho, durante alguma das incursões da pirata às praias do norte.
A longa cota-de-malha que eu vestia me fora presenteada pelo casal de piratas ao qual me aliara. Era um dos muitos espólios de guerra da rainha-pirata, assim como o capacete que eu usava. Embora mais protegido que no momento em que encontrei Amra e Bêlit, eu não deixei de rezar aos deuses de Shem – sobretudo à deusa suprema Ishtar –, para que conduzissem os sobreviventes à vitória e os não-sobreviventes a uma morte gloriosa.
Então, vi quando os cavaleiros se aproximaram. Eram todos pelishtios de sangue puro, com narizes aquilinos e corpos tão musculosos quanto os dos piratas negros, agora escondidos, e usando elmos de bronze sobre os barbudos rostos morenos, bem como longas cotas-de-malha sob as roupas de algodão branco. Alguns usavam lanças e espadas; outros, só as cimitarras, erguidas e brandidas no ar.
Quando adentraram os monólitos, alguns dos soldados a cavalo caíram nas mortíferas valas disfarçadas. Pelo menos dez deles morreram daquela forma. Um dos erros do príncipe Uriaz foi o de não armá-los com arco-e-flecha, talvez acreditando que as lanças dos asgalunianos bastariam contra as dos corsários negros. Então, fazendo jus à boa fama dos arqueiros shemitas, disparei minhas flechas, certeiras, em cada um dos pelishtios que eu conseguia avistar, por entre aquele bosque de altos pilares de pedra. Após caírem mortalmente nos alçapões, restavam setenta. Eu não errei nenhuma das quinze flechas das quais dispunha. Ficaram apenas cinqüenta e cinco oponentes.
Estes, por sua vez, preferiram não se dispersarem, mantendo uma formação coesa. O chefe deles enviou dois soldados para fazerem um reconhecimento da área. Uma atitude temerária e mal-sucedida. O primeiro deles, ao aproximar-se do monólito onde Conan se escondera, caiu do cavalo, com a garganta aberta pelo golpe de um enorme machado que o cimério levava. O outro, por sua vez, foi surpreendido por Bêlit que, com um grito selvagem, saltou corajosamente em sua direção, também derrubando-o do cavalo e engalfinhando-se no chão com o pelishtio. A espada deste mostrou-se inútil a tão curta distância, ao mesmo tempo em que a rainha-pirata apunhalava, com vários golpes, o pescoço do conterrâneo.
Ela, então, ergueu-se ofegante sobre o corpo do soldado de Asgalun, este morto, enquanto Bêlit – com a cabeleira, pescoço e parte do rosto empapados pelo sangue que jorrara da jugular e garganta do rival – apresentava apenas pequenos arranhões no torso nu, decorrentes do engalfinhamento e de ter rolado no chão.
Aproveitando-se da momentânea hesitação, causada ao exército pelos sons das mortes dos dois soldados, Conan soltou o seu estranho grito-de-guerra cimério, o qual ele já tinha dado no dia anterior em Asgalun: era o sinal, que ele havia combinado com os corsários negros. Então, várias flechas choveram de ambos os lados, matando cerca de quinze a vinte pelishtios.
De ambos os lados, também, vieram os corsários, empunhando suas lanças. N’Gora, por sua vez – um dos poucos piratas que usava espada ao invés de lança –, não participou do combate, ficando ao lado do monólito onde estava a refém, para cumprir, se necessário, a sangrenta ordem de Bêlit.
Os cavaleiros shemitas que sobraram atiraram suas lanças nos corsários. A maioria delas resvalou nos escudos dos piratas, enquanto cinco atingiram mortalmente seus alvos. Enquanto eu, Conan e Bêlit corríamos para ajudá-los, percebemos que, apesar da superioridade numérica dos negros, os meus conterrâneos – agora meus rivais – ainda tinham a vantagem de estarem a cavalo e de usarem cota-de-malha. Mas não desanimamos. Com um salto felino, derrubei um pelishtio da sela de seu cavalo e, com três rápidos golpes, decepei-lhe a cabeça antes que ele pudesse brandir a cimitarra contra mim.
Avistei Conan e Sakumbe lutando. Montado no cavalo de um dos shemitas mortos, o cimério, mais protegido que os próprios pelishtios e com o rosto taciturno como uma máscara de bronze, abria elmos e crânios com sua espada de aço aquiloniano, muito mais forte e resistente que os capacetes de bronze dos nossos inimigos; decepava cabeças num jato de sangue; ou então arrancava, de um só corte, as mãos que empunhavam as cimitarras para, em seguida, abrir as jugulares de seus pretensos assassinos. Um deles evitou um ataque frontal, tentando atingir o pirata pela desprotegida parte inferior da nuca. Os alaridos de guerra estavam altos demais para que Conan ouvisse meu grito de aviso; mas, no instante seguinte, o cimério deu meia-volta com o ágil cavalo e, num golpe lateral, abriu o peito musculoso e o coração do covarde pelishtio, cuja malha era capaz de resistir a uma lança dos corsários, mas não a uma espada de aço tão resistente, manejada com tamanha força.
Sakumbe, por sua vez – ao contrário de Conan e da maioria de nós –, lutava sorridente, pulando, uivando e gargalhando como um macaco de sua terra natal, a cada golpe de lança – muitos dos quais, dirigidos aos pescoços desprotegidos dos cavaleiros shemitas, ou então enfiando-lhes a ponta da lança entre o pescoço e o queixo até atingir-lhes os cérebros.
Quanto a Bêlit, eu nunca vi tanta selvageria e habilidade numa mulher: também montada sobre um dos cavalos, ela evitava os golpes de cimitarra ao mesmo tempo em que abria os pescoços dos pelishtios com seu sabre. Quando a espada de um deles chegava muito perto da circunstancial amazona, ela decepava-lhe a mão. E, quando o pretenso assassino caía maneta do cavalo, a lança de um dos negros completava o trabalho da líder pirata. Num momento em que se viu atacada por um conterrâneo, cujo pescoço estava protegido, e incapaz de alcançar-lhe a mão, Bêlit, com seu guincho selvagem de guerra, arremeteu lateralmente o sabre, estraçalhando ambos os olhos do shemita e atravessando-lhe o cérebro. Ele caiu, com a espada cravada horizontalmente em seu rosto ensangüentado.
Desmontando do cavalo, Bêlit puxou o punhal, mas avistou os lanceiros negros Ajonga, Yasunga e Laranga dando cabo dos inimigos restantes. Dos oitenta militares shemitas, não restara um só vivo. Nem mesmo o líder deles, cujo capacete e crânio haviam sido abertos pela espada de Conan.
Entretanto, com os olhos ainda ardendo em fúria, Bêlit arrancou seu sabre do homem que acabara de matar e correu até o monólito onde a rainha Ruthyan estava amarrada.
- Eles não quiseram pagar o resgate... – disse a bela pirata manchada de sangue, apontando a espada no pescoço da indefesa rainha de Asgalun – Pois então, enviarei àquela gentalha real a cabeça desta usurpadora vadia.
- Por Ajujo, não! – gritou o traficante Sakumbe, a uma distância que não lhe permitia impedir a decapitação da jovem.
Então, outra voz se elevou, detendo a mão daquela vingativa pirata seminua. Era o cimério, a quem quase todos chamavam de Amra e cujo capacete, armadura e espada estavam tão ensangüentados quanto os cabelos, rosto, seios, membros e saia de Bêlit. Ele chamou-a pelo nome e disse a ela:
- Esta “usurpadora vadia” subiu ao trono, porque pensou que os piratas zíngaros tivessem lhe matado. Aliás, todos em Asgalun lhe julgavam morta e choraram sua morte, Bêlit. Nenhum pelishtio sabia que aquela princesa adolescente raptada, cujos pais morreram assassinados por ordem do primeiro capitão do navio Tigresa, o qual já foi zíngaro, é também a pirata a quem chamam “A Rainha da Costa Negra”.
Tão ensangüentado quanto os corsários, Conan, Sakumbe e Bêlit, percebi que, enquanto eu poderia voltar a Pelishtia dali a algumas décadas ou séculos, quando esquecessem minhas feições, ela, que também lutara contra os próprios conterrâneos, não teria esse privilégio. E também percebi que a respiração da pirata pelishtia havia ficado cada vez mais branda, e que o ódio em suas feições dera lugar a uma imensa melancolia: Bêlit adentrara Asgalun, tentando ser aceita como herdeira do trono. Diante da recusa, ela raptara a própria irmã – rainha da cidade e, lógico, de toda Pelishtia – exigindo um resgate.
Agora, mais do que nunca, a pirata, de pele alva e cabelos negros como a irmã, sentia-se uma exilada. Com uma pequena lágrima a descer-lhe de um dos brilhantes olhos negros, Bêlit disse:
- Perdoe-me, Ruthyan.
No momento seguinte, com quatro rápidos golpes de sabre, a pirata cortou as amarras que prendiam as mãos e pés da irmã àquele monólito, o mais alto dos vários que transformavam num labirinto o curto caminho entre a praia e a cidade onde Ruthyan reinava.
Esta última, contente e aliviada ao mesmo tempo, foi cordialmente abraçada pela irmã e sussurrou-lhe algo no ouvido. A julgar pelo sorriso de Bêlit, esta deve ter gostado. A ex-princesa e agora pirata tinha, em Asgalun, uma amiga com um coração meigo e maior que o mundo. Recuperando os ares de rainha que era e com um grande sorriso amigo nos lábios, Ruthyan despediu-se de nós e adentrou aquele verdadeiro bosque de monólitos que conduzia à sua cidade e a seu povo. Logo depois, ouvi Bêlit dizer a Conan que Ruthyan lhe oferecera o trono da cidade, mas ela se recusou, preferindo continuar governando a Costa Negra.
* * *
Navegamos até a costa stígia, na qual atacamos uma cidade costeira. Durante o sangrento combate, um mago daquela cidade lançou três serpentes píton contra a tripulação. Os dois primeiros répteis foram mortos com flechadas, por N’Gora e Sakumbe, enquanto Bêlit – tão boa lanceira quanto seus comandados – atirou uma longa lança, a uma distância ainda maior, em direção ao peito do bruxo, matando-o quase que instantaneamente.
A terceira píton, contudo, investiu contra Conan, cuja espada ficara presa no peito de um dos últimos guerreiros stígios. Então, com as mãos nuas, o cimério se engalfinhou com a enorme serpente que se enroscava no corpo musculoso do bárbaro. Assistíamos àquele duelo em completa tensão, com medo de interferirmos e, sem querer, matarmos o pirata. Sabíamos que a serpente era capaz de quebrar-lhe os ossos, mas também sabíamos que qualquer flechada poderia atingir Conan, ao invés do réptil.
Nunca saberei ao certo por quanto tempo o cimério se atracou com aquela serpente. Só sei que, quando o nariz daquele bárbaro começou a sangrar, ele conseguiu soltar ambos os braços e, num esforço titânico, travou a garganta da píton e estrangulou-a até quebrar-lhe o pescoço num estalo seco.
Erguendo-se ofegante, Conan chegou ao navio, foi abraçado por Bêlit e acalmou-a com um longo e ardoroso beijo na boca, enquanto N’Gora dava ordens aos corsários para zarparem. Em seguida, N’Yaga se ofereceu para cuidar dos ferimentos do cimério, mas este pediu-lhe vinho.
- Matar me dá muita sede, xamã. Você sabe disso. – disse o guerreiro, enquanto despia-se da cota-de-malha.
Mais adiante, em local distante de stígios e tubarões, todos nós tomamos banho no primeiro curso d’água que avistamos. Já estávamos na costa de Kush, então. O sorridente Sakumbe já estava mal-humorado, e dizia a Conan que pretendia voltar a traficar marfim, ouro em pó e escravos, assim que chegasse ao reino de Suba, onde nasceu. Assim como Conan, Sakumbe também tinha sonhos de um dia ser rei.
Eu, contudo, não pretendia ir tão ao sul. Chegando perto da cidade costeira de Zabhela, em Kush, eu pedi para desembarcar. Após tentar trabalhar no local como mercenário, vi que os stígios mestiços, que dominavam aquele país, eram tão desconfiados e xenófobos quanto seus parentes puros da própria Stygia.
Todavia, ouvi falar que em Sukhmeth, no sul da Stygia, mercenários estrangeiros eram bem-vindos, para defenderem aquela cidade de um possível ataque dos canibais darfarianos do sul. Fui para lá.
Então, depois de mais meio-século vagando pelo mundo, resolvi viajar até as Ilhas Barachas. Lá chegando, um idoso shemita me contou, em Tortage, que, ao aproximar-se de Asgalun, a jovem Ruthyan fora confundida, pelos arqueiros dos altos das muralhas, com sua odiada irmã pirata e morrera crivada de flechas. Quando os atiradores perceberam seu erro, era tarde demais: o príncipe Uriaz, primo de Ruthyan, ficara furioso com a morte da rainha de Asgalun e mandou executar os arqueiros.
Depois disso, Uriaz fora coroado novo rei de Pelishtia e governara brevemente aquela região. Até que um dia, seu irmão Akhirom, à frente de vários exércitos – de Anakia, Kush e Hirkânia –, usurpou o trono daquela cidade que me viu nascer. Enlouquecido por uma bruxa stígia chamada Zeriti, Akhirom governou o local por três anos com mão de ferro, até que o general dos mercenários hirkanianos, chamado Mazdak, colocou a população contra o rei louco. Após a morte de Akhirom, Mazdak tornara-se rei de Asgalun; e dizem que ele teria sido ajudado pelo pirata Amra e sua nova companheira, uma ruiva de Ophir. Apenas séculos depois, é que eu soube do destino de Bêlit: assassinada por um gorila alado às margens do rio Zarkheba, mas vingada por Conan numa terrível batalha sobrenatural – tudo isto fora registrado pelos reis Conan e Zenóbia, na Aquilônia, e acrescentados às Crônicas Nemédias.
Mas, antes de ser rei, Conan, segundo soube, fora pirata naquelas ilhas, comandando os navios Falcão e Cacatua, e três anos depois, o próprio Mão Vermelha, outrora pertencente ao pirata Strom – este último, assassinado por pictos na Baía de Korvella, juntamente com o pirata zíngaro Zarono Negro.
Trinta e um anos após comandar o Mão Vermelha – dos quais passara os últimos 26 governando o reino da Aquilônia –, Amra teria voltado a Tortage, já envelhecido e com o trono aquiloniano dado ao próprio filho, a fim de recrutar novos e velhos marujos para uma viagem rumo ao oeste desconhecido. Desde então, nunca mais ouvi falar em Conan – ou Amra, como também era chamado nos tempos de pirata.
Apenas ouvi rumores de que o rei Conan II, filho do ex-monarca cimério que eu conhecera como pirata, teve que enfrentar, no início do reinado, rebeliões de irmãos mais velhos por parte de pai, os quais, apesar de serem frutos de relações entre o bárbaro e as mulheres do harém deste (das quais Conan havia se desfeito antes de casar-se com Zenóbia), reivindicaram para si a coroa da Aquilônia.
Com muito esforço, o jovem monarca recém-coroado conseguiu debelar a revolta e reunificar a Aquilônia. Então, resolvi viajar àquele reino e me tornar conselheiro de Conan II, bem como de seus sucessores. Ah... estes sucessores de Conan II eram de uma ambição desmedida: conquistaram inescrupulosamente os reinos de Zingara, Argos e Ophir.
Acabei deixando a Aquilônia, que já não mais honrava os princípios dos dois maiores reis que tivera, e passei para o lado dos nemédios. Então, o tempo foi passando e, quando transcorriam quinhentos anos após o reinado de Conan, eu soube que a Aquilônia desmoronou num mar de fogo e sangue, sob invasões pictas.
A Nemédia estava um caos: do oeste, os selvagens pintados, destruindo cidades e pessoas; do leste, os cavaleiros hirkanianos, dominando o que podiam e matando quem não lhes jurasse lealdade. Para salvar a pele – e sabendo que minha Pelishtia natal já não existia, graças aos pictos –, tomei partido dos hirkanianos que, além de civilizados, eram mais escrupulosos e menos sanguinários que os pictos.
Mas a verdadeira salvação veio do norte: mercenários aesires, contratados pelos nemédios, expulsaram tanto hirkanianos quanto pictos e dominaram a Nemédia. O líder picto, de nome Gorm, fora morto pelo chefe aesir Hialmar, este último se coroou rei da Nemédia e eu fui seu conselheiro. Durante algumas gerações, aquela última nação hiboriana autônoma prosperou de forma inimaginada, sob o comando daqueles bravos – e inteligentes – bárbaros loiros. Eu até ajudei a acrescentar, nas Crônicas, o meu encontro com Amra.
Mas a prosperidade da civilização nemédia foi interrompida pelas glaciações, que empurraram inúmeras tribos cimérias e nórdicas para o sul, saqueando as regiões de domínio picto e hirkaniano e transformando a Nemédia num lugar de cidades desertas e em ruínas, com sua população civil quase totalmente exterminada.
Me refugiei em Shem Ocidental (cujas cidades se mantiveram intactas), juntamente com alguns amigos hiborianos, que conseguiram escapar comigo e se miscigenarem com algumas das belas Filhas de Shem. Eu, por minha vez, vendo que já não estava mais na flor da idade, casei-me com uma linda jovem negra, descendente de escravos do reino de Amazon, que os hirkanianos levaram para Shem Oriental, durante sua hegemonia naquela região a leste – esta agora não mais desértica, graças às glaciações.
Hoje sou um velho, cercado de bisnetos já adultos, e vejo descendentes de remanescentes hirkanianos se misturarem com gente daqui, e alguns de seus filhos e netos, numa língua um pouco diferente do Shemita de minha época jovem, começando a se auto-denominarem Filhos de Shumir – uma variante local de “Filhos de Shem” – e migrando para o leste.
Tenho escutado um visionário afirmar que as cidades daqui seriam inundadas por “um dilúvio de água salgada” e que “só o Egito” se salvaria. Penso seriamente em ir para aquele lugar – no passado, a Stygia –, hoje dominado por descendentes dos vanires. Irei para lá, juntamente com meus descendentes e minha atual esposa (uma linda loira, de olhos azuis e ascendência hiboriana e nórdica), pois eu soube que eles são mais tolerantes com estrangeiros do que seus antecessores stígios.
FIM