Sangue em Vanaheim

Introdução:

Com base no fato de não haver nenhum conto ou história em quadrinhos, na qual o Cimério retorne à sua terra ou a Nordheim após sua coroação, resolvi escrever o conto seguinte, um conto marcado por grandes lembranças, batalhas sanguinolentas e reencontros surpreendentes. Não adiantarei maiores detalhes, para não estragar a surpresa.


De qualquer forma, só revelarei que os xamãs Gunar e Iranyr, assim como o guerreiro Ghonary, foram criados por mim. Quase todos os personagens, mostrados ou citados, são velhos conhecidos dos fiéis leitores. Os demais que criei, como a personagem Erjfra, são pouco mais que figurantes.


Agradecimentos especiais ao webmaster e contista Osvaldo Magalhães, por suas preciosas dicas, as quais me ajudaram a detalhar e concluir o conto.










Sangue em Vanaheim

(por Fernando Neeser de Aragão)


1)


É início de outono na Gunderlândia. O céu daquela montanhosa região aquiloniana ainda estava azul. Pairando sobre as planícies a norte das montanhas daquele local, é que se podem avistar algumas nuvens cinzas, situadas além da parte setentrional da fronteira bossoniana e indicando o início da Ciméria, terra de trevas e noite eterna, cuja fronteira meridional fica a apenas um dia de cavalgada da Gunderlândia.


Da Ciméria também era o musculoso homem alto, de barba grisalha e pele morena, que ia à frente de uma escolta – esta formada por homens protegidos por cotas-de-malha, assim como ele. Sob a testa larga daquele grisalho e agigantado homem moreno, brilhavam um par de ardentes olhos azuis. Era Conan, rei da Aquilônia há mais de vinte anos. A seu lado, encontrava-se um homem, com roupas semelhantes às dele, porém menor e mais magro, com cabelos brancos e longos bigodes grisalhos, usando, sobre a malha em seu tronco, uma jaqueta com o desenho dos leopardos vermelhos de Poitain bordado na parte frontal da mesma. Era o Conde Trocero, um dos maiores amigos do monarca bárbaro daquele país.


Lady Alcina, senhora de Elymia, ficara viúva pouco depois do cimério perder Zenóbia, e não achara nenhum pretendente que lhe interessasse. Ao ouvir o rei lhe falar que arranjaria-lhe um marido “da mais pura raça hiboriana”, a ex-serva de Thulandra Thuu aceitou, sorridente, a idéia. E era em nome de Alcina que o rei Conan encontrava-se agora, escoltado com o conde Trocero de Poitain, nas temperadas montanhas outonais da Gunderlândia. Com uma única e fugaz exceção no passado – a tribo chefiada pelo falecido Sthagronny, na qual o bárbaro derrotara Sonja –, os gunderlandeses não tinham escravos e não se miscigenavam com outros povos – pelo menos, não na Gunderlândia...


Conan, por sua vez, perdera sua esposa, a rainha Zenóbia, há exatamente um ano, logo após o nascimento de uma garota. A bela rainha da Aquilônia havia sofrido uma hemorragia, decorrente de convulsões. O nascimento da quarta criança do casal real – e segunda filha – causara uma terrível eclampsia na ex-garota de harém nemédia – um mal já conhecido pelo velho sábio Alcemides, embora chamado naquela Era por outro nome –, pondo fim à breve vida de apenas três décadas e meia de Zenóbia, e semeando a dor e a tristeza, não apenas no coração do velho Conan e seus três filhos, mas também entre todos os membros da nobreza aquiloniana, bem como na alma de quase toda a Aquilônia.


A exemplo do falecido lorde aquiloniano Daquius, pai da loira Merina – atual Valéria, a ex-pirata da Irmandade Vermelha e hoje dona de taberna em Poitain, casada há poucos meses com um jovem tauraniano –, Conan batizou a recém-nascida com o mesmo nome da mãe, tornando-a conhecida como Zenóbia II (ou simplesmente Zena, como era mais chamada).


O primeiro aniversário de nascimento da princesa caçula coincidiu com o de morte da rainha. Embora a alegria infantil da aniversariante tenha contagiado a todos os convidados naquele dia, sua incrível semelhança com a mãe, por outro lado, comovia a todos os nobres presentes – até mesmo aos recém-casados Elaan (filho mestiço do ex-kozaki Haddami, de Shem) e Gazallia (filha do Conde Amalric, da casa de Valerus, e de sua esposa Lissa de Gazal), que pouco conheceram a rainha, mas sabiam o quanto ela era bondosa. Ao anoitecer, logo após a festa acabar e a pequena Zena adormecer nos seus braços, o monarca se dirigiu ao túmulo da rainha e depositou-lhe flores como lembrança de um ano de saudade.


Ao longo daqueles doze meses, a rotina daquele reino, há muito em paz com todos os outros, tornou-se extremamente enfadonha. O cimério deixou a barba crescer (talvez uma maneira pessoal e inconsciente de dizer, a si mesmo e aos outros, que ele não era mais o mesmo, depois de viúvo) e passou a freqüentar a livraria real, onde lia estranhos relatos sobre terras além do Mar do Oeste e contava-os, depois, a seus filhos. Mas, apesar da grande amizade com os filhos e de ter vivido diversas aventuras ao lado do primogênito, a diferença etária entre o rei, agora com 61 anos, e seus herdeiros, com 1, 4, 7 e 15 anos, não lhe permitia uma verdadeira intimidade, nem mesmo com Conn. Seu maior amigo e confidente era atualmente o seu leal conde Trocero, que agora cavalga a seu lado.


O rei da Aquilônia estava, naquele momento, pensando em seu velho amigo e conselheiro Públius, que adoecera há meses de uma moléstia desconhecida, mas, segundo o velho sábio Alcemides, incurável. O monarca bárbaro estava tão absorto em tais pensamentos amargos, que não percebeu a estranha criatura alada, a qual voava silenciosa, mas velozmente em sua direção.


Quando o cimério sente um estranho par de garras suspendê-lo abruptamente pelos ombros cobertos pela cota-de-malha, ele leva a mão instintivamente ao cabo de sua adaga, mas, ao desembainhá-la, um golpe de uma mão disforme lança sua arma para bem longe. Ainda ouvindo o conde Trocero gritar por seu nome, Conan ainda pensa em pegar a espada. Mas o rei-guerreiro já está acima das nuvens nesse momento, e qualquer tentativa de matar aquela criatura, ele percebe, seria suicídio.


Então, sob seus pés, o rei cimério vê nuvens cinzentas e percebe que está sobrevoando sua Ciméria natal. O bárbaro pensava, algum tempo atrás, em viajar à terra em que nasceu, mas não dessa maneira. O rei da Aquilônia tinha planos de visitar seu primo Locrin, o qual já era pai, na última vez que recebera Conan, na tribo dos Falcões da Neve, onde ambos nasceram.


De qualquer forma, o monarca bárbaro procura não se mover muito, para não cair, enquanto relembra que, há apenas dois anos, uma criatura semelhante àquela havia carregado-o do mesmo modo até a capital do reino negro de Zimbabo. A velocidade com que fora arrastado, assim como o fato de estar sendo seguro pelas garras traseiras do ser alado, não permite a ele vê-lo com clareza. Mas, num rápido vislumbre, Conan achou a criatura parecida com uma que tentara matar Vateesa e Khossus, há muitos anos em Ophir, além de semelhante a uma outra, que o mago Pelias lhe dera para voar de Khorshemish a Tamar, cerca de vinte anos atrás – só que esta que lhe carregava era bem menor, sendo pouco maior que um homem.


Horas depois, com o vento a bater-lhe no rosto cicatrizado, o cansado cimério se entrega ao sono. Ao acordar, com o sol nascente em sua nuca e lado direito do rosto, o rei da Aquilônia vê uma paisagem nevada, com uma ou outra floresta. A julgar pela ausência de nuvens, ele percebe que está ao norte da Ciméria, mais precisamente em Vanaheim, pelo fato da criatura tê-lo arrastado na direção noroeste.


Então, num lugar não muito distante do litoral sul daquela nação bárbara, o ser alado começa a voar em círculos cada vez mais baixos, até que o cimério avista uma fortaleza de madeira, não muito diferente dos contrafortes vanires que já visitou. A apenas três metros do chão, na parte central do forte, a criatura abre as garras, largando o monarca da Aquilônia, o qual cai de pé sobre a neve, como um enorme felino glacial. A criatura alça vôo em direção aos céus, enquanto Conan percebe, espantado, que aquele ser, apesar de ter a cabeça, asas e garras semelhantes às das criaturas das quais se lembrara, possui pernas e tronco humanos.


Virando-se abruptamente, o cimério vê algo incomum: com roupas de pele e traços de homem branco, como todos ali, mas usando plumas no casaco e calças, tatuagens do Clã do Urso no rosto; e atarracado, de pele morena, com cabelos e olhos negros, um picto! Que diabos um homem dos Sertões Pictos fazia na terra de um dos seus inimigos? Então, olhando ao redor, Conan vê e avista gigantes de cabelo e barba ruivos, bem como pessoas de várias estaturas – de menos de um metro e sessenta a pouco mais de dois metros –, com cabelos loiros, castanhos e negros, bem como olhos verdes, castanho-claros e castanho-médios a indicarem claramente o fato de serem frutos de gerações de miscigenação entre pictos e vanires!


Espantado por nunca ter visto nada igual, e ao mesmo tempo, sentindo-se ameaçado por estar entre dois povos que são inimigos seculares dos cimérios, o agigantado monarca de barba grisalha desembainha instintivamente sua longa e larga espada azulada, de aço aquiloniano, ao mesmo tempo em que pergunta:


- Quem é você? Onde estou? Quem é essa gente e o que está acontecendo?


Sorrindo, o atarracado picto dirige-lhe a palavra:


- Fique calmo, cimério. Não iremos lhe fazer mal. Meu nome é Iranyr e sou co-governante deste forte.


- E o que você quer comigo? – pergunta Conan, que sempre foi uma pessoa direta em suas indagações.


- Essa resposta, eu só posso lhe dar em particular. – responde o picto – Siga-me.


Desconfiado como um lobo, Conan acompanha Iranyr até a cabana deste, sem largar, por um instante sequer, o instrumento de aço com o qual se mantivera vivo por mais de seis décadas.


* * *


Em frente a uma fogueira, no centro da cabana de Iranyr, este responde a todas as indagações do cimério:


- Apesar do convívio relativamente pacífico de décadas, entre vanires e descendentes de pictos, nesta fortaleza, os brancos e os morenos têm, cada um, o seu líder. E Gunar, líder dos brancos, está disposto a colocar o povo dele contra o meu. Por isso, invoquei aquela criatura híbrida, a fim de me trazer, como pedi, “o maior guerreiro deste mundo”. E ela foi para o sudeste e lhe trouxe... Qual é mesmo o seu nome?


- Conan. – responde o cimério, erguendo-se – E não trabalho para feiticeiros! Prefiro me aliar ao líder vanir chamado Gunar.


- Ele também é um bruxo, Conan... – responde o picto, rindo baixinho.


Conan pára a poucos centímetros da porta, imóvel como uma estátua de bronze e pensativo. Após alguns instantes, ele responde:


- Você sabe que o povo da Ciméria não tem amizade, nem por pictos nem por vanires. Eu não sou exceção. Tudo que posso lhe prometer é pensar no caso.


E, sem dizer mais nada, o cimério sai da cabana, à procura do outro líder, de nome Gunar.



Naquela fortaleza, o trigo e a uva – colhidos na primavera e outono, respectivamente – são usados, o primeiro no fabrico de cerveja e a segunda no de vinho. Metade das bebidas é consumida ali mesmo, enquanto a outra metade é trocada por peixes como o bacalhau, vindos do povoado litorâneo de Lireigh, uma semana de caminhada a oeste do forte. Parte dos peixes também é consumida pelo próprio povo da fortaleza, junto com o vinho e a cerveja. O restante é trocado, não só por peles de bisão, urso polar e mamute, trazidas por caçadores de tribos das geleiras do norte do país, mas também pela carne dos animais citados. As peles são usadas na confecção de roupas – das camisas sem manga e tangas usadas no verão, até os longos casacos e calças para o inverno. Já as carnes são bastante apreciadas pelo seu sabor. Tanto a do distante urso polar quanto a do urso pardo, caçado nas vizinhanças do forte. Mas, de longe, a mais saborosa de todas é a do mamute.



2)


Conan já havia conversado com Gunar e este, além de convidá-lo para lutar a seu lado, havia usado como argumento uma história semelhante à do rival Iranyr, ou seja, de que este pretendia colocar os morenos contra o velho xamã ruivo e seus seguidores. Sem saber em quem acreditar – se é que algum deles é digno de crédito –, o rei da Aquilônia se mantém neutro, mesmo com o xamã vanir a seu lado, mostrando-lhe uma pequena batalha entre morenos e brancos à sua frente, no intuito de ver se o cimério toma partido de uma facção ou de outra.


Com as mãos apoiadas no cabo de sua enorme espada embainhada, Conan, já devidamente agasalhado, assiste a escaramuça com indiferença, ao ver pictos e vanires (estes últimos, puros ou miscigenados) se digladiarem sobre a neve. Embora tenha tido alguns aliados pictos na juventude, como Moru e, anos mais tarde, alguns seguidores de Brule que invadiram a própria Vanaheim em retaliação a um roubo vanir, seu sentimento de inimizade pelos seguidores de Jhebbal Sag ainda era muito forte – embora não tão profundo quanto pelos hiperbóreos, pelos quais fora capturado e escravizado por duas vezes seguidas em sua adolescência.


A mesma coisa o cimério podia dizer com relação aos vanires, apesar de ter sido amigo dos ruivos Fafnir e Sigurd. Além de os homens de Vanaheim serem – assim como os pictos – inimigos jurados dos cimérios, foram saqueadores daquele povo que invadiram sua tribo, pelo menos três vezes em sua vida: a primeira, no dia em que Conan nasceu; a segunda, sob a chefia de Ernok, O Carniceiro, quando o agora rei da Aquilônia tinha apenas nove meses, e a terceira há cerca de quatro décadas, quando, além das costumeiras matanças, salteadores de cabelos vermelhos, comandados por Torfhell (chamado de “O Justo” por seus homens), violentaram algumas mulheres da tribo Canach – “Falcão da Neve”, em Cimério – e levaram embora sua querida e jovem ciméria Malla – a qual se suicidou para não ter que casar com o asqueroso chefe dos saqueadores.


Seu devaneio é interrompido quando, em meio à feroz dança de espadas, machados, ossos quebrados e carnes rasgadas, o cimério vislumbra, como numa miragem glacial, uma voluptuosa mulher ruiva, empunhando sua espada de aço vanir, numa ferocidade que assusta até os sanguinários guerreiros pictos. Num dado momento, os atarracados selvagens de pele morena conseguem cercar aquela guerreira alta – muito provavelmente uma mercenária –, a qual parece escorregar na neve lamacenta, sumindo para dentro do círculo de pictos.


Um deles ergue a espada num uivo de triunfo, que morre com ele, quando seu rosto tatuado e seu crânio são partidos ao meio por um golpe ascendente da ruiva que se levanta. “Não sabia que os vanires agora contratavam suas mulheres para o serviço mercenário”, pensa Conan, que, embora tenha visto várias cimérias e nórdicas na vanguarda de lutas tribais, nunca vira uma nórdica como mercenária na própria terra natal. E, independente do lado que tomasse como aliado, o neutro cimério quase saiu de onde estava para ajudar a mercenária, por esta ser mulher; mas Conan percebe que ela não precisa de ajuda.


Contudo, enquanto avista aquela ruiva livrar-se dos dez pictos que cercaram-na, valendo-se de poucos golpes da espada vanir, o rei da Aquilônia percebe algo de familiar na maneira como luta aquela mulher. E mais: não só a pequena batalha terminara – com vitória dos vanires ruivos, loiros e de cabelos castanhos sobre os pictos pouco miscigenados – após a guerreira matar os pictos que cercaram-na por pouco tempo, como também, ela parecia ser líder militar daqueles nórdicos e quase nórdicos.


A familiaridade aumenta quando a líder mercenária avança alguns metros em direção a Conan e Gunar, parando somente para entornar um barril de água fria, lavando o sangue picto de seu rosto, cabelos e roupas. Devido ao frio intenso daquela região, no inverno e no outono que acabava de começar, só se tomava banho completo na primavera e verão. E aquela mulher guerreira já havia acabado de tomar o banho do dia, quando derramara a água do barril sobre o corpo. Quando a ruiva chega perto do xamã vanir e do guerreiro cimério, este último surpreende-se ao reconhecer os olhos verdes e o belo sorriso daquela grisalha mulher madura – sorriso este que acentua-lhe o charme das linhas de expressão em seu molhado rosto de marfim.


- Conan da Ciméria!?


- Sonja da Hirkânia!?


As interjeições foram ditas ao mesmo tempo.


O moreno cimério e a ruiva hirkaniana sorriem e gargalham, surpresos, e ela o chama para comerem carne e beberem vinho na cantina.


* * *


Dirigindo-se a Sonja numa mistura de Aquiloniano com Hirkaniano – para que nenhum picto ou vanir entenda –, o cimério conta-lhe como se tornara rei da Aquilônia, o casamento com Zenóbia, os filhos e sua viuvez.


A hirkaniana, embora não demonstre, fica comovida com o desabafo do amigo. Esta era a segunda vez, em seus muitos reencontros, que ela encontrava Conan melancólico mesmo após algum tempo da morte de uma mulher amada. A primeira ocasião em vira o bárbaro moreno nesse estado havia sido há 35 anos, em Pelishtia, no segundo – mas não decisivo – duelo do casal. O cimério não tinha o hábito de chorar. Talvez a única vez em que o fizera, na idade adulta, tenha sido naquele dia solitário na foz do rio Zarkheba, ao queimar o Tigresa, quando ninguém pôde presenciar-lhe as lágrimas.


Mas Sonja reconhecia a tristeza naqueles belos olhos azuis, mesmo sob a máscara taciturna do bárbaro. Com o objetivo de consolá-lo, a ruiva resolve contar-lhe algo que talvez o alegre. Sorrindo para ele, enquanto acaba de almoçar à mesa, ela pergunta:


- Sabia que tens um filho em Vanaheim? – ela pergunta maliciosamente.


- Filho?! – diz o cimério com estranheza, e um pouco de espanto e desconfiança – Aqui? Está zombando de mim, Sonja.


Erguendo-se da cadeira, a hirkaniana sorri novamente e abre a parte inferior do casaco de pele, revelando-lhe o ventre alvo que, embora não tenha ficado gordo nem flácido, apresentava algumas estrias.


- P-por que você não me falou nada, ruiva? – gagueja o rei da Aquilônia, espantado, mas com um pouco de alegria misturada ao espanto.


- Bem, algumas velhas xamãs locais, que me ajudaram no parto, cuidaram de mim, ajudando-me inclusive a cuidar dele. Além disso, nenhum de nós dois sabia disso, quando nos separamos, nas ruínas de Venarium, lembra? E, mesmo que eu soubesse, não lhe contaria, pois você se sentiria preso aqui, nesta terra de inimigos dos cimérios.


- Sim, mas nós poderíamos ir a um outro país, caso soubéssemos disso...


- Em compensação, você jamais realizaria seu grande sonho. Por Tarim e Erlik... Rei da Aquilônia! Você fez mesmo por merecer! – responde a ruiva, num sorriso de admiração.


- Mas o que era doce está perdendo o sabor... Não bastasse a morte de Zenóbia, o meu conselheiro-chefe, o velho Publius, está enfermo há meses e até o velho sábio Alcemides me desenganou. O ar de Tarântia ainda só é respirável, graças aos meus amigos, ao meu primogênito e... Por falar nisso, conte-me mais sobre este nosso filho! – diz o cimério, mudando de assunto e com o velho coração reanimado pelo reencontro e notícia – Qual o nome dele?


- Ghonary. Tem 22 anos, quase a sua altura e a mesma musculatura. Luta tão bem quanto eu e tem os instintos bem aguçados, tanto no campo de batalha quanto fora dele...


A ruiva sorri e acrescenta:


- Ele tinha a quem puxar.


Ambos gargalham.


- Por ser loiro, ele já agiu em Asgard como espião, para uma tribo vanir amiga nossa. – prossegue Sonja – Mas, ao participar de saques ou liderá-los, ele segue dois princípios que lhe ensinei desde a infância: não matar gente desarmada, nem estuprar.


O cimério resmunga, sorridente, algumas palavras de admiração e aprovação.


- Inclusive, me informaram que a descendência deste nosso filho está predestinada. – continua a hirkaniana.


- Como assim, predestinada? – pergunta o cimério, franzindo a testa.


A ruiva sorri com bom-humor e explica:


- As xamãs, que cuidaram de mim antes, durante e após o parto, me afirmaram que Ghonary seria “ancestral de uma guerreira tão ruiva e valorosa” quanto eu; e, ao perguntar quando isso ocorreria, a mais velha me disse: “Depois que Vanaheim desaparecer sob geleiras e sob o mar... depois que esta terra de ruivos se transformar em lenda... depois que Ymir e Atali forem substituídos por outros deuses, e estes por um que é ao mesmo tempo três...”.


- Um deus que é três? Por Crom, essa gente inventa cada uma... Já basta a Deusa Vermelha, que são duas...


- Mas foi, indiretamente, graças às condições que ela me impôs, que pude desfrutar os prazeres carnais com o único homem que julgo merecedor. – diz Sonja, sorrindo e acrescentando: – O nosso filho só chega em dois dias. O que acha de relembrarmos os velhos tempos, hoje à noite?...


- No meu ou no seu quarto? – pergunta Conan, com um sorriso de malícia e o olhar ardendo como não ardia há vários meses.


- Você escolhe. – diz a ruiva, com um desejo mal disfarçado pelo tom despretensioso de sua resposta. Embora fria com quase todos os homens, Sonja nunca havia esquecido aquele cimério, a quem conhecera há mais de quatro décadas em Makkalet, e que lhe despertara, de forma latente, um sentimento que homem algum conseguira. Ao final da adolescência, aquela ruiva havia ganhado toda a sua habilidade marcial, graças a um Juramento que fez diante da Deusa Vermelha: entregar-se somente ao homem que a derrotasse numa luta justa. O Cimério o conseguira, mais de duas décadas depois daquele voto e, apesar das circunstâncias tensas, o bárbaro conseguiu – graças à sua longa experiência com mulheres – fazê-la sentir-se satisfeita e, pela primeira vez, realizada com um homem.


Assim, a hirkaniana não apenas conservara a sua enorme habilidade guerreira, como também conhecera o sexo de forma prazerosa. Dessa maneira, a iminência de uma nova noite de prazeres com o guerreiro cimério faz com que Sonja, pela segunda vez em 22 anos, sinta-se tão excitada quanto Conan – este pela primeira vez em um ano. Em seu íntimo, a ruiva agradece aos deuses por seu voto ter sido quebrado por um homem de quem sempre gostou e que, há muito tempo, ela achava digno de possuí-la.


* * *


Seminua, Sonja da Hirkânia entra no quarto e, devagar, pára na porta, com a luz por trás, levantando os braços para os batentes e posando por um momento. A luz externa, passando pelo portal, ressalta com o máximo de efeito a silhueta madura e voluptuosa.


Por terem paredes de madeira, como todo o forte, os quartos dali protegem melhor do frio do que se fossem de pedra, permitindo a qualquer pessoa dormir com pouca ou nenhuma roupa.


O homem enorme na cama contempla-a com um desejo intenso e sorri, apreciando aquele corpo de 61 verões como o dele. Embora a mulher de cabelos ruivos (agora róseos, graças a uma quantidade significativa de fios brancos a se intercalarem com os fios cor-de-fogo em sua cabeleira) tivesse estrias no ainda torneado ventre – devido à criança que o cimério lhe gerara há 22 anos – e rugas, quase tão grandes quanto as de Conan no belo rosto sorridente, seu corpo de guerreira tinha músculos sob as curvas ainda redondas, quadris largos e bem-torneados, e seios grandes que, embora flácidos, não eram nada feios na opinião e no gosto do monarca da Aquilônia. Aquele excitante conjunto de beleza madura era quase capaz de fazer o cimério esquecer a saudosa Zenóbia, com a qual vivera 15 anos numa relação prazerosa onde a atração física não era a única base da mesma, ao contrário de Sonja, onde prevaleciam apenas a amizade e a libido.


Então, ela baixa os braços e avança para a cama pouco iluminada. O homem na cama, estendido de costas, nu, enorme e grisalho como um urso cinza, aguarda.


Sonja senta-se na beirada da cama, inclina-se para a frente e beija o homem nos lábios. Depois, ergue a cabeça, passando uma coxa grossa por cima do corpo do homem e acomodando-se sobre seus quadris. Estendendo-se para a frente, ela roça os seios sobre o rosto do cimério, o qual, suspirando ruidosamente, deita a ruiva na cama, de forma brusca, mas sem violência.


- Ah, meu urso cinza, grande e forte... – murmura ela, sentindo na palma da mão a rigidez fálica do cimério – Está magnífico como sempre, meu Conan.


Excitado, o bárbaro da Ciméria percorre o nariz e boca por entre os pêlos ralos das axilas da guerreira hirkaniana, bem como sob as dobras submamárias do busto volumoso da mesma. O odor dela não era o perfume artificial das nobres que Conan possuíra nos seus 21 anos de reinado na Aquilônia, mas um excitante cheiro natural, forte e penetrante, presente em algumas guerreiras, bem como em todas as mulheres tribais – de Asgard, dos Reinos Negros e dos desertos de Shem Oriental – que se entregaram aos braços do cimério de bronze.


O selvagem odor de suor, na sexagenária – mas ainda bela – Sonja, leva o bárbaro à loucura, pondo-o para fazer os alvos seios da ruiva tremularem em sua boca, a qual, minutos depois, desce para o umbigo, até que, despida da tanga, a mulher de cabelos róseos sente, mais uma vez, entre as pernas, a língua áspera e macia de Conan, levando-a à loucura do prazer.


Mais alguns minutos, e a última ruiva dos Favorecidos – tão nua quanto o rei da Aquilônia – deita na cama o único homem que ganhara o direito de possuí-la, e, roçando a avermelhada mata pubiana no órgão latejante do cimério, Sonja monta sobre este, fazendo-o adentrar-lhe as entranhas úmidas e quentes entre gemidos de prazer.


A ruiva põe-se a subir e descer, não muito depressa, erguendo-se e baixando devagar, até envolver tudo o que ele tinha. Enquanto se movimentava, ela usava os músculos vaginais, para apertar e espremer, relaxar, apertar e espremer...


Conan começa a grunhir, logo começa a gritar, gritos ásperos e curtos, forçados de suas profundezas pela sensação da mulher subindo e descendo em seu membro, num ritmo cada vez mais intenso.


- Ahn... ahn... como é bom... continue, querido. – balbucia Sonja, até o homem alcançar o orgasmo.


Enquanto isto ocorre, Sonja empertiga o tronco, pairando acima do corpo de Conan, estremecendo-se toda, gritando de prazer, numa tremenda explosão de êxtase de desejo.


Após o primeiro clímax de prazer da hirkaniana, o bárbaro espera a ruiva relaxar, por alguns minutos, o corpo alvo sobre seu musculoso corpo moreno e, lembrando-se de uma fantasia que as mulheres de Zamora mostraram-lhe há muitos anos nas tabernas de Shadizar e Arenium (e que o cimério ensinara, muito depois, à sua falecida Zenóbia, nas últimas noites de amor com a saudosa rainha da Aquilônia), Conan ergue o descansado corpo de Sonja pelos ombros e sacode delicadamente os mesmos, fazendo tremerem os seios alvos e fartos da ruiva. Novamente excitado, o bárbaro de bronze suga-lhe o busto sofregamente, ao mesmo tempo em que volta a adentrá-la, até o prazer explodir novamente em ambos.


Então, após este segundo orgasmo, ambos relaxam, com Sonja deitando a cabeça ruiva sobre o forte peito grisalho do cimério. Minutos mais tarde, Conan diz à hirkaniana que lutará contra os pictos.


- Posso saber por quê? – pergunta a grisalha guerreira desnuda.


O cimério sorri com a pergunta.


- Ora, Sonja... Você sempre soube que o lado que você escolher, eu também escolho... Tem sido assim desde que nos conhecemos. – ele responde, com bom-humor.


A ruiva sorri e beija-lhe novamente os lábios. Conan, há doze meses sem possuir uma mulher, fica excitado pela terceira vez naquela noite e, então, novos beijos e carícias inundam os corpos desnudos do casal de guerreiros.


* * *


A lua, suspensa feito o olho pálido de um gigantesco ciclope, põe brilhos pálidos nos montículos de neve amontoados diante da choça de Sonja da Hirkânia, quando Ghonary, um jovem vanir loiro de vinte e dois invernos, os desfaz num agitado movimento de seus pés calçados em pêlo de urso.


Ele é alto e forte, e tem bem a aparência de um gigante do gelo. Move-se com a agilidade e liquidez com que se move a pantera ou o tigre. Os cabelos loiros e desarrumados caem sobre uma capa de pêlo de urso cinza que lhe protege os poderosos ombros do intenso frio nórdico. Por debaixo da capa, o braço direito, musculoso e ondulante, guia uma enorme mão ao cabo de uma rústica espada de ferro, mas pára, quando o rapaz olha para Sonja, sua mãe, e percebe, numa vênia da guerreira, a confirmação da dúvida expressa por seus olhos verdes. Ele sorri ao perceber as semelhanças físicas entre ele e o gigante moreno de cabelos negros à sua frente – cuja aparência é indiscutivelmente a de um cimério. Ghonary relembra, então, as histórias contadas por Sonja a respeito do homem que o gerou. “Por Ymir e Tarim, será que...?”, pensa o loiro, intrigado.


Conan, o cimério, reconhecendo na figura inquieta à sua frente seu próprio semblante, com a mesma testa larga, ligeiramente saliente, e a mandíbula quadrada e barbada, a despeito de o jovem ter a pele clara e os olhos verdes, adianta-se e diz:


- Bem-vindo ao lar, Ghonary! Sou Conan da Ciméria, um velho amigo de sua mãe.


- Se você é o mesmo Conan de que sempre falou minha mãe... então... você é meu pai, não é?


- Sim, garoto. Mas eu não sabia disso até reencontrar sua mãe. Mas Crom me carregue se eu não estiver contente e orgulhoso por ter um filho como você!


Dizendo isso, Conan avança num grande passo, tal qual um leão saltando, e abraça o jovem loiro, que era quase da sua altura, conferindo à cena o aspecto que se tem da impressão de ver dois gigantescos deuses enfrentando-se num embate titânico.


Sonja, a ruiva, mantendo-se a curta distância dos dois, sorri em seu íntimo, e volta-se, com a elegância beligerante que lhe é peculiar, para adentrar a choça.


* * *


Interrogado por Ghonary sobre o porquê de ter se aliado aos vanires, Conan fala de suas rixas, muito maiores com os pictos que com os ruivos. Em suas mais de seis décadas, o cimério de bronze tivera amizades mais duradouras com vanires, enquanto com os pictos ele só tivera alguns aliados ocasionais no passado. E, apesar de os vanires terem atacado sua tribo por três vezes, ele perdera, na Fronteira Bossoniana há mais de 26 anos, vários amigos, como os aquilonianos Balthus e Laodamas, por culpa direta dos pictos. Deste modo, ao atravessar o rio Trovão, o cimério seguiu o bando de saqueadores pictos do Clã do Lobo – o causador direto da morte de Laodamas. Disposto a vingá-lo, o cimério matou o líder daquele bando, mas fora acertado por uma pedrada na cabeça que fê-lo desmaiar, ser capturado vivo e vendido ao Clã dos Águias, que carregaram-no por mil e seiscentos quilômetros na direção oeste, até a aldeia do líder deles, da qual Conan conseguiu fugir, sobrevivendo de nozes, raízes e rãs cruas, até a Baía de Korvella.


- Depois, voltei a ser pirata baracho e, vaguei pelos Reinos Negros. Após saber de uma guerra por aqui, fui trazido para cá. – conclui Conan, omitindo o fato de, cinco anos depois da sua segunda fase de baracho, no navio Mão Vermelha, ter sido reencontrado por amigos aquilonianos que ajudaram-no a conquistar o trono do maior reino hiboriano do ocidente.



3)


Flocos brancos de neve sobem a cada moreno picto, ou mestiço ou vanir ruivo que cai ao chão, enquanto ferozes rostos brancos, sob barbas ruivas, exultam a cada golpe sangrento de seus enormes machados prateados, ocorrendo o mesmo com os mestiços de cabelos loiros e castanhos, e, é claro, com os atarracados antagonistas morenos, com seus rostos tatuados a expelirem ódio pelos não menos ferozes olhos pictos, cujas cores, naquela fortaleza de mestiços, variavam do negro ao azul. É que, naquele forte, todos os homens brancos, ainda que miscigenados, se auto-denominam vanires e adoram Ymir, enquanto qualquer pessoa de pele morena se considera picto e segue Jhebbal Sag, mesmo que não tenha olhos escuros.


De longe, o jovem loiro Ghonary parece, assim como a mãe, combinar a força de um lenhador vanir com a agilidade de um lutador khitaiano. “Nada mal”, pensa o cimério que, apesar da idade, era o mais perigoso, atrevido e inatingível dos lutadores. Embora menos forte que na juventude, Conan tinha uma habilidade de espadachim muito superior à de 45 anos atrás, quando fugira dos calabouços da Hiperbórea para se aventurar nos reinos do sul.


Se Locrin, primo de Conan, pudesse vê-lo naquele instante, a decepar cabeças e membros com extrema facilidade, ele pensaria estar vendo o próprio tio, o ferreiro Corin, pai de Conan. Mais espantado o primo ficaria, se visse o mais habilidoso dos Falcões da Neve partindo em duas metades – da cabeça à genitália – um ululante atacante picto, com a mesma precisão que partira o líder guerreiro Maglocun, do clã cimério dos Diarmiads, na sua frente, há mais de três décadas.


Ao mesmo tempo, Sonja, lutando ao lado de um gigantesco vanir, vê o mesmo ser surpreendido por um atarracado picto, que crava mortalmente, até o cabo, sua espada na virilha do ruivo. Enquanto este cai moribundo na neve, com o sangue jorrando-lhe aos borbotões, a hirkaniana o vinga, decepando a calota craniana do picto com um só golpe de sua longa espada, numa explosão de sangue e miolos sobre o rosto tatuado do selvagem.


A luta prossegue, feroz, ao mesmo tempo em que Conan espeta o coração de um e Sonja abre o ventre de outro. Então, enquanto Ghonary atravessava o pescoço de um rival com sua longa espada, Sonja defrontou-se com um musculoso antagonista que, apesar de ser alto e ter olhos azul-esverdeados, era tão moreno e tatuado quanto qualquer picto atarracado dos sertões a sudoeste de Vanaheim. Sem uma palavra, a ruiva e o mestiço de picto começam a cruzar espadas, sem darem trégua, durante vários minutos. “Será que este cão sabe do meu Juramento e, por isso, não quer me matar?”, pensa Sonja, por um instante. Logo depois, ela vê, pelo olhar, que aquele jovem de barba negra quer mesmo é matá-la. Por um momento, ele pensa ter desequilibrado a hirkaniana, com um golpe dirigido ao pescoço da ruiva que se esquiva, abaixando-se. O picto mestiço só percebe seu erro tarde demais, quando sente a espada de Sonja perfurá-lo entre o pescoço e o queixo, até a metade do cérebro.


De repente, Conan avista guerreiros loiros, ruivos e de cabelos castanhos soltarem cães de guerra em direção às mulheres e crianças morenas daquele forte. Indignado, ele investe contra os animais, soltando seu furioso grito-de-guerra cimério e matando-os com golpes de espada ou por estrangulamento. Sonja e Ghonary partem para ajudá-lo, mais por consideração a ele que por precaução. Após os cães assassinos serem mortos, o bárbaro da Ciméria investe contra os guerreiros que os soltaram, antes que estes matem outras mulheres e crianças, ao mesmo tempo em que avista a inconfundível e impassível figura do xamã Gunar e percebe de imediato que este fora o mandante daquela covardia.


Após vingar as mulheres e crianças mestiças de pele morena – ali consideradas pictas –, Conan caminha em direção a Gunar, com a espada pingando sangue e os olhos azuis faiscando de fúria.


- Da próxima vez, vê se controla seus cães, bruxo vanir! – diz Conan, encarando o xamã a poucos centímetros da face.


- De que cães está falando, cimério? Das mulheres e crias de pictos, que foram mortos? – pergunta, cinicamente, o líder ruivo.


- Estou falando dos cães que você mandou soltar contra gente inocente, e dos cães que obedeceram a sua ordem covarde! – retruca o moreno da Ciméria, com penachos de fumaça gelada saindo de suas narinas, mais pela fúria e pela revolta do que pela luta – Estou lhe avisando que não admito isso, nem mesmo de um superior!


E, dito isso, Conan vira abruptamente as costas ao xamã e, a passos largos, atravessa o enorme campo aberto, em direção aos aposentos.


Embora não digam nada, a maioria dos partidários de Gunar considera aquela atitude uma afronta, enquanto Sonja e Ghonary, apesar de acharem temerária aquela forma de Conan se comportar perante um líder feiticeiro, não deixam de dar razão ao cimério. Desentendimentos entre líderes e seus guerreiros não justificam o derramamento de sangue inocente. Além disso, a ruiva e seu filho também nunca morreram de amores por feiticeiros – apesar do desprezo de Conan por magos ser maior que o de Sonja e Ghonary.


* * *


“Quem aquele estrume cimério pensa que é, para questionar minhas decisões?”, diz, silenciosamente em seus aposentos naquela noite, o velho Gunar, que apesar dos poucos fios brancos na barba e cabeleira ruiva, tem o rosto alvo tão enrugado quanto um pergaminho pré-Cataclísmico.


Então, o xamã vanir começa a lançar pós mágicos sobre sua lamparina de pedra, a fim de descobrir a origem daquele cimério. Súbito, imagens começam a surgir na fumaça: a de Conan da Ciméria, há um ano atrás, sem barba e melancólico sobre o cadáver de uma bela mulher alva, de cabelos escuros, enquanto uma parteira, não menos triste, carrega nos braços uma menina recém-nascida; a seguir, aquele mesmo homem, dois anos mais jovem, lutando uma sangrenta e decisiva batalha contra homens-serpente no litoral sul do continente, ao lado de um garoto moreno e muitíssimo parecido com ele; depois, ele é mostrado ainda mais jovem, com a cabeleira totalmente negra, derrotando conspirações contra seu reinado, feitas por reis vizinhos e feiticeiros.


Reinado?! Sim! Naquele momento, recuando ainda mais no passado, Gunar vê uma imagem do cimério num palácio, estrangulando um rei no próprio trono deste e se auto-coroando! E todos gritam: “Vida longa ao rei Conan da Aquilônia!”.


Então, com um sorriso diabólico no rosto e um plano em mente, o chefe vanir manda que lhe chamem secretamente seu rival, o chefe picto Iranyr.


* * *


Naquela mesma noite, já de madrugada, o feiticeiro picto, de nome Iranyr, ajoelha-se, nos aposentos de Gunar, diante de um pequeno vaso com incenso, pronunciando palavras mágicas. Entre Iranyr e o vaso fumegante, encontram-se três bonecos de pano: um de cabelos negros, um loiro e o último, ruivo, com características femininas.


Sobre eles, o picto ergue um morcego mumificado e pronuncia, no meio de várias palavras rituais, os nomes “Ghonary”, “Sonja” e “Conan”. Concluído o ato, Iranyr e Gunar sorriem de satisfação e, num tom conspirador, começam a arquitetar um plano.


Ghonary havia avistado, algum tempo antes, o xamã Iranyr dirigir-se aos aposentos de Gunar. Intrigado, o loiro seguiu furtivamente para lá, mas só chegou a tempo de ouvir as últimas palavras trocadas entre os bruxos. Alarmado, o jovem, mesclando-se às sombras do forte, e tão silencioso e rápido quanto uma pantera, corre em direção aos aposentos onde dormem seus pais.



4)


Em meio a clangores metálicos; gritos de fúria, dor e triunfo; sons de metais afundando e cortando carnes e ossos, e sangrentos redemoinhos de guerreiros agasalhados em peles sob prateadas cotas-de-malha, Ghonary reconhece a perigosa figura ruivo-aloirada da guerreira quase vanir Erjfra, investindo contra Sonja, a qual ocupa-se enfrentando um picto. Com o cimério afastado alguns metros da hikaniana, o feroz loiro arremessa seu enorme machado em direção à espessa cabeleira dourada de Erjfra, partindo em dois a nuca da mulher.


No instante seguinte, o jovem guerreiro ofegante, com penachos de fumaça gelada a saírem de sua boca e narinas sobre uma loira barba trançada, é atacado por um atarracado e barbudo moreno picto, que tenta esfaquear o filho de Conan e Sonja. Ghonary o reconhece, embora não lembre seu nome: é o velho e grisalho marido – agora viúvo – da mulher que acabara de matar. O loiro já o odiava pelo fato deste usar de violência com os próprios filhos – coisa que Sonja jamais fizera com o valoroso rapaz – e, embora desarmado, Ghonary descarrega sua fúria no traidor picto, quebrando-lhe o punho que segurava a adaga, enquanto, com a outra mão, o jovem agarra a garganta do velho, até quebrar-lhe o pescoço, com as vértebras esmagadas em inúmeros pequenos pedaços sob a carne amolecida.


Um mestiço, de estatura mediana, corpo robusto e ralos cabelos castanhos, gira um enorme machado vanir de duas lâminas, a fim de arremessá-lo em Ghonary, mas este, com os aguçados instintos e agilidade herdados do pai, dá meia-volta e, numa rapidez assombrosa, arremessa, certeiro, o punhal do falecido viúvo de Erjfra na testa do mestiço de pictos com vanires, enquanto este cai para trás, com os olhos verdes arregalados e o enorme machado caindo, de suas mãos paralisadas, sobre a neve rubra.


Então, com um selvagem grito, mais assustador que o do pai cimério, Ghonary desembainha sua longa espada e, sem esperar pelo ataque, investe contra o redemoinho humano que se forma a seu redor, abrindo crânios, peitos e intestinos; decepando, aleijando, esmurrando e chutando como um possesso e sem errar um único golpe, banhando-se quase completamente de sangue rival.


Nisso, Conan já havia se aproximado de Sonja, lutando a seu lado. Por si só, o casal seria a mais formidável dupla de lutadores, se não fosse o jovem que, nas habilidades de luta, honrava o orgulho dos pais. Mas, se não fosse pela inesperada ajuda de dez circunstanciais aliados ruivos, de olhos tão frios e acinzentados quanto as lâminas que empunham, o cimério e a ruiva já teriam perecido. O rei da Aquilônia, apesar de não matar mulheres, sorri orgulhoso. Conan não pode censurar aquele filho, já que o mesmo crescera apenas com a mãe, a qual matava, em batalhas e duelos, tanto homens quanto mulheres.


- Aqui, filho! – grita o grisalho cimério de olhos azuis. Embora Ghonary estivesse saindo-se bem na luta, apesar de cercado, o jovem de barba loira ficaria mais seguro se lutasse junto aos pais e aos vanires aliados. Ciente disso, e ao mesmo tempo sentindo um diferente e agradável alento, em ouvir a palavra “filho” numa voz masculina, o vanir de ascendência ciméria abre caminho entre os atacantes que se interpõem entre ele e os pais, até chegar perto destes.


Conan pretendia abrir caminho em direção ao portão sul ou leste, para, deste modo, fugir, com a companheira, filho e aliados, para a sua Ciméria natal. Contudo, apesar de suas habilidades em luta, eles eram poucos em comparação às várias dezenas de pictos, vanires e mestiços que, além de barrarem-lhes o acesso para fora do forte, ameaçavam esmagá-los a cada minuto que passava, com sua superioridade numérica.


Em meio à batalha, eles formavam um último e desesperado núcleo de sobreviventes. De pé, sobre vários cadáveres morenos, loiros e de cabelos castanhos, lutavam desesperadamente o rei bárbaro da Aquilônia, Conan da Ciméria, cujos olhos azuis ardiam numa incontida fúria vulcânica a cada golpe mortífero de sua longa espada; sua companheira, a ruiva Sonja, da Hirkânia, cuja habilidade guerreira era quase igual à do monarca moreno, bem como o jovem loiro Ghonary de Vanaheim, filho do casal e tão bom lutador quanto a mãe, além dos dez guerreiros vanires não-miscigenados, que tomaram o partido dos três mercenários.


Estes últimos – Conan, Sonja e Ghonary – formavam os vértices de um inexpugnável triângulo de músculos e de aço, resistindo bravamente contra dezenas de guerreiros – pictos ou mestiços destes com vanires, cuja mistura gerara, há décadas, homens de cabelos castanhos ou loiros.


A formação descrita fora elaborada pelo próprio cimério – veterano em muitas batalhas, tanto antes quanto depois de tornar-se rei da Aquilônia. Aliás, este fora, teoricamente, o motivo pelo qual os líderes daquela fortaleza colocaram toda a população local contra o casal de implacáveis guerreiros, o filho destes últimos e os poucos que se aliaram ao moreno, à ruiva e ao loiro.


Na verdade, fora o desentendimento entre Conan e o xamã vanir, de nome Gunar, que fizera este se aliar ao líder picto Iranyr contra a pequena família guerreira e contra qualquer um que se aliasse aos três maiores lutadores mercenários daquele forte glacial. Ambos os chefes, após saberem, por magia, que Conan era o rei da Aquilônia, alegaram que o cimério pretendia anexar o forte àquele próspero reino hiboriano. De nada adiantara Conan negar tal calúnia; o povo daquele lugar acreditava mais na palavra de seus líderes.


E pior: Conan e Sonja descobriram, através do filho, que ambos os xamãs pretendiam usar aquele exército mestiço para dominarem a Ciméria. Não o conseguiriam, com certeza, mas as tribos do norte da terra natal de Conan – dentre elas a dos Falcões da Neve – seriam fatalmente destruídas, assim como os amigos do rei da Aquilônia e seu único parente vivo: o primo Locrin, agora pai de família.


Então, com suas cotas-de-malha riscadas e manchadas de sangue – mais alheio que deles – e as roupas de pele de urso pardo e bisão bastante rasgadas pelos inúmeros golpes de machados e espadas de ferro e aço, os treze guerreiros sobreviventes se preparam para morrerem lutando sem se entregarem.


É naquele momento, em que tudo parece perdido, que uma estranha aparição desce dos céus, flutuando de pé e fazendo todos, tomados pelo espanto, pararem aquela guerra desigual: é uma belíssima mulher, de estatura superior a 1m70, pele negra como ébano, negros cabelos crespos, nariz largo e lábios grossos, em contraste com as alvas roupas, de pele de urso polar, e, sobretudo, com os olhos, de um azul tão intenso quanto os de Conan – talvez até mais.


Quando a estranha e esbelta jovem pousa na neve, ela fala em tom melodioso, porém severo:


- Gunar e Iranyr! Por que caluniam o mais bravo e nobre guerreiro desta época? Quando vi, décadas atrás, pictos aliados a vanires, pela primeira vez na história desta região, imaginei esta fortaleza como o prenúncio de uma Era de paz e de tolerância. Agora que vocês se aliaram, o fazem só para denegrir a imagem daquele cimério?


Ambos os xamãs são tomados pelo espanto. Como aquela mulher, aparentemente jovem e estrangeira, poderia saber a respeito de seus planos?


- Não se meta no que não é de sua conta, bruxa! – grita bruscamente o ruivo Gunar, após um breve silêncio e estendendo o braço com a mão aberta em direção à beldade, no que é imitado por Iranyr. Qualquer humano comum teria morrido diante daquele gesto feiticeiro, mas ela em nada fora afetada: apenas piscou os olhos, fazendo Iranyr e Gunar queimarem e, em poucos segundos, implodirem em forma de cinzas fumegantes, para horror e pânico de todos os homens, mulheres e crianças do forte.


O que ocorreu em seguida foi uma verdadeira carnificina: não adiantou ninguém lutar, correr ou gritar. Um a um, homens, mulheres, crianças e velhos, apavorados ou irados, têm o mesmo destino dos líderes da fortaleza. Até mesmo o cimério e a ruiva – que já presenciaram as mais atrozes execuções, as mais terríveis chacinas e que já participaram das mais sangrentas batalhas daquela época – sentiram seus estômagos se revolverem ante o cheiro revoltante de carne humana queimada. Preparados para o que der e vier, os treze guerreiros agarram fortemente os cabos de suas respectivas armas. Mesmo que fossem atacados por aquela estranha mulher, nenhum membro daquele pequeno núcleo de resistência pretendia encarar passivamente a morte.


Após apenas dois minutos de um terrível pandemônio e uma brutal chacina, só restam dezenas de montes de cinzas, espalhados pelo chão nevado, e o mesmo ocorre logo depois com todo o forte de madeira. Apenas Conan, Sonja, Ghonary e os dez bravos vanires – os quais não eram parentes nem amigos do povo do forte – foram poupados, não pelo mero fato de estarem em campo aberto, mas, sobretudo, pelo capricho – ou boa-vontade – daquela mulher, ao mesmo tempo carniceira e digna. Este último adjetivo se deveu às seguintes palavras:


- Vocês treze serão poupados pela vossa dignidade.


No momento seguinte, contudo, uma medonha criatura alada desce do céu azul, de uma altura vertiginosa e numa velocidade estonteante. Trata-se do mesmo homem-pterodáctilo que arrastara o cimério, da Gunderlândia até Vanaheim, e que agora investe mortalmente em direção a Conan, Sonja e Ghonary. Tão velozes quanto a criatura, os três guerreiros conseguem arranhar-lhe as garras da perna esquerda e abrir-lhe um talho na coxa direita. Mas isso não basta para enfraquecer o monstro híbrido que, numa agilidade impressionante, consegue se esquivar das poucas lanças vanires que lhe são atiradas pelos ruivos.


Percebendo que os treze guerreiros têm pouca ou nenhuma chance contra aquele ser sobrenatural, a negra estende a mão aberta em direção ao monstruoso ser alado. Este começa a sentir dor e investe contra a bela mulher flutuante. Crispando o belo rosto de ébano numa careta de esforço, ela consegue matar a criatura em pleno vôo, derretendo-lhe a pele, carne e órgãos, e reduzindo-a a uma inofensiva pilha de ossos fumegantes, que cai sobre a neve.


Enquanto a aparição levita de volta aos céus, diante dos olhares interrogativos e admirados dos guerreiros, o rei cimério dá meia-volta e diz:


- Vou à Ciméria, visitar um primo meu, na minha tribo natal. – diz Conan, dirigindo um olhar de admiração ao filho, bem como outro, de admiração e desejo, à guerreira Sonja.


A ruiva sorri, agradecida, e prepara-se para responder algo, mas o loiro Ghonary se adianta:


- Ficaremos aqui, meu pai. Mesmo porque, nenhum de vocês sabia que ela estava grávida. Meu destino é a costa picta e, como minha própria mãe me disse, eu sei que você não conseguiria ficar aqui, preso a uma terra de inimigos dos cimérios. Já é difícil, para mim, ser meio cimério, e ainda por cima, com aparência aesir... – responde o jovem guerreiro loiro, surpreendendo os pais com a maturidade de suas palavras – Além disso, minha mãe também me contou que você é um viajante, um aventureiro sem pouso fixo, como eu talvez me torne, e que veio para cá involuntariamente. De qualquer forma – ele conclui, num largo, sincero e amigável sorriso de bárbaro –, quando quiser voltar, eu e Sonja estaremos lhe esperando de braços abertos.


Sonja e Conan sorriem, surpresos e orgulhosos com as palavras do filho.


Emocionados, Conan e Ghonary trocam um forte abraço. Este último afasta-se em seguida alguns metros, a fim de deixar os pais trocarem um beijo de despedida. Enquanto beija, longa e ardorosamente, os lábios rosados da ruiva, o cimério sorri em seu íntimo, lembrando que, há 22 anos no sul da Ciméria, quando o loiro fora gerado, a hirkaniana lhe recusara um último beijo antes de ir para Vanaheim.


Por outro lado, Conan pensa, por um momento, na solidão que sentira, nos doze meses entre sua viuvez e seu reencontro com Sonja, e imagina se a Aquilônia não estaria precisando de uma nova rainha, uma rainha-guerreira da qual qualquer rei se orgulharia de ter ao lado, para governar durante os dias e amá-lo durante as noites. Com este pensamento, o cimério dirige-se à ruiva em Aquiloniano, perguntando-lhe o que acha dela e do filho seguirem com ele e os dez vanires até o reino que o grisalho Conan conquistara há 21 anos.


Mas, receosa que Ghonary reivindique o direito à herança do trono, por ser mais velho que Conn, ela prefere continuar morando em Vanaheim com o filho – e este está construindo um enorme navio para saquear a costa picta com um bando de aventureiros.


- Ele cuidará de mim na velhice, quando minha espada me falhar. Este é o nosso lugar, cimério. – acrescenta a ruiva, antes de trocar um novo beijo e abraço com Conan.


Então, ao dirigir os passos na direção sudeste com os vanires, o cimério ouve, atrás de si, a voz do filho:


- Que os deuses estejam com você, pai!


- E com vocês também... – responde Conan, olhando para trás, num sorriso – Todos, menos Crom! – ele acrescenta, gargalhando, enquanto desaparece no horizonte, sob os olhares, de admiração e orgulho, de Sonja e Ghonary.



5)


Atravessando a Ciméria à frente de seus dez vanires, Conan pede a eles pra passarem fuligem pelos cabelos, a fim de evitarem ataques de conterrâneos menos amigáveis do rei da Aquilônia. Após saber que seu primo Locrin – seu único parente vivo da tribo dos Canachs – se tornara avô, Conan segue para a Gunderlândia, onde reencontra Trocero e os soldados, e, após escolher o noivo de Alcina, segue com eles até Tarântia, onde incorpora os dez vanires aos Dragões Negros.


Logo após isto, o cimério voltaria a adotar os costumes de solteiro e formar um novo harém de belas concubinas. Nunca lhe foi difícil conseguir mulheres atraentes. O peculiar código de honra, que Conan tinha, lhe impedia de obrigar uma mulher a se entregar a seus braços. Mas sempre houve jovens desejosas de fazer parte do serralho real.


Nos anos seguintes, porém, quando a civilização hiboriana alcançou o mais magnífico ápice e todos os reis tinham ambições imperiais, Conan foi forçado a guerras de agressão, no mínimo por auto-preservação. Se ele obteve sucesso em conquistar um amplo império ou se pereceu tentando... isto é uma outra história
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