por Robert E. Howard,
originalmente publicado em outubro/ 1931
1) Aço na Tempestade
A ação foi rápida e desesperada: na luz efêmera, um feroz rosto barbado brilhou diante de Turlogh, e seu rápido machado golpeou, rachando-o até o queixo. Na breve e total escuridão que seguiu o clarão, um ataque invisível arrancou-lhe o capacete da cabeça e ele revidou cegamente o golpe, sentindo o machado afundar em carne e ouvindo um homem uivar. Novamente, os fogos dos céus furiosos explodiram, mostrando ao gaélico o círculo de rostos selvagens e a barreira de aço lampejante que o cercava.
De costas contra o mastro principal, Turlogh se esquivava e golpeava. Então, através da loucura da refrega, uma voz forte trovejou, e num breve instante, o gaélico teve um vislumbre de uma forma gigante – um rosto estranhamente familiar. Depois, o mundo explodiu em escuridão.
A consciência voltou aos poucos. Turlogh sentiu primeiro um movimento oscilante e abalado de seu corpo inteiro, o qual não conseguia evitar. Então, um surdo latejar de sua cabeça o atormentou, e ele tentou erguer as mãos até ela. Logo, percebeu que estava amarrado pelas mãos e pés – o que não era uma experiência totalmente nova. O clarear de sua visão o mostrou que estava amarrado ao mastro do navio-dragão, cujos guerreiros haviam derrubado-o. Por que haviam poupado-o, ele não conseguiu entender, porque se eles o conheciam totalmente, sabiam que era um fora-da-lei – um exilado de seu clã, que não pagaria resgate para salvá-lo das próprias covas do Inferno.
O vento havia caído fortemente, mas um mar denso estava fluindo, e agitava a longa embarcação como uma lasca num redemoinho de ondas espumantes. Uma esférica lua prateada, entrevista através de nuvens irregulares, iluminava as grandes ondas agitadas. O gaélico, criado na selvagem costa oeste da Irlanda, percebeu que o navio-serpente estava enfraquecido. Ele poderia garanti-lo pela forma como o navio lutava contra o mau tempo, avançando com dificuldade pela espuma, submergindo parcialmente ao erguer dos vagalhões. Bom, a tempestade que rugia nestas águas meridionais havia sido suficiente para danificar até mesmo uma embarcação sólida como esta, feita por estes vikings.
O mesmo temporal havia pegado o navio francês no qual Turlogh havia sido um passageiro, desviando-o do seu curso, para bem longe ao sul. Os dias e noites foram um cego caos uivante, onde a embarcação havia sido arremessada violentamente, voando como um pássaro ferido diante da tempestade. E, no próprio suplício do temporal, uma proa com esporão avultara rapidamente sobre a embarcação menor e mais larga, e os ganchos de abordagem haviam se cravado nela. Sem dúvida, aqueles nórdicos eram lobos e a ânsia de sangue que queimava em seus corações não era humana. No terror e no rugir da tempestade, haviam saltado uivando no ataque e, enquanto os céus furiosos lançavam sua inteira fúria sobre eles e cada impacto das ondas furiosas ameaçava afundar ambos os navios, aqueles lobos do mar saciaram a fúria deles ao extremo – verdadeiros filhos do mar, cujas fúrias mais selvagens encontravam eco em seus próprios peitos. Fora mais uma matança que uma luta – o celta havia sido o único lutador a bordo da embarcação condenada –, e agora ele lembrava da estranha familiaridade do rosto que vislumbrara, logo antes de ser derrubado. Quem... ?
- Salve, meu destemido dalcasiano; há quanto tempo que não nos encontramos!
Turlogh encarou o homem que se erguia diante dele, com os pés firmados no convés. Era de enorme estatura, medindo pelo menos meia cabeça a mais que Turlogh, o qual media mais de um metro e oitenta. Suas pernas eram como colunas, e seus braços eram como carvalho e ferro. Sua barba era de ouro encaracolado, semelhante aos sólidos braceletes que usava. Um colete de malha de escamas, somado à sua aparência bélica juntamente com o capacete de chifres, parecia aumentar seu peso. Mas não havia fúria nos calmos olhos cinzas que miravam tranqüilamente os ardentes olhos azuis do gaélico.
- Athelstane, o saxão!
- Sim... faz um longo tempo que você me deu isto. – o gigante mostrou uma fina cicatriz branca na têmpora – Parece que somos destinados a nos encontrar em noites de fúria... primeiro, cruzamos aço na noite em que você queimou a moradia de Thorfel. Então, caí ante o seu machado e você me salvou dos pictos de Brogar... ao contrário de toda a gente que seguia Thorfel. Esta noite, fui eu que lhe derrubei.
Ele tocou na grande espada presa aos ombros, e Turlogh praguejou.
- Não, não me faça injúria. – disse Athelstane, com uma expressão penalizada – Eu poderia tê-lo matado na multidão... Ataquei com a parte plana, mas sabendo que vocês, irlandeses, têm malditos crânios duros, ataquei com ambas as mãos. Você ficou inconsciente por horas. Lodbrog ia matá-lo, com o resto da tripulação do navio mercante, mas eu pedi por sua vida. Porém, os vikings só concordaram em poupá-lo com a condição de que você seria amarrado no mastro. Eles lhe conhecem há muito tempo.
- Onde estamos?
- Não me pergunte. A tempestade nos levou para longe de nosso curso. Estávamos navegando para pilharmos as costas da Espanha. Quando o acaso nos trouxe sua embarcação, nós evidentemente aproveitamos a oportunidade, mas o espólio era escasso. Agora estamos correndo ao sabor da maré, sem sabermos para onde. O leme está quebrado, e todo o navio está defeituoso. Devemos estar nos dirigindo à própria beirada do mundo, pelo que sei. Jure se juntar a nós, e eu lhe desamarrarei.
- Jure se juntar às hostes do Inferno! – rosnou Turlogh – Prefiro afundar com este navio e dormir para sempre sob as ondas verdes, preso a este mastro. Meu único arrependimento é o de não poder mandar mais lobos-do-mar, para se juntarem aos mais de cem que já enviei ao purgatório!
- Pois bem – disse Athelstane, de forma tolerante –, um homem precisa comer... Aqui. Soltarei pelo menos suas mãos... Agora, ponha os dentes neste quarto de carne.
Turlogh inclinou a cabeça até o grande pedaço e o devorou vorazmente. Um homem estranho – refletiu Turlogh –, este saxão renegado, que caçava com a alcatéia do Norte... um selvagem guerreiro em batalha, mas com índole gentil em sua composição, o que o colocava à parte dos homens com os quais convivia.
A embarcação cambaleava cegamente pela noite, e Athelstane, retornando com um grande chifre de cerveja espumante, percebeu o fato de que as nuvens estavam se juntando novamente e obscurecendo o rosto fervilhante do mar. Ele deixara as mãos do gaélico desamarradas, mas Turlogh estava firmemente atado ao mastro por cordas ao redor das pernas e corpo. Os piratas não davam atenção ao prisioneiro; estavam muito ocupados em evitar que seu enfraquecido barco afundasse sob seus pés.
Finalmente, Turlogh acreditou que podia ouvir um profundo rugido, acima do embate das ondas. O rugido aumentou, e até mesmo os escandinavos de ouvidos menos agudos escutaram-no; o navio saltou como um cavalo esporeado, forçando todas as madeiras. Como por mágica, as nuvens, iluminadas pela aurora, rolaram para os lados, mostrando uma desolação de agitadas águas cinzentas, e uma longa fileira de ondas, batendo numa praia adiante. Além da loucura espumante da linha de recifes, avultava terra – aparentemente, uma ilha. O rugido cresceu até proporções ensurdecedoras, enquanto a longa embarcação, pega no rasgão da maré, precipitou-se de ponta-cabeça para sua ruína. Turlogh viu Lodbrog correndo pelos lados, com a longa barba soprada pelo vento, enquanto brandia os punhos e berrava ordens em vão. Athelstane veio correndo pelo convés.
- Pouca chance pra qualquer um de nós – ele rosnou, enquanto cortava as amarras do gaélico –, mas você terá tanto quanto o resto...
Turlogh saltou, livre:
- Onde está meu machado?
- Lá, naquele cabide de armas. Mas, pelo sangue de Thor, homem... – assombrou-se o enorme saxão – Não vá se sobrecarregar agora...
Turlogh se apoderou do machado, e a confiança fluiu como vinho por suas veias diante da sensação familiar da fina e graciosa haste. Seu machado era parte dele, assim como sua mão direita; se tivesse que morrer, queria morrer com ele na mão. Ele o colocou apressadamente no cinto. Toda a armadura lhe fora tirada quando foi capturado.
- Há tubarões nestas águas. – disse Athelstane, se preparando para despir a cota-de-malha – Se tivermos que nadar...
A embarcação colidiu com um choque que arrebentou-lhe os mastros e estilhaçou sua proa como vidro. Seu bico de dragão foi lançado bem para o alto e os homens caíram, como pinos de boliche, do convés inclinado. Por um momento, se equilibrou, estremecendo como uma coisa viva; e então deslizou desde a oculta linha de recifes, e caiu, numa cegante nuvem de espuma.
Turlogh havia abandonado a cobertura, num longo mergulho. Agora, emergia na agitação, enfrentava as ondas por um louco momento, e então pegava um destroço que boiava na água. Enquanto se agarrava ao mesmo, uma forma colidiu contra ele e desceu novamente. Turlogh mergulhou profundamente o braço, agarrou um cinto de espada e ergueu o homem sobre a jangada improvisada. Por um momento, reconhecera o saxão Athelstane, ainda sobrecarregado com a armadura que não tivera tempo de tirar. O homem parecia atordoado. Estava fraco, com os membros pendentes.
Turlogh lembrou que deslizava pela onda como um pesadelo caótico. A maré os arrastou, mergulhando sua quebradiça embarcação nas profundezas, e depois lançando-os para os céus. Não havia nada a fazer, exceto persistir e confiar na sorte. E Turlogh persistia, agarrando o saxão com uma das mãos e sua balsa com a outra, enquanto seus dedos pareciam querer quebrar com o esforço. Por várias vezes, eles foram quase submersos; então, por algum milagre, atravessaram uma água relativamente calma, e Turlogh viu uma fina barbatana cortando a superfície a menos de um metro de distância. Ela rodopiou para dentro, e Turlogh pegou o machado e atacou. O vermelho tingiu as águas instantaneamente, e uma investida de formas sinuosas fez o destroço estremecer. Enquanto os tubarões dilaceravam seu irmão, Turlogh, remando com as mãos, apressava a rude jangada ao litoral, até conseguir sentir o fundo. Ele avançou com dificuldade até a praia, meio carregando o saxão. Depois, embora feito de ferro, Turlogh O’Brien caiu exausto e logo adormeceu profundamente.
2) Deuses do Abismo
Turlogh não dormiu por muito tempo. Quando ele acordou, o sol havia acabado de se erguer sobre a beira do mar. O gaélico se levantou, sentindo-se tão revigorado quanto se houvesse dormido por toda a noite, e olhou ao seu redor. A ampla praia branca se inclinava suavemente, da água até uma ondulante vastidão de árvores gigantescas. Parecia não haver vegetação rasteira, mas os enormes troncos estavam tão próximos, que sua visão não conseguia penetrar na selva. Athelstane se encontrava a alguma distância, num banco de areia que adentrava o mar. O enorme saxão se apoiou em sua grande espada, e olhou atentamente em direção à linha de recifes.
Aqui e ali na praia, jaziam as figuras imóveis que foram lançadas ao litoral. Um súbito rosnado de satisfação apareceu nos lábios de Turlogh. Aqui, aos seus próprios pés, havia um presente dos deuses: um viking morto jazia ali, totalmente blindado no elmo e na cota-de-malha que não tivera tempo de tirar, e que Turlogh viu que eram seus. Até mesmo o pequeno escudo redondo, preso por uma correia nas costas do escandinavo, era seu. Turlogh parou para se perguntar como todos os seus apetrechos ficaram sob a posse de um só homem, mas despiu o morto, e se vestiu com o capacete simples e redondo, e o colete de negra malha metálica. Armado desta forma, ele subiu a praia em direção a Athelstane, com os olhos brilhando de forma nada agradável.
O saxão se virou enquanto ele se aproximava.
- Salve, gaélico. – ele saudou – Somos os únicos sobreviventes da tripulação do navio de Lodbrog. O faminto mar verde levou a todos eles. Por Thor, devo minha vida a você! Ou com o peso da malha, ou com o quebrar de meu crânio no parapeito, eu certamente me tornaria comida de tubarão, se não fosse por você. Tudo agora parece um sonho.
- Você salvou minha vida – rosnou Turlogh –, eu salvei a sua. Agora, a dívida está paga, as contas estão acertadas; portanto, levante sua espada e vamos pôr um fim nisso.
Athelstane arregalou os olhos:
- Você quer lutar comigo? Por que... o que...?
- Odeio sua raça como odeio Satã! – rugiu o gaélico, com um toque de loucura nos olhos flamejantes – Seus lobos têm devastado meu povo por 500 anos! As ruínas fumegantes das Terras do Sul e os mares entornados de sangue gritam por vingança! Os gritos de mil garotas violadas ressoam em meus ouvidos, noite e dia! Eu queria que o Norte tivesse um só peito, para meu machado partir!
- Mas eu não sou nórdico. – resmungou o gigante, inquieto.
- Mais vergonhoso pra você, renegado. – rugiu o enlouquecido gaélico – Defenda-se, antes que eu lhe abata a sangue-frio!
- Esta não é a minha preferência. – afirmou Athelstane, erguendo a poderosa lâmina, com os olhos cinzas sérios, mas sem medo – Os homens falam a verdade quando dizem que há loucura em você.
As palavras cessaram, quando os homens se prepararam para entrar em ação. O gaélico se aproximou de seu inimigo, agachando-se como uma pantera, com os olhos inflamados. O saxão esperou o ataque, com os pés firmemente afastados e a espada segura no alto por ambas as mãos. Era o machado e o escudo de Turlogh contra a espada de Athelstane, numa disputa em que um ataque poderia acabar com qualquer um dos dois. Como duas grandes feras da selva, eles executavam seu jogo mortal e cauteloso...
Mesmo enquanto os músculos de Turlogh se contraíam para o salto mortal, um som terrível quebrou o silêncio! Ambos os homens se sobressaltaram e recuaram. Das profundezas da floresta atrás deles, se erguia um grito medonho e inumano. Estridente, embora de grande volume, ficava cada vez mais alto, até acabar no tom mais alto, como o triunfo de um demônio, como o grito de algum ogro pavoroso que exultava sobre sua presa humana.
- Sangue de Thor! – ofegou o saxão, deixando cair a ponta da espada – O que foi isso?
Turlogh sacudiu a cabeça. Mesmo seus nervos de ferro estavam levemente abalados:
- Algum demônio da floresta. Esta é uma terra estranha, num mar estranho. Talvez o próprio Satã reine aqui, e este seja o portão para o Inferno.
Athelstane parecia incerto. Ele era mais pagão do que cristão, e seus demônios eram demônios pagãos. Mas eram menos ameaçadores em relação àquilo.
- Bem – disse ele –, vamos pôr nossa briga de lado, até vermos o que pode ser. Duas lâminas são melhores que uma, sejam para homem ou demônio...
Um selvagem grito estridente o interrompeu bruscamente. Desta vez, era uma voz humana, de gelar o sangue em seu horror e desespero. Simultaneamente, veio o rápido tropel de pés e a pesada arremetida de algum corpo compacto por entre as árvores. Os guerreiros viraram-se na direção do som e, para fora das sombras profundas, uma mulher seminua veio correndo, como uma folha branca soprada pelo vento. Seu cabelo solto ondulava como uma chama dourada atrás dela, seus membros brancos reluziam à luz da manhã e seus olhos resplandeciam em desvairado terror. E atrás dela...
Até o cabelo de Turlogh se arrepiou. A coisa que perseguia a garota fugitiva não era nem homem nem animal. Sua forma era semelhante à de um pássaro, mas um pássaro como o resto do mundo não vira por toda uma era. Media mais de 3,60m de altura; e sua cabeça maligna, de perversos olhos vermelhos e cruel bico curvado, era tão grande quanto a de um cavalo. O longo pescoço arqueado era mais grosso que a coxa de um homem, e os pés com garras enormes poderiam agarrar a mulher que fugia, como uma águia agarra um pardal.
Tudo isso, Turlogh viu num relance, enquanto se lançava entre o monstro e sua presa, que caiu gritando sobre a praia. Avultou sobre ele como uma montanha de morte, e o funesto bico se arremessou para baixo, amassando o escudo que ele erguera e fazendo-o cambalear com o impacto. No mesmo instante, ele atacou, mas o machado afiado afundou inofensivamente numa massa almofadada de penas pontudas. Novamente, o bico relampejou em sua direção, e seu pulo para um lado salvou-lhe a vida por um triz. E então, Athelstane correu para dentro e, afastando firmemente os pés, girou sua grande espada com ambas as mãos e toda a sua força. A poderosa lâmina tosquiou uma das pernas em forma de árvore, sob o joelho, e com um guincho repugnante, o monstro caiu para um lado, batendo selvagemente as curtas asas pesadas. Turlogh dirigiu a ponta da parte posterior de seu machado entre os resplandecentes olhos vermelhos, e o gigantesco pássaro chutou convulsivamente e ficou imóvel.
- Sangue de Thor! – os olhos cinzas de Athelstane brilhavam com ânsia por batalha – Nós realmente chegamos à borda do mundo...
- Fique de olho na floresta, para que não apareça outro. – disse bruscamente Turlogh, voltando-se para a mulher, que havia se arrastado sobre os próprios pés e ficou ofegando, com os olhos arregalados de espanto. Era uma jovem esplêndida: alta, de membros formosos, esguia e bem-torneada. Sua única veste era um simples pedaço de seda, que pendia de forma negligente ao redor dos quadris. Mas, embora a escassez de sua roupa sugerisse a selvagem, sua pele era branca; o cabelo solto, de ouro puro, e os olhos, cinzas. Agora ela falava apressadamente e gaguejando, em língua escandinava, como se não falasse assim há anos.
- Vocês... quem são vocês, homens? Quando chegaram? O que fazem na Ilha dos Deuses?
- Sangue de Thor! – retumbou Athelstane – Ela é de nossa própria raça!
- Não da minha! – retrucou Turlogh, incapaz, mesmo naquele momento, de esquecer seu ódio pelo povo do Norte.
A garota olhou curiosa para os dois.
- O mundo deve ter mudado bastante, desde que eu o deixei – ela disse, evidentemente em pleno controle de si mesma, mais uma vez –, de outro modo, como é este, em que lobo e touro selvagem caçam juntos? Pelo seu cabelo negro, você é gaélico; e você, homem agigantado, tem uma pronúncia indistinta em sua fala, que não pode ser outra, senão saxônica.
- Somos dois proscritos. – respondeu Turlogh – Está vendo os mortos espalhados pela praia? Era a tripulação do navio-dragão que nos trouxe aqui, levado pela tempestade. Este homem, Athelstane, outrora de Wessex, era um espadachim naquela embarcação, e eu era um prisioneiro. Sou Turlogh Dubh, outrora um chefe do clã dos O’Brien. Quem é você e que terra é esta?
- Esta é a terra mais antiga do mundo. – respondeu a jovem – Roma, Egito, Cathay(*) são meras criancinhas ao lado dela. Eu sou Brunhild, filha do filho de Rane Thorfin, das Órcades, e até poucos dias atrás, rainha deste antigo reino.
Turlogh olhou incerto para Athelstane. Isto soava como feitiçaria.
- Depois do que acabamos de ver – retumbou o gigante –, sou capaz de acreditar em qualquer coisa. Mas, você é mesmo a filha raptada do filho de Rane Thorfin?
- Sim! – gritou a garota – Sou ela! Fui roubada, quando Tostig, o Louco, atacou de surpresa as Órcades e queimou a terra de Rane, na ausência de seu mestre...
- E depois, Tostig desapareceu da face da terra... ou do mar! – interrompeu Athelstane – Ele era mesmo um louco. Naveguei com ele para uma pilhagem marinha, muitos anos atrás, quando eu era apenas um rapaz.
- E sua loucura me lançou nesta ilha – respondeu Brunhild –; pois, depois que ele pilhou as costas da Inglaterra, o fogo em seu cérebro o levou a mares desconhecidos... para o sul, para o sul e cada vez mais para o sul, até os ferozes lobos que ele comandava resmungarem. Então, uma tempestade nos arrastou para aqueles recifes, embora em outra parte, dilacerando o navio-dragão, exatamente como fez com o seu na noite passada. Tostig e todos os seus homens fortes morreram sob as ondas, mas eu me agarrei aos destroços do naufrágio, e um capricho dos deuses me lançou à praia, meio morta. Eu tinha quinze anos. Isso foi há dez anos atrás.
“Encontrei um povo estranho e terrível morando aqui; um povo de pele marrom que conhecia muitos segredos obscuros de magia. Eles me encontraram inconsciente na praia, e como eu era a primeira mulher branca que viram, seus sacerdotes predisseram que eu era uma deusa dada a eles pelo mar, a quem cultuavam. Assim, me colocaram no templo, com o restante de seus deuses estranhos, e me reverenciaram. E o alto sacerdote, o velho Gothan... maldito seja seu nome!... me ensinou muitas coisas estranhas e temíveis. Logo, aprendi a linguagem e muitos dos mistérios mais íntimos deles. E, à medida que eu alcançava a idade adulta, o desejo por poder se movia em mim; pois as pessoas do Norte são feitas para governar o povo do mundo, e não é para a filha de um rei do mar se sentar pacientemente num templo e aceitar as oferendas de frutas, flores e sacrifícios humanos!”.
Ela parou por um momento, com os olhos resplandecendo. De fato, ela parecia uma filha virtuosa da raça feroz da qual se arrogava.
- Bem... – ela continuou – havia um que me amava... Kotar, um jovem chefe. Com ele, eu conspirei e finalmente me insurgi e me livrei do jugo do velho Gothan. Foi um período selvagem de conspiração e contra-conspiração, intriga, rebelião e rubra carnificina! Homens e mulheres morriam como moscas, e as ruas de Bal-Sagoth ficaram vermelhas... mas no final, triunfamos: Kotar e eu! A dinastia de Angar chegou ao fim, numa noite de sangue e fúria, e reinei suprema na Ilha dos Deuses, rainha e deusa!
Ela se ergueu em toda a sua altura, seu belo rosto aceso com orgulho feroz, seu peito arfando. Turlogh estava ao mesmo tempo fascinado e repugnado. Ele já vira governantes ascenderem e caírem, e entre as linhas da breve narrativa, leu o derramamento de sangue e a carnificina, a crueldade e a traição... sentindo a básica desumanidade desta jovem garota.
- Mas, se você foi rainha – ele perguntou –, como foi que lhe encontramos, caçada pelas florestas do seu território, como uma jovem serva fugitiva?
Brunhild mordeu o lábio, e um rubor enfurecido subiu-lhe ao rosto:
- O que traz toda mulher para baixo, qualquer que seja seu posto? Confiei num homem... Kotar, meu amante, com quem dividi meu governo. Ele me traiu; depois que o ergui ao mais alto poder do reino, próximo ao meu próprio, o encontrei fazendo amor secretamente com outra garota. Matei os dois!
Turlogh sorriu friamente:
- Você é uma verdadeira Brunhild! E depois?
- Kotar era amado pelo povo. O velho Gothan o incitou. Cometi meu maior erro quando deixei aquele velho viver. Até eu não ousei matá-lo. Bem, Gothan se insurgiu contra mim, como eu havia feito contra ele, e os guerreiros se rebelaram, matando aqueles que se mantiveram fiéis a mim. Me capturaram, mas não ousaram me matar; pois eles acreditavam que eu era uma deusa, apesar de tudo. Desse modo, antes do amanhecer, temendo que o povo mudasse de idéia novamente e me restaurasse o poder, Gothan me levou à laguna que separa esta parte da ilha da outra. Os sacerdotes me conduziram num barco a remo e me abandonaram, nua e indefesa, ao meu destino.
- E o seu destino era... isto? – Athelstane tocou a enorme carcaça com seu pé.
Brunhild estremeceu:
- Muitas eras atrás, havia vários destes monstros na ilha, dizem as lendas. Eles lutaram contra o povo de Bal-Sagoth e o devoraram às centenas. Mas todos foram finalmente exterminados na parte principal da ilha e, neste lado da laguna, morreram todos, menos este, que residiu aqui durante séculos. Nos velhos tempos, exércitos de homens vieram contra ele, mas ele era o maior de todos os demônios-pássaros e matou todos os que lutaram contra ele. Assim, os sacerdotes o deificaram e deixaram esta parte da ilha para ele. Ninguém vem aqui, a não ser aqueles que são trazidos como sacrifícios... como eu fui. Ele jamais conseguiria chegar à ilha principal, porque a laguna está infestada por grandes tubarões que poderiam rasgar até mesmo ele em pedaços.
“Por algum tempo, escapei dele, me escondendo entre as árvores, mas finalmente ele me avistou... e vocês sabem o resto. Devo minha vida a vocês. Agora, o que farão comigo?”.
Althelstane olhou para Turlogh, e este encolheu os ombros:
- O que podemos fazer, exceto morrer de fome nesta floresta?
- Vou lhes dizer! – gritou a garota, numa voz ressonante, com os olhos resplandecendo novamente ao trabalho rápido de seu cérebro perspicaz – Há uma velha lenda entre este povo... de que homens de ferro virão do mar e a cidade de Bal-Sagoth cairá! Vocês, com suas malhas e elmos, parecerão homens de ferro para este povo, que não conhece nada de armadura! Vocês mataram Groth-golka, o deus-pássaro... vieram do mar, como eu... o povo vai considerá-los deuses. Venham comigo, e me ajudem a ganhar meu reino de volta! Vocês serão minha mão direita, homens, e lhes abarrotarei de honras! Lindas roupas, palácios magníficos, as mais lindas jovens serão suas!
Suas promessas deslizaram pela mente de Turlogh sem deixar marca, mas o louco esplendor da proposta o intrigou. Ardentemente, ele desejou ver aquela estranha cidade da qual Brunhild falava, e a idéia, de dois guerreiros e uma moça se lançando contra uma nação inteira por uma coroa, mexia com as mais extremas profundezas de sua alma celta de cavaleiro errante.
- É bom. – disse ele – E quanto a você, Athelstane?
- Meu estômago está vazio. – resmungou o gigante – Leve-me para onde houver comida e abrirei meu caminho até ela, através de uma horda de sacerdotes e guerreiros.
- Leve-nos até a cidade! – disse Turlogh para Brunhild.
- Viva! – ela gritou, lançando seus braços brancos para o alto, em selvagem exultação – Agora, que Gothan, Ska e Gelka tremam! Com vocês ao meu lado, recuperarei a coroa que arrancaram de mim, e desta vez não pouparei meu inimigo! Atirarei o velho Gothan do muro mais alto, mesmo que os bramidos de seus demônios sacudam as próprias entranhas da terra! E veremos se o deus Gol-goroth resistirá à espada que cortou a perna de Groth-golka sob ele. Agora, cortem a cabeça deste cadáver, para que o povo saiba que vocês derrotaram o deus-pássaro. Agora me sigam, pois o sol se ergue no céu, e hei de dormir em meu próprio palácio esta noite!
Os três adentraram as sombras da enorme floresta. Os galhos entrelaçados, a dezenas de pés acima de suas cabeças, tornavam escura e estranha a luz do sol que se infiltrava. Não se via nenhuma vida, exceto por um ocasional pássaro alegremente colorido ou um enorme macaco. Estes animais, disse Brunhild, eram sobreviventes de outra era – inofensivos, a menos que fossem atacados. Logo, a vegetação mudou um pouco: as árvores ficaram mais finas e menores, e frutas de vários tipos eram vistas por entre os galhos. Brunhild disse aos guerreiros quais colher e comer, enquanto caminhavam. Turlogh estava totalmente satisfeito com as frutas, mas Athelstane, apesar de ter comido imensamente, o fez com pouco apetite. Fruta era pouco sustento, para um homem de sua natureza sólida, como sua dieta regular. Mesmo entre os gulosos dinamarqueses, a capacidade do saxão para carne e cerveja era admirada.
- Vejam! – gritou Brunhild abruptamente, parando e apontando – Os pináculos de Bal-Sagoth!
Por entre as árvores, os guerreiros tiveram um vislumbre: branca e tremeluzente, e aparentemente distante. Havia uma impressão ilusória de ameias se elevando no ar, com nuvens lanosas flutuando ao redor. A visão despertou sonhos estranhos nas profundezas místicas da alma do gaélico, e até mesmo Athelstane ficou calado, como se também tivesse sido atingido pela beleza e mistério pagãos da cena.
Assim, eles prosseguiram pela floresta, ora perdendo a cidade de vista à medida que os topos das árvores obstruíam a visão, ora vendo-a novamente. Por fim, chegaram à margem baixa e inclinada de uma larga laguna azul, e a inteira beleza de uma paisagem irrompeu sobre seus olhos. Da margem oposta, o campo se erguia em longas e suaves ondulações, que quebravam como grandes ondas lentas, aos pés de uma cadeia de colinas azuis, a poucos quilômetros de distância. Estas largas protuberâncias eram cobertas por profunda grama e vários arvoredos, enquanto a quilômetros de distância, de outro lado, se via, afastando-se numa curva distante, a faixa de floresta espessa, a qual Brunhild disse que rodeava a ilha inteira. E, entre aquelas oníricas colinas azuis, pairava a antiga cidade de Bal-Sagoth, com seus muros brancos e torres azuis-safira entalhadas contra o céu da manhã. A sugestão de grande distância havia sido uma ilusão.
- Não é um reino digno de se lutar por ele? – gritou Brunhild, com a voz vibrante – Agora, rápido... vamos amarrar esta madeira seca, para fazer uma jangada. Não conseguiríamos viver um só instante, nadando nesta água infestada de tubarões.
Naquele instante, uma figura se ergueu de um pulo, na grama alta sobre a outra margem... um homem nu e de pele marrom, que por um instante arregalou os olhos, boquiaberto. Então, quando Athelstane gritou e ergueu a medonha cabeça de Groth-golka, o homem deu um grito assustado e se afastou correndo, feito um antílope.
- Um escravo, que Gothan deixou para ver se tentei nadar pela laguna. – disse Brunhild com raivosa satisfação – Deixe-o correr até a cidade e contá-los... mas vamos nos apressar e cruzar a laguna, antes que Gothan possa chegar e bloquear nossa passagem.
Turlogh e Athelstane já estavam ocupados. Várias árvores mortas jaziam ao redor, e eles tiravam-lhes os galhos e uniam-nas com longas trepadeiras. Em pouco tempo, haviam construído uma jangada – tosca e deselegante, mas capaz de levá-los ao outro lado da laguna. Brunhild deu um sincero suspiro de alívio, quando pisaram na outra margem.
- Vamos direto para a cidade. – ela disse – O escravo chegou aqui primeiro, e eles estarão nos observando das muralhas. Uma marcha ousada é nossa única chance. Pelo martelo de Thor, eu gostaria de ver a cara de Gothan, quando o escravo lhe contar que Brunhild está retornando com dois guerreiros desconhecidos, e com a cabeça daquele a quem ela foi oferecida em sacrifício!
- Por que você não matou Gothan quando estava no poder? – perguntou Athelstane.
Ela sacudiu a cabeça, os olhos se nublando com algo semelhante ao medo:
- É mais fácil falar do que fazer. Metade do povo odeia Gothan, metade o ama e todos o temem. O homem mais velho da ilha diz que ele era velho quando eles eram criancinhas. O povo crê que ele seja mais deus do que sacerdote, e eu mesma o vi fazer coisas terríveis e misteriosas, além da capacidade de um homem comum.
“Não, quando eu era somente um fantoche nas mãos dele, alcancei apenas a margem externa de seus mistérios, embora tenha visto cenas que gelaram meu sangue. Vi estranhas sombras passarem rapidamente pelos muros à meia-noite; e, tateando ao longo de negros corredores subterrâneos, ouvi sons ímpios e senti a presença de seres hediondos. E, uma vez, ouvi os pavorosos berros de escravos, sobre a Coisa sem nome que Gothan acorrentara nas profundezas das colinas nas quais se assenta a cidade de Bal-Sagoth”.
Brunhild estremeceu:
- Há muitos deuses em Bal-Sagoth, mas o maior de todos é Gol-goroth, o deus da escuridão, que fica eternamente no Templo das Sombras. Quando derrubei o poder de Gothan, proibi os homens de adorarem Gol-goroth e fiz o sacerdote aclamar, como única e verdadeira divindade, A-ala, a filha do mar... eu mesma. Fiz homens fortes pegarem martelos pesados e golpearem a imagem de Gol-goroth, mas seus golpes só fizeram despedaçar os martelos e causaram estranhos ferimentos aos homens que os brandiram. Gol-goroth era indestrutível e não apresentava nenhum estrago. Assim, eu desisti e fechei a porta do Templo das Sombras, a qual foi aberta apenas quando fui derrotada e Gothan, que se escondera nos locais secretos da cidade, voltou aos seus domínios. Então, Gol-goroth reinou novamente em seu total terror e os ídolos de A-ala foram derrubados no Templo do Mar, e os sacerdotes de A-ala morreram aos uivos no altar manchado de vermelho, diante do deus negro. Mas agora, veremos!
- Você é, com certeza, uma verdadeira valquíria. – murmurou Athelstane – Mas três contra uma nação é uma grande desigualdade... especialmente um povo como este, que certamente deve ser só de bruxas e feiticeiros.
- Bah! – gritou Brunhild desdenhosamente – Há muitos feiticeiros, é verdade, mas embora o povo seja estranho a nós, são tolos à sua própria maneira, como o são todas as nações. Quando Gothan me levou prisioneira pelas ruas, cuspiram em mim. Agora, veja-os se voltarem para Ska, o novo rei que Gothan lhes deu, quando minha estrela parece se erguer novamente! Mas agora, estamos próximos dos portões da cidade... seja corajoso, mas precavido!
Eles haviam subido as longas inclinações elevadas, e não estavam longe dos muros que se erguiam enormemente para o alto. Com certeza, pensou Turlogh, deuses pagãos construíram a cidade. Os muros pareciam de mármore e, com suas ameias desgastadas e delgadas torres de vigia, sobrepujavam grandemente cidades como Roma, Damasco e Bizâncio. Um largo e branco caminho sinuoso subia desde os níveis mais baixos até o altiplano diante dos portões e, enquanto subiam este caminho, os três aventureiros sentiam centenas de olhos escondidos, fixos neles com intensidade feroz. As muralhas pareciam abandonadas; poderia se tratar de uma cidade morta. Mas o impacto daqueles olhos, que miravam fixamente, era sentido.
Agora, estavam diante dos portões maciços que, para os olhos espantados dos guerreiros, pareciam ser de prata lavrada.
- Isto aqui é o resgate de um imperador! – murmurou Athelstane, com os olhos resplandecentes – Sangue de Thor, se tivéssemos apenas um intrépido bando de saqueadores para levar a pilhagem!
- Bata no portão e depois dê um passo para trás, para que não caia nada sobre você. – disse Brunhild, e o trovão do machado de Turlogh despertou os ecos nas colinas adormecidas.
Então, os três recuaram alguns passos e, subitamente, os enormes portões giraram para dentro, e uma estranha multidão foi mostrada. Os dois guerreiros brancos olhavam para um cortejo de esplendor bárbaro. Uma multidão de homens altos e esguios, de pele marrom, se encontrava nos portões. Suas únicas vestes eram tangas de seda, cujo refinado trabalho contrastava estranhamente com a quase nudez daqueles que as vestiam. Altas e ondulantes plumas enfeitavam suas cabeças, e braceletes e tornozeleiras de ouro e prata, incrustados com brilhantes pedras preciosas, completavam-lhes a ornamentação. Não vestiam armadura alguma, mas cada um carregava um leve escudo no braço esquerdo, feito de madeira dura, bem polida e reforçada com prata. Suas armas eram lanças de pontas delgadas, leves machadinhas e finas adagas, tudo com lâminas de aço refinado. Evidentemente, estes guerreiros confiavam mais na rapidez e habilidade do que na força bruta.
À frente desta tropa, se encontravam três homens que instantaneamente dominaram a atenção. Um deles era um esguio guerreiro de rosto aquilino, quase tão alto quanto Athelstane, usando ao redor do pescoço uma grande corrente dourada, da qual pendia um curioso emblema em jade. Um dos outros homens era jovem, de olhos malignos, com uma impressionante desordem de cores no manto de penas de papagaio, que pendia-lhe dos ombros. O terceiro homem não tinha nada que o diferenciasse dos outros, exceto sua própria e estranha personalidade. Ele não usava manto e não levava armas. Sua única roupa era uma simples tanga. Era muito velho; era o único na multidão que tinha barba, e sua barba era tão branca quanto o longo cabelo que lhe caía ao redor dos ombros. Era muito alto e muito magro, e seus grandes olhos escuros resplandeciam como de um fogo escondido. Turlogh soube, sem que lhe contassem, que este homem era Gothan, sacerdote do Deus Negro. O ancião transpirava uma verdadeira aura de idade e mistério. Seus olhos grandes eram como janelas de algum templo esquecido, atrás do qual passavam, feito fantasmas, seus obscuros e terríveis pensamentos. Turlogh sentia que Gothan havia investigado muito profundamente segredos proibidos, para permanecer completamente humano. Ele passara por portas que o isolaram dos sonhos, desejos e emoções dos mortais comuns. Olhando para dentro daquelas órbitas que não piscavam, Turlogh sentiu a pele arrepiar, como se estivesse olhando para dentro dos olhos de uma grande serpente.
Agora, um olhar para cima mostrou que os muros estavam aglomerados por silenciosas pessoas de olhos escuros. O palco estava montado: tudo estava pronto para o rápido drama vermelho. Turlogh sentiu o pulso acelerar em feroz animação, e os olhos de Athelstane começaram a arder com uma luz feroz.
Brunhild caminhou para a frente, com a cabeça erguida e sua esplêndida aparência vibrante. Os guerreiros brancos naturalmente não conseguiam entender o que passava entre ela e os outros, exceto quando liam gestos e expressões, mas depois Brunhild narrou a conversa, quase palavra por palavra.
- Bem, povo de Bal-Sagoth – disse ela, espaçando lentamente suas palavras –, que palavras vocês têm para a deusa à qual ridicularizaram e injuriaram?
- O que você conseguirá, impostora? – exclamou o homem alto, Ska, o rei instalado por Gothan – Você, que zombou dos costumes de nossos ancestrais; desafiou as leis de Bal-Sagoth, que são mais velhas que o mundo, assassinou seu amante e profanou o santuário de Gol-goroth? Você foi condenada pela lei, rei e deus, e colocada na floresta sombria além da laguna...
- E eu, que sou igualmente uma deusa, maior que qualquer deus – respondeu Brunhild, zombando –, retornei do reino de horror, com a cabeça de Groth-golka!
Com uma palavra dela, Athelstane ergueu a grande cabeça bicuda, e um murmúrio baixo percorreu as ameias, tenso de medo e perturbação.
- Quem são estes homens? – Ska dirigiu uma carranca preocupada aos dois guerreiros.
- São homens de ferro que vieram do mar! – respondeu Brunhild, numa voz clara e de longo alcance – Os seres que vieram em resposta à velha profecia, para vencerem a cidade de Bal-Sagoth, cujo povo é traidor e cujos sacerdotes são falsos!
Diante destas palavras, o terrível murmúrio irrompeu novamente por toda a linha dos muros, até Gothan erguer sua cabeça de abutre, e o povo cair em silêncio e se encolher diante da expressão gélida de seus olhos terríveis.
Ska olhou fixa e confusamente, sua ambição lutando contra seus medos supersticiosos.
Turlogh, olhando firmemente para Gothan, acreditou ler sob a inescrutável máscara do rosto do velho sacerdote. Apesar da sabedoria inumana, Gothan tinha suas limitações. Este súbito retorno de alguém que ele pensou estar descartada, e a aparição de dois gigantes de pele branca acompanhando-a, havia honestamente pego Gothan desprevenido, pensou Turlogh. Não houve tempo para preparar adequadamente a recepção. O povo já havia começado a murmurar nas ruas contra a inclemência do breve governo de Ska. Eles sempre acreditaram na divindade de Brunhild; agora que ela retornou com dois homens altos de sua própria cor, trazendo o grande troféu que indicava a conquista de outro de seus deuses, o povo estava hesitante. Qualquer coisa poderia virar a maré para um dos extremos.
- Povo de Bal-Sagoth! – gritou Brunhild subitamente, saltando para trás e lançando os braços para o alto, olhando bem para dentro dos rostos que miravam-na de cima – Ordenei que vocês evitassem sua perdição antes que fosse tarde demais! Vocês me rejeitaram e cuspiram em mim; voltaram-se para deuses mais sombrios que eu! Apesar de tudo isto, perdoarei se vocês voltarem e prestarem homenagem a mim! Outrora, vocês me injuriaram... me chamaram de sangrenta e cruel! Certo, eu fui uma senhora dura... mas Ska tem sido um mestre fácil? Vocês disseram que chicoteei o povo com chibatas de couro cru... por acaso Ska lhes bateu com plumas de papagaios?
“Uma virgem morria no meu altar a cada lua cheia... mas rapazes e moças morrem ao crescer e minguar, ao subir e descer de cada lua, diante de Gol-goroth, sobre cujo altar sempre palpita um fresco coração humano! Ska é apenas uma sombra! Seu verdadeiro senhor é Gothan, que se senta sobre a cidade feito um abutre! Outrora vocês foram um povo poderoso; suas galés enchiam os mares. Hoje vocês são poucos, e estão diminuindo rapidamente! Tolos! Irão todos morrer no altar de Gol-goroth, antes que Gothan esteja acabado, e ele caminhará altivamente e sozinho por entre as ruínas de Bal-Sagoth!
“Olhem para ele!” – a voz dela se tornou um grito, enquanto ela se sacudia num frenesi inspirado, e até Turlogh, para quem as palavras não tinham significado, se arrepiou – “Olhem para ele, lá onde ele fica, feito um mau espírito vindo do passado! Ele não é sequer humano! Vou lhes dizer: ele é um fantasma imundo, cuja barba é borrifada com o sangue de um milhão de matanças... um demônio encarnado, vindo da bruma das eras para destruir o povo de Bal-Sagoth!
“Agora escolham! Revoltem-se contra o demônio velho e seus deuses blasfemos, recebam sua legítima rainha e divindade novamente, e vocês recuperarão algumas de suas antigas grandezas. Recusem, e a antiga profecia se cumprirá e o sol irá se pôr sobre as silenciosas e esmigalhadas ruínas de Bal-Sagoth!”.
Entusiasmado por suas palavras dinâmicas, um jovem guerreiro, com o emblema de um chefe, pulou até o parapeito e gritou:
- Salve A-ala! Abaixo os deuses sangrentos!
Entre a multidão, muitos seguiram o grito, e o aço se entrechocou enquanto muitas lutas começavam. A multidão, sobre as ameias e nas ruas, rolava e remoinhava, enquanto Ska olhava, desconcertado. Brunhild, forçando para trás seus companheiros, que tremiam ansiosos por algum tipo de ação, gritou:
- Parem! Não deixem homem nenhum dar algum golpe ainda! Povo de Bal-Sagoth, é uma tradição, desde o começo dos tempos, que um rei deva lutar por sua coroa! Deixem Ska cruzar armas com um destes guerreiros! Se Ska vencer, me ajoelharei diante dele e o deixarei decepar minha cabeça! Se Ska perder, então vocês deverão me aceitar como sua legítima rainha e deusa!
Um grande rugido de aprovação se ergueu dos muros, enquanto o povo cessava suas disputas, contente o bastante para passar a responsabilidade aos seus governantes.
- Você irá lutar, Ska? – perguntou Brunhild, virando-se, zombeteira, para o rei – Ou me dará sua cabeça, sem maior argumento?
- Vadia! – uivou Ska, enlouquecido – Vou arrancar os crânios destes tolos para beber neles, e então, vou lhe rasgar entre duas árvores curvadas!
Gothan pôs uma das mãos no seu braço e sussurrou-lhe no ouvido, mas Ska chegou a um ponto no qual estava surdo a tudo, menos à sua fúria. Sua ambição conquistada, ele percebera, havia se desvanecido ao mero papel de uma marionete dançando no cordão de Gothan; agora até mesmo a falsa quinquilharia de sua realeza estava lhe escapulindo, e esta moça zombava de sua cara, diante de seu povo. Ska enlouqueceu quase que completamente.
Brunhild se virou para os dois aliados:
- Um de vocês deve lutar contra Ska.
- Deixe que seja eu! – instou Turlogh, com os olhos dançando em ânsia impaciente por luta – Ele tem o olhar de um homem tão rápido quanto um gato selvagem, e Athelstane, embora seja forte como um touro, é um pouco lento para tal tarefa...
- Lento! – interrompeu Athelstane, em tom de reprovação – Ora, Turlogh, para um homem, meu peso...
- Basta! – interrompeu Brunhild – Ele próprio deve escolher.
Ela falou com Ska, que mirou ferozmente com os olhos vermelhos por um instante, e então apontou para Athelstane, que sorriu contente, lançou para um lado a cabeça do pássaro e desembainhou a espada. Turlogh blasfemou e deu um passo para trás. O rei decidira que teria uma chance melhor com aquele enorme homem-búfalo, que parecia lento, do que com o guerreiro-tigre, cuja rapidez felina era evidente.
- Este Ska está sem armadura. – retumbou Athelstane – Deixe-me tirar também minha malha e elmo, para que lutemos de igual pra igual...
- Não! – gritou Brunhild – Sua armadura é sua única chance! Estou lhe dizendo: este falso rei luta como um relâmpago de verão! Você dificilmente será vencido, do jeito que está. Continue com sua armadura, eu lhe digo!
- Está bem, está bem. – resmungou Athelstane – Eu vou... eu vou. Embora eu ache pouco honesto. Mas deixe que ele venha e ponha um fim nisto.
O enorme saxão caminhou pesadamente, a passos largos, em direção ao seu inimigo, que cautelosamente se agachava e se movia em círculos. Athelstane segurou a grande espada com ambas as mãos, diante dele, apontando para cima, o cabo um pouco abaixo do nível do queixo, em posição para golpear à direita ou esquerda, ou para desviar um ataque repentino.
Ska arremessara para longe seu escudo leve, com sua percepção de lutador lhe dizendo que ele seria inútil diante do ataque daquela lâmina pesada. Na mão direita, segurava sua fina lança como quem segura um dardo de arremesso; na esquerda, uma machadinha leve e afiada. Pretendia fazer daquilo uma luta rápida e astuta, e suas táticas eram boas. Mas Ska, nunca tendo encontrado armaduras antes, cometeu seu erro fatal ao achar que aquilo fosse uma roupa ou adorno, ao qual suas armas perfurariam.
Agora, ele atacava, se arremessando em direção ao rosto de Athelstane, com a lança. O saxão se esquivou com facilidade e, instantaneamente, arremeteu na direção das pernas de Ska. O rei pulou para o alto, se livrando da lâmina que assobiava, e em pleno ar, golpeou a cabeça curvada de Athelstane. A leve machadinha se quebrou em pedaços no elmo do viking, e Ska pulou para trás, ficando fora de alcance, com um uivo sedento de sangue.
Desta vez foi Athelstane que investiu com rapidez inesperada, como um touro atacando, e diante daquele terrível ataque, Ska, desnorteado pela quebra de sua machadinha, foi pego desprevenido. Teve um rápido vislumbre do gigante avultando sobre ele, como uma onda esmagadora, e se lançou para dentro, ao invés de fora, apunhalando ferozmente. Aquele erro foi seu último. A lança empurrada resvalou inofensivamente na malha do saxão, e naquele instante a grande espada cantou para baixo, num ataque que o rei não conseguiu evitar. A força daquele golpe o arremessou da mesma forma que um homem é arremessado pelo salto de um touro. A mais de três metros e meio de distância, caiu Ska, rei de Bal-Sagoth, para jazer destroçado e morto, numa medonha confusão de sangue e entranhas. A multidão ficou boquiaberta, tomada de silêncio pela bravura daquele ato.
- Corte a cabeça! – gritou Brunhild, com os olhos chamejando, enquanto cerrava os punhos até as unhas se cravarem nas palmas das mãos – Espete a cabeça dessa carne podre na ponta de sua espada, para que possamos levá-la conosco pelos portões da cidade, como testemunho de vitória!
Mas Athelstane balançou a cabeça, enquanto limpava a lâmina:
- Não, ele foi um bravo e não vou mutilar seu corpo. Não foi grande proeza o que fiz, pois ele estava nu, e eu totalmente blindado. Além disso, em minha memória, a luta terminou diferente.
Turlogh olhou rapidamente para as pessoas nos muros. Haviam se recuperado de seu espanto, e agora um enorme rugido se erguia: “A-ala! Salve a verdadeira deusa!”. E os guerreiros no portão caíram de joelhos e curvaram suas testas no chão diante de Brunhild, que estava orgulhosamente ereta, com o peito ofegante em feroz triunfo. Realmente, pensou Turlogh, ela é mais que uma rainha... é uma mulher-escudo, uma valquíria, como disse Athelstane.
Neste momento, ela caminhou para o lado e, arrancando a corrente de ouro com seu emblema de jade do pescoço morto de Ska, ergueu-a e disse:
- Povo de Bal-Sagoth, vocês viram como seu falso rei morreu diante deste gigante de barba dourada, que, sendo de ferro, não mostra um único corte! Escolham agora... vocês me recebem de livre e espontânea vontade?
- Sim, nós recebemos! – respondeu a multidão, num grande grito – Volte para teu povo, ó rainha forte e toda-poderosa!
Brunhild sorriu sarcasticamente.
- Venham. – disse ela aos dois guerreiros – Eles estão se auto-flagelando, num verdadeiro frenesi de amor e lealdade, já esquecidos da própria traição. A memória do populacho é curta!
Sim, pensou Turlogh, enquanto ao lado de Brunhild, ele e o saxão passavam pelos enormes portões, entre filas de chefes prostrados; sim, a memória da turba é muito curta. Passaram-se não mais que uns poucos dias, desde que eles haviam berrado tão selvagemente por Ska, o libertador... poucas horas haviam passado desde que Ska se sentara entronizado, senhor da vida e da morte, e o povo se curvara a seus pés. Agora... Turlogh olhou para o corpo mutilado que jazia abandonado e esquecido diante dos portões prateados. A sombra de um abutre, que voava em círculos, o atravessou. O alarido da multidão enchia os ouvidos de Turlogh, enquanto ele abria um sorriso amargo.
Os grandes portões se fecharam atrás dos três aventureiros, e Turlogh viu uma larga rua branca se estendendo à sua frente. Outras ruas menores se ramificavam dela. Os dois guerreiros tiveram uma confusa e caótica impressão, de grandes construções de pedra branca empurrando umas às outras; de torres se erguendo em direção ao céu e largos palácios com escadas nas frentes. Turlogh sabia que ali deveria ser um sistema organizado, pelo qual a cidade fora traçada, mas para ele tudo parecia um esbanjamento de pedra, metal e madeira polida, sem rima ou razão. Seus olhos perplexos procuraram novamente a rua.
Lá dentro da rua, se estendia uma massa de humanidade, da qual se erguia um estrondo rítmico. Milhares de homens e mulheres nus, alegremente emplumados, se ajoelhavam lá, curvando-se para a frente até tocarem o pavilhão de mármore com suas testas, e depois se inclinando para trás com um arremesso dos braços para o alto; tudo se movendo em perfeita harmonia, como o curvar e o erguer da grama alta diante do vento. E, no momento de se curvarem, erguiam um canto monótono que diminuía e crescia num frenesi de êxtase. Assim, o povo instável dava as boas vindas para o retorno da deusa A-ala.
Bem dentro dos portões, Brunhild parou, e lá se dirigiu a ela o jovem chefe, que primeiro incitara o grito de revolta sobre os muros. Ele se ajoelhou e beijou-lhe os pés nus, dizendo:
- Ó, grande rainha e deusa, tu és quem mais sabe que Zomar foi sempre fiel a ti! Tu és quem mais sabe como lutei por ti, e mal escapei do altar de Gol-goroth por tua graça!
- Tu foste realmente fiel, Zomar. – respondeu Brunhild, na linguagem afetada que tais ocasiões exigiam – Não deixarei tua fidelidade sem recompensa. Doravante, tu és o comandante de minha própria guarda pessoal. – E depois, numa voz mais baixa, acrescentou: – Reúna uma tropa de seus próprios contratados e daqueles que aderiram o tempo todo à minha causa, e traga-os ao palácio. Não confio no povo mais do que preciso!
Súbito, Athelstane, sem entender a conversa, interrompeu:
- Cadê o velho barbudo?
Turlogh parou e olhou ao redor. Ele havia quase esquecido o feiticeiro. Não o vira partir... embora tivesse partido. Brunhild riu, arrependida.
- Ele fugiu às escondidas, para criar mais problemas nas sombras. Ele e Gelka sumiram quando Ska caiu. Ele tem meios secretos de ir e vir, e ninguém pode detê-lo. Esqueça-o por enquanto; cuide bem de ti... teremos muito dele dentro em pouco!
Agora, os chefes traziam um palanquim belamente entalhado e grandemente ornamentado, carregado por dois escravos fortes, e Brunhild subiu nele, dizendo aos companheiros:
- Eles têm medo de tocá-los, mas perguntam se vocês seriam carregados. Acho melhor do que andarem, um a cada lado meu.
- Sangue de Thor! – resmungou Athelstane, levando ao ombro a espada que jamais embainhava – Não sou criancinha. Partirei o crânio do homem que tentar me carregar!
E então, para dentro da longa rua branca, foi Brunhild, filha do filho de Rane Thorfin, das Órcades, deusa do mar, rainha da antiqüíssima Bal-Sagoth. Carregada por dois enormes escravos, ela seguiu, com um gigante branco caminhando a passos largos, a cada lado, com aço nu, e uma multidão de chefes seguindo, enquanto a multidão abria caminho à direita e à esquerda, deixando uma larga faixa na qual ela passava. Trombetas douradas tocavam uma fanfarra de triunfo, tambores trovejavam, cantos de adoração ecoavam até os céus vibrantes. Certamente, nesta orgia de glória, neste pomposo espetáculo bárbaro de esplendor, o espírito orgulhoso da garota nascida no Norte bebia profundamente e ficava embriagado de orgulho imperial.
Os olhos de Athelstane ardiam de puro encanto a esta chama de esplendor pagão, mas para o lutador de cabelos negros do Oeste, parecia que, mesmo no mais alto clamor do triunfo, a trombeta, o tambor e os gritos se desvaneciam no pó e silêncio esquecidos da eternidade. Reinos e impérios se dissipavam como a bruma do mar, pensou Turlogh; as pessoas gritam e triunfam, e mesmo na orgia do banquete de Belshazzar, os medos (**) quebram os portões da Babilônia. Mesmo agora, a sombra do destino está sobre a cidade, e as lentas marés do esquecimento se enrolam nos pés desta raça desatenta. Assim, num estranho humor, Turlogh O’Brien caminhou ao lado do palanquim, e lhe parecia que ele e Athelstane andavam numa cidade morta, por entre multidões de fantasmas indistintos que aplaudiam uma rainha fantasma.
3) A Queda dos Deuses
A noite caíra na antiga cidade de Bal-Sagoth. Turlogh, Athelstane e Brunhild estavam sentados, sozinhos, numa sala do palácio interno. A rainha, meio reclinada num leito de seda, enquanto os homens se sentavam em cadeiras de mogno, empenhados na comida que jovens escravas haviam servido em pratos dourados. As paredes desta sala, como todas do palácio, eram de mármore, com grandes arabescos dourados. O teto era de lápis-lazúli, e o chão, de ladrilhos de mármore marchetados com prata. Pesadas cortinas de veludo decoravam as paredes e as almofadas de seda; divãs ricamente trabalhados, e cadeiras e mesas de mogno se alastravam pelo chão em descuidada abundância.
- Eu daria muito por um chifre de cerveja, mas este vinho não é desagradável ao paladar. – disse Athelstane, esvaziando prazerosamente um jarro dourado – Brunhild, você nos enganou. Nos fez achar que daria trabalho lutar para pegar sua coroa de volta... já dei apenas um golpe, e minha espada está tão sedenta quanto o machado de Turlogh, que não bebeu absolutamente nada. Batemos nos portões, e o povo caiu e reverenciou sem maior rebuliço. E há pouco tempo atrás, ficamos perto de seu trono, no grande salão do palácio, enquanto você falava com as grandes multidões que chegavam e batiam as cabeças no chão à sua frente... por Thor, nunca ouvi tanto barulho e tagarelice! Meus ouvidos ressoam até agora... o que eles estavam dizendo? E onde está aquele velho mágico Gothan?
- Seu aço ainda vai beber muito, saxão. – respondeu sombriamente a garota, descansando o queixo nas mãos e mirando os guerreiros com olhos profundos e melancólicos – Se você tivesse apostado por cidades e coroas, como fiz, saberia que apoderar-se de um trono pode ser mais fácil do que mantê-lo. Nossa súbita aparição com a cabeça do deus-pássaro, e você matando Ska, arrebatou o povo dos pés deles. Quanto ao resto... eu gozando de uma audiência, como você viu, mesmo que não tenha entendido, e o povo que veio em multidões prostradas me assegurando de sua inabalável lealdade... há! Perdoei cortesmente a todos eles, mas não sou tola. Quando tiverem tempo pra pensar, começarão a se queixar novamente. Gothan está escondido em algum lugar nas sombras, tramando malevolamente contra nós, pode ter certeza. Esta cidade é esburacada de corredores secretos e passagens subterrâneas, que só os sacerdotes conhecem. Até eu, que atravessei alguns deles quando era fantoche de Gothan, não sei onde procurar pelas portas secretas, vez que Gothan sempre me levou por elas com os olhos vendados.
“Agora mesmo, eu acho que triunfei. O povo lhes respeita mais do que a mim. Pensam que suas armaduras e elmos são partes de seus corpos, e que vocês são invulneráveis. Não perceberam que eles tocavam timidamente suas cotas-de-malha, enquanto passávamos pela multidão, e o espanto em seus rostos enquanto sentiam o ferro nelas?”.
- Para um povo tão sábio em alguns aspectos, eles são muito tolos em outros. – disse Turlogh – Quem são eles, e de onde vieram?
- São tão antigos – respondeu Brunhild –, que suas lendas mais antigas não fazem nenhuma alusão às suas origens. Eras atrás, eram parte de um grande império que se espalhava sobre as muitas ilhas deste mar. Mas algumas das ilhas afundaram e desapareceram, com suas cidades e povos. Então, os selvagens de pele vermelha atacaram-nas, e ilha após ilha caiu diante deles. Por fim, apenas esta ilha ficou inconquistada, e o povo havia enfraquecido e esquecido muitas artes antigas. Por falta de portos para navegarem, as galés apodreceram nos ancoradouros, que também caíram em decomposição. Nem na memória do homem, algum filho de Bal-Sagoth singrou os mares. A intervalos irregulares, o povo vermelho cai sobre a Ilha dos Deuses, atravessando os mares em suas longas canoas de guerra que trazem caveiras sorridentes nas proas. Não tão longe quanto um viking calcularia uma viagem marinha, mas, fora do campo de visão, sobre a orla marinha, se encontram as ilhas habitadas por aqueles homens vermelhos que, séculos atrás, massacraram o povo que morava lá. Sempre os rechaçamos; eles não conseguem escalar os muros, mas ainda vêm, e o medo de seus ataques-surpresa está sempre pairando sobre a ilha.
“Mas não é a eles que temo; é Gothan, que está neste momento, ou se esgueirando como uma serpente asquerosa por seus túneis negros, ou ainda preparando abominações numa de suas câmaras ocultas. Nas cavernas no fundo das colinas, para as quais seus túneis levam, ele realiza magia pavorosa e profana. Seus objetos são animais... serpentes, aranhas e grandes macacos; e homens... cativos vermelhos, e infelizes de sua própria raça. No fundo de suas grutas medonhas, ele faz animais de homens e meio-homens de animais, misturando o bestial com o humano, em horrível criação. Nenhum homem ousa imaginar os horrores que têm se reproduzido na escuridão, ou que formas de terror e blasfêmia surgiram durante as eras em que Gothan forjara suas abominações; pois ele não é como os outros homens, e descobriu o segredo da vida eterna. Ele trouxe a uma vida abominável, pelo menos uma criatura que até mesmo ele teme: a tagarelante e destruidora Coisa sem nome, que fica acorrentada na caverna mais distante onde nenhum pé humano pisou, exceto o dele. Ele o libertaria contra mim, se ousasse...
“Mas já é tarde e vou dormir. Dormirei na sala próxima a esta, que não tem outra passagem exceto esta porta. Não deixarei sequer uma escrava comigo, pois não confio totalmente em ninguém desse povo. Vocês guardarão esta sala, e, embora a porta mais externa esteja trancada, é melhor alguém vigiar enquanto os outros dormem. Zomar e seus soldados patrulham os corredores lá fora, mas me sentirei mais segura com dois homens de meu próprio sangue entre eu e o resto da cidade”.
Ela se levantou e, com um olhar estranhamente demorado a Turlogh, adentrou seu aposento e fechou a porta atrás de si.
Athelstane se estirou e bocejou.
- Bem, Turlogh – ele disse, preguiçosamente –, o destino de um homem é instável como o mar. Na noite passada, eu era o espadachim selecionado de um bando de saqueadores, e você, um prisioneiro. Esta manhã, éramos proscritos perdidos, saltando no pescoço um do outro. Agora somos irmãos de espada e homens de confiança de uma rainha. E você, eu acho, está destinado a se tornar um rei.
- Como assim?
- Ora, você não percebeu o olhar da garota das Órcades sobre você? Acredite, há mais do que amizade nos olhares que descansam nessas suas madeixas pretas e pele marrom. Estou lhe dizendo...
- Chega! – a voz de Turlogh ficou áspera, enquanto uma velha ferida o atingiu – Mulheres no poder são lobos de presas brancas. Foi o ódio de uma mulher que...
Ele parou.
- Bem – respondeu Athelstane, tolerante –, há mais mulheres boas do que más. Eu sei... foram as intrigas de uma mulher que fizeram de você um proscrito. Bom, nós seríamos bons camaradas. Sou um fora-da-lei também. Se eu mostrasse minha cara em Wessex, seria menosprezado na região.
- O que lhe desviou para o caminho dos vikings? Os saxões esqueceram os caminhos do oceano há tanto tempo, que o Rei Alfred foi obrigado a contratar piratas frísios para construírem e equiparem sua frota, quando ele enfrentou os dinamarqueses.
Athelstane encolheu seus poderosos ombros e começou a afiar seu punhal escocês.
- Deste modo... a Inglaterra... foi... novamente... barrada... para... mim. Tomei... o... caminho... viking... novamente.
As palavras de Athelstane se arrastaram. Suas mãos desabaram, moles, de seu colo, e a pedra de afiar e o punhal caíram ao chão. Sua cabeça caiu para a frente, no seu peito largo, e seus olhos fecharam-se.
- Vinho demais. – resmungou Turlogh – Mas pode dormir; ficarei de vigia.
Mesmo enquanto falava, o gaélico sentiu um estranho cansaço se aproximar dele. Deitou-se para trás na larga cadeira. Seus olhos ficaram pesados, e o sono velava-lhe o cérebro. E, enquanto estava deitado lá, uma estranha visão de pesadelo chegou até ele. Uma das pesadas cortinas na parede em frente à porta balançou violentamente, e de trás dela, saiu furtivamente uma forma medonha, que se arrastava babando pela sala. Turlogh o observava apaticamente, sentindo que estava sonhando e ao mesmo tempo se surpreendendo com a estranheza do sonho. A coisa tinha a forma de um macaco grotesco e nodoso, mas seu rosto era bestial. Mostrou presas amarelas, enquanto cambaleava silenciosamente em sua direção e, sob sobrancelhas salientes, pequenos olhos avermelhados brilhavam demoniacamente. Mesmo ali, havia algo de humano em sua fisionomia; não era macaco nem homem, mas uma criatura não-natural, horrivelmente feita de ambos.
Agora, que a repugnante aparição parou diante dele, e os dedos nodosos lhe agarraram a garganta, Turlogh ficou súbita e terrivelmente consciente de que aquilo não era um sonho, mas uma diabólica realidade. Com uma explosão de desesperado esforço, ele quebrou as correntes invisíveis que o prendiam, e se arremessou da cadeira. Os dedos que agarravam perderam sua garganta, mas rápido como era, não conseguiu evitar a súbita investida daqueles braços peludos, e no momento seguinte, ele estava rolando sobre o chão num abraço feroz com o monstro, cujos tendões pareciam aço maleável.
O terrível combate foi lutado em silêncio, exceto pelo assobio do resfolegar. O antebraço esquerdo de Turlogh estava enfiado sob o queixo simiesco, mantendo as horríveis presas afastadas de sua garganta, ao redor da qual os dedos do monstro estavam travados. Athelstane ainda dormia em sua cadeira, com a cabeça inclinada para a frente. Turlogh tentou chamá-lo, mas aquelas mãos estranguladoras haviam lhe abafado a voz... e estavam rapidamente sufocando-lhe a vida. A sala flutuava numa névoa vermelha diante de seus olhos arregalados. Sua mão direita, fechada como uma marreta, golpeava repetida e desesperadamente o rosto medonho que se curvava diante do seu; os dentes bestiais se despedaçaram sob seus golpes e o sangue se esparramava, mas os olhos vermelhos ainda exultavam, e os dedos com garras afundavam cada vez mais profundamente, até um tinido nos ouvidos de Turlogh anunciar a partida de sua alma.
Mesmo enquanto afundava na semi-consciência, sua mão cadente bateu em algo que seu entorpecido cérebro de lutador reconheceu como o punhal escocês que Athelstane deixou cair ao chão. Cegamente, num gesto agonizante, Turlogh atacou e sentiu os dedos afrouxarem. Sentindo o retorno da vida e da força, ele se ergueu e arremessou-se, com seu atacante sob ele. Por entre as névoas vermelhas que clareavam lentamente, Turlogh Dubh viu o homem-macaco, agora avermelhado, se contorcendo sob ele, e afundou o punhal em cheio, até o horror mudo jazer imóvel, com os olhos bem arregalados.
O gaélico cambaleou, tonto e ofegante, com todos os membros trêmulos. Aspirou sofregamente o ar, e sua vertigem clareou aos poucos. O sangue escorria abundante dos ferimentos em sua garganta. Ele notou, espantado, que o saxão ainda dormia. E repentinamente, começou a sentir novamente as marés de fadiga e cansaço que o haviam deixado indefeso antes. Pegando seu machado, se livrou da sensação com dificuldade e caminhou em direção à cortina da qual o homem-macaco saíra. Como uma onda invisível, uma força sutil, irradiada daquelas cortinas, o atacou e, com os membros pesados, ele forçou o caminho pela sala. Agora, estava diante da cortina e sentiu o poder de uma terrível vontade maligna lhe atacando a sua, ameaçando sua própria alma, tentando escravizá-lo, mente e alma. Por duas vezes, ergueu a mão e, por duas vezes, ela caiu flacidamente ao seu lado. Agora, pela terceira vez, ele fez um enorme esforço e arrancou completamente as cortinas da parede. Por um rápido instante, teve um vislumbre de uma figura bizarra e seminua, num manto de plumas de papagaio e um toucado de plumas ondulantes. Então, enquanto sentia a total explosão hipnótica daqueles olhos flamejantes, fechou seus próprios olhos e atacou às cegas. Sentiu seu machado mergulhar profundamente; então, ele abriu os olhos e olhou atentamente para a figura silenciosa que jazia a seus pés, com a cabeça dividida numa larga poça escarlate.
E então, Athelstane ficou subitamente ereto, os olhos chamejando perplexos, espada desembainhada.
- O quê... ? – ele gaguejou, olhando feroz e selvagemente – Turlogh, em nome de Thor, o que aconteceu? Sangue de Thor! Há um sacerdote aí, mas o que é esta coisa morta?
- Um dos demônios desta cidade repugnante. – respondeu Turlogh, soltando o machado – Acho que Gothan fracassou novamente. Este aí estava atrás das cortinas e nos enfeitiçou inesperadamente. Colocou o feitiço do sono em nós...
- Sim, eu dormi. – o saxão assentiu, atordoado – Mas, como eles chegaram aqui?...
- Deve haver uma porta secreta atrás daquelas cortinas, embora eu não consiga achá-la...
- Ouça!
Do quarto onde a rainha dormia, veio um vago som de arrastar, que, em sua fraqueza, parecia carregado de medonhas possibilidades.
- Brunhild! – gritou Turlogh.
Um estranho gorgolejo o respondeu. Ele deu um empurrão contra a porta. Estava fechada. Enquanto ele erguia o machado para cortá-la e abri-la, Athelstane o afastou para um lado e arremessou o peso inteiro contra ela. Ela se quebrou e, através de seus escombros, Athelstane saltou para dentro do quarto. Um rugido saiu bruscamente de seus lábios. Sobre o ombro do saxão, Turlogh teve uma visão de delírio. Brunhild, rainha de Bal-Sagoth, se contorcia indefesa no ar, agarrada pela sombra negra de um pesadelo. Então, quando o grande vulto negro virou os insensíveis olhos flamejantes neles, Turlogh viu que era uma criatura viva. Se erguia como um homem, sobre duas pernas que pareciam árvores, mas seu contorno e rosto não eram de homem, fera nem demônio. Aquilo, Turlogh percebeu, era o horror que até Gothan hesitava em soltar sobre seus inimigos: o arqui-demônio que o diabólico sacerdote havia trazido à vida em suas ocultas cavernas de horror. Que medonho conhecimento fora necessário, que horrenda mistura de coisas humanas e formas sem nome dos vazios externos da escuridão?
Segurada feito uma criança de colo, Brunhild se contorcia, com os olhos brilhando de horror e, quando a Coisa tirou uma mão deformada de sua garganta branca para se defender, um grito de medo, de abalar o coração, saiu-lhe dos lábios pálidos. Athelstane, o primeiro a entrar na sala, estava à frente do gaélico. A forma negra avultou sobre o gigante saxão, eclipsando-o e obscurecendo-o, mas Athelstane, agarrando o cabo da espada com ambas as mãos, arremeteu para cima. A grande espada afundou, em mais da metade do comprimento, no corpo negro, e saiu vermelha, enquanto o monstro cambaleava para trás. Um tumulto infernal de som se desencadeou, e os ecos daquele grito medonho trovejaram pelo palácio e ensurdeceram os ouvintes. Turlogh estava saltando para dentro, com o machado erguido, quando o demônio largou a garota e fugiu cambaleando pelo aposento, desaparecendo numa escura abertura que aparecia na parede. Athelstane, completamente furioso, saltou atrás dele.
Turlogh avançou para seguir, mas Brunhild, se erguendo, lançou os braços brancos ao seu redor, num abraço do qual até ele dificilmente conseguiria se libertar.
- Não! – ela gritou, com os olhos resplandecentes de terror – Não os siga naquele corredor medonho! Ele pode levar ao próprio Inferno! O saxão jamais retornará! Não compartilhe do destino dele!
- Solte-me, mulher! – rugiu Turlogh, exaltado, se esforçando para desembaraçar-se sem feri-la – Meu camarada pode estar lutando pela própria vida!
- Espere até eu chamar a guarda! – ela gritou, mas Turlogh lançou-a para longe e, enquanto ele saltava pela entrada secreta, Brunhild bateu no gongo de jade até ressoar no palácio.
Passos ruidosos soaram no corredor, e a voz de Zomar gritou:
- Ó rainha, está em perigo? Devemos arrombar a porta?
- Depressa! – ela gritou, enquanto se lançava à porta externa e a abria violentamente.
Turlogh, saltando temerariamente para dentro do corredor, correu ao longo da escuridão por alguns momentos, ouvindo à sua frente o berro agonizado do monstro ferido e os graves gritos ferozes do viking. Então, estes ruídos sumiram à distância, enquanto ele adentrava uma estreita passagem, fracamente iluminada por tochas cravadas em nichos. Prostrado no chão, jazia um homem marrom, vestido com plumas cinzas, seu crânio esmagado como uma casca de ovo.
Por quanto tempo Turlogh O’Brien seguiu as curvas vertiginosas do corredor sombrio, ele nunca soube. Outras passagens menores saíam para ambos os lados, mas ele se manteve no corredor principal. Finalmente, passou sob uma porta arcada e saiu numa sala estranha e vasta. Colunas sombrias e maciças sustentavam um teto sombreado, tão alto que parecia uma nuvem meditativa contra um céu da meia-noite. Turlogh viu que estava num templo. Atrás de um negro altar manchado de vermelho, avultava uma enorme forma, sinistra e odiosa. O deus Gol-goroth! Certamente deveria ser ele. Mas Turlogh deu apenas uma rápida olhadela à figura colossal que meditava lá nas sombras. Diante dele, havia um estranho quadro-vivo. Athelstane se apoiava em sua grande espada e contemplava as duas formas que se esparramavam numa confusão vermelha a seus pés. Fosse qual fosse a magia repugnante que dera vida à Coisa Negra, fora tirada pela estocada de aço inglês, para arremessá-la num limbo de onde viera. O monstro jazia meio cruzado com sua última vítima... um homem magro, de barba branca, cujos olhos eram inflexivelmente perversos, mesmo na morte.
- Gothan! – exclamou o surpreso gaélico.
- Sim, o sacerdote... eu estava bem atrás deste gigante, ou o que quer que seja, por todo o caminho ao longo do corredor, mas apesar do seu tamanho, corria feito um cervo. Alguém com um manto de penas tentou pará-lo, e ele esmagou-lhe o crânio sem parar nem por um instante. Finalmente, corremos para dentro deste templo, alcancei os calcanhares do monstro, com minha espada erguida para o golpe fatal. Mas, pelo sangue de Thor! Quando ele viu este velho, presente naquele altar, deu um uivo medonho, despedaçou-o e morreu sozinho, tudo num instante, antes que eu pudesse alcançá-lo e atacar.
Turlogh olhou para a enorme coisa disforme. Olhando diretamente para ela, ele não conseguia fazer uma avaliação de sua natureza. Ele só teve uma impressão caótica de grande tamanho e perversidade inumana. Agora jazia como uma imensa sombra, manchando o chão de mármore. Certamente, asas negras, batendo desde golfos sem lua, haviam pairado sobre seu nascimento, e as almas medonhas de demônios sem nome haviam se dedicado à sua existência.
E agora, Brunhild se precipitava desde o corredor escuro, com Zomar e os soldados. E, das portas externas e esconderijos secretos, vieram outros, silenciosamente... guerreiros, e sacerdotes em mantos de penas, até uma grande multidão se encontrar no Templo da Escuridão.
Um grito feroz escapou da rainha, enquanto ela via o que ocorrera. Seus olhos resplandeciam terrivelmente, e ela foi tomada por uma estranha loucura.
- Finalmente! – ela gritou, empurrando o cadáver de seu arqui-rival com o calcanhar – Finalmente, sou a verdadeira senhora de Bal-Sagoth! Os segredos dos caminhos ocultos agora são meus, e a barba do velho Gothan está molhada em seu próprio sangue!
Ela lançou os braços para cima em medonho triunfo, e correu em direção ao ídolo sombrio, gritando insultos exultantes como uma louca. E, naquele momento, o templo tremeu! A imagem colossal se inclinou, e então caiu pesadamente para a frente, como se fosse uma torre alta. Turlogh gritou e saltou para a frente, mas, mesmo enquanto ele o fazia, com um estrondo feito a explosão de um mundo, o deus Gol-goroth se espatifou sobre a mulher condenada, a qual estava congelada. A enorme imagem se partiu em mil fragmentos grandes, ocultando para sempre da visão dos homens Brunhild, filha do filho de Rane Thorfin, rainha de Bal-Sagoth. Sob as ruínas, escorreu um largo fluxo rubro.
Guerreiros e sacerdotes ficaram congelados, aturdidos pelo estrondo daquela queda, assombrados pela catástrofe sobrenatural. Uma sensação gelada tocou a espinha de Turlogh. Teria aquela enorme massa sido empurrada pela mão de um morto? Enquanto caía, parecera ao gaélico que as feições inumanas haviam, por um instante, adquirido semelhança às do finado Gothan!
Agora que todos estavam sem fala, Gelka viu e aproveitou sua oportunidade.
- Gol-goroth falou! – gritou ele – Ele esmagou a falsa deusa! Ela era apenas uma maldita mortal! E estes estranhos também são mortais! Vejam... ele sangra!
O dedo do sacerdote apontou para o sangue seco no pescoço de Turlogh, e um urro selvagem se ergueu da multidão. Aturdidos e perplexos pela rapidez e tamanho dos últimos eventos, eram como lobos enlouquecidos, prontos para inocentar dúvidas e medo numa explosão de matança. Gelka saltou em direção a Turlogh, machadinha brilhando; e um punhal na mão de um subalterno entrou nas costas de Zomar. Turlogh não entendeu o grito, mas percebeu que o ambiente estava tenso e perigoso para Athelstane e para ele próprio. Ele foi encontro de Gelka, com um golpe que atravessou as plumas ondulantes e o crânio sob elas; então, meia dúzia de lanças se quebrou em seu escudo, e uma investida de corpos o arrastou para trás, contra um grande pilar. Então Athelstane, com o pensamento lento, que ficara embasbacado no rápido segundo que levaria para transpirar, despertou numa explosão de fúria aterradora. Com um rugido ensurdecedor, ele girou sua pesada espada num enorme arco. A lâmina sibilante arrancou uma cabeça, atravessou um torso e afundou numa coluna espinhal. Os três corpos caíram um sobre o outro e, mesmo na loucura da luta, homens gritaram diante do prodígio daquele único golpe.
Mas, como uma maré marrom e cega de fúria, o povo enlouquecido de Bal-Sagoth rolava sobre seus inimigos. Os soldados da rainha morta, pegos pela multidão, morreram sem chance de darem um golpe. Mas derrubar os dois guerreiros brancos não era uma tarefa fácil. Com as costas coladas umas às outras, eles esmagavam e golpeavam: a espada de Athelstane era um raio de morte; o machado de Turlogh relampejava. Obstruídos por um mar de rosnantes rostos marrons e aço relampejante, eles abriram lentamente seu caminho em direção a uma porta. A própria quantidade de atacantes obstruía os guerreiros de Bal-Sagoth, pois não tinham espaço para dirigirem seus golpes, enquanto as armas dos viajantes do mar deixavam um anel sangrento e bem visível diante deles.
Empilhando uma medonha fileira de corpos à medida que avançavam, os aliados abriram lentamente seu caminho através da multidão que rosnava. O Templo das Sombras, testemunha de muitos atos sangrentos, estava inundado de sangue, como um sacrifício vermelho para seus deuses quebrados. As armas pesadas dos guerreiros brancos trabalharam numa medonha destruição, entre seus desnudos inimigos de membros mais leves, enquanto suas armaduras protegeram-lhes as próprias vidas. Mas seus braços, pernas e rostos estavam cortados e talhados pelo frenético aço voador, e parecia que a pura quantidade de seus rivais iria esmagá-los, antes que pudessem alcançar a porta.
Então, eles alcançaram-na e agiram desesperadamente contra os guerreiros marrons – não mais capazes de caírem sobre eles por todos os lados –; se retiraram para um espaço livre, deixando uma pilha vermelha e dilacerada diante da soleira. E naquele momento, pularam para trás, adentrando o corredor e, agarrando a grande porta de latão, bateram-na nos muitos rostos dos guerreiros que pulavam uivando para impedi-lo. Athelstane, firmando seus poderosos braços, segurou-a contra as forças unidas, até Turlogh ter tempo de achar e passar a tranca.
- Thor! – arfou o saxão, sacudindo o sangue que lhe escorria abundante do rosto – Isto é quase uma disputa! E agora, Turlogh?
- Pelo corredor, rápido! – disse bruscamente o gaélico – Antes que avancem contra nós por este caminho e nos peguem feito ratos contra esta porta. Por Satã, a cidade inteira deve estar enfurecida! Escute esse rugido!
De fato, enquanto desciam às pressas o corredor cheio de sombras, lhes parecia que toda Bal-Sagoth havia explodido em rebelião e guerra civil. De todos os lados, vinha o colidir do aço, os gritos dos homens e os guinchos das mulheres, obscurecidos por um uivo hediondo. Uma incandescência acobreada ficou visível no final do corredor e depois, mesmo enquanto Turlogh, na frente, dobrava uma esquina e saía num pátio aberto, uma forma indistinta pulou em sua direção e uma arma pesada caiu, com força inesperada, sobre seu escudo, quase derrubando o guerreiro. Mas, enquanto ele cambaleava, contra-atacou e a ponta superior do machado afundou no coração de seu atacante, que caiu a seus pés. No clarão que iluminava tudo, Turlogh viu que sua vítima era diferente dos guerreiros marrons que havia enfrentado. Este homem estava nu, era poderosamente musculoso e era mais vermelho-cobre do que marrom. A pesada mandíbula animal, e a testa baixa e inclinada não mostravam nada da inteligência e refinamento do povo marrom; apenas uma bruta ferocidade. Um pesado porrete de guerra, rudemente esculpido, jazia ao lado dele.
- Por Thor! – exclamou Athelstane – A cidade está queimando!
Turlogh olhou para o alto. Eles se encontravam numa espécie de pátio elevado, do qual largos degraus desciam para as ruas e, de sua posição privilegiada, tiveram uma clara visão do terrível fim de Bal-Sagoth. Chamas pulavam loucamente, cada vez mais para o alto, empalidecendo a lua, e, no clarão vermelho, figuras pequenas corriam pra lá e pra cá, caindo e morrendo como bonecos que dançavam à música dos Deuses Negros. Através do rugido das chamas e do espatifar das paredes que caíam, cruzavam gritos agudos de morte e guinchos de medonho triunfo. A cidade estava apinhada por demônios nus, de pele de cobre, que queimavam, raptavam e chacinavam num rubro carnaval de loucura.
Os homens vermelhos das ilhas! Haviam descido às centenas, na Ilha dos Deuses à noite, e se foi a furtividade ou a traição que os levou através dos muros, os camaradas nunca souberam, mas agora eles rapinavam pelas ruas infestadas de cadáveres, saciando a sede de sangue num holocausto e massacre indiscriminado. Nem todas as formas cortadas eram marrons: o povo da cidade condenada lutara com coragem desesperada, mas, superados em número e pegos desprevenidos, sua coragem foi inútil. Os homens vermelhos eram como tigres famintos por sangue.
- Turlogh! – gritou Athelstane, com a barba eriçada e os olhos inflamados, enquanto a loucura da cena queimava como paixão em sua própria alma feroz – O mundo está se acabando! Vamos para o meio daquilo, saciar nosso aço antes de morrermos! Por quem lutaremos... os vermelhos ou os marrons?
- Tenha juízo! – retrucou o gaélico – Ambos os povos cortariam nossas gargantas. Devemos abrir nosso caminho em direção aos portões, e o Diabo leve a todos eles. Não temos amigos aqui. Por aqui... descendo estas escadas. Através dos telhados, naquela direção, vejo o arco de um portão.
Os camaradas desceram as escadas aos pulos, alcançaram a rua estreita abaixo e correram rapidamente pelo caminho que Turlogh indicou. Ao redor deles, se arrastava uma rubra inundação de carnificina. Uma grossa fumaça agora cobria tudo; e, na escuridão, grupos caóticos desapareciam, se contorciam e se dispersavam, salpicando os pavilhões despedaçados com formas ensangüentadas. Era como um pesadelo, no qual figuras demoníacas pulavam e saltavam, avultando subitamente na bruma injetada de fogo e desaparecendo de forma igualmente súbita. As chamas de ambos os lados das ruas empurravam umas às outras, chamuscando os cabelos dos guerreiros, enquanto eles corriam. Tetos desabavam com um pavoroso trovejar, e as paredes, se quebrando em escombros, enchiam o ar com morte voadora. Homens golpeavam cegamente desde a fumaça, e os viajantes do mar matavam-nos sem nunca saberem se suas peles eram marrons ou vermelhas.
Agora, uma nova nota se erguia no horror cataclísmico. Cegos pela fumaça e confusos pelas ruas serpenteantes, os homens vermelhos foram pegos pelo laço de sua própria armadilha. O fogo é imparcial – pode queimar tanto a quem acende quanto à vítima pretendida –, e uma parede caindo é cega. Os homens vermelhos abandonaram sua presa e correram uivando pra lá e pra cá, como animais, procurando fugir. Muitos, achando isto inútil, voltavam numa última e irracional tempestade de loucura, como tigres cegos, e faziam de seus últimos momentos uma explosão escarlate de chacina.
Turlogh, com o infalível senso de direção dos homens que vivem a vida do lobo, correu em direção ao ponto onde ele sabia existir um portão externo – embora, no serpentear das ruas e sob a cortina de fumaça, a dúvida o assaltasse. Da escuridão injetada de fogo à sua frente, ressoou um medonho grito agudo. Uma jovem nua cambaleou cegamente à sua frente, e caiu aos pés de Turlogh, o sangue jorrando-lhe do peito mutilado. Um uivante demônio manchado de vermelho, que a perseguia, puxou a cabeça dela para trás e cortou-lhe a garganta, uma fração de segundo antes de Turlogh arrancar a cabeça dele dos ombros e fazê-la girar para dentro da rua. E, naquele segundo, um vento repentino mudou a posição da fumaça que se contorcia, e os companheiros viram o portão aberto diante deles, apinhado de guerreiros vermelhos. Um grito feroz, uma investida destruidora, um louco instante de ferocidade vulcânica que alastrou o portão com cadáveres, e eles estavam atravessando e descendo rapidamente a inclinação que levava em direção à floresta e à praia além. Diante deles, o céu se avermelhava com o amanhecer; atrás deles, se erguia o tumulto pavoroso da cidade condenada.
Eles corriam como caças, buscando um breve abrigo nos muitos arvoredos de tempos em tempos, para evitarem grupos de selvagens que corriam em direção à cidade. Toda a ilha parecia apinhada deles; os chefes deviam ter instigado todas as ilhas, por centenas de quilômetros, para um ataque de tal grandeza. E finalmente os camaradas alcançaram a faixa da floresta, suspirando fundo quando chegaram à praia e encontraram-na abandonada, exceto por várias canoas de guerra, enfeitadas por caveiras.
Athelstane sentou-se e fez força para respirar:
- Sangue de Thor! E agora? O que faremos, além de nos escondermos nestas árvores até aqueles demônios vermelhos nos descobrirem?
- Me ajude a lançar este barco na água. – retrucou Turlogh – Vamos nos aventurar em alto-mar...
- Ho! – Athelstane ficou ereto em um pulo, apontando – Sangue de Thor, um navio!
O sol tinha acabado de se erguer, luzindo como uma grande moeda dourada na borda do oceano. E, delineando-se contra o sol, flutuava uma embarcação alta, de tombadilho elevado. Os camaradas pularam dentro da canoa mais próxima, empurrando-a para fora e remando como loucos, gritando e agitando seus remos para atrair a atenção da tripulação Músculos poderosos dirigiam a longa e delgada embarcação numa incrível velocidade, e não demorou para que o navio parasse e os permitisse chegar ao lado. Homens de rostos escuros, vestidos em cota-de-malha, olhavam por sobre o parapeito.
- Espanhóis. – sussurrou Athelstane – Se me reconhecerem, eu estaria melhor se ficasse na ilha!
Mas eles subiram pela corrente sem hesitação, e os dois nômades ficaram diante do homem magro, de rosto sombrio, cuja armadura era a de um cavaleiro de Astúrias. Dirigiu-se a eles em Espanhol, e Turlogh o respondeu, pois o gaélico, como muitos de sua raça, era um lingüista natural, viajara muito e falava muitas línguas. Em poucas palavras, o dalcasiano contou a história deles e explicou a grande coluna de fumaça que agora subia pelo ar da manhã, desde a ilha.
- Diga a ele que há o resgate de um rei na captura. – interrompeu Athelstane – Fale a ele dos portões prateados, Turlogh.
Mas, quando o gaélico falou do imenso espólio na cidade condenada, o comandante sacudiu a cabeça.
- Bom senhor, não temos tempo para adquiri-lo, nem homens para gastar na captura. Aqueles demônios vermelhos, que você descreve, dificilmente entregariam qualquer coisa... mesmo que sejam inúteis para eles... sem uma batalha feroz, e nem meu tempo e minha força são meus. Eu sou Don Roderigo del Cortez, de Castela, e este navio, o Monge Cinza, pertence à frota que navegava para perseguir os corsários mouros. Há alguns dias, fomos separados do restante da esquadra numa escaramuça marinha, e a tempestade nos levou para bem longe da rota. Estamos até agora tentando voltar para nos reincorporarmos à frota, caso possamos achá-la; se não, perseguiremos os infiéis como pudermos. Servimos a Deus e ao rei, e não podemos parar por mero detrito, como sugere. Mas vocês são bem-vindos a bordo deste navio, e precisamos de lutadores como vocês parecem ser. Vocês não vão se arrepender, caso queiram se juntar a nós e darem um golpe pela cristandade contra os mouros.
No nariz estreito e profundos olhos escuros, no magro rosto ascético, Turlogh percebeu o fanático, o cavaleiro inalterável e errante. Ele falou a Athelstane:
- Este homem é louco, mas há bons golpes para serem dados e estranhas terras para ver. De qualquer modo, não temos outra escolha.
- Um lugar é tão bom quanto outro para homens sem dono. – disse o enorme saxão – Diga a ele que o seguiremos até o Inferno e tostaremos a cauda do Demônio, se houver alguma chance de pilhagem.
4) Império
Turlogh e Athelstane estavam debruçados no parapeito, olhando fixamente para a recém-abandonada Ilha dos Deuses, da qual se erguia uma coluna de fumaça, carregada com os fantasmas de mil séculos e com as sombras e mistérios de império esquecido, e Athelstane praguejou como apenas um saxão consegue.
- Um resgate de um rei... e depois de toda aquela sangria... nenhuma pilhagem!
Turlogh sacudiu a cabeça:
- Vimos um reino antigo cair... vimos o último remanescente do mais velho império do mundo afundar em chamas e no abismo do esquecimento, e o barbarismo levanta sua cabeça feroz sobre as ruínas. Assim, dissipam-se a glória, o esplendor e a dignidade imperial... em chamas vermelhas e fumaça amarela.
- Mas nem um pouco de pilhagem... – persistia o viking.
Mais uma vez, Turlogh balançou a cabeça:
- Eu trouxe comigo a mais rara jóia da ilha... algo pelo qual homens e mulheres morreram, e as valetas se encharcaram de sangue.
Ele puxou de seu cinto um pequeno objeto... um emblema curiosamente entalhado em jade.
- O emblema da realeza! – exclamou Athelstane.
- Sim... enquanto Brunhild se debatia comigo, para evitar que eu lhe seguisse corredor adentro, esta coisa se prendeu em minha cota-de-malha e foi arrancada da corrente dourada que a prendia.
- Aquele que o leva é rei de Bal-Sagoth. – meditou o poderoso saxão – Como eu predisse, Turlogh, você é um rei!
Turlogh riu com alegria amarga, e apontou para a grande e ondulante coluna de fumaça, que pairava no céu distante sobre a borda do mar.
- Sim... um reino de mortos... um império de fantasmas e fumaça. Sou chefe de uma cidade-fantasma... Sou o Rei Turlogh de Bal-Sagoth, e meu reino está se desvanecendo no céu da manhã. E lá é como todos os outros impérios no mundo... sonhos, fantasmas e fumaça.
(*) – Cathay: Nome dado à China, séculos atrás (Nota do Tradutor);
(**) – Medos: Povo da Média, a sudoeste do Mar Cáspio, que conquistou as terras assírias e babilônias em 660 a.C. (N. do T.).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Digitação: Edilene Brito da Cruz.
Fonte: http://gutenberg.net.au/ebooks06/0608081h.html