A Sombra do Huno

(por Robert E. Howard)


Prólogo:


UMA TRANQÜILDADE ocupava a grande embarcação de guerra no nível do mar sem terra. O cobre e o ouro cintilavam no sol, as velas preguiçosas batiam contra o mastro. Na popa alta, três homens bebiam vinho e conversam desocupadamente. Exceto por uma característica, eram tipos tão diferentes uns dos outros quanto se possa imaginar, mas em um aspecto eram iguais: ambos tinham a aparência do guerreiro nato.

Athelstane, o saxão, era um gigante: media 1m98, desde as sandálias de couro de búfalo até o emaranhado de cabelos loiros. Sua barba encaracolada era tão dourada quanto os sólidos braceletes que usava; seus olhos eram grandes, calmos e cinzas. Ele vestia uma couraça de malha de escamas e, mesmo enquanto bebia e conversava, segurava de um lado a outro dos joelhos sua larga espada de dois gumes em sua bainha desgastada.

Don Roderigo del Cortez era alto, escuro e magro, vestido em armadura simples e sem ornamentos. Seus olhos escuros eram profundos e sombrios, e sua cabeleira, majestosa e delicada. Não usava barba, mas um fino bigode, e sua única arma era uma longa e fina espada – precursora do florete.

Turlogh Dubh O’Brien não era tão alto quanto seus companheiros, embora medisse mais de 1m80. Seu rosto escuro era bem barbeado e seu cabelo negro era curto. Sob espessas sobrancelhas negras, brilhavam seus vulcânicos olhos azuis, cheios de brilhos mutáveis como nuvens passando por algum profundo lago azul. Com membros longos, peito profundo e ombros largos, todos os seus movimentos indicavam sua força de ferro e flexibilidade felina. Ele era, em alguns aspectos, um lutador mais completo que seus amigos, pois possuía uma velocidade dinâmica que faltava ao saxão, e pura força – além da capacidade do delgado espanhol.

Ele usava uma negra e meticulosamente trabalhada cota-de-malha, e um cinto verde segurava um longo punhal em seu quadril. Ao lado, num cabide de armas, estava o restante do seu equipamento: um elmo simples e sem visor, com um pendente de malha; um pequeno escudo redondo, com uma ponta afiada no centro, e um machado de uma só lâmina. Este machado fazia parte dos atributos letais do dono; com sua única e afiada lâmina, e um cabo tão bem trabalhado em carvalho a ponto de uma espada não poder cortá-lo, era a arma de um mestre. Era mais leve que a maioria dos machados da época, e feito de forma diferente. Uma curta ponta afiada atrás, e outra no alto da lâmina, eram adicionadas à sua aparência letal.

- Don Roderigo – retumbou Athelstane –, e estes orientais contra os quais estamos navegando? Sangue de Thor, já cruzei espadas com todos os guerreiros do mundo ocidental, mas esses eu nunca vi. Muitos dos meus companheiros viajaram até Mikligaard, mas não...

- Os sarracenos são guerreiros bravos e cruéis, bom senhor. – respondeu o Don – Eles lutam com azagaias e sabres curvos. E odeiam nosso belo Senhor Cristo, pois se mantêm fiéis a Maomé.

- Enquanto concluo – prosseguiu Athelstane –: no leste, para onde estamos navegando, fica o gargalo de água que separa a Europa da África. Os infiéis sarracenos ocupam tanto a África quanto a maior parte da Espanha. E mais além, fica, de um lado do Mar Mediterrâneo, a Itália e a Grécia; e, do outro, a parte oriental da África e a Terra Santa, onde desfilam os chacais árabes. E, nos arredores, está Constantinopla, ou Mikligaard como os vikings chamam-na... e além, o que há?

Dom Roderigo sacudiu a cabeça:

- Além, fica a Pérsia e os desertos onde se aglomeram pagãos turcos e tártaros. Além... dizem os contos selvagens que ficam Índia e Cathay... mas quem sabe? No meio, ficam desertos e montanhas cheias de pagãos e maus espíritos, dragões e...

Turlogh interrompeu subitamente, balançando a cabeça:

- Não há dragões, Don Roderigo, embora seja verdade dizer que há muitos perigos para o aventureiro, tanto vindos de feras quanto de homens.

Os outros olharam curiosos para ele. Não era comum o exilado gaélico abrir a boca para falar de suas longas andanças. Mas este agora era seu modo.

- Eu era uns sete anos mais jovem – disse ele –, quando um dia embarquei de Erin numa incursão... pelo meu machado, foi uma longa incursão, pois foi mais de três anos antes que eu colocasse os pés novamente na Irlanda. Não esqueça, Athelstane, que naqueles dias de fora-da-lei, eu tinha minha própria embarcação; sim, e uma tripulação.

- Eu lembro. – murmurou o saxão – Meus companheiros vikings se espalhavam desse modo, e aldeias fumegavam na costa oeste da Inglaterra. Mas, e quanto às terras desconhecidas a leste, das quais falei?

- Se você desembarcar na costa sudeste do Mar Báltico – respondeu Turlogh –, e perambular na direção sul e leste, chegará a um grande mar interno: o Mar Cáspio. Entre eles, fica uma terra vasta de florestas e rios, e planícies largas e ondulantes, com poucas árvores, mas cheias de grama alta: uma terra vasta, cinza e desolada...


De um lado a outro das estepes plúmbeas e cinzas, sob o céu plúmbeo e cinza, voavam umas poucas garças. Até onde os olhos podiam alcançar, se estendia a grama pardacenta e ondulante, agitada por um vento frio. Uns poucos aglomerados de árvores raquíticas quebravam a monotonia e, à distância, se percebia o contorno de um grande rio, que se enroscava como uma serpente pelo ermo. Juncos altos se erguiam abundantemente lá, e aves aquáticas circulavam acima.

Turlogh O’Brien olhava para os ermos, de um lado a outro, e a sombria desolação adentrou-lhe a alma. Então, ele se sobressaltou. Além da vegetação ao redor do rio, irromperam quatro figuras, às quais seus olhos agudos reconheceram como cavaleiros, correndo em sua direção – um deles à frente dos outros. Turlogh segurou com a mão as rédeas de um grande cavalo ruão. Agora, ele cavalgava suavemente, batendo de leve o machado e a fivela, e se dirigiu a um esparso agrupamento de árvores, que se encontrava próximo. Ele não acreditava que os cavaleiros a chegarem viessem para atacá-lo – a atitude deles o fazia acreditar que os três de trás perseguiam o quarto. E o gaélico estava curioso em saber que tipo de homens habitavam esta região desolada.

Aproximaram-se rapidamente, e logo Turlogh viu que sua suposição estava correta. O homem da frente oscilava na sela, e um braço pendia flácido. Ele guiava seu cavalo com a outra mão e segurava uma espada quebrada entre os dentes. Era alto e jovem, e cavalgava como o vento, sua emaranhada cabeleira amarela esvoaçando à brisa. Mas os perseguidores estavam se aproximando rapidamente. Tinham estatura mais baixa do que o perseguido, e montavam em cavalos menores e mais ágeis. Enquanto se aproximavam do esconderijo do celta, Turlogh viu que eles eram escuros, vestiam leves camisas prateadas de malha e usavam turbantes. Seguravam leves escudos redondos e cimitarras curvas.

O pensamento de Turlogh ficou pronto em um instante. A desavença não era com ele; mas lá longe, três homens armados caçavam um guerreiro ferido, o qual era certamente de uma tribo mais aparentada com o povo do próprio Turlogh, do que seus perseguidores. Estes eram turcos, determinou o gaélico, embora ele achasse que suas fileiras ficassem bem mais ao sul. Um ódio instintivo lhe queimou dentro do peito. Era a velha, velha rixa entre arianos e turanianos, tão forte que envia os longínquos descendentes dos guerreiros primordiais às gargantas uns dos outros.

Agora, o jovem de cabelos amarelos atravessava trovejante o esparso arvoredo, e o perseguidor mais próximo estava quase ao seu lado. Uma cimitarra erguida brilhava numa mão escura, e um grito feroz de triunfo se erguia aos céus – para ser transformado num arquejo de surpresa, quando uma figura inesperada saiu rapidamente das árvores.

Como uma flecha lançada por uma atiradeira, o grande cavalo ruão se espatifou com tudo contra a montaria do turco. Não houve tempo para virar o cavalo e evitar o impacto. Atacando pelo lado, o cavalo mais pesado lançou o mais leve de cabeça para baixo, lançando o montador ao chão, onde um fustigante casco de cavalo fez seus miolos espirrarem.

Turlogh conduziu o cavalo ao redor, para encontrar o ataque dos turcos remanescentes, que uivavam como lobos assombrados e raivosos, mas eles o atacaram de ambos os lados. O gaélico apressou a montaria para encontrar o mais próximo, antes que o outro pudesse alcançá-lo pelo outro lado. A cimitarra curva zurziu em direção à cabeça de Turlogh, mas o gaélico, guiando o cavalo com os joelhos, aparou a lâmina com seu escudo e atacou quase simultaneamente. O gume afiado atravessou o turbante e dividiu o crânio raspado sob ele. Enquanto o turco despencava de sua sela, Turlogh girou para trás pra desviar a cimitarra que já pairava sobre ele. O jovem de cabelos amarelos tinha visto a luta e estava avançando para ajudar seu salvador, mas a mesma estava terminada antes que pudesse alcançá-lo.

O turco remanescente atacava pelo lado esquerdo de Turlogh, uivando e brandindo a lâmina feito um louco, acreditando que o gaélico não conseguiria alcançá-lo com o machado vermelho sem virar o cavalo ou passar a arma para a mão esquerda. Mas, enquanto ele se lançava açoitando, o jovem loiro viu um truque de batalha do qual nunca ouvira falar. Turlogh se ergueu em seus estribos, se retorceu na sela e inverteu o procedimento usual. Ele aparou a lâmina sibilante com o machado e atacou com o escudo. O uivo de triunfo do turco se tornou um medonho gorgolejo, quando a ponta no centro do escudo rasgou-lhe a veia jugular. O sangue inundou o pequeno escudo redondo de Turlogh, e o turco cambaleou à terra, onde morreu, agarrando a barba manchada de vermelho.

Turlogh se virou para ver o jovem ferido, conduzindo o cavalo para perto. Ele falou numa língua que o gaélico conseguiu entender:

- Agradeço-lhe, irmão, seja você quem for. Estes cães teriam levado minha cabeça para Khogar Khan, se não fosse por você. Quatro deles me perseguiam entre os juncos do rio. Matei um... por São Pedro, ele nunca mais comerá sementes de girassol. Mas eles despedaçaram minha espada, quebraram meu braço e eu tive que fugir. Diga-me seu nome, para que possamos ser irmãos.

- Meu nome é Turlogh Dubh, que significa “Turlogh, o Negro”. – respondeu o gaélico – Meu clã é o dos O’Brien e minha terra é Erin. Mas agora sou um exilado de meu povo e tenho vagado há muitas luas.

- Eu sou Somakeld – disse o jovem –, e meu povo são os turgaslavos, moradores das estepes. Meu clã está acampado logo além da linha do céu, lá longe. Venha comigo e deixe meu povo lhe dar as boas-vindas.

- Primeiro, me deixe ver este braço. – disse Turlogh, embora o jovem tenha rido do arranhão, como chamou. Turlogh, habilidoso em cuidar de ferimentos, encaixou o osso quebrado e enfaixou o profundo corte de sabre tão bem quanto pôde, com lama e teias-de-aranha, tiradas das árvores raquíticas. Somakeld não soltou nenhum resmungo de queixa e, quando o serviço ficou pronto, agradeceu ao celta com silenciosa cortesia. Depois, cavalgaram em direção ao acampamento eslavo.

- Como sabe falar minha língua? – perguntou o rapaz.

- Perambulei durante meses por entre as grandes florestas. – respondeu Turlogh – As tribos das florestas são do mesmo sangue dos moradores das estepes, e sua língua é quase a mesma. Mas me diga, Somakeld, de onde vêm estes turcos que matamos? Já vi tártaros, que, algumas vezes, cavalgam até mesmo para dentro das grandes florestas, mas eu pensei que o império dos turcos ficasse bem ao sul.

- Sim, ele fica. – assentiu Somakeld – Mas estes cães foram expulsos por suas famílias.

Somakeld falava minuciosamente, e Turlogh o achou bem mais sincero e vivaz de espírito do que o mal-humorado povo da floresta, para o meio do qual suas últimas perambulações o levaram. Embora jovem, o eslavo viajara muito, “para as areias amarelas do sul, onde as caravanas trafegam atrás de Rhoum e Bokhara; para bem a leste do Mar Azul (o Mar de Aral), além das extensões setentrionais do Volga e a oeste do grande rio, chamado Dnieper”. Sua tribo era aventureira e nômade, e ele próprio tinha mais do que sua parte no desejo de perambulação.

Estes turcos eram os mais selvagens e ferozes primos dos seljúcidas, diante de cujos ataques furiosos os califados árabes do Islã estavam se esmigalhando. Esta tribo em particular havia sido derrotada na incessante guerra de fronteira, tanto pelos persas quanto por algum clã turco aparentado – Somakeld não tinha certeza. Mas eles haviam abandonado as terras de pastoreio de seus ancestrais e se aventurado muito além das fronteiras indefinidas de sua raça.

Haviam chegado às estepes, onde os remotos e nômades povoados de duas raças rivais lutaram e se misturaram; onde a migração mais oriental dos últimos nômades arianos rosnou e se chocou contra a migração mais ocidental dos pastores tártaros.

A habitual guerra irregular ocorreu em seguida: escaramuças e ataques-surpresa por mulheres e cavalos em ambos os lados. Os bandos nômades de tártaros tomavam primeiro um lado e depois o outro, de acordo com seus caprichos. Mas ultimamente a guerra tem tomado um novo aspecto. Um novo khan havia surgido entre os turcos que dominavam os pastos além do rio. Era Khogar Khan, que ganhou sua liderança ao matar o khan anterior. Sua ambição era grande. Ele sonhava com poder – com soberania, não com uma desolação de pastos e de tribos nômades, mas com um grande império, se estendendo do coração das estepes até o Mar Cáspio. Não era uma visão louca, comentou Somakeld, que ouvira os velhos falarem dos impérios de rápido crescimento que surgiam repentinamente, quase da noite para o dia, dos abundantes labirintos do Leste, para se espalharem pela curva do mundo como fogo pelas campinas, e se apagarem com a mesma rapidez.

Mas Khogar Khan tinha um obstáculo para vencer primeiro: os turgalavos, senhores hereditários das estepes. Seu primeiro e importante passo era esmagá-los.

Já os turcos, inflamados por seu líder belicoso, haviam derrotado os clãs tártaros nos arredores, matando muitos, forçando alguns a uma triste submissão e expulsando o restante. Agora os muçulmanos estavam juntando suas forças para um poderoso ataque aos seus rivais arianos a oeste. Cavaleiros estavam esquadrinhando as estepes, reunindo os clãs turgaslavos. Seu povo não tinha vilas, explicou Somakeld, mas seguia os pastos. Os vários grupos de tribos estavam espalhados para onde quer que o capricho os levasse, por um raio de mil e seiscentos quilômetros.

Espiões haviam relatado os movimentos dos turcos, e foi ao retornar de um clã distante, que Somakeld havia encontrado seus rivais hereditários. Sua tribo não era grande, disse o jovem turgaslavo, mas durante séculos havia derrotado seus inimigos. Outrora eram muitos milhares, mas guerras tribais haviam reduzido-os e ramificações da tribo haviam se afastado e se aventurado para oeste, para esqueceram suas vidas pastoris e se tornarem agricultores. Somakeld torceu o nariz em desprezo.

- Mas você, meu irmão – ele exclamou subitamente –, você não me contou como chegou a se aventurar sozinho, tão longe de sua própria terra pastoril. Certamente, você era um chefe entre seu próprio povo.

Turlogh sorriu friamente:

- Outrora, fui um chefe numa ilha bem a oeste, chamada Erin. Meu rei era um ancião muito sábio, e seu nome era Brian Boru. Mas o grande rei caiu, numa poderosa batalha contra piratas de barbas vermelhas, chamados dinamarqueses, embora o povo dele tenha ganhado a batalha. Então, seguiu-se um período de rixas entre famílias, e o rancor de uma mulher e a inveja de um parente me expulsaram de meu clã: um fora-da-lei para morrer de fome na urze.

“Mas, embora eu não fosse mais dos Dal Cais, meu coração continuava amargo contra os dinamarqueses, que têm devastado minha terra por séculos, e arranjei para mim alguns homens sem amos e foras-da-lei como eu, e de maneira indireta, tomamos uma galera dos dinamarqueses”.

E, com rápidas palavras, Turlogh buscou pintar para o jovem eslavo aquela fase vermelha de sua vida inquieta e cheia de batalhas.

Seu navio era O Corvo, ao qual ele renomeou Ódio de Crom, à maneira de um antigo e pagão deus celta. Velhacaria e luta selvagem o ganharam, e a escória do mar o equipava. Ninguém da tripulação tinha preço que não fosse a própria cabeça. Para Turlogh convergiam velhacos, ladrões e assassinos, cuja única virtude era o indiferente abandono de homens desesperados que não tinham nada pelo que viver.

Foras-da-lei irlandeses, criminosos escoceses, escravos saxões fugidos, piratas galeses, fugitivos de forcas britânicas guiavam e remavam o Ódio de Crom, e lutavam e saqueavam sob o comando de seu chefe selvagem. Lá havia homens de orelhas cortadas e narizes fendidos, homens com marcas de ferro quente no rosto, cujos membros traziam marcas de cavaletes de tortura e de grilhões. Não tinham amor nem esperança, e lutavam como demônios famintos de sangue.

Sua única lei era a palavra de Turlogh O’Brien, e aquela lei era inflexível. Não havia sentimento entre eles: rosnavam ao redor dele feito lobos, e ele os amaldiçoava pelos parasitas que eram. Mas eles temiam e respeitavam-lhe a ferocidade e bravura guerreira, e ele reconhecia-lhes a desesperada selvageria. Ele não tentou impor sua vontade sobre eles à maneira de outros líderes, cuja mão não é contra o mundo. Exigiu-lhes apenas que o seguissem e lutassem como demônios quando ele desse a ordem. Ele nem dava a mesma ordem duas vezes. Nos ambientes infernais nos quais se encontrava, o tigre sonolento despertava no chefe gaélico e, de toda a tripulação de mãos vermelhas, ele próprio era o mais terrível.

Quando ele dava uma ordem, um homem obedecia instantaneamente ou puxava sua arma com a mesma rapidez. Pois a penalidade por desobediência era o instantâneo derramamento dos miolos do amotinado, sob o machado do selvagem chefe. Os homens que seguiram Turlogh O’Brien nos dias anteriores à sua proscrição, ficariam embasbacados ao vê-lo no tombadilho manchado de sangue do Ódio de Crom, com os olhos rugindo e o machado pingando, bradando ordens à sua horda heterogênea, numa voz que se assemelhava ao grito enlouquecido de uma pantera.

Era um pirata que saqueava piratas. Somente quando seus suprimentos ficavam escassos, é que ele se lançava a pilhar as costas da Inglaterra, Gales e França. O ódio quase insano pelos vikings, que lhe queimava o coração, o levava a assolar as fortalezas dos saqueadores nas Hébridas, nas Órcades e até mesmo nas costas da própria Escandinávia. Quando caía a neve e os temporais de inverno açoitavam os mares ocidentais, Turlogh e seus esfarrapados navegavam no vento, sentindo frio e fome, e sofrendo, para caírem sobre seus inimigos com tocha e espada.

Foi um serviço duro, o que o gaélico ofereceu aos homens que chegaram até ele, vindos das prisões ou da sombra da forca. Ele os prometeu apenas uma vida dura e amarga, trabalho incessante, guerra e uma morte sangrenta. Mas ele deu-lhes uma chance de se vingarem do mundo e se saciarem na matança – e os homens seguiram-no.

Quando até mesmo os bravos escandinavos punham suas longas embarcações nas casas destas e ficavam encerrados em suas resistentes moradias, bebendo cerveja e ouvindo skalds, Turlogh e seus ladrões vagavam pelas desolações espumantes, para atacarem seus inimigos em suas seguranças e deixarem brasas ardentes de casas sólidas.

Era um dia de inverno intenso. Uma ventania cortante açoitava o Báltico, levando diante dela uma neve cortante que congelava no mastro e no banco dos remadores. As ondas rebentavam de um lado a outro do baixo poço do navio-dragão, encharcando os remadores e congelando em suas barbas. Mesmo aqueles homens, habituados a todas as privações e que viviam como lobos, estavam à beira de sucumbir. Na parte frontal da cobertura, com a mão na proa arqueada que terminava numa cabeça de dragão, Turlogh O’Brien forçava os olhos, se esforçando para perfurar o véu de neve e de congelante espuma marinha, pulverizada pelo vento.

Havia gelo na malha de Turlogh, e o sangue que se empastava em seus sapatos estava totalmente congelado. Mas ele não dava atenção; ao nascer, fora lançado num amontoado de neve para determinar seu direito à vida. Ele era mais resistente que um lobo. E agora seu coração lhe queimava tão ferozmente, que nenhum frio externo poderia lhe fazer mal.

Ele se aventurara longe em sua viagem, e havia deixado ruínas ardentes se apagando em escarlate, nas costas da Jutlândia e nas praias que guarnecem Skaggerack. Não satisfeito, se precipitara para o norte, para dentro do Báltico, e agora acreditava estar no que alguns chamavam de Golfo da Finlândia.

Súbito, ele avistou uma forma veloz na névoa, e gritou ferozmente. Um navio! Algum viajante viking que se dirigia ao seu encontro; sem dúvida, suspeitando de suas pilhagens e não querendo ser pego desprevenido em sua casa, como aqueles reis do mar, cujos crânios adornavam os escudos do parapeito do navio.

Turlogh, com os olhos fixos na sombra que corria, gritou uma ordem para alterar o curso e colocá-la lado a lado. Seu lugar-tenente, um sombrio escocês caolho, ousou uma objeção.

- Teremos que pegá-la no vento; se nos desviarmos meio ponto, um mar largo irá quebrá-la em duas. Já é loucura suficiente se aventurar entre mares como este, numa embarcação que não tem um convés para...

- O diabo leve o dono dele! – berrou Turlogh – Faça como digo, cria do inferno... ali! Está desaparecida dentro da neve... não consigo vê-la...

As enormes ondas, com cristais de gelo, sacudiam a longa embarcação baixa como se fosse uma lasca. O escocês estava certo: só um louco se aventuraria naqueles mares de inverno. Mas Turlogh tinha um toque de loucura em sua alma, que quebrava as rédeas às vezes.

Subitamente e sem o menor aviso, uma proa com esporão avultou para fora da névoa cadente, a bombordo. Os homens do Ódio de Crom viram os elmos com chifres e os ferozes rostos loiros dos escandinavos, que se alinhavam no parapeito, gritando e brandindo suas armas.

- Corram lado a lado e embarquem nele! – gritou Turlogh, enquanto uma nuvem de flechas assobiou pelo vento uivante.

O Ódio de Crom pulou para a frente, como um cavalo esporeado, mas no instante seguinte, o homem mais forte no remo, um gigante saxão com a marca de um escravo foragido no rosto, caiu com uma flecha no coração, e a cabeça do remo resistiu aos esforços de seus colegas. Turlogh gritou ferozmente, e outros se lançaram para diante, mas a galera, fora de controle, mudou de direção, se sacudiu e tremeu ao impacto de um mar alto, que arrastou dez homens à água, e a galera viking ia de encontro a ela.

O bico de ferro dos escandinavos não atacou em cheio, senão teria tosquiado o parapeito; mas abriu um grande rasgo próximo à proa e retalhou os lados, com um ensurdecedor estilhaçar de remos. Os navios ficaram quase emparelhados, e os parapeitos estavam apinhados de figuras uivantes e cortantes, que matavam e morriam num vermelho holocausto de ódio.

Homens morriam feito moscas ao longo das amuradas, onde machados despedaçavam elmos e crânios, e espadas se quebravam em peitos encouraçados. Mas o colega escocês viu Turlogh, de onde talhava e cortava como um demônio faminto por sangue, e gritou:

- Os mares nos rasgarão em pedaços a qualquer momento, e o Ódio de Crom está afundando sob nossos pés!

- Amarrem-nos uns aos outros! – gritou Turlogh, com os olhos inflamados e a espuma manchando-lhe os lábios, sua loucura latente arrebentando todas as amarras – Amarrem-nos amurada com amurada, e arrastaremos estes suínos ao Inferno conosco! Afundaremos juntos, e mataremos enquanto eles se afogam!

E, com as próprias mãos, ele arremessou os primeiros ganchos de abordagem. Os vikings perceberam-lhe as intenções e tentaram se afastar, mas era tarde demais. Amarradas umas às outras, não havia mais como controlar qualquer uma das embarcações. Estavam à mercê dos ventos e ondas que agitavam-nas e precipitavam-nas vertiginosamente para diante, enquanto as tripulações se juntavam numa última e desesperada luta corpo-a-corpo. Cortando e retalhando num rubro cataclismo de inferno uivante, Turlogh estava vagamente ciente de que um grande bramido rompeu a algazarra, como ondas se chocando numa costa rochosa. Mas a loucura berserk da matança estava nele e em todo o resto, e eles não pararam de uivar e brandir seus machados vermelhos, enquanto as duas embarcações atormentadas, sem mastros, sem proas, e com remos e vigas quebradas, eram arremessadas violentamente através das rebentações, para se espatifarem na costa espumante.


1)


- E só você sobreviveu? – perguntou Somakeld, ofegante.

- Só eu. – respondeu Turlogh sombriamente – Por que, eu não sei. Em meio ao tumulto, a escuridão caiu sobre mim, e acordei na cabana de um povo estranho. Algum capricho das ondas me lançou à praia, enquanto todo o restante morreu. Mas não fui o único lançado à praia. Muitos outros foram jogados pelo mar, mas só eu tinha uma fagulha de vida em mim. O resto morreu por causa dos ferimentos, da água ou do frio. Muitos se congelaram. Eu também, o povo disse, estava quase congelado. Meu escudo e machado estavam agarrados tão firmemente em minhas mãos, que eles não conseguiram soltá-los; e eu ainda os agarrava quando voltei a mim.

“Bem, estes povos eram os finlandeses... gente bondosa, que me tratou bem. Com eles permaneci um espaço de tempo, mas a terra deles era uma desolação de gelo e neve, e quando chegou o tempo que eu sabia ser o começo da primavera em terras meridionais, eu os deixei. Consegui um cavalo deles, e perambulei para o sul, através das grandes florestas cheias de lobos e ursos, e de feras malignas, cujas sombras e pegadas somente eu vi.

“Ataquei de surpresa ferozes tribos pagãs nestas florestas, fugi de algumas e permaneci em outras. Algumas delas desafiaram os netos de Rurik, e tive enorme prazer em atacar os nórdicos novamente. Assim, perambulei por muitos meses... primeiro, no cavalo que os finlandeses me deram; depois, em corcéis que eu roubava ou comprava, e por fim neste grande garanhão que um chefe pagão me deu. Quando deixei as cabanas dos finlandeses, era final de inverno por lá. Agora já é quase inverno novamente, e ainda estou longe das terras do sul que meu coração anseia”.

- Venha comigo, e more nas tendas de meu povo, meu irmão. – insistiu Somakeld – Somos um povo valente e adoramos atos guerreiros. Você será um chefe. As garotas dos turgaslavos são bonitas. More com meu povo.

Turlogh encolheu os ombros:

- Cavalgarei com você, Somakeld, pois meu corcel está cansado e estou faminto. Ficarei com você por algum tempo, porque há cheiro de guerra na terra. Sim, os corvos estão se aglomerando, e eu não ficaria de fora quando as espadas viessem se saciar.


A noite havia caído quando os companheiros se aproximaram a cavalo do acampamento dos turgaslavos. Turlogh já vira acampamentos tártaros, e este acampamento eslavo não diferia grandemente dos deles. As mesmas carroças altas de madeira; as mesmas selas pontudas, empilhadas cuidadosamente ao redor; os mesmos círculos ao redor das fogueiras, onde as mulheres cozinhavam carne e passavam chifres de leite e hidromel. Os nômades arianos e turanianos haviam progredido e evoluído em muitas das mesmas linhas. Turlogh percebeu que estava olhando para uma fase da vida ariana que rapidamente ia embora. Os nômades arianos estavam gradativamente abandonando a vida pastoril em função da vida agrícola, ou estavam sendo absorvidos pelos nômades tártaros.

Turlogh viu muitas evidências de que a fusão já estava tomando lugar, entre estes antigos senhores arianos das estepes e os povos mongóis. Muitos dos turgaslavos tinham os rostos largos e cabelos negros que indicavam uma descendência tártara, e havia uma clara pitada de tártaros de sangue puro, embora a maioria das pessoas da tribo fosse alta e de ossos grandes, com os olhos claros e cabelos loiros dos primitivos arianos. A mistura já havia começado, de modo que, em séculos posteriores, produziria os cossacos.

Os cavalos destes andarilhos arianos eram mais altos e pesados que aqueles montados pelos menores turcos e tártaros, e suas espadas eram longas, retas e pesadas, com ambos os lados cortantes e aguçados. Também estavam armados com pesados machados, longas lanças e adagas, e arcos, mais leves e menos eficientes que os arcos de seus rivais turanianos.

Suas armaduras eram toscas e escassas, consistindo em grande parte de elmos de ferro, rudes couraças de placas de metal, atadas a pesadas jaquetas de couro, e pequenos escudos de madeira redonda, cobertos de couro e reforçados com ferro. Usavam roupas de pele de carneiro. Os homens eram altos, de porte ereto e de feições sinceras e generosas, enquanto as mulheres tinham aparência agradável.

Sentinelas a cavalo percorriam a estepe, e desafiaram os colegas, mas recuaram ante a palavra de Somakeld. Uma lua se erguia, enquanto Turlogh e o jovem subiam rapidamente a inclinação da leve colina, onde estava instalado o acampamento eslavo, e, perscrutando as planícies com seu olhar agudo, Turlogh viu figuras escuras e sombrias, e volumes furtivos cruzando os horizontes distantes e convergindo ao acampamento na rampa.

- Meu povo respondeu ao chamado de guerra. – disse Somakeld, e o gaélico assentiu, com os olhos cintilando na escuridão, enquanto indistintas memórias ancestrais se agitavam vagamente nas profundezas adormecidas de sua alma. Sim, os clãs estavam se reunindo para alimentarem os corvos, assim como os clãs arianos se reuniram nas obscuras eras perdidas – e do mesmo modo que os próprios ancestrais dos gaélicos haviam se reunido nestas mesmas estepes, abandonando-as em toscos vagões, ou balançando-se em cavalos semi-selvagens.

Enquanto cavalgavam em direção às fogueiras, um grito de boas-vindas os acolheu. Turlogh instantaneamente conheceu o chefe – seu nome, como Somakeld dissera, era Hroghar Skel. Ele era idoso, mas sua longa barba ainda era loira; e, quando se ergueu para saudar o estranho com pompa, o gaélico viu que ele era enorme em estatura e que a idade não havia lhe turvado a visão nem murchado-lhe os músculos de ferro.

- Seu rosto é novo para mim. – disse o chefe tribal, numa voz profunda e calma – Você não é eslavo, nem turco, nem tártaro. Mas, seja quem for, desmonte e descanse seu cavalo. Coma e beba diante de nossas fogueiras esta noite.

- Este é um guerreiro notável, ó atamã. – exclamou Somakeld – Um bogatyr, um herói! Ele veio nos ajudar contra os turcos! Pela honra de meu clã, ele hoje mandou três turcos uivarem nos portões do Inferno!

O ancião inclinou a cabeça leonina:

- Nossas vidas são suas, bogatyr.

Quando Turlogh desmontou, notou outro homem acocorado próximo à fogueira – um homem no começo da metade da vida, parecia –, com a constituição curta e larga de um tártaro. Este homem tinha o porte de um chefe e, sob suas peles de carneiros, havia o brilho das sedas e o vislumbrar de malha prateada. Seu largo rosto escuro estava imóvel, mas os pequenos olhos palpitaram ao pousarem no esplêndido cavalo ruão. Atrás do chefe, se acocorava um jovem esguio e belo – seu filho, evidentemente. Os olhos do tártaro pousaram por um longo tempo no garanhão ruão.

Turlogh se encarregou do cavalo, antes de atender às próprias necessidades, e certo de que o ruão estava bem cuidado, tomou assento diante da fogueira do chefe. Somakeld, orgulhoso de seu novo conhecido e de sua própria admissão na fogueira dos líderes, contou a história de seu encontro com o gaélico e repetiu a história das andanças de Turlogh. Todos ouviram com interesse, e os recém-chegados, que vinham constantemente, se aglomeravam próximos, para olharem curiosos para o celta e ouvirem versões sussurradas de suas proezas entre pessoas de outros bandos.

- Você tem o olhar de uma águia, bogatyr. – disse Hroghar Skel – Pouco importa me dizer que você foi um chefe em sua própria terra; bom, eu sei que você é um governante de homens. Bem, os homens dos turgaslavos precisam de espadas afiadas e vontades fortes. Khogar Khan se dirige contra nós, e quem sabe como virá a guerra? Os turcos são lutadores poderosos, e espalharam, como pássaros ao vento, os guerreiros de Chaga Khan. – e acenou com a cabeça para o tártaro que estava sentado, bebendo leite de égua.

- Sim – a voz do tártaro era como o ruído de uma espada saindo da bainha –, eles eram como lobos entre ovelhas... por Erlik, são loucos!

- Há loucura neles, de modo que lutam como um fogo que se espalha, queimando o capim. – assentiu Hroghar Skel – Há neles uma magia que os sustenta nos dentes das lanças. Khogar Khan afirma descender daquele flagelo de mãos vermelhas de tempos passados... Átila, o Huno. E mais: ele usa no cinto a própria espada que o huno saciou no sangue de reis.

Turlogh soltou uma exclamação surpresa.

Os olhos de Chaga Khan se voltaram para ele.

- Eu a vi. – grunhiu o tártaro, equilibrando sua tigela de beber – Era uma chama vermelha em sua mão, e com ela, ele alimentou os milhafres (*). Por Erlik, a velha Morte correu diante de seu cavalo, e um vento negro uivou atrás. Quando ele golpeava, era como se uma horda golpeasse, e nenhum homem conseguia resistir a ele. Ele amontoou meus guerreiros em fileiras escarlates atrás de si, para marcar seu caminho.

O silêncio reinou por um espaço de tempo. O vento noturno suspirava pela grama alta e se ouvia o ronco cambaleante de vagões distantes, e os desafios das sentinelas. Hroghar Skel sacudiu a cabeça, e sua mão de ferro se enrolou na barba.

- Eles se juntam rapidamente; de manhã, todos os clãs dos turgaslavos estarão acampados e chamando para serem liderados contra seus inimigos. Mas há uma dúvida fria na base do meu cérebro. É mais do que homens mortais que nós enfrentamos.

Todos os olhos se voltaram em direção a Turlogh. Povos primitivos se apoderam rapidamente de conclusões agourentas e sobrenaturais. Parecia-lhes que a vinda de Turlogh não era por acaso, mas que estranhas forças ocultas o enviaram para ajudá-los. Mas o gaélico apenas disse:

- Vou dormir.

Enquanto se estendia nas peles de carneiro, na tenda de Hroghar, mais uma vez profundas sensações ancestrais se agitaram no gaélico, enquanto ele ouvia os sons noturnos do acampamento nômade. Tudo lhe parecia amigável e familiar: o crepitar das fogueiras; o cheiro das panelas cozinhando, do couro suado e dos cavalos; o tilintar dos freios de cavalo e o ranger das selas, o canto dos homens tribais e suas gargalhadas. Estes eslavos eram dos próprios alicerces da raça ariana – a raiz e o tronco. Eles se mantinham unidos àquela vida primitiva, que os ancestrais de Turlogh haviam abandonado há tantos séculos. O povo de Somakeld era fundamental, forte e puro, com vida e princípios primordiais. Eles estavam bem unidos aos alicerces da existência, às cruas e vermelhas realidades da vida.

Enquanto se deixava levar pelo sono, os últimos e vagos pensamentos acordados de Turlogh eram os de que havia meio mundo entre eles e seu povo, o sangue destes nômades era o seu próprio e, após séculos de perambulação em terras estranhas, ele finalmente chegou à sua casa. Então, caiu num sono povoado por sonhos onde ele, de olhos claros, selvagem, vestido com peles, percorria infinitas léguas de floresta e planícies em vagões cambaleantes, puxados por bois, ou nos lombos de cavalos semi-selvagens; e, na companhia de sua selvagem raça de roupas de pele e olhos claros, rugia e retalhava em batalhas sem nomes, em terras obscuras e perdidas; enfrentava homens, feras e torrentes espumantes, e atropelava civilizações cambaleantes, que eram velhas quando o mundo era jovem – assim, em seus sonhos, ele perambulava e novamente enfrentava eras obscuras e perdidas.


2)


HROGHAR GIROU a mão, num gesto que abrangia todo o acampamento, onde mulheres cozinhavam comida e consertavam arreios, e homens afiavam espadas.

- Esta é toda a minha gente. Só posso reunir setecentos guerreiros, homens fortes e hábeis, nem jovens demais, nem velhos demais para lutarem. Uns 300 tártaros caçam conosco; eles lutarão por nós, desde que as flechas voem, mas não podemos depender deles para resistirmos quando vier o ataque das espadas. Khogar Khan possui mil cavaleiros e 500 aliados tártaros.

- E quanto a Chaga Khan? – indagou Turlogh.

Hroghar sacudiu a cabeça.

- Os tártaros são como lobos, que fazem um círculo ao redor de dois touros em luta, para devorarem o perdedor. Chaga Khan veio a nós para pedir ajuda, mas se juntou à batalha antes que pudéssemos chegar para ajudá-lo. Ele acha que não nos deve nada. O povo dele se retirou para o extremo leste. Ele espera ver como enfrentaremos os turcos. Estes tártaros que se mantiveram fiéis a nós, e aqueles a quem Khogar Khan colocou ao serviço dele, são de pequenos clãs nômades. A tribo de Chaga Khan é a mais poderosa nesta parte das estepes. Apesar de sua derrota pelos turcos, ele ainda pode reunir mil cavaleiros.

- Então, em nome do Diabo – retrucou Turlogh –, não pode fazê-lo entender que, se juntasse forças com você, vocês derrotariam os turcos?

O velho eslavo encolheu os ombros.

- Pouco adianta argumentar com um tártaro. Khogar Khan o amedrontou, e ele tem medo de investir contra o turco. De qualquer modo, não tenho muita certeza de que queira me ajudar. Ele observará onde cairá a pluma. Se ganharmos, ele voltará às suas velhas terras pastoris. Se os turcos ganharem, ele poderá se retirar mais ainda para o Leste, para dentro dos desertos de seu povo, ou poderá juntar forças com Khogar Khan. Ele acredita que o turco será um grande conquistador, como seu ancestral Átila, e que é bom seguir os estandartes de um conquistador.

- Então, por que não se alia a Khogar Khan?

Turlogh olhou estreitamente o rosto do velho chefe. A poderosa mão no cabo da lança estremeceu de fúria. Os olhos de Hroghar se incendiaram:

- Nós, de pele branca, fomos senhores das estepes durante incontáveis eras. Daqui saíram hordas conquistadoras para povoarem o mundo. Quando éramos muitos, fustigamos o povo de rosto escuro de volta aos desertos do Leste. Agora, que somos fracos e poucos, damos a eles a mesma resposta que nossos ancestrais deram: “Morte a vocês, cães!”. Nosso belo Senhor Deus fez de nós os amos de todas as outras raças. Se eu tratar de paz com estes chacais muçulmanos, talvez meu coração apodreça no peito!

Turlogh sorriu dura e friamente:

- Há ferro em você, velho homem! Mas você não notou uma coisa: mesmo se ganharmos, a tribo ficará bastante enfraquecida, e Chaga Khan e seus chacais podem investir e derrotar o que sobrar de nós.

Hroghar deu um puxão na barba:

- Verdade; mas o que podemos fazer?

O gaélico encolheu os ombros:

- Como irá enfrentar estes turcos?

- Ora, senhor, da mesma forma que sempre enfrentamos: montaremos nossos cavalos e galoparemos pela estepe, até encontrarmos sua horda, e então soltaremos nosso grito-de-guerra, atacaremos e os cortaremos feito trigo.

- E eles não curvarão seus arcos e lhes derrubarão de suas selas, antes que vocês possam chegar aos domínios deles? – grunhiu Turlogh.

- Haverá um vôo de flechas. – concordou o turgaslavo – Mas esses turcos não são como os tártaros: eles gostam de golpes de espada. Soltarão uma nuvem de setas enquanto atacam, e então irão se arremessar com o aço nu. Os guerreiros de Chaga Khan levaram a melhor enquanto a batalha foi uma troca de flechas, mas quando os turcos cavalgaram entre eles, não conseguiram agüentá-los. Os muçulmanos são homens maiores e melhor armados.

- Bom. – grunhiu Turlogh – Você é um homem maior que os turcos, e terá, contra eles, a mesma vantagem que eles tiveram contra os tártaros. Mas os turgaslavos devem chegar rapidamente para os golpes de espada, se quiserem ganhar.





(*) – milhafre: ave de rapina, da família dos falcões (Nota do Tradutor).




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: http://en.wikisource.org/wiki/The_Shadow_of_the_Hun
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