Contos: O Jardim do Medo

por Robert E. Howard
em 07/10/2004

Tradução de Fernando Neeser de Aragão (fernando.neeser2@bol.com.br )

Em tempos remotos, eu fui Hunwulf, o Errante. Sou incapaz de compreender se meu conhecimento desse fato se deve a algum meio oculto ou esotérico, e não tentarei explicá-lo. Um homem recorda sua vida passada; eu recordo minhas vidas passadas. Do mesmo modo que um indivíduo normal lembra daquelas formas que foram as suas durante a infância, juventude e adolescência, eu lembro das formas que foram James Allison nos tempos esquecidos. O porquê desta memória, eu não saberia dizer, da mesma maneira que tampouco posso justificar a miríade de outros fenômenos da Natureza, com os quais diariamente nos confrontamos, eu e qualquer outro mortal. Mas agora, estendido aqui, esperando a morte que me libertará da longa enfermidade que padeço, contemplo com o olhar claro e limpo o imenso panorama das vidas que sucederam-se para chegar até mim. Vejo os homens que eu fui, e vejo as feras que viveram em mim.

Minha memória, remontando-se ao fio dos séculos, não se detém com a aparição do Homem. Como poderia ser assim, se o animal se confunde tanto com o homem, que não existe uma linha de divisão claramente traçada, algo que marque os limites da bestialidade? Neste exato momento, avisto uma paisagem crepuscular, escura, entre as árvores gigantescas de um bosque primitivo, no qual o homem nunca pisou com seus pés recobertos de couro. Vejo uma massa enorme, com pêlos arrepiados e andar pesado e bamboleante... avança cansativa e desajeitadamente, ainda que com rapidez, às vezes erguida, às vezes com quatro patas. O ser busca vermes e insetos, raspando sob os troncos podres; suas pequenas orelhas se agitam constantemente. Levanta a cabeça e revela uns dentes amarelados. É primitivo, bestial, antropóide. E, no entanto, reconheço seu parentesco com o ser que agora se chama James Allison. Parentesco? Diríamos melhor, unidade. Eu sou ele, ele sou eu. Minha carne é sensível, branca, desprovida de pêlos; a sua escura, dura, hirsuta. E, apesar de tudo, fomos um, e seu cérebro embrionário, povoado pelas sombras, começa a agitar-se e a ver-se dominado por pensamentos humanos grosseiros, caóticos, fugazes. E, no entanto, eles são o fundamento de todas as grandes e orgulhosas visões, que os homens têm tido em todos os períodos que sucederam-se desde então.

Minha consciência não se detém aí. Se reporta ainda mais longe, muito longe, oferecendo-me perspectivas esquecidas para as quais não me atrevo a voltar, abismos excessivamente sombrios e demasiadamente terríveis para que o espírito humano possa sondá-los. No entanto, mesmo ali, tenho consciência de minha individualidade. Asseguro-lhes que o indivíduo nunca se perde, nem no poço negro do qual saímos um dia, arrastando-nos, berrando, cegos e repudiados, nem no eventual Nirvana, ao qual um dia ascenderemos... e que pude ver à distância, cintilando como um lago azulado no crepúsculo, entre as montanhas estelares.

Porém já basta. Falarei-lhes de Hunwulf. Ah, passou-se há muito, muitíssimo tempo! Há quanto, exatamente, não me atrevo a dizê-lo. Deveria buscar pobres comparações humanas para descrever o indescritível e incompreensivelmente distante? Desde aquela era, a Terra mudou de aspecto, não uma, mas uma dúzia de vezes. Ciclos inteiros da espécie humana cumpriram seus destinos.

Fui Hunwulf, um dos filhos dos aesires de cabelos loiros que, desde as planícies geladas da gélida Aesgaard, enviaram suas tribos de olhos azuis pelo mundo, em migrações seculares, para deixar a marca de sua passagem em muitos lugares estranhos. Nasci durante uma das migrações para o sul. Nunca contemplei a terra de meus ancestrais, ali onde a maioria dos povos nórdicos ainda vive em tendas de pele de cavalo, entre as neves.

Cresci até a idade adulta durante aquele longo trajeto errante, numa época cruel, vigorosa e indomável em que os aesires não reconheciam deus algum, exceto Ymir, o gigante da barba gelada pelo orvalho congelado, e cujos machados estavam salpicados pelo sangue de numerosas nações. Meus músculos pareciam cordas de aço trançado. Meus cabelos loiros caíam sobre meus poderosos ombros como a juba de um leão. Cingia meus rins com uma pele de leopardo. Podia manusear meu pesado machado de ponta de sílex com qualquer uma de minhas mãos.

Ano após ano, minha tribo dirigia-se para o sul, traçando às vezes imensos arcos para o leste e o oeste, estabelecendo-se às vezes, durante meses ou anos, em vales ou férteis planícies, em locais onde haviam animais herbívoros. Mas sempre descia para o sul, lenta e inexoravelmente. Às vezes, nosso caminho nos conduzia através de vastos locais desabitados, nos quais nunca havia retumbado um grito humano. Às vezes, estranhos povos primitivos opunham-se ao nosso avanço. Nosso rastro passava, então, por cima das cinzas alagadas de sangue das aldeias destruídas. Durante aquela viagem nômade, durante aquelas caçadas e matanças, cheguei à idade adulta e amei Gudrun.

Que posso dizer de Gudrun? Como descrever as cores a um cego? Só posso dizer que sua pele era mais branca que o leite, que seus cabelos eram de ouro fundido quando o brilho do sol brincava entre seus cachos, que a suave beleza de seu corpo envergonharia o sonho que modelou as deusas gregas. Mas sou incapaz de fazer-lhes compreender o fogo e a maravilha que abrigava Gudrun. Não se pode estabelecer comparações; suas normas de mulher refletiam somente às mulheres de uma época. Mas, junto a ela, seriam como simples lâmpadas tentando rivalizar com o brilho da lua cheia. Não, em milênios, nenhuma mulher assemelhou-se a Gudrun. Cleópatra, Taís, Helena de Tróia, todas foram pálidos reflexos de sua beleza, pobres imitações da rosa que floresceu em todo o seu esplendor apenas na origem do tempo.

Por Gudrun abandonei meu povo e minha tribo. Parti para as terras desoladas, exilado e fora da lei, com o sangue manchando-me as mãos. Ela era de minha raça, mas não de minha tribo: uma menina perdida que havíamos encontrado, errando solitária por um bosque sombrio, extraviada por algum povo errante de nosso próprio sangue. Cresceu no seio da tribo. Ao amadurecer sua gloriosa e jovem feminilidade, ela foi entregue a Heimdull, o Poderoso, o maior de todos os caçadores da tribo.

Mas o sonho de Gudrun era uma loucura que me devorava a alma, um fogo que ardia eternamente em meu interior. Por ela, matei Heimdull, esmagando seu crânio com meu machado de sílex antes ele que pudesse levá-la à sua choça de pele de cavalo. E logo começou nossa longa fuga para escapar da vingança de minha tribo. Gudrun me seguiu com alegria, pois me amava com esse amor das mulheres aesires, que é como uma chama devoradora que destrói a fraqueza. Ah, era um tempo selvagem, a vida era cruel e sanguinária, e os fracos morriam rapidamente. Não havia em nós nada suave ou doce. Nossas paixões eram as da tempestade, do ataque e do choque da batalha, do desafio do leão. Nossos amores eram tão terríveis quanto nossos ódios.

E, daquela forma, levei Gudrun para longe de minha tribo e os assassinos seguiram nosso rastro bem de perto. Durante uma noite e um dia, seguiram nossos passos até que, a nado, atravessamos um rio transbordado, uma torrente que berrava e espumava, a qual nem mesmo os homens de Aesgaard ousavam atravessar. Mas, na loucura de nosso amor e nosso descuido, nos lançamos à água e nadamos, golpeados e sacudidos pela fúria das ondas. E chegamos à outra margem, são e salvos.

Depois daquilo, durante numerosos dias, atravessamos as florestas das regiões do planalto, refúgios de tigres e leopardos, e chegamos, finalmente, a uma grande cadeia montanhosa. Os azuis contrafortes recortavam-se contra o céu de maneira terrível, e declives sucediam declives.

Naquelas montanhas, fomos importunados pelos ventos gelados e pela fome, atacados por condores que abatiam-se sobre nós entre o estrondo de suas asas gigantescas. No transcorrer de sinistros combates nos desfiladeiros, acabei todas as flechas e quebrei a lança de ponta de sílex. Mas finalmente atravessamos o lúgubre espinhaço da cordilheira e, descendo pelas ladeiras setentrionais, chegamos à vista de uma aldeia, feita de cabanas de terra, entre os escarpados. Aquela aldeia estava habitada por pessoas pacíficas de pele morena, que falavam uma língua desconhecida e praticavam estranhos costumes. Mas receberam-nos pacificamente e nos levaram a seu povoado. Colocaram diante de nós carne, pão de cevada e leite fermentado; agacharam-se, formando um círculo ao nosso redor, ao mesmo tempo em que comíamos, enquanto uma mulher batia levemente sobre um tambor em forma de vasilha, para nos honrar.

Havíamos chegado à aldeia no crepúsculo. A noite caiu durante os festejos. Por toda parte, erguiam-se os escarpados e picos, como massas imponentes recortando-se contra as estrelas. O pequeno grupo de choças terrosas e as minúsculas fogueiras se perdiam na imensidão da noite. Gudrun sentiu a solidão e a desolação angustiante das trevas. Apertou-se contra mim, apoiando o ombro em meu peito. Mas meu machado estava ao alcance da mão, e eu mesmo não havia sentido nenhum vislumbre de medo.
O pequeno povo de pele ocre se agachava diante de nós. Homens e mulheres tentavam falar conosco, gesticulando com as pequenas mãos. Por terem habitado sempre o mesmo lugar, dentro de uma relativa segurança, eram desprovidos da intolerante ferocidade dos nômades aesires. Suas mãos esvoaçavam com gestos amistosos à luz do fogo.

Fi-los compreender que havíamos chegado do norte, que havíamos atravessado o espinhaço da grande cadeia montanhosa e que, no dia seguinte pela manhã, tínhamos a intenção de descer para as verdes planícies que havíamos visto mais ao sul, desde os cumes. Quando compreenderam minha intenção, começaram a gritar enquanto sacudiam violentamente a cabeça e golpeavam o tambor feito loucos. Estavam tão ansiosos para comunicar-me alguma coisa, que me confundiam ao invés de me esclarecer. Finalmente, conseguiram fazer-me compreender que não queriam que abandonássemos as montanhas. Ao sul da aldeia, havia um perigo que espreitava. Mas não pude saber se tratava-se de um homem ou de um animal.

Quando todos eles gesticulavam e minha atenção estava voltada para sua mímica, o infortúnio aconteceu. Percebi, em primeiro lugar, um súbito estampido de asas batendo em meus ouvidos. Logo, uma forma sombria surgiu da noite e algo me golpeou a cabeça ao mesmo tempo em que me dava a volta. Caí, meio inconsciente. Naquele instante, escutei Gudrun soltando um grito, enquanto era arrebatada de meu lado! Erguendo-me de um pulo, tremendo pelo desejo furioso de dilacerar e massacrar, vi uma forma escura que desaparecia novamente nas trevas, com uma forma branca que gritava e se debatia, presa entre suas garras.
Uivando de dor e raiva, empunhei o machado e ataquei as trevas... Me detive bruscamente, intratável e desesperado, sem saber em que direção ir.

O povo moreno havia se dispersado por toda a parte, gritando e lançando faíscas em todas as direções ao atropelar as fogueiras, em sua ânsia de voltar às suas cabanas. Mas outra vez voltavam a sair, arrastando-se temerosos e gementes como cães feridos. Se reuniram a meu redor e me agarraram com mãos tímidas, conversando em seu idioma. Amaldiçoei minha impotência, doente de raiva, sabendo que queriam dizer-me algo que eu não conseguia compreender.

Por fim, deixei que me conduzissem até a fogueira. O mais velho da tribo trouxe uma faixa de couro defumado, um pote de argila com materiais corantes e um bastão. Sobre o couro, pintou a figura de uma criatura alada levando uma mulher branca. Ah, era muito tosca, mas compreendi o significado. A seguir, todos apontaram para o sul e começaram a gritar ruidosamente em sua própria língua. Compreendi que a ameaça contra a qual haviam me prevenido era a do ser que havia levado Gudrun. Até aquele momento, eu acreditara que ela havia sido arrebatada pelos ares por um dos condores das montanhas. Mas o desenho feito pelo ancião com a mesma pintura era, antes de tudo, o de um homem alado.
Lenta e trabalhosamente, começou a traçar algo que, por fim, reconheci. Era um mapa... sim, mesmo naquela época obscura tínhamos mapas – primitivos, é claro, mas que um homem moderno teria sido incapaz de interpretar, devido à diferença de nosso simbolismo.

Aquilo nos tomou muito tempo, e se fez meia-noite antes que o velho tivesse terminado, e eu compreendido, seus desenhos. Mas finalmente, tudo ficou totalmente claro. Se eu seguisse o caminho traçado no mapa, descendo o longo e estreito vale onde ficava a aldeia, atravessando uma planície e seguindo depois uma sucessão de declives dilacerados, chegaria ao lugar onde morava o ser que havia roubado minha companheira. Naquele lugar, o velho desenhou o que parecia ser uma cabana disforme, com numerosos signos estranhos a seu redor, traçados com a ajuda de pigmentos vermelhos. Desenhava-os com o dedo, e logo apontava para mim, sacudia a cabeça e lançava gritos sonoros que pareciam indicar um grande perigo para aqueles seres.

Mais tarde, tentaram me persuadir para que eu não fosse, mas, em meu anseio, peguei a faixa de couro e o saco de comida que me haviam colocado à força nas mãos (realmente era um povo muito estranho para aquela época!), recolhi o machado e me dirigi para as trevas sem lua. Meus olhos eram mais penetrantes do que pode conceber uma mentalidade moderna, e meu senso de orientação era o de um lobo. Uma vez gravado o mapa em meu cérebro, pude jogá-lo fora e dirigir-me infalivelmente para o lugar que procurava.

Caminhei tão rápido quanto pude sob a luz das estrelas, sem preocupar-me com as bestas ferozes que, talvez, procuravam uma presa... ursos das cavernas ou tigres de dente de sabre. Às vezes, escutava como o fino cascalho se deslizava sob patas furtivas. Por um instante, entrevia uns olhos ferozes e amarelos ardendo nas trevas e percebia que, em meio à escuridão, fugiam quando eu me aproximava. Mas prossegui intrepidamente minha corrida, com um humor tão desesperado que não era capaz de dar lugar para nenhum animal, por mais terrível que fosse!

Atravessei o vale, escalei um cume montanhoso e cheguei a um amplo planalto, coalhado de valas e acarpetado de rochas. Atravessei-o e, nas trevas que precedem a aurora, comecei a descer pelos declives traiçoeiros. Pareciam não terminar nunca, e desapareciam a meus pés como uma longa linha escarpada e inclinada que se perdia na escuridão. Mas continuei com minha descida temerária, sem parar nem para desatar a corda de couro que trazia enrolada ao redor dos ombros. Confiava em minha sorte e destreza para chegar à base da montanha sem quebrar o pescoço.

E, justo quando a aurora tocava suavemente os cumes com sua luz branca, cheguei a um amplo vale rodeado de escarpados abundantes. Naquele lugar onde eu estava, o vale se estendia ao leste e ao oeste. Os escarpados abundantes convergiam em sua extremidade inferior, dando-lhe o aspecto de um grande leque que se estreitava rapidamente para o sul.

O solo era uniforme, atravessado por um sinuoso curso d'água. Algumas árvores erguiam-se nele, isoladas. Não havia restolhos, mas sim um tapete de capim alto que, naquela época do ano, estava particularmente seco. Ao longo do curso d'água crescia uma vegetação exuberante e, aqui ou ali, perambulavam uns mamutes, verdadeiras montanhas peludas de carne e músculos.

Fiquei a uma boa distância, pois aqueles gigantes eram poderosos demais para que eu enfrentasse-os. Confiavam em seu poder e só temiam uma coisa no mundo. Direcionavam pra mim suas grandes orelhas e levantavam as trombas com ar ameaçador se eu me aproximasse deles mais que o necessário, mas não me atacaram. Corri rapidamente entre as árvores. Quando cheguei ao ponto onde convergiam os escarpados, o sol ainda não havia se levantado por cima das muralhas do leste, cujos cumes ressaltavam-se com um toque dourado. A descida pelas ladeiras montanhosas, apesar de ter demorado toda a noite, não havia afetado meus músculos de aço. Eu não sentia nenhuma fadiga; a ira ainda me devorava com o mesmo ardor. Eu não podia saber o que se encontrava além dos escarpados; não fiz hipóteses. Meu cérebro só deixava penetrar a negra cólera e a ânsia por massacrar.

Os desfiladeiros não formavam um muro compacto. Aquilo significava que as extremidades das paredes rochosas não se uniam completamente, deixando uma fenda ou uma brecha de uns trinta metros de largura. A corrente de água a atravessava e as árvores cresciam robustas junto a ela. Cruzei a brecha, tão larga quanto longa, e fui parar num segundo vale, ou melhor, na continuação do primeiro que se ampliava novamente além da paisagem.

As paredes rochosas se afastavam numa curva pronunciada para o leste e o oeste, para formar uma muralha gigantesca que rodeava completamente o vale, descrevendo um vasto oval. Formavam um rebordo azulado ao redor do vale, sem brecha alguma, com exceção de um pedaço de céu claro que parecia indicar outra abertura no extremo setentrional. O vale interior tinha a forma de uma garrafa com duas bocas.

A garganta por onde eu havia penetrado estava cheia de árvores que cresciam numerosas em várias centenas de metros. Logo davam lugar bruscamente a um campo de flores intensamente vermelhas. A várias centenas de metros além do limite das árvores, pude ver um estranho edifício.

Devo falar do que vi, não só como Hunwulf, mas também como James Allison. Hunwulf não compreendia mais do que vagamente as coisas que via e, como Hunwulf, não seria capaz de descrevê-las. Eu, em minha vida como Hunwulf, ignorava tudo sobre a arquitetura. As únicas moradias construídas pela mão do homem que eu tinha visto eram as tendas de couro de cavalo do meu povo e as choças de terra, com teto de palha, do povo devorador de cevada... e outros povos igualmente primitivos.

No mesmo instante, como Hunwulf, só poderia dizer que contemplava uma grande choça, cuja construção ultrapassava minha compreensão. Mas eu, James Allison, sei que era uma torre, de uns dezoito metros de altura, construída com uma estranha pedra verde, extremamente polida e revestida por uma substância que dava a impressão de diáfana transparência. Era cilíndrica e, pelo que pude ver, desprovida de portas e janelas. O corpo principal da construção deveria ter mais de vinte metros de altura. Em seu centro erguia-se uma torre menor que finalizava o conjunto. Aquela torre, com uma circunferência apenas um pouco menor que o corpo principal, estava rodeada por uma espécie de galeria com um parapeito. Tinha duas portas cuidadosamente abobadadas e janelas gradeadas, como pude perceber, mesmo do lugar onde eu me encontrava.

Aquilo era tudo. Não havia nenhum sinal de presença humana. Nenhum sinal de vida no vale. Mas era evidente que aquele castelo era o que o velho da montanha havia se esforçado em desenhar. E estava certo de poder encontrar Gudrun em seu interior... se é que ainda vivia.

Além da torre, pude contemplar a débil claridade de um lago azulado no qual se precipitava a corrente de água, seguindo a curvatura dos muros ocidentais. Oculto entre as árvores, examinei a torre e as flores que rodeavam-na por todos os lados. Cresciam com exuberância ao longo dos muros e estendiam-se ao longo de centenas de metros em todas as direções. Voltava-se a ver árvores na outra extremidade do vale, perto do lago, mas nenhuma crescia entre as flores.

Aquelas flores não se pareciam com nenhuma planta que eu tivesse visto até então. Cresciam muito próximas umas das outras. Tinham pouco mais de um metro e vinte de altura, com uma única flor em cada talo... uma flor maior que a cabeça de um homem, com longas pétalas carnudas, muito próximas umas das outras. Aquelas pétalas, de um vermelho intenso, pareciam ferimentos abertos. Os talos eram tão grossos quanto o punho de um homem e incolores, quase transparentes. As folhas, de um verde venenoso, tinham a forma de pontas de lança, murchando-se em longas caudas serpentinas. Seu aspecto era repugnante e me perguntei o que disfarçaria sua densidade.

Todos os meus instintos, desenvolvidos por uma vida selvagem, estavam fortemente excitados. Sentia um perigo oculto, idêntico ao que sentiria diante de um leão emboscado, antes mesmo que meus sentidos o percebessem. Examinei de perto as folhas compactas, perguntando-me se ocultariam alguma imensa serpente. Minhas narinas se dilataram em busca de um odor, mas o vento não soprava em minha direção. Entretanto, havia algo anormal naquele imenso jardim. Embora o vento do norte o atravessasse, nenhuma flor se movia, nenhuma flor se movia, nenhuma folha se agitava. Permaneciam imóveis e sombrias, como aves de rapina com cabeças lânguidas. Tive a estranha sensação de que elas me observavam como criaturas viventes.

Poderia dizer-se que era a paisagem vista num sonho. De ambos os lados, os escarpados azuis se erguiam para um céu desprovido de nuvens. À distância, o lago submergia-se numa tranqüilidade dormida e a torre de um verde fantástico, elevava-se em meio àquele campo de cor vermelho-pálido.

E havia outra coisa... Mesmo que o vento soprasse em direção contrária, eu sentia brotar das flores um odor, uma exalação de covil... de morte, de podridão e corrupção.

Me agachei bruscamente, permanecendo escondido. Havia vida no castelo. Uma silhueta emergiu da torre. Aproximou-se do parapeito, inclinou-se por cima dele e olhou para o vale. Era um homem, mas um homem como nunca havia sonhado, nem sequer num pesadelo!

Era alto e robusto. Sua pele era negra, com a cor do ébano polido. Mas os traços que faziam dele um pesadelo humano eram as asas de morcego que sobressaíam por cima de seus ombros, mesmo estando dobradas. Sabia que suas asas eram verdadeiras: aquele fato era evidente e indiscutível.

Eu, James Allison, meditei longamente sobre aquele fenômeno que unhei com os olhos de Hunwulf. Aquele homem alado era somente um monstro, um exemplo de uma aberração da Natureza, vivendo numa solidão e desolação imemoriais? Ou era o sobrevivente de uma raça esquecida que havia surgido, reinado e se extinguido antes da chegada do homem tal e qual nós o conhecemos? Talvez o povo moreno das colinas pudesse responder àquelas perguntas, mas carecíamos de uma linguagem comum. No entanto, me predisponho a esta última hipótese. Os homens alados encontram-se muito freqüentemente na mitologia; são encontrados nas lendas populares de numerosas nações e numerosas raças. Tão longe quanto o homem pode reportar-se ao passado graças aos mitos, crônicas e lendas, encontra sempre histórias de harpias e deuses alados, de anjos e demônios. As lendas são os reflexos deformados de realidades preexistentes. Estou convencido que, em outras eras, houve uma raça de homens alados de pele escura, a qual reinou num mundo pré-adâmico e que eu, Hunwulf, encontrei o último sobrevivente daquela raça no vale das flores vermelhas.

Estes pensamentos eu formulo como James Allison, com meu saber moderno, que é tão imponderável quanto minha ignorância moderna.

Eu, Hunwulf, não me dava a tais especulações. O ceticismo moderno não fazia parte de minha natureza, e não pretendia racionalizar o que parecia não coincidir com um universo natural. Eu não reconhecia nenhum deus, exceto Ymir e suas filhas, mas não punha em dúvida a existência – como a dos demônios – de outras divindades, veneradas por outras raças. Seres sobrenaturais de todo gênero estavam de pleno acordo com minha concepção de vida e de universo. Acreditava tanto na existência de dragões, espíritos e demônios, quanto na de leões, búfalos e elefantes. Aceitava aquela aberração da Natureza como um demônio sobrenatural, e não me preocupava nem um pouco com suas origens, nem com sua procedência. Tampouco me sentia dominado pelo pânico, provocado por um terror supersticioso. Eu era um filho de Aesgaard que não temia nem homens nem demônios, e confiava mais na força destruidora de meu machado de sílex do que nas preces dos sacerdotes e nos encantamentos dos bruxos.

Mas não saí logo do esconderijo, para atacar a torre. A prudência instintiva da vida selvagem era minha, e não via nenhum meio de escalar os muros do castelo. O homem alado não precisava de portas, pois entrava evidentemente por cima, e a superfície lisa dos muros parecia desafiar o escalador mais hábil. Mas logo me apareceu um meio para ascender ao alto da torre. Vacilava, esperando pra ver se outros seres alados apareciam diante de mim, embora eu tivesse a inexplicável sensação de que aquele era o único de sua espécie em todo o vale... talvez em todo o mundo. Enquanto eu me mantinha à espreita, oculto entre as árvores, observando, eu o vi afastar os cotovelos do parapeito e estirar-se com a agilidade de um enorme felino. Logo atravessou a galeria circular e penetrou na torre. Um grito surdo retumbou no ar e fiquei tenso, embora tenha percebido que não era o grito de uma mulher. Não tardou em aparecer o dono sombrio do castelo, arrastando atrás dele uma silhueta menor... uma forma que se retorcia, debatia-se e lançava gritos lastimosos. Vi que se tratava de um pequeno homem moreno, muito parecido com os habitantes da aldeia da montanha, e capturado, sem dúvida, da mesma maneira que Gudrun.

Sustentado entre os braços de seu gigantesco adversário, parecia uma criança. O homem negro abriu as imensas asas e pôs-se a voar do parapeito, levando seu prisioneiro como um condor que leva um pequeno cordeiro. Planou por cima do campo de flores, e eu me escondi atrás das árvores, olhando estupefato o estranho espetáculo.

O homem alado, planando no alto do céu, lançou um grito incomum e fantástico. Foi respondido de uma maneira terrível. O estremecimento de uma vida horrível percorreu o campo encarnado que se estendia sob ele. As grandes folhas vermelhas tremeram, abriram-se, desdobraram as pétalas carnudas, parecidas com bocas de serpentes. Os talos pareciam distender-se e alçarem-se para o céu impacientemente. As longas folhas se levantaram e estremeceram, produzindo um som notavelmente funesto, como uma serpentina de sinos. Um ligeiro assobio, capaz de amedrontar, retumbou por todo o vale. As flores suspiravam, estendendo-se para o alto. Com uma risada diabólica, o homem alado deixou cair seu cativo, que continuava debatendo-se em vão.

Com o uivo de uma alma condenada, o homem moreno caiu rapidamente, estatelando-se entre as flores. As plantas lançaram-se sobre ele, com um assobio estremecido. Seus talos espessos e flexíveis se curvaram, como pescoços de serpentes, e suas pétalas fecharam-se sobre a carne. Uma centena de flores agarrou-se a ele, como os tentáculos de algum polvo gigantesco, sufocando-o e esmagando-o. Seus gritos agonizantes chegaram até a mim, ensurdecidos; estava completamente coberto pelas flores que se abatiam assobiando sobre ele. As que encontravam-se longe de seu alcance agitavam-se e retorciam furiosamente, como se quisessem arrancar suas próprias raízes em seu desejo de reunir-se com suas congêneres. Em toda a pradaria, as grandes folhas vermelhas inclinavam-se e retorciam-se para o local onde a sinistra batalha se desenrolava. Os gritos diminuíram e foram ficando cada vez mais fracos, até desaparecerem. Um terrível silêncio reinou em todo o vale. O homem negro voltou à torre num vôo tranqüilo e desapareceu em seu interior.

Pouco depois, as flores foram afastando-se, uma após outra, de sua vítima, que ficou estendida, branca e imóvel. Sim, sua palidez era pior que a da morte. Podia-se dizer que era uma estatua de cera, uma imagem de olhar quieto, da qual toda gota de sangue fora absorvida. E uma surpreendente transformação era visível nas flores que haviam nas proximidades do corpo. Os talos já não eram incolores; estavam inchados e tingidos de um vermelho sombrio, como bambus transparentes, estourando de sangue fresco.

Impelido por uma curiosidade insaciável, abandonei furtivamente meu refúgio entre as árvores e deslizei até as beiradas do campo vermelho. As flores assobiaram e inclinaram-se em minha direção, dilatando as pétalas como a cabeça de uma cobra enfurecida. Escolhi uma flor afastada das demais, cortei o talo de uma machadada e a criatura desabou ao solo, retorcendo-se como uma serpente decapitada.

Quando seus movimentos cessaram, inclinei-me, surpreso, sobre ela. O talo não era oco como eu supunha... ou seja, oco como um bambu seco. Estava cruzado por uma rede de vasos, semelhantes a filamentos; alguns estavam vazios, outros tinham uma seiva colorida. As colas que uniam as folhas ao talo eram notavelmente tenazes e sutis. As próprias folhas estavam margeadas de espinhos curvos, semelhantes a dentes de aço.

Quando aqueles espinhos cravavam-se na carne, a vítima se via forçada a arrancar a planta inteira pela raiz, se quisesse escapar.

A pétala era tão larga quanto minha mão e tão grossa quanto um porrete cheio de cravos. Na borda interna, cada uma delas estava recoberta de inumeráveis e minúsculas bocas, não maiores que a cabeça de um alfinete. No centro, onde deveria estar o pistilo, havia uma ponta farpada, cuja textura lembrava a de uma espinha, com estreitos canais que uniam as quatro bordas dentadas.

Uma vez terminadas minhas verificações sobre aquela horrível paródia de vegetação, levantei subitamente os olhos, bem a tempo de ver o homem alado reaparecer sobre o parapeito. O verme não pareceu surpreso. Gritou algo numa língua desconhecida e fez um gesto de zombaria, enquanto eu permanecia imóvel como uma estátua, agarrando fortemente o machado. Não demorou em dar meia-volta e penetrar no interior da torre, como havia feito antes. E, assim como antes, voltou carregando uma prisioneira. Minha fúria e meu ódio quase submergiram na torrente de alegria que transbordou em mim, ao ver que Gudrun estava viva.

Apesar da sua força suave, que era a de uma pantera, o homem negro sustentava Gudrun com a mesma facilidade com a qual havia segurado o homenzinho moreno. Levantando seu corpo branco, que não deixava de debater-se no ar por cima da cabeça do ser alado, mostrou-a para mim, enquanto lançava gritos sarcásticos. Os cabelos loiros de Gudrun caíam sobre os ombros brancos, ela se agitava e me gritava, dominada por um terror e um horror extremos. Raramente uma mulher aesir conhece um terror tão abjeto quanto o que se apoderara de Gudrun. Medi a imensidão da diabólica conduta de seu raptor, pelos seus gritos desenfreados.

Mas permaneci imóvel. Se, para ajudá-la, eu tivesse que afundar naquele pântano vermelho como o inferno, aceitando ser aprisionado, atravessado e ter todo meu sangue chupado por aquelas flores, o teria feito. Mas aquilo não ajudaria em nada. Minha morte apenas privaria-a de seu único defensor. Assim, fiquei imóvel enquanto Gudrun se retorcia e soluçava, enquanto as gargalhadas do homem negro faziam desembocar em meu cérebro as ondas vermelhas da loucura. Num momento, ele fez um gesto, como se fosse arremessá-la entre as flores. Meu controle de aço esteve a ponto de ceder e de impelir-me àquele mar avermelhado e infernal. Mas era só uma simulação. Não demorou em arrastá-la de novo à torre e lançá-la no seu interior. Logo voltou ao parapeito, apoiando-se nos cotovelos e ficando naquela posição para me observar. Aparentemente, jogava comigo como um gato faz com um rato, antes de matá-lo.

No entanto, com o homem negro ainda espreitando-me, virei as costas e desapareci no interior do bosque. Eu, Hunwulf, não era um pensador, pelo menos não no sentido em que os homens modernos entendem. Vivia numa época em que as emoções se expressavam mais pelo golpe do machado de sílex do que pelos elaborados produtos do intelecto. E, apesar de tudo, eu não era o animal desprovido de inteligência que o homem supõe que eu devia ser. Possuía um cérebro humano, estimulado pela eterna luta pela existência e pela supremacia.

Sabia que não podia atravessar vivo a faixa avermelhada que cercava o castelo. Antes que pudesse dar uma dúzia de passos, uma multidão de pontas serrilhadas afundaria em minha carne, e suas bocas ávidas chupariam o sangue dos meus vasos, para saciar seu apetite demoníaco. Até mesmo minha energia de tigre me seria inútil para tentar abrir caminho entre elas.

O homem alado não me seguiu. Olhando por cima do ombro, lhe vi solenemente apoiado nos cotovelos, na mesma posição. Quando sonho, como James Allison, os sonhos de Hunwulf, esta imagem se encontra como que esculpida em minha mente. Vejo a silhueta de gárgula, com os cotovelos plantados no parapeito, como um meditabundo demônio medieval, escondido sobre as muralhas do Inferno.

Atravessei as gargantas do vale e penetrei no que havia além, onde as árvores se disseminavam e os mamutes seguiam as correntes de água, com seu pesado perambular. Parei após ultrapassar a manada e, sacando duas pedras de sílex da mochila, me agachei e fiz saltar uma faísca no capim seco. Indo rapidamente de um lugar para outro, escolhendo-os cuidadosamente, acendi uma dúzia de fogueiras, dispostas num amplo semicírculo. O vento do norte atiçou-as, fê-las propagarem-se e empurrou-as diante dele. Em poucos instantes, uma muralha de chamas avançou rapidamente para o fundo do vale.

Os mamutes deixaram de comer, levantaram as grandes orelhas e lançaram barridos de alarme. Não temiam mais que uma coisa no mundo: o fogo! Começaram a bater em retirada para o sul, as fêmeas empurrando as crias diante delas; os machos barrindo tão forte como farão as trombetas no Juízo Final. Com um grunhido de tormenta e o fogo estendendo-se aceleradamente, os mamutes fugiam diante do incêndio precipitadamente, em desordem. Era um terrível furacão de carne, um terrível tremor de terra, ossos e músculos devastando e esmagando tudo em seu caminho. As árvores quebravam e caíam diante deles, o solo tremia sob suas patas violentas. Atrás deles, o fogo vinha rapidamente. E, logo atrás, ia eu, seguindo as chamas tão de perto que a terra fumegante me queimava as sandálias de pele de cervo.

Atravessaram a estreita garganta com um grunhido retumbante, nivelando os espessos bosques como uma foice gigantesca. As árvores eram arrancadas e cortadas pela raiz; era como se um tornado tivesse precipitado-se pela passagem.

Com o estampido ensurdecedor de suas patas, esmagando a terra entre barridos, desembocaram no mar de flores vermelhas, como uma tempestade devastadora. As plantas demoníacas teriam feito cair a um só mamute isolado, mas, sob o impacto da manada inteira, pareciam flores comuns. Os mastodontes, enlouquecidos pela fúria, esmagaram-nas completamente, pisotearam-nas, machucaram-nas, abateram-nas, fizeram-nas em retalhos, afundando-as na terra, que absorveu seus humores.

Tremi por um instante, temendo que aqueles brutamontes continuassem sua louca correria para o castelo e que este fosse incapaz de suportar seu ataque fatal. Evidentemente, o homem alado compartilhava meus temores, pois se lançou vigorosamente do alto da torre e voou rapidamente para o céu, dirigindo-se para o lago. Mas, um dos machos bateu a cabeça contra a muralha, ricocheteou sobre a superfície uniforme, lisa e sem curvas, e investiu contra o que lhe seguia imediatamente e o rebanho se dividiu em dois. Ultrapassaram a torre mugindo, cercando-a pelos lados. Os mastodontes passaram tão perto dela que seus flancos peludos se rasparam contra as muralhas. Desceram ao longo do campo encarnado e se dirigiram, em meio ao estrondo, para o lago distante.

O fogo alcançou o limite das árvores e apagou-se por si só. Os restos, esmagados e abarrotados de seiva, das plantas vermelhas não ardiam. As árvores, sem raízes ou ainda de pé, fumegavam e crepitavam, devoradas pelas chamas. Galhos incandescentes choviam ao meu redor, enquanto eu me lançava através das árvores. Logo, corri para o enorme golpe de foice que o peso da manada havia produzido no lívido campo.

Enquanto corria, gritei por Gudrun, a qual me respondeu.
Sua voz soava ensurdecida e acompanhada por uma martelada. O homem alado havia encerrado-a na torre.

Quando cheguei à base das muralhas do castelo, pisoteando o que restava das flores vermelhas e dos talos serpentinos, desenrolei a corda de couro cru, girei-a e a arremessei para cima, apontando as ameias do parapeito. Não demorei a subir firmemente por ela, agarrando-a entre os dedos dos pés, ferindo meus dedos e cotovelos contra a lisa parede enquanto permanecia suspenso no ar.

Eu estava a menos de um metro e meio do parapeito, quando fui galvanizado por um bater de asas perto de minha cabeça. O homem negro desceu do alto do céu e pousou na galeria. Tive uma boa visão dele, quando se inclinou por cima do parapeito. Seus traços eram retos e regulares. Não havia nele nenhuma sugestão de traços negróides. Seus olhos eram aberturas oblíquas e os dentes brilhavam com um ricto selvagem de ódio triunfal. Durante muito, muitíssimo tempo, havia reinado no vale das flores vermelhas, cobrando um tributo de vidas humanas aos infelizes moradores das colinas, levando pelos ares vítimas inocentes para que servissem de alimento às suas flores carnívoras, aqueles meio-animais que eram seus súditos e protegidos. Naqueles instantes, eu estava em seu poder; meu encarniçamento e audácia não haviam servido de nada. Um único golpe da adaga curva que empunhava me enviaria ao pé da muralha, caindo para a morte. Em algum lugar, Gudrun, vendo o perigo em que me encontrava, lançava gritos de animal selvagem. Logo, uma porta rompeu-se com um estrondo de placas em explosão.

O homem negro, dedicado ao seu demoníaco plano, apoiou a borda de aço da lâmina contra a corda de couro... logo, às suas costas, um braço branco e vigoroso fechou-se sobre seu pescoço, que foi violentamente lançado para trás. Por cima de seus ombros, pude ver o rosto magnífico de Gudrun, seus cabelos selvagens, seus olhos dilatados pelo horror e pela ira. O homem negro virou-se com um rugido, lutando contra sua presa. Arrancou-a de seu pescoço e atirou-a contra a torre, com tal violência que Gudrun ficou imóvel, meio atordoada. Mas, no mesmo instante, eu terminava de subir até o parapeito e saltava para a galeria, empunhando o machado.

Vacilou por alguns instantes; desdobrou um pouco as asas. Ainda segurava a adaga, perguntando-se se devia fugir pelo ar. Era um gigante em tamanho, e seus músculos destacavam-se como sulcos debrumados por todo seu corpo. Mas vacilava, como um homem enfrentando uma fera.

Eu não vacilei. Com um rugido que me nasceu no fundo da garganta, saltei para adiante e lancei o machado pra trás com toda minha força de colosso. Com um grito estrangulado, levantou os braços. Mas o fio do machado afundou entre eles, assobiando, e esmagou-lhe o crânio, reduzindo-o a fragmentos sangrentos.

Me virei para Gudrun. Se aproximou titubeante e, logo, lançou os braços ao meu pescoço, num frenético abraço de amor e medo, abrindo os olhos de forma desorbitada e mirando o lugar no qual jazia o alado senhor do vale. A polpa avermelhada que havia sido sua cabeça, se banhava num oceano de sangue e miolos.

Freqüentemente, desejei que fosse possível reunir as diversas vidas que foram a minha no interior de um único corpo, aliando as experiências de Hunwulf com o saber de James Allison. Se pudesse ser assim, Hunwulf teria atravessado a porta de ébano, que Gudrun fizera saltar em pedaços com um sobressalto de desesperado vigor. Teria penetrado naquele salão fantástico que espreitava entre os deslocados painéis. Aquela moradia estava abarrotada de estranhos móveis e de prateleiras cobertas de rolos de pergaminho. Teria aberto aqueles rolos e debruçaria-se sobre os caracteres até tê-los decifrado e, talvez, lido as crônicas daquela raça estranha, da qual acabava de matar seu último sobrevivente. Certamente, sua história era mais incomum que os sonhos causados pelo ópio, e tão maravilhosa quanto a narração daquela Atlântida, que os mares tragaram em tempos remotos.

Mas Hunwulf não possuía tal curiosidade. Para ele, a torre, a habitação dos móveis de ébano e os rolos de pergaminho eram emanações da bruxaria, coisas carentes de sentido e inexplicáveis, cujo significado residia em seu próprio caráter diabólico. Embora a solução do mistério se encontrasse ao alcance de sua mão, estava tão imensamente distanciado dela quanto de James Allison, que não devia nascer mais que ao fio dos milênios.

Para mim, como Hunwulf que era, o castelo não era mais que uma cilada monstruosa. Só sentia por ele uma só emoção e um só desejo: abandoná-lo o mais cedo possível.

Com Gudrun agarrando-se a mim, deslizei até o chão, logo soltei a corda com um hábil movimento de torção e voltei a enrolá-la. Nos afastamos, de mãos dadas, e seguimos o caminho aberto pelos mamutes, que se perdiam à distância. Nos dirigimos para o lago azulado, no extremo sul do vale e para a embocadura dos escarpados que erguiam-se mais além.

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