por Robert E. Howard (tradução de Fernando Neeser)
em 30/01/2005
- Deus das sombras rastejantes, concedei-me vossa ajuda!
Um jovem magro estava ajoelhado na penumbra, com seu trêmulo corpo branco como marfim. O polido chão de mármore era frio sob seus joelhos, mas seu coração estava ainda mais frio que a pedra.
Por cima dele, no alto, unido às sombras mascaradas, se erguia um grande teto de lápis-lazúli, sustentado por paredes de mármore. Diante dele, reluzia um altar dourado, e sobre este brilhava uma enorme imagem de cristal: um escorpião, talhado com uma habilidade que superava a arte.
- Grande escorpião – continuou o jovem com sua invocação –, ajuda a teu servo! Tu bem sabes como, em tempos passados, Gonra da Espada, meu grande antepassado, morreu diante de teu altar, nas mãos de um punhado de bárbaros assassinos que tentavam profanar tua santidade. Através das bocas de teus sacerdotes, prometeste ajuda à raça de Gonra em todos os anos futuros.
"Grande escorpião! Jamais um homem ou mulher de meu sangue te lembrou de tua promessa! Mas agora, em minha hora de mais amarga necessidade, apelo diante de ti e lhe rogo para que lembres do teu juramento, pelo sangue bebido pela espada de Gonra, pelo sangue derramado das veias de Gonra.
"Grande escorpião! Thuron, o sumo-sacerdote da sombra negra, é meu inimigo. Kull, rei da Valúsia, cavalga de sua cidade de capitéis púrpuras, para arrasar com fogo e aço os sacerdotes que lhe desafiaram e que continuam oferecendo sacrifícios humanos aos deuses antigos das sombras. Mas antes que o rei possa chegar e nos salvar, eu e a mulher que amo seremos colocados, nus, sobre o altar negro do templo da escuridão eterna. Thuron assim jurou! Entregará nossos corpos às antigas e horrendas abominações, e nossas almas ao deus que vive para sempre nas sombras negras.
"Kull senta-se agora no trono da Valúsia e agora acode em nossa ajuda, mas Thuron governa esta cidade das montanhas e me persegue. Ajuda-nos, grande escorpião! Lembra de Gonra, que entregou sua vida por ti, quando os selvagens atlantes levaram a espada e a tocha à Valúsia".
A delgada figura do rapaz se prostrou e a cabeça abateu-se sobre seu peito, num gesto de desespero. A grande imagem reluzente do altar devolveu-lhe um brilho gelado sob a luz fraca, e não demonstrou nenhum sinal, diante de seu devoto, que indicasse ter ouvido aquela invocação ardente.
De repente, o jovem se ergueu, sobressaltado. Passos rápidos soaram sobre os largos degraus, na parte externa do templo. Uma jovem lançou-se pela porta envolta nas sombras, como uma labareda branca soprada pelo vento.
- Thuron... está vindo para cá! – ela balbuciou, arremessando-se nos braços de seu amado.
O rosto do jovem empalideceu e ele apertou mais ainda a garota, ao mesmo tempo em que olhava receoso em direção à porta. Uns passos, pesados e sinistros, ressoaram sobre as escadas de mármore e uma figura ameaçadora apareceu sob a verga da porta.
Thuron, o sumo-sacerdote, era um homem alto e magro, como um gigante cadavérico. Seus olhos brilhavam como ferozes manchas, sob as sobrancelhas cheias, e a delgada linha de sua boca se abriu num riso silencioso. A única vestimenta que usava era uma tanga de seda, através da qual estava introduzida uma cruel adaga curva, e carregava um chicote curto e pesado em sua mão delgada e poderosa.
Suas duas vítimas agarraram-se uma à outra, e fitaram seu inimigo com os olhos muito abertos, como pássaros que miram assombrados a uma serpente. E os movimentos lentos e ondulantes de Thuron, ao avançar na direção deles, não foram muito diferentes do sinuoso deslizar de uma serpente.
- Thuron, tome cuidado! – exclamou o jovem corajosamente, ainda que com a voz vacilante, debilitada pelo terror que se apoderava dele – Se não teme o rei, nem tem piedade de nós, não se atreva a ofender o grande escorpião, sob cuja proteção nos encontramos.
Thuron lançou uma gargalhada, poderoso e arrogante.
- O rei! – zombou – Que significa o rei para mim, quando sou mais poderoso que qualquer rei? O grande escorpião? Ho, ho! Um deus esquecido, uma divindade da qual só se lembram as crianças e mulheres. Atreve-se a opor seu escorpião contra a sombra negra? Estúpido! Agora já não pode salvar-lhe nem o próprio Valka, o deus de todos os deuses! Você está destinado a ser sacrificado ao deus da sombra negra.
Avançou em direção aos jovens acovardados e os agarrou pelos ombros, afundando na carne macia suas unhas, fortes como garras. Tentaram resistir, mas ele pôs-se a rir e, com uma força incrível, ergueu-os no ar e os suspendeu assim, com os braços estendidos, como um homem que balança um bebê. Suas gargalhadas rangentes e metálicas encheram a estância, arrancando ecos de maligna zombaria.
Sustentou o rapaz entre os joelhos, ao mesmo tempo em que amarrava as mãos e os pés da jovem, que soluçava sob suas mãos cruéis. Logo, após colocá-la impiedosamente no chão, atou o rapaz do mesmo modo. Então recuou e contemplou sua obra. Os soluços assustados da moça ressoaram no silêncio, rápidos e ofegantes. Após um momento de silêncio, o sumo-sacerdote falou:
- Foram uns estúpidos ao pensarem que podiam escapar de mim! Os homens de seu sangue sempre me afrontaram no conselho e na corte. Agora, haverá de pagar por isso e a sombra negra beberá seu sangue. Ho, ho! Eu governo agora a cidade, seja quem for o rei.
"Meus sacerdotes pululam pelas ruas, armados até os dentes, e nenhum homem se atreve a me desafiar. Se o rei pudesse montar a cavalo agora mesmo, ele não conseguiria abrir caminho entre meus homens e chegar a tempo de lhes salvar".
Seus olhos percorreram o interior do templo e finalmente repousaram sobre o altar dourado e o silencioso escorpião de cristal.
- Ho, ho! Que estúpidos que são em terem depositado sua fé num deus que os homens deixaram de adorar há muito tempo! Um deus que nem sequer tem um sacerdote que o atenda, e ao qual só se permitiu um santuário devido à lembrança de sua grandeza. Um deus que só é reverenciado por pessoas ingênuas e mulheres estúpidas.
"Os verdadeiros deuses são escuros e sangrentos! Lembrem-se de minhas palavras quando encontrá-los, daqui a pouco, sobre um altar de ébano, atrás do qual se aninha eternamente uma sombra negra. Antes de morrerem, vocês conhecerão os verdadeiros deuses, os deuses poderosos e terríveis que vieram de mundos esquecidos e dos âmbitos perdidos da escuridão. Deuses que nasceram nas gélidas estrelas, e que moram em sóis negros, muito além da luz de qualquer estrela. Conhecerão a terrível verdade do inominável, ante cuja realidade não se encontra nenhuma semelhança terrena, mas cujo símbolo é a sombra negra".
A moça deixou de soluçar, gélida, e guardou um atordoado silêncio, como o jovem. Por trás daquelas ameaças, ambos percebiam um fosso horrível e inumano de sombras monstruosas.
Thuron avançou um passo em direção a eles, inclinou-se e estendeu as mãos como garras para apoderar-se deles e erguê-los sobre seus ombros. Lançou uma gargalhada quando eles tentaram recuar para se afastarem dele. Seus dedos fecharam-se como forquilhas sobre o delicado ombro da jovem...
Um grito agudo abalou o silêncio de cristal, despedaçando-o, ao mesmo tempo em que Thuron dava um salto no ar e caía de bruços ao chão, retorcendo-se e rangendo os dentes. Uma pequena criatura afastou-se, escorregadia, e desapareceu pela porta. Os gritos de Thuron se transformaram num gemido que interrompeu-se em sua nota mais alta. Logo, o silêncio caiu sobre eles como uma bruma mortal.
Finalmente, o jovem sussurrou, impressionado:
- O que foi isso?
- Um escorpião. – foi a resposta da garota, pronunciada em voz baixa e trêmula – Arrastou-se sobre meu peito nu, sem me causar o menor dano e, quando Thuron me agarrou, ele o picou.
Voltou a fazer silêncio. Logo, o jovem voltou a falar, com voz vacilante.
- Não se vê nesta cidade nenhum escorpião, há muito mais tempo do que os homens conseguem lembrar.
- O grande escorpião chamou este, para que viesse em nossa ajuda. – sussurrou a moça – Os deuses nunca esquecem, e o grande escorpião cumpriu seu juramento. Mostremos a ele o nosso agradecimento!
E, amarrados como estavam, de pés e mãos, os jovens amantes viraram os rostos de onde estavam e elogiaram o grande escorpião silencioso e brilhante que havia sobre o altar. Permaneceram assim durante muito tempo, até que o som distante de muitos cascos prateados e o estrondo das espadas indicou-lhes a chegada do rei.