Os Companheiros Livres

(por Fernando Neeser de Aragão)


1)

Ainda sobrou um homem, o qual não fugiria. No rodopiante caos vermelho, que fervilhava e se contorcia diante do cavalo empinado de Conan, uma figura terrível surgiu de repente, como uma aparição vermelha. Era o príncipe Kutamun, vestindo apenas uma tanga, a armadura despedaçada, o elmo de crista amassado, a espada quebrada e encrostada de vermelho. O sangue escorria de uns vinte ferimentos, mas o brilho em seus olhos escuros não se turvara; e, com um grito terrível, ele arremessou o cabo quebrado de sua espada no rosto de Conan e, com um salto, agarrou as rédeas do cavalo que relinchava. O cimério cambaleou na sela, meio atordoado: e, com uma espantosa demonstração de força, o gigante de pele escura forçou o cavalo para cima e para baixo, até o desvairado corcel se desequilibrar e cair sobre a sujeira de areia ensangüentada e corpos contorcidos.

Conan pulou quando o cavalo caiu e, com um rugido, Kutamun estava sobre ele. Engalfinhados numa mortífera luta corpo-a-corpo, eles oscilaram e fizeram esforço por um instante, para logo caírem juntos. Naquele louco pesadelo de batalha, Conan nunca soube exatamente como matou seu adversário. Apenas soube que uma pedra, na mão do stígio, se espatifou várias e várias vezes sobre seu capacete, enchendo-lhe a visão com reluzentes fagulhas vermelhas e, em algum lugar, sua mão que tateava agarrou uma adaga, a qual enfiou várias vezes no corpo do rival, sem diminuir aparentemente a terrível vitalidade do príncipe. O mundo girava diante dos olhos do cimério, quando, com um tremor convulsivo, o corpo que se comprimia contra o dele se enrijeceu e, em seguida, desabou.

* * *

Conan acordou – abruptamente como todos os cimérios – e sorriu. Ele havia acabado de sonhar com um dos maiores duelos que havia tido ao enfrentar, semanas atrás, as hordas de Thugra Khotan. Como todos os bárbaros, ele preferia combates como esse com o qual sonhara, a lutas demoníacas, como a que ele tivera logo depois com o ressuscitado Thugra.

Na intimidade dos lençóis, Yasmela já havia dito a Conan que pretendia pagar o resgate, pedido pelo rei de Ophir, para libertar o irmão – o rei Khossus –, pois havia sobrado apenas meia-dúzia de mercenários para receberem o soldo – e a princesa estremeceu só de pensar em ir com o cimério para Kuthchemes, como ele lhe sugerira, a fim de obter mais ouro para dar ao rei Thelrus de Ophir. Além disso, o bárbaro não estava mais interessado em ser um simples amante ou consorte de uma princesa afetada, mimada e adulada. Sem contar que, como o próprio cimério sabe há anos, há mais calor numa mulher de taverna do que em criadas da realeza. E, como o chanceler Taurus dissera, a vitória contra Thugra Khotan faria o rei de Ophir devolver Khossus a Khoraja.

Assim, levantando-se silenciosamente do leito e se vestindo com não menos silêncio, Conan se retirou furtivamente dos aposentos de Yasmela e dirigiu-se para outra ala do palácio. Os poucos guardas que o viam lhe abriam caminho, imaginando que o cimério estivesse agindo sob ordens da princesa. Contudo, ao chegar a uma ala externa e desguarnecida do palácio, Conan se encontrou com os cinco mercenários remanescentes daqueles que seguiam Amalric da Nemédia – este agora completamente recuperado do ferimento de lança na coxa, e com nenhum interesse em deixar o conforto do Palácio Real –, e chegou a outra ala do palácio, a qual conduzia diretamente à rua; em todos os outros lados, o prédio era cercado por amplos jardins, circundados por um muro alto. Os seis saíram à rua iluminada por tochas a intervalos regulares.

Então, o cimério cavalgou com eles para Kuthchemes, onde saquearam parte do tesouro do falecido Thugra Khotan, e de lá para Koth. Por não sentir a menor amizade pelo rei Strabonus (pois já se desentendera com o mesmo, quando era ladrão, pouco antes de se dirigir para Zamora), o cimério resolveu se juntar a um enorme exército que Almuric, um príncipe rebelde de Koth e sobrinho de Strabonus, estava reunindo em Khrosha para destronar o maldito tio, de acordo com os rumores que haviam chegado até Khoraja.

Os ex-mercenários que acompanhavam Conan eram Demetrius da Aquilônia, Mosiah de Shumir – seu ex-companheiro de roubos em Zamora, e que, após ter lhe falado de Natohk e lhe mostrado a moeda, aderira ao exército do cimério e lutara ao lado dele –, Leander da Gunderlândia, Murianos da Coríntia e Svarog da Hiperbórea.

Conan e aqueles mercenários se alistaram no bando dos Companheiros Livres, sob o comando de Almuric. Eram cinco mil, de umas vinte raças e tribos – kothianos, shemitas, zamorianos, britunianos, gunderlandeses, hirkanianos, hiperbóreos e zaporoskanos, dentre outros (dos quais, alguns kushitas que fugiram à derrota dos exércitos de Thugra Khotan, bem como um ou dois negros de Wadai).


2)

Em sua primeira missão – e sabendo que o cimério, além de excelente guerreiro, tinha seu próprio bando –, o Príncipe Almuric (um jovem de aparência aristocrática, o qual matara o Rei Priscus de Khrosha, ao se rebelar contra o próprio tio) e Conan dirigiram bigas lado a lado, à frente dos cinco ex-mercenários de Yasmela e de boa parte dos Companheiros Livres. E, ao saírem de Krosha – onde o príncipe e seu exército se aquartelavam –, foram todos aclamados pela população da cidade, como os futuros libertadores do jugo kothiano de Strabonus.

Atravessando estepes semi-áridas, o cimério e Almuric chegaram até uma região montanhosa, conhecida como Montanhas Flamejantes. Enquanto os Companheiros Livres acampavam, o príncipe rebelde e Conan, lado a lado em suas respectivas bigas, acertavam os detalhes da missão.

- Leve metade da divisão para o centro, enquanto levo a outra metade para o sul – disse Almuric ao bárbaro ocidental.

- Combinado – respondeu Conan.


No acampamento dos kothianos rivais, situado num vale entre as Montanhas Flamejantes, crianças brincavam despreocupadas, espadas eram forjadas e consertadas, enquanto o Príncipe Argionus se deleitava com duas mulheres de harém na sua tenda. Carne era cortada e assada, e a maioria das mulheres cozinhava e servia vinho para seus maridos – ou para seus clientes, se fossem solteiras prostitutas de campo.

Súbito, um homem veio galopando a todo vapor e gritando o nome do príncipe ali presente. Era o mensageiro, alertando sobre a chegada do Príncipe Almuric e de uma horda de milhares de mercenários. Todos pararam suas atividades e os guerreiros se prontificaram para a batalha, enquanto as mulheres e crianças se escondiam nas tendas.

Argionus, tão guerreiro quanto seu primo Almuric e orgulhoso demais para se esconder numa tenda por trás de guardas, mandou organizar uma falange, para proteger seu acampamento, ao mesmo tempo em que, montado em seu garanhão branco, foi à frente de seus outros homens, tanto em bigas quanto a cavalo, correndo a todo vapor em direção aos exércitos heterogêneos do príncipe rebelde, para enfrentá-los no vale fora do acampamento.

Com sua biga conduzida por um cocheiro, Almuric atirou uma flecha com precisão mortal, atingindo o pescoço de um dos cocheiros rivais, derrubando biga e guerreiro adversários, e fazendo tanto guerreiro quanto cocheiro de Argionus serem pisoteados pelos cavalos, aos quais o herdeiro do trono de Koth não pôde frear. Mais flechas, lançadas por Conan e seus cinco comandados, abateram ainda mais kothianos adversários, tanto a cavalo quanto em bigas.

Vendo a redução de parte do exército, a falange se desfez e abandonou o acampamento, não em fuga, mas para tentar ajudar o príncipe e seu exército. Se não fosse a situação crítica, Argionus puniria severamente seu general por abandonar tanto seu posto, quanto as mulheres e crianças de seu acampamento. Após matar alguns dos mercenários do primo com flechadas, o Príncipe Argionus finalmente se aproximou, com seus exércitos, da horda rival.

Os soldados a pé formaram outra falange, comandada pelo general, mas esta foi impiedosamente pisoteada e atropelada pelos cavalos e bigas em formação cuneiforme do Príncipe Almuric, de Conan e dos Companheiros Livres. A troca de flechas entre os guerreiros de ambos os lados prosseguiu, sem trégua nem piedade. Emparelhando sua charrete com a de um dos guerreiros inimigos, Almuric decepou metade do pescoço daquele soldado de Argionus, enquanto em sua respectiva biga, urrando como um tigre e cada vez mais no centro das forças rivais, Conan estocava e decepava guerreiros a pé, a cavalo e em bigas. Súbito, mais por sorte que por habilidade, Argionus – cujo cavalo morrera flechado –, abriu com sua espada o pescoço da montaria do cimério.

Saltando para um lado, Conan caiu de pé sobre o solo, como um enorme felino, e, após cruzar espadas três vezes com o príncipe herdeiro de Koth, esmagou-lhe o capacete e crânio com a espada, numa explosão de faíscas, sangue e miolos, fazendo-o cair já morto ao solo ensangüentado. O acampamento foi invadido pelos guerreiros de Conan e Almuric, mas as mulheres e crianças, felizmente, haviam fugido para as montanhas, antes que aquela horda as alcançasse, e levaram consigo parte dos mantimentos e roupas – o que lhes garantiria comida e agasalho, até chegarem à cidade kothiana mais próxima.

Súbito, a roda esquerda da biga de Almuric foi destruída pela de outra charrete que vinha em sentido contrário. Talhando impiedosamente os guerreiros da acéfala horda moribunda de Argionus, Conan viu a cena. Então, ao tentar alcançar sua espada fincada no solo, Almuric, ainda caído ao chão, viu uma outra charrete puxada por três cavalos investir em sua direção, e percebeu que não conseguiria reaver sua arma a tempo. Então, uma lança inesperadamente voou até uma das rodas, interrompendo bruscamente a trajetória da biga inimiga e fazendo-a rolar para um lado. Os homens que a ocupavam foram rapidamente mortos a golpes de espada pelos ferozes mercenários do príncipe rebelde, antes que pudessem se levantar.

Amalric, por sua vez, ficou surpreso e contente, ao ver que a lança fora arremessada por Conan, e que este ainda abriu a nuca de um dos últimos guerreiros de Argionus e cravou a espada no ventre de outro – os quais investiam contra o príncipe rebelde. Erguendo-se, Almuric pegou sua espada de volta, talhou a perna de um soldado rival e as costas de outro. Então, após Demétrius, Leander, Svarog e Murianos matarem os inimigos restantes, os poucos soldados sobreviventes debandaram e fugiram. Conan e Almuric subiram em bigas cujos ocupantes haviam morrido e, enquanto procuravam pelos seus mortos para lhes dar um enterro digno, não encontraram o cadáver do shumiriano Mosiah, amigo de longa data do cimério. Automaticamente e sem cerimônias, Almuric autorizou Conan a ir atrás do amigo – como se o bárbaro ocidental precisasse de qualquer autorização para isso.


3)

- Pensam que conhecem o lugar-tenente de Almuric? – disse um shemita em sua fala rápida. – Vocês nada sabem. Ele nasceu em meio a uma batalha, matou sozinho duas aranhas em Zamora, quando éramos ladrões... eu vi com estes olhos que um dia a terra há de comer. E recentemente, ele matou o próprio Thugra Khotan com um único murro e destroçou vários exércitos do Rei Strabonus. Seu nome é Conan, um cimério das colinas cinzentas do norte gelado.

- Que história mais idiota. Você e seu povo são famosos pelas mentiras que contam – disse um dos kothianos ao shemita de turbante branco, o qual se encontrava pendurado pelos pulsos e tornozelos. Seus captores eram homens em armadura completa, com peitorais de prata, e espadas e punhais com cabos cravejados de jóias. Eram, como todos os kothianos, homens morenos de cabelos e olhos escuros; e somente alguns deles tinham pele e olhos claros.

- Cada palavra é verdade – respondeu o shumiriano capturado, com a barba preto-azulada eriçada e os olhos, negros como contas brilhantes, arregalados de fúria.

Seus captores riram, enquanto o ex-ladrão foi novamente tomado por súbito medo, ao se lembrar de que estava amarrado acima de uma longa estaca de madeira, apontada para o ânus.

- Acho que esse seu amigo nem existe – disse outro deles.

- Podem rir o quanto quiser. Ele está a caminho – respondeu o homem de Shumir.

- Strabonus tem sido ótimo conosco, defendendo-nos daquele sobrinho idiota que se rebelou contra ele – respondeu o General Zorbagius, líder deles. – E agora temos um dos rebeldes do Príncipe Almuric em nossas mãos. Breve, saquearemos o leste de Koth e, se Ishtar quiser, a própria Khrosha. Matem-no.

Com um sorriso nos lábios, um dos homens do rei de Koth pôs a tocha acesa na corda que prendia todas as outras a amarrarem o shumiriano.

- Quanto menos resistir, mais rápido será, amigo – disse o general, com um sorriso sinistro e irônico nos lábios.

- Certo; seus homens são fortes – admitiu o assustado mercenário shemita –, mas...

Súbito, apareceu uma silhueta agigantada por trás da fumaça das fogueiras daquele acampamento militar, fazendo o shumiriano sorrir.

- Mas, como eu ia dizendo – o prisioneiro prosseguiu –, Thugra Khotan também era poderoso e mesmo assim foi destruído. E não com sua espada, nem lança, nem flecha.

- Na verdade, tive a ajuda de um escorpião – respondeu a figura agigantada, finalmente ficando visível para os guardas de Strabonus e tomando a palavra. – Quanto ao “único murro”, é o que ele diz.

Todos os soldados e seu general olharam sobressaltados para aquele homem alto e moreno como eles, mas com os ardentes olhos azuis brilhando à luz das fogueiras, o corpo musculoso e mais cicatrizado que o do mais velho guerreiro ali presente.

- Conan! – exclamou Zorbagius, reconhecendo o homem que recentemente derrotara, com sua horda heterogênea, um dos maiores exércitos do Rei Strabonus.

- Vocês só têm estes homens? – o cimério perguntou zombeteiramente.

- Somos 40 contra um – respondeu o general.

- O Príncipe Almuric ofereceu ouro para me livrar de vocês – disse o bárbaro. – Então, saiam vivos ou esperem para morrer. Irão me pagar de qualquer forma.

- Façam-no sangrar, soldados! – ordenou Zorbagius.

Três deles investiram contra o cimério, mas ele os estripou com um só giro de sua espada.

- Três homens num só golpe – exclamou debochadamente o shumiriano, esquecido do perigo de vida que corria. – Ainda acha que destruirá um cimério, Zorbagius?

- Tragam-me a cabeça dele! – gritou o general. – Breve, teremos também a do traidor Almuric.

Desta vez, era quase todo o acampamento que investia contra Conan, mas ele continuava caminhando tranqüilamente pelo local e aparentando indiferença. Súbito, dois dos homens que o atacaram tombaram, cada um com uma adaga arremessada com precisão mortal no pescoço. Conan olhou para o alto da árvore de onde elas partiram, e sorriu.

- Demétrius – o cimério disse, olhando para outra árvore frondosa. Desta partiram uma flecha, e logo em seguida, mais duas, abatendo mais três kothianos.

- Leander!

Com esta palavra de Conan, um gunderlandês saiu de seu esconderijo atrás de uma árvore, cravando sua lança por trás em mais um soldado, de modo que a ponta lhe atravessou as vértebras cervicais e se sobressaiu pelo pomo-de-adão do guerreiro de Zorbagius.

- Svarog!

Um hiperbóreo magro e tão alto quanto o cimério desceu de outra árvore e matou mais quatro kothianos, com machadadas precisas em suas barrigas. O cimério rachou os crânios de mais dois, enquanto gritava “Murianos!” e outras duas setas, vindas do mesmo local de onde haviam partido as duas adagas, acertavam os corações de mais um par dos guerreiros de Zorbagius. Com um golpe preciso, Conan abriu mais um rival, da garganta ao umbigo, antes que pudesse usar sua espada contra o bárbaro.

Saindo de seu esconderijo, Demétrius flechou mais kothianos, enquanto Svarog brandia seus dois machados como um possesso, abrindo gargantas e peitos. Outros soldados de Zorbagius caíram, sob a lança do não menos feroz Leander e a espada de Conan – tão selvagem quanto seu dono.

- Morra, cimério! – gritou finalmente o general, de espada em punho, investindo contra o bárbaro, mas caiu com um poderoso murro de Conan em seu queixo. O cimério, em seguida, deu um empurrão em seu amigo shumiriano, fazendo-o cair longe da estaca que o aguardava.

- Por Bel e Derketo, Conan! – ele disse em sua fala rápida. – Se você demorasse um pouquinho mais...

- As mulheres finalmente se livrariam do seu dinheiro e mentiras, Mosiah – o bárbaro respondeu gargalhando. – Então, dirigindo-se ao General Zorbagius, último remanescente do acampamento e que ainda se recuperava do soco recebido, Conan lhe decepou a cabeça num só golpe.

* * *

De volta ao acampamento do Príncipe Almuric, Conan e seus mercenários foram recompensados com 120 peças de ouro – três para cada cabeça de soldado que trouxeram ao príncipe rebelde de Koth, o qual agora comandava Khrosha e parte do leste de Koth; e, portanto, vinte peças para cada mercenário.

Com este pagamento, aquele destacamento especial dos Companheiros Livres foi a uma das tavernas de Khrosha comer, beber e se divertir com as meretrizes de lá. Para surpresa de Conan, a dona do estabelecimento era ninguém menos que Lizalia, uma prostituta a quem o cimério encontrara e salvara em Yaralet – e agora uma cafetina. Sorrindo para o homem em cujos braços se divertira anos antes, ela ofereceu, a ele e aos demais homens com o cimério, as mais belas prostitutas daquele recinto – uma para cada guerreiro. Lizalia – assim como Conan – pouco se importava se o Príncipe Almuric havia matado o rei de Khrosha, o qual os ajudara anos antes em Yaralet. O cimério era bem-pago com o ouro do príncipe rebelde, e ela com o de Conan e seus amigos. Enquanto o dinheiro viesse até eles, estaria tudo bem.

Todos riam, comiam, bebiam e contavam histórias – as mais estapafúrdias, é claro, eram contadas pelo shumiriano Mosiah, arrancando gargalhadas tanto das duas mulheres a quem o shemita abraçava, quanto dos seus companheiros de luta. Era tarde da noite, quando, com seus respectivos pares de mulheres, aqueles mercenários se recolheram aos aposentos da estalagem – embora não necessariamente para dormirem. A noite mal começara para eles, e os dias seguintes lhes prometiam mais batalhas, saques, ouro e diversões.

* * *

No dia seguinte, os mercenários comiam seu desjejum naquela taverna, quando a figura jovem e aristocrática do Príncipe Almuric adentrou aquele recinto com sua guarda, chamando-os para saírem da cidade. Todos se retiraram sorridentes da taberna e da cidade, na expectativa de mais serviço mercenário. Todavia, ao saírem dos portões de Khrosha, eles foram surpreendidos ao verem, juntamente com os cinco mil Companheiros Livres, o Exército Real de Khorshemish, com suas armaduras reluzindo ao sol que já se erguia pouco acima do horizonte, e – para espanto ainda maior de Conan e seus amigos – o Príncipe Almuric cumprimentando um homem de vestes suntuosas, rosto largo e escuro, olhos astutos e corpo atarracado: o Rei Strabonus de Koth!

- Quero declarar a todos – disse o príncipe em voz alta – que, em nome de uma Koth unida e do fim de derramamento inútil de sangue, acabo de fazer as pazes com meu tio. Quanto aos Companheiros Livres... estão todos dispensados!

- “Dispensados”?! – rosnou Conan entre dentes e desembainhando a espada. – Demos nosso sangue e nossas vidas por este almofadinha, e ele agora nos descarta como se fôssemos cães! Quem diabos ele pensa que é? – o bárbaro do ocidente acrescentou, começando a caminhar, a passos largos, em direção a Almuric.

- Calma, Conan! – exclamou Mosiah, segurando o cimério pela cintura, mas sendo arrastado à medida que o bárbaro andava. – O exército de Strabonus é bem maior que o nosso – ele acrescentou, preocupado.

- Além do mais – disse Leander, aproximando-se do cimério –, apesar de estarmos sem trabalho, podemos saquear o leste: as fronteiras de Zamora, Turan e – abaixando o tom de voz –, até mesmo as de Koth.

Conan parou e olhou para Leander. O sorriso do gunderlandês, naquele momento, era um esgar tão leonino quanto a desgrenhada cabeleira castanho-clara do ex-mercenário que lutara sob o comando do cimério contra as hordas de Tugra Khotan e os soldados do Rei Strabonus. Devolvendo-lhe o sorriso selvagem, o bárbaro assentiu e olhou novamente para Almuric e Strabonus:

- Pois podem ir ao inferno, com seu maldito acordo de paz, escória de Koth! Temos coisas melhores a fazer!

E, virando seus passos para leste com seus 5000 aliados, Conan ouviu a risada zombeteira do rei e do príncipe; e diante disso, acrescentou:

- Ainda nos encontraremos!

O modo como a promessa fora dita, aliado ao olhar do cimério, fez Strabonus e Almuric pararem de rir. E assim, Conan e seus companheiros Livres seguiram viagem até o ponto de encontro entre as fronteiras de Koth, Zamora e Khauran.

Então, eles começaram a saquear os confins de Zamora, Koth e Turan. Queimavam e saqueavam fronteiras e cidades, deixando as ruas vermelhas de sangue. Conan gostava desta vida de pilhagens, saque e matanças, onde cada amanhecer prometia mais espólios; onde todos acordavam e sorriam para um novo dia, lutando e matando sem deus e sem prece. Num dos saques a Turan, aquela horda heterogênea, seguindo as ordens de Aristo, um zaporoskano de estatura mediana que a liderava – e da qual Conan era um dos sub-líderes – seguiu para as estepes, em direção ao Rio Zaporoska, onde o líder pretendia reencontrar parentes e amigos.


4)

De um lado a outro das estepes plúmbeas e cinzas, sob o céu também plúmbeo e cinza, voavam umas poucas garças. Até onde os olhos podiam alcançar, se estendia a grama pardacenta e ondulante, agitada por um vento morno. Uns poucos aglomerados de árvores raquíticas quebravam a monotonia e, à distância, se percebia o contorno de um grande rio, que se enroscava como uma serpente pelo ermo. Juncos altos se erguiam abundantemente lá, e aves aquáticas circulavam acima.

Por volta da época da fundação de Turan, uns mil anos antes, as terras a oeste do Mar de Vilayet eram habitadas por um povo pastoril de origem mista. Os do sul mostravam fortes traços shemitas; os do norte eram de linhagem indeterminada, mas podiam ter sido aparentados dos yuetshis – aquele povo estranho e selvagem, cuja origem se perdera na alvorada cinzenta do passado, e que vivia em cabanas toscas ao longo da costa de Vilayet.

Posteriormente, uma nova raça de homens chegara às estepes. Eram párias fugindo de perseguições no oeste: criminosos fugitivos, homens falidos, escravos foragidos e soldados desertores. Os recém-chegados foram acolhidos pelos tranqüilos pastores que viviam nas planícies gramadas. E assim, dessa miscigenação, surgiram as pessoas que eram conhecidas entre si como o Povo Livre. Mas os turanianos tinham outro nome para eles – uma alcunha que significava “trapaceiros” ou “vagabundos”: kozakis!

Súbito, um som inesperado interrompeu a quietude daquelas estepes. A princípio, ouviu-se apenas o ruído de pés descalços correndo. A seguir, surgiu o pisar agressivo de botas de couro. Nestes dois tipos de som, os Companheiros Livres percebiam a diferença entre o pânico desesperado e o firme avanço da conquista. Uma conquista bastante facilitada pelos juncos dos pântanos, que mais pareciam tentáculos ameaçadores, fazendo uma apavorada jovem loira seminua tropeçar e cair, perto da margem do Rio Zaporoska.

- Para trás! – ela gritou, numa língua que somente os zaporoskanos do grupo, assim como seu perseguidor que já lidara contra kozakis, compreendiam inteiramente.

Acima dela, se erguia um turaniano de rosto barbeado, expressão maldosa e vestindo uma túnica e um manto de seda sobre sua armadura de cota-de-malha.

- Por Tarim, você me proporcionou uma bela caçada – disse ele, retirando o manto. – Todos os meus homens ficaram para trás.

Contudo, ao se deitar para violentar a mulher, ela lhe arranhou o rosto moreno, fazendo-lhe o sangue escorrer quente da testa até o queixo.

- Prefiro morrer a ser possuída por você, seu chacal hirkaniano! – ela exclamou.

- Vagabunda! – gritou o turaniano, esbofeteando a face delicada da bela jovem e deitando-se novamente sobre ela. – Você morrerá como quer, sim... mas só depois que eu possuí-la!

Súbito, os olhos negros do militar de Turan se arregalaram, um grito sufocado escapou de seus lábios e ele caiu para um lado, com uma flecha lhe perfurando o elmo dourado e o cérebro. Ao mesmo tempo aliviada com a morte do violador, e assustada por não saber se quem o flechou era amigo ou inimigo dela, a jovem mulher se sentou e olhou ao redor.

Poucos instantes depois, o líder dos Companheiros Livres apareceu para ela, à frente de seus homens, com as armas embainhadas, as mãos vazias e estendidas para cima em sinal de que veio em paz, e um sorriso estampado no rosto. Pelo fato dos zaporoskanos serem um povo miscigenado e heterogêneo, a moça não o reconheceu de imediato como um dos seus. Mas, quando o líder falou na linguagem dela – uma mistura de dialetos locais com os idiomas dos diversos povos que compõem o deles – ela ficou aliviada e agradeceu por ele ter lhe salvado a vida.

- De nada, jovem – respondeu o líder dos Companheiros Livres. – Qual o seu nome?

- Sou Venilia de Zaporoska, do bando kozak do hiperbóreo Olgerd Vladislav, de quem sou companheira – disse a jovem. O nome e sotaque dela a indicavam como sendo filha de britunianos com coríntios. – Eu estava sendo perseguida por este maldito desertor hirkaniano, quando vocês chegaram – ela acrescentou, com um sorriso, enquanto cobria a semi-nudez com o manto do turaniano morto.

***

Em pouco tempo, enquanto seguiam até o acampamento de Venilia, os Companheiros Livres conheceram bandos kozakis e, apesar de não se aliarem àqueles salteadores das estepes, os ex-mercenários de Almuric não lutaram contra eles. Esse povo selvagem e violento das estepes não seguia nenhuma lei, exceto seu próprio código peculiar. Vivendo ao longo do caudaloso Rio Zaporoska, cujas nascentes ficavam na fronteira leste de Koth e cujo curso seguia para sudeste ao longo das estepes até o Mar de Vilayet, os kozakis atacavam incessantemente as fronteiras turanianas, retirando-se para a estepe quando derrotados. O Povo Livre totalizava dezenas de milhares de bandoleiros das estepes. Dividiam-se em vários bandos, cada um tendo seu próprio líder ou hetman. Um deles era o renegado hiperbóreo Olgerd Vladislav, a quem os Companheiros Livres finalmente encontraram.

Ele era tão alto quanto Conan, embora não tão musculoso. Tinha os ombros largos e o corpo sólido. A barba escura e curta não disfarçava por completo a projeção agressiva de seu queixo, e seus olhos cinzentos e frios eram penetrantes como uma espada.

Quando Venilia o reviu, Olgerd a esbofeteou.

- Vadia! – exclamou o hiperbóreo. – Já não lhe disse para não se afastar demais do nosso acampamento?

Indignado, Conan arremessou uma pedra na testa do hetman de olhos cinzas, e este caiu inconsciente. Automaticamente, aqueles homens, de turbantes e roupas de seda, com cores tão variadas quanto sua etnia, desembainharam suas cimitarras.

- Ficou louco, Conan? – exclamou Aristo. Logo, em tom diplomático, ele se dirigiu aos demais kozakis daquele bando e pediu para que todos relevassem o temperamento explosivo daquele cimério. Após uma breve conversa com o subchefe daquele bando, o líder dos Companheiros Livres conseguiu acalmar a tensão causada pelo bárbaro de olhos azuis (mesmo não deixando de dar razão a Conan), e lhe foi dada permissão para partir dali, com seu bando, sem luta.

- Por Mitra, Conan! – ralhou Aristo, enquanto ia embora. – Se você não lutasse como um regimento de demônios, juro por Mitra que já lhe teria enforcado!

O cimério sorriu. Seria mais fácil um cavalo ter chifres do que conseguirem arrastar aquele bárbaro para qualquer patíbulo. Dias depois, não tendo encontrado nenhum parente ou aliado entre os kozakis, Aristo criou uma base para si mesmo e seus Companheiros Livres, cinco quilômetros ao norte do Rio Ilbars, e a 20 km a oeste da fronteira turaniana, entre as estepes e os pântanos. Uma vez estabelecido o acampamento, ele e seus bandoleiros voltaram a saquear os confins de Turan, Koth e Zamora.

* * *

Era noite na cidade de Akif, ao norte de Turan.

Os aposentos de Shah Amurath, lorde daquela cidade, consistiam numa câmara de azulejos azuis, cujas janelas de arcadas de ouro davam para amplas galerias, sombreadas por ciprestes e refrescadas pelo sussurrar da água em ruidosas fontes prateadas dos jardins púrpuras de Akif. Os aposentos deles também davam para o serralho.

Naquele serralho, uma jovem esguia, de pele branca, e cabelos e olhos escuros, encontrava-se totalmente nua e acorrentada sobre um colchão, com os pulsos e tornozelos presos a quatro estacas fincadas no chão polido.

O nome da jovem cativa era Olívia. Uma das filhas do rei Thelrus, de Ophir, seu pai a vendera a um chefe shemita, porque ela não queria se casar com um príncipe de Koth. Mas o homem do deserto não havia maltratado a jovem, pois ele queria cair nas boas graças de Shah Amurath, e ela era um dos presentes que ele trazia para Akif dos jardins púrpuras. E, ao ver o brilho no olhar daquele homem alto, esguio e forte, de olhos castanhos, Olívia de Ophir notara que não ficaria intocada por muito tempo. Após ter sido violentada pelo senhor de Akif, a ex-nobre percebia que nenhuma humilhação, tormento, dor ou degradação que Shah Amurath lhe infligia parecia satisfazer o líder turaniano.

Naquele momento, uma mulher nua, de 200 kg e nádegas enormes estava sentada sobre o rosto da bela ex-princesa. Quando esta não agüentava mais o sufocamento, o infame Shah Amurath – que só sentia prazer com o sofrimento da hiboriana – mandou a mulher obesa sair de cima da bela face de Olívia, na qual a enorme mulher flatulou logo em seguida, arrancando uma careta de nojo da jovem esguia.

- Agora beije e lamba o ânus dela de novo, sua vadia! – ordenou o senhor de Akif. – Senão, vou lhe estuprar novamente.

Contra a vontade – e levada pelo desespero e falta de escolha –, a enojada ophiriana obedeceu à ordem de seu amo, dando prazer à mulher que fazia o rosto da ex-princesa sofrer. A gorda gargalhava de desejo, prazer e zombaria, juntamente com Shah Amurath, e este mandou que as duas fizessem tudo de novo, até a obesa turaniana ter um orgasmo no rosto da torturada jovem desnuda, a qual ainda foi forçada a agradecer por toda aquela humilhação – como havia sido em todas as outras que lhe foram feitas antes.

Então, a mulher de duzentos quilos se vestiu, deixando Shah Amurath e Olívia a sós. O senhor de Akif se despiu, e Olívia, ao ver que seu amo iria possuí-la de novo, arregalou os olhos escuros.

- Mas... você prometeu... – a ophiriana gaguejou, com a voz carregada de medo.

- Eu menti – respondeu Amurath, com um sorriso perverso.

Então, a noite foi invadida por um grito de agonia e desespero, a ecoar apavorante pelo palácio, enquanto Olívia sentia os braços do turaniano lhe apertarem o corpo esguio. Após a dor de um novo estupro – ainda pior que o anterior, pois, desta vez, seu amo a sodomizara –, a ex-princesa era agora invadida por terror e vergonha, ao encarar os olhos zombeteiros e lascivos de Shah Amurath, quando este lhe ejaculou no rosto, fazendo os olhos de Olívia arderem em contato com seu sêmen – e logo depois, ele ordenou que cinco de seus guardas fizessem o mesmo na bela face da jovem, deliciando-se ao ver a expressão de nojo e vergonha da moça, ao ter seu rosto lambuzado por mais jatos de esperma.


E todas as noites, em algum momento antes do amanhecer, Amurath ia ao seu harém e a acordava na escuridão, para montá-la tão implacavelmente quanto montava seu cavalo Irem. Agora ele a possuía quase sempre por trás, como se Olívia fosse um animal. A ex-princesa usava a almofada de seu leito para abafar o choro e enxugar as lágrimas. Quando terminava, Shah Amurath se retirava do serralho e voltava aos aposentos reais.


5)

As estacas da paliçada de um forte turaniano pareciam apunhalar o ventre róseo do céu da alvorada. Em seu interior, soavam ocasionais vozes e ruídos abafados da movimentação de homens e animais. Além da fortaleza, dormitando com serenidade e aparente segurança, encontrava-se uma aldeia, que fornecia alimentos e serviços.

Quando o portão se abriu para dar passagem a cinco soldados a cavalo, os quais iam inspecionar a aldeia que começava a acordar, todos eles, bem como as sentinelas do portão, foram atingidos mortalmente por flechas que saíram de arbustos não muito distantes dali. Súbito, daqueles mesmos arbustos, saíram vários homens armados com espadas e machados. À sua frente, um cimério armado com uma espada na mão direita, e um machado na esquerda, abriu as entranhas encouraçadas de um guerreiro turaniano a cavalo e o crânio de outro que o atacou a pé.

Logo, a investida dos Companheiros Livres forte adentro assumiu a forma de uma verdadeira enxurrada de sangue. Cabeças e membros decepados, bem como tripas, vísceras e miolos derramados, se misturaram ao vermelho que tingia o chão da fortaleza. Momentos depois, seguindo as ordens do líder ali presente, Conan seguiu até a aldeia. Chegando a uma choupana erguida à sombra da paliçada, o bárbaro viu três homens prestes a violentarem uma jovem aldeã turaniana.

Chutando a perna de um e abrindo a cabeça de outro com seu machado, o cimério exclamou aos dois restantes:

- Voltem imediatamente à luta, e eu esqueço o que acabei de ver!

- Você nem vai viver para nos denunciar, Conan – respondeu, desembainhando a espada, o Companheiro Livre que ainda estava de pé.

Então, após menos de um minuto cruzando espadas com o cimério, o quase-violador errou um golpe de espada dirigido ao pescoço do bárbaro ocidental, ficando por um segundo com a guarda aberta – tempo suficiente para Conan lhe derramar as tripas num giro sangrento de sua espada. O único sobrevivente, apesar de caído, tentou arremessar seu machado no cimério, mas foi morto por um golpe descendente da cimitarra de Mosiah em sua cabeça.

Logo, metade das riquezas do forte foi saqueada, e os homens, mulheres e crianças da aldeia, bem como as mulheres e crianças do forte, foram poupados por sugestão de Conan, e incorporados aos Companheiros Livres, dentre os quais os aldeões sabiam que ia ter muito mais liberdade do que com seus falecidos patrões. O principal argumento do cimério para seu líder poupar parte da fortaleza era o fato de que um local totalmente destruído não teria condições de recuperar totalmente suas riquezas, para ser novamente saqueado no futuro.

* * *

- Quer dizer que um renegado da Hiperbórea, e líder de bandoleiros das estepes quer uma audiência comigo? – Perguntou Shah Amurath em tom de mofa, sentado em seu trono. – Eu deveria enforcar tanto você quanto este seu companheiro shemita. De qualquer forma, posso saber o que você quer, em troca da sua traição em abandonar seus próprios companheiros kozakis, Olgerd Vladislav?

- Na verdade, grande Shah e lorde de Akif – respondeu o hetman ocidental, da forma decorosa que somente um ex-nobre saberia usar, ao mesmo tempo em que apalpou a testa enfaixada –, gostaria de vos comunicar que sei a localização dos Companheiros Livres, os quais, segundo meus informantes, espoliaram muito mais turanianos do que qualquer membro do Povo Livre.

- Há! – riu Amurath. – Povo Livre, Companheiros Livres, kozakis... Para mim, é tudo a mesma laia! – ele acrescentou, embora não disfarçasse o brilho de interesse nos olhos castanhos. – O Rei Yildiz até já me encarregou de localizar e eliminar aqueles cães do oeste, que, desde que vieram, causaram mais estrago em Turan do que a própria corja que lideras. Onde estão aqueles bastardos?

- Acampados cinco quilômetros ao norte do Rio Ilbars, entre os pântanos e as estepes, segundo meus batedores – respondeu o kozak. – E apenas vinte quilômetros a oeste da fronteira norte de Turan. Parece que os cães resolveram criar uma sede para continuarem saqueando as fronteiras de Zamora, Koth e, é claro, dos domínios de Sua Majestade, o Rei Yildiz de Turan. Quanto ao que eu gostaria em troca, solicito apenas salvo-conduto, para mim e meu amigo Yusuf... que tem amigos entre os zuagires... para podermos deixar as estepes e irmos para o deserto, a sudoeste.

Shah Amurath riu novamente:

- Ou seja: você e seu amigo de Shem querem apenas trocar uma vida de bandoleiro por outra – gargalhou o Lorde de Akif. – Combinado, então, Olgerd. Entrarei em contato com o Rei Yildiz, e o salvo-conduto de vocês dois será providenciado.

Fazendo uma profunda reverência ao Shah Amurath, o hiperbóreo e seu amigo shemita partiram dali, devidamente escoltados.

* * *

- Os turanianos estão chegando! – exclamou um esbaforido guarda jovem, aos Companheiros Livres, pouco antes do desjejum. – E estão cercando nosso acampamento!

- São quantos? – perguntou laconicamente Aristo.

- Uns 15 mil, chefe!

- Mande fazerem formação de falange, ao redor do nosso acampamento.

- Conan já está fazendo isso, chefe!

Aristo saiu imediatamente do acampamento, e viu a forte linha de defesa que o cimério organizara ao redor. Apesar da situação de desvantagem, o líder dos Companheiros Livres sorriu orgulhoso e assumiu o comando. Lutando como uma unidade inseparável, todos os ex-mercenários resistiam bravamente contra a arremetida da infantaria turaniana, constituída por cinco mil homens blindados em cota-de-malha.

- Veja! – disse Aristo a Conan e aos Companheiros Livres mais próximos, enquanto lutava. – Aquele homem magro e alto, de bigode e usando cota-de-malha da cabeça aos pés... Aquele canalha é Shah Amurath, lorde de Akif, montado tranqüilo em seu cavalo, enquanto seus homens lutam por ele. Covarde maldito!

Cada Companheiro Livre protegia a si mesmo e ao companheiro de luta ao lado, da coxa até o pescoço, com seu escudo, enquanto arremetia impiedosamente sua lança contra os adoradores de Tarim. Enquanto isso, o homem, que Aristo mostrara a Conan, cavalgou até os ex-mercenários com uma bandeira branca na mão, fazendo a luta cessar. Dirigindo-se aos Companheiros Livres, ele exclamou:

- Kozakis, entreguem suas armas!

A resposta foi uma flecha, arremessada por um dos homens de Aristo no pescoço de um dos guarda-costas de Amurath. Todos os Companheiros Livres reassumiram a formação de falange, enquanto Conan bradou:

- Peguem-nas, se puderem, janotas hirkanianos!

Cavalgando a toda velocidade até uma distância segura, o Lorde de Akif deu ordens para sua infantaria continuar o ataque. Mais uma vez, os turanianos colidiram seus escudos contra os dos homens de Aristo. Apesar do impacto, os Companheiros Livres não cediam um palmo e cobravam pesado tributo entre aqueles imperialistas vestidos em aço, seda e ouro.

- Isso é o melhor que podem fazer? – escarneceu um kothiano.

Aristo teve seu ombro arranhado por uma lança turaniana. Urrando de fúria, o líder zaporoskano arremeteu sua própria lança e a puxou ensangüentada, enquanto o inimigo que o ferira cambaleava para trás, apertando o peito cujo coração fora mortalmente perfurado. Novos golpes de lança e espada transpassaram e deceparam os turanianos que atacavam os Companheiros Livres, enquanto gritos de morte e vitória, misturados a clangores metálicos, invadiam as estepes.

- Sem prisioneiros! – gritou Mosiah.

- Sem misericórdia! – urrou Conan, saindo da falange e espetando fatalmente as tripas de um adorador de Tarim e de mais outros. Embora Leander, como todo gunderlandês, fosse um excelente lanceiro, o cimério era ainda melhor que ele, na força, rapidez e habilidade com a lança. Naquele momento, Leander começou a ter uma vaga idéia de um dos motivos pelos quais os cimérios haviam, dez anos antes, destruído o Forte Venarium, construído por seus conterrâneos e cuja história lhe chegara aos ouvidos bem antes do Rei Vilerus da Aquilônia tomar conhecimento dela – vez que a Gunderlândia ficava bem mais próxima do agora destruído forte do que Tarantia.

Ainda mais implacável que os melhores lanceiros aliados, Conan havia matado quase o dobro da quantidade de turanianos que Leander mandara para o inferno. Após arremessar sua lança no pescoço de um dos inimigos, o cimério desembainhou sua espada e, derrubando um rival com seu enorme escudo, abriu-lhe o crânio e rosto, numa explosão de faíscas, sangue e miolos. Enquanto isso, Mosiah perfurava a jugular de um turaniano com sua lança, e Svarog decepava a cabeça de outro com sua espada.

- Retomar formação de falange! – bradou Aristo, reorganizando as fileiras dos Companheiros Livres. Mas, ao ver que a luta já estava perdida antes mesmo de começar, e que tudo o que poderia fazer era matar o máximo possível de inimigos antes de morrer, o líder dos ex-mercenários se juntou àqueles seis guerreiros à sua frente, que lutavam como possessos, e tentou não pensar no destino das poucas mulheres e crianças daquele acampamento cercado por inimigos, depois que ele e seus guerreiros defensores tombassem.

Esquivando-se de golpes de iatagãs, Conan derrubou vários turanianos de suas selas, com golpes estripadores de sua espada, tingindo as estepes de sangue, e decepando braços, cabeças, mãos e cortando corpos turanianos ao meio, na altura da cintura. Enquanto isso, Aristo tentou transpassar um dos adoradores de Tarim com sua lança, mas este a cortou num só golpe de seu sabre. Em seguida, o líder zaporoskano teve seu cérebro perfurado por uma seta inimiga.

Murianos estripou um turaniano, mas foi morto por uma flecha na nuca, cuja ponta se projetou pela boca do coríntio num jato vermelho. Conan, Demétrius e Svarog foram acuados por um grupo de turanianos; mas, para a sorte dos três, nenhum deles usava arco; mas Demétrius sim, e com sua mira certeira, acertou duas flechas ao mesmo tempo – uma na testa de cada rival. O cimério decepou a cabeça de outro, ao mesmo tempo em que estrangulava mais outro, até lhe quebrar o pescoço num estalo seco.

Num só golpe de sua espada, o hiperbóreo transpassou mais dois adoradores de Tarim, enquanto Conan ia acumulando, aos seus pés, uma pilha cada vez maior de cadáveres vestidos em aço, seda e ouro. Súbito, Demétrius teve seu estômago atravessado por meio metro da lâmina de um iatagã. Outro turaniano, atrás do aquiloniano, lhe decepou a cabeça loira num só golpe. Enquanto isso, Svarog teve o pescoço, testa e queixo atingidos fatalmente por flechas turanianas. O cimério o vingou, abrindo a cabeça daquele único turaniano armado com arco.

Então, vieram novas levas turanianas, desta vez só de arqueiros montados – a principal base militar dos adoradores de Tarim. Eram dez mil homens. Mosiah e Leander foram os primeiros a serem abatidos pela chuva de flechas, que caiu sobre eles e seus aliados.

As estepes ficaram cobertas de cavaleiros que perseguiam, cegavam, aleijavam e mutilavam os fugitivos. O céu se cobriu de abutres negros, enquanto a cavalaria turaniana atropelava as falanges dos ex-mercenários. Quando as fileiras dos Companheiros Livres se romperam completamente, após terem lutado um dia inteiro, alguns tentaram fugir para o norte e outros para o oeste. Enquanto isso, as mulheres do acampamento eram violentadas e mortas pelos turanianos, os quais matavam as crianças com a mesma falta de piedade com a qual exterminavam homens e mulheres. Após presenciar, sem nada poder fazer, Shah Amurath esquartejando os Companheiros Livres sobreviventes entre cavalos selvagens, Conan mergulhou fundo no Rio Ilbars, a fim de evitar as flechas que zuniam ao seu redor, e fugiu para onde os turanianos menos esperavam: leste; em direção aos pântanos que cercavam o Mar de Vilayet.


* * *

Dias depois, na cidade de Akif, a pele jovial de Olívia ainda tremia e se arrepiava com as lembranças das dores, humilhações e degradações que lhe foram infligidas por Shah Amurath. Este havia acabado de retornar triunfante de sua vitória sobre os Companheiros Livres, e foi feita uma grande festa no seu palácio em Akif, para homenageá-lo. Havia salas bem decoradas com ouro e prata, e a companhia das concubinas dos chefes. Em meio às bebedeiras e comemorações, Olívia encontrou uma oportunidade para descer do palácio por uma corda feita de tiras de tapeçarias rasgadas, e a sorte a levara a um cavalo. Depois de algumas horas de cavalgada, a ex-princesa percebeu, para sua surpresa, que, apesar de ter conseguido escapar dos vassalos de Shah Amurath, este se encontrava cada vez mais próximo dela. Não demorou muito para que a perseguição os levasse até os pântanos ao redor do Mar de Vilayet.

Entretanto, a cena estava sendo espionada, de entre os juncos, por um homem empastado de lama e sangue secos. Havia dois dias que os cavaleiros turanianos haviam deixado de vasculhar os mangues. Após tanto tempo rastejando e se escondendo como uma serpente, entre arbustos espinhosos e sob rochas, enquanto as formigas lhe comiam a carne, e comendo ratazanas almiscaradas às quais não podia cozinhar por falta de fogo e por causa das patrulhas, aquele observador escondido havia encontrado uma barca escondida entre os juncos ao amanhecer. Ao ver – e reconhecer – o homem que perseguia a jovem, uma histeria de fúria e ódio – na qual se refletiam sofrimentos de batalha, massacre, tortura e uma fuga temerosa e alucinada, em meio à sede e à fome – tomou conta do cimério. Finalmente, havia chegado sua vez!


Epílogo: Logo depois, o cimério mata Shah Amurath e liberta sua prisioneira, a ex-princesa Olívia de Ophir. Fugindo em um barco a remo pelo Mar de Vilayet, os dois buscam refúgio numa ilha assombrada por estátuas de ferro que ganham vida e por um imenso macaco devorador de homens. Sobrevivendo às duas ameaças, Conan se faz capitão de uma tripulação de piratas do Vilayet e anuncia sua intenção de tornar a vida do rei Yildiz ainda mais insuportável (A Ilha dos Desesperados/ http://cronicasdacimeria.blogspot.com.br/2007/06/ilha-dos-desesperados-iron-shadows-in.html/ Sombras de Ferro na Lua/ Conan O Cimério, Vol. 2, Ed. Conrad).




Agradecimento especial: Ao howardmaníaco Fred Blosser, e aos howardmaníacos e amigos Deuce Richardson e Dale Rippke.





A Seguir: Traição no Vilayet!


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