Agnes, A Espadachim

(por Robert E. Howard)



1) Res Adventura
- AGNES! Sua filha ruiva do diabo, onde está você?

Era meu pai, me chamando na sua forma habitual. Lancei para longe de meus olhos os cabelos molhados de suor, e voltei a apoiar o feixe de lenha em meu ombro. Havia pouco descanso em minha vida.

Meu pai afastou os arbustos e adentrou a clareira – era um homem alto, magro e amargo, bronzeado pelos sóis de muitas campanhas, marcado por cicatrizes adquiridas a serviço de reis e duques avarentos. Ele franziu a testa para mim e, honestamente, eu mal o reconheceria se usasse outra expressão.

- O que está fazendo? – ele rosnou.

- Você me mandou buscar madeira na floresta. – respondi, de mau humor.

- Acaso mandei você se ausentar o dia todo? – ele rugiu, tentando me dar um tapa na cabeça, ao qual evitei com a habilidade adquirida de longa prática – Já esqueceu que hoje é seu dia de casamento?

Diante disso, meus dedos afrouxaram e a corda escapuliu por entre eles; o feixe de lenha rolou ao chão e se esparramou. A cor dourada desapareceu do sol, e a alegria sumiu do cantar dos pássaros.

- Eu havia esquecido. – sussurrei, com os lábios subitamente secos.

- Bem, recolha seus galhos e venha comigo. – ele disse, carrancudo – O sol se põe a oeste. Sua égua ingrata e sem vergonha, que obriga seu pai a arrastar os velhos ossos pela floresta, para levá-la ao seu marido!

- Marido! – murmurei – François! Pelos cascos do demônio!

- Você pragueja, vagabunda? – rosnou meu pai – Devo lhe dar outra lição? Você zomba do homem que escolhi para você? François é o melhor jovem que você pode achar em toda Normandia.

- Um porco gordo – murmurei –; um suíno comilão, beberrão e preguiçoso!

- Silêncio! – ele gritou – Ele será o apoio de minha velhice. Já não consigo mais guiar a relha do arado. Meus velhos ferimentos me doem. O marido de sua irmã, Ysabel, é um cão; não me servirá de ajuda. François será diferente. Ele vai te domar, eu garanto. Não vai fazer suas vontades, como eu fiz. Você experimentará o bastão na mão dele, minha bela dama.

Diante daquilo, uma bruma vermelha ondulou pelos meus olhos. Era sempre assim, diante de tal conversa de domesticar. Joguei ao chão a lenha à qual eu pegara mecanicamente, e todo o fogo em meu sangue correu até meus lábios.

- Ele pode apodrecer no inferno, e você com ele! – guinchei – Não me casarei com ele. Me bata... me mate! Faça o que quiser comigo! Mas nunca dividirei a cama com François!

Diante disso, o inferno flamejou nos olhos de meu pai, de modo que eu tremeria, se não fosse a loucura que se apossara de mim. Vi, refletidas lá, toda a fúria, violência e paixão que o dominavam quando ele saqueava, matava e violentava como Companheiro Livre. Com um rugido inarticulado, investiu contra mim e dirigiu um golpe em minha cabeça com o punho direito. Evitei a pancada, e ele atacou com o esquerdo. Novamente, seu punho acertou o vazio, enquanto eu me esquivava; logo, com um grito que parecia o uivo de um lobo, ele me agarrou o cabelo solto com seus dedos, enrolando minhas tranças ao redor da mão e puxando violentamente minha cabeça para trás, até eu pensar que meu pescoço ia se quebrar; e ele me bateu no queixo com o fechado punho direito, de modo que a luz do sol desapareceu numa onda de escuridão.


Devo ter ficado sem sentidos por algum tempo – longo o bastante para meu pai me arrastar, pelo cabelo, da floresta até a aldeia. Recobrar os sentidos após uma surra não era uma experiência nova, mas eu estava nauseada, fraca e tonta, e meus membros doíam por causa do chão áspero sobre o qual ele me arrastara. Eu estava deitada dentro de nossa cabana miserável e, quando me ergui, vacilante, para me sentar, percebi que minha modesta túnica de lã me havia sido tirada, e que eu vestia adereços de casamento. Por São Denis, a sensação dela era mais repugnante que o toque escorregadio de uma serpente, o pânico rapidamente tomou conta de mim, e eu a teria arrancado; mas logo tontura e náuseas me dominaram, e caí de volta com um gemido. E uma escuridão, mais profunda que a de um homem machucado, caiu sobre mim – eu havia caído numa armadilha, na qual me debatia em vão. Toda a força me abandonou, e eu teria chorado se pudesse. Mas eu nunca consegui chorar; e agora eu estava moída demais para praguejar, e jazia olhando fixa e silenciosamente para as vigas da cabana, roídas pelos ratos.

Pouco depois, estava consciente de que alguém entrava na sala. De fora, havia sons de conversa e gargalhada, enquanto as pessoas se reuniam. Quem havia adentrado a cabana era minha irmã Ysabel, carregando o filho mais novo no quadril. Ela baixou o olhar para mim, e eu notei o quão encurvada ela estava, o quanto suas mãos estavam ásperas de trabalho duro, e o quanto suas feições estavam marcadas pelo cansaço e pela dor. As roupas de festa que ela vestia pareciam ressaltar tudo aquilo; eu não havia percebido seu estado quando ela vestia suas típicas roupas camponesas.

- Estão preparando o casamento, Agnes. – ela disse, com sua maneira hesitante de falar. Não respondi. Ela pôs o bebê no chão e se ajoelhou ao meu lado, olhando para o meu rosto com uma estranha melancolia.

- Você é jovem, forte e viçosa, Agnes. – ela disse, mas eu achei que ela falava mais consigo mesma do que comigo – Quase bonita em seu vestido de noiva. Não está feliz?

Fechei meus olhos com cansaço.

- Você deveria rir e estar alegre. – ela suspirou... mas ela mais parecia gemer – Isto só acontece uma vez na vida de uma garota. Você não ama François. Mas eu também não amava Guillaume. A vida é dura para uma mulher. Seu corpo alto e flexível vai se encurvar como o meu, e se amortecerá carregando crianças; suas mãos ficarão torcidas... e sua mente ficará estranha e triste... com o trabalho duro e o cansaço... e o rosto de um homem a quem odeia, sempre ao alcance de sua vista...

Ao ouvir isso, abri os olhos e mirei-a fixamente.

- Sou apenas alguns anos mais velha que você, Agnes. – ela murmurou – Mas olhe para mim. Gostaria de ficar como eu?

- O que uma garota pode fazer? – perguntei desesperada.

Seus olhos arderam, mirando os meus com uma sombra da ferocidade que eu tão freqüentemente vira arder nos olhos de nosso pai.

- Uma coisa! – ela sussurrou – A única coisa que uma mulher pode fazer para se libertar. Não se agarre a vida, para ficar como nossa mãe ou sua irmã; não viva para ficar como eu. Parta, enquanto você é forte, flexível e bonita. Aqui!

Ela se inclinou rapidamente, pressionou algo dentro de minha mão, e logo pegou o filho e foi embora. Fiquei deitada, olhando fixamente a adaga de lâmina fina em minha mão.

Ergui o olhar para o teto sujo, e entendi o que ela quis dizer. Mas, enquanto eu jazia lá, com meus dedos enroscados ao redor do fino cabo da adaga, pensamentos estranhos e desconhecidos me inundaram a mente. O contato com aquele cabo fez as veias do meu braço formigarem; uma estranha sensação de familiaridade, como se liberasse uma série sombria de pensamentos que eu não conseguia entender, mas de alguma forma sentir. Eu nunca havia manuseado uma arma antes, nem qualquer objeto com lâmina que não fosse um machado de lenhador ou uma faca de cozinha. Aquela coisa fina e mortal, tremeluzindo em minha mão, parecia de alguma forma com um velho amigo, retornando à sua casa.

Do lado de fora, vozes se erguiam e pés se arrastavam, e eu rapidamente escondi a adaga em meu peito. A porta se abriu, dedos se agarraram à soleira e rostos me espiaram. Vi minha mãe, impassível e sem cor, um animal de carga com as mesmas emoções de um animal de carga; e, sobre o ombro dela, minha irmã. E vi uma súbita decepção e uma mágoa assombrosa lhe inundarem a expressão, ao me ver ainda viva; e se afastou.

Mas os outros invadiram a cabana e me arrastaram da cama, rindo e gritando em sua alegria camponesa. Se eles atribuíram minha relutância à timidez virginal, ou conheciam meu ódio por François, pouco importava. O punho de ferro de meu pai estava em um de meus pulsos, e uma espécie de égua barulhenta em forma de mulher me agarrava o outro pulso, e assim me arrastaram para a frente, da cabana até um círculo de gente que gritava e ria, e que já estavam mais do que meio bêbados – homens e mulheres. Seus gracejos rudes e comentários obscenos caíam sobre ouvidos desatentos. Eu me debatia como uma coisa selvagem – cega e desprovida de razão –, e foi necessária toda a força de meus captores para me levarem. Ouvi meu pai me amaldiçoando em voz baixa, e ele torceu meu pulso como se quisesse quebrá-lo, mas tudo que ele arrancou de mim foi uma praga ofegante, mandando sua alma ao inferno que merecia.

Vi o padre se aproximando: um velho imbecil e mirrado, que piscava muito os olhos, e ao qual eu odiava tanto quanto a todos eles. E François estava vindo ao meu encontro, com casaco e calças novas, e com uma coroa de flores ao redor do gordo pescoço vermelho; e aquele sorriso afetado em seus grossos lábios expandidos fez minha pele arrepiar. Lá estava ele, sorrindo como um macaco sem mente, mas com triunfo vingativo e intenções libidinosas em seus pequenos olhos de porco.

Ao vê-lo, parei de me debater, como se privada repentinamente da capacidade de me mover, e meus captores me soltaram e recuaram; e assim, eu o fiquei encarando por um instante, quase agachada, olhando ferozmente e sem palavras.

- Beije-a, rapaz! – berrou um bronco bêbado.

Então, como uma mola encolhida que subitamente se solta, puxei bruscamente a adaga de meu peito e saltei sobre François. Meu gesto foi rápido demais para aqueles palhaços lerdos entenderem, e menos ainda evitarem. Minha adaga estava enfiada em seu coração de porco, antes que ele percebesse que eu o havia golpeado; e gani em louca alegria, ao ver a estúpida expressão de incrédula surpresa e medo lhe inundarem o rosto vermelho, enquanto eu puxava a adaga e ele caía, gorgolejando como um porco apunhalado, e jorrando sangue entre seus dedos que se retorciam – e que agarravam pétalas de seu colar de núpcias.

Levaria muito tempo para contar tudo, mas tudo aconteceu em um instante. Saltei, golpeei, puxei a faca e fugi. Meu pai, que havia sido soldado – mais rápido e agudo na ação que os outros –, gritou e saltou para me pegar, mas suas mãos tateantes só agarraram o vazio. Disparei, através da multidão assustada, para dentro da floresta e, enquanto eu alcançava as árvores, meu pai pegou um arco e me disparou uma flecha. Me esquivei para um lado, e a seta se cravou perversamente numa árvore.

- Bêbado estúpido! – gritei, com um guincho estridente de risada selvagem – Você está caduco, para errar um alvo desses!

- Volte aqui, sua vagabunda! – ele rugiu, louco de raiva.

- Vá para os fogos do inferno – repliquei –, e que o diabo se banqueteie com seu coração negro!

E aquele foi meu adeus ao meu pai, enquanto eu dava a volta e fugia através da floresta.

Qual a distância que percorri, eu não sei. Atrás de mim, eu ouvia os uivos dos camponeses, e sua perseguição vacilante e descuidada. Logo, só os gritos, cada vez mais distantes e afastados; e logo, até eles pararam. Pois poucos dos valorosos camponeses tinham estômago para me seguirem até as profundezas da floresta, onde as sombras já se moviam furtivamente. Corri até minha respiração se transformar em arfadas dolorosas, e meus joelhos vergarem, me lançando violentamente ao suave marga atapetado de folhas, onde jazi meio desmaiada, até a lua se erguer, colorindo os galhos mais altos com gélida prata e destacando ainda mais as sombras. Ao meu redor... ouvi farfalhares e movimentos que anunciavam feras selvagens, e talvez coisas piores: lobisomens, duendes e vampiros, pelo que eu sabia. Mas eu não tinha medo. Eu já havia dormido antes na floresta, quando a noite me surpreendia longe da aldeia com minha carga de lenhas, ou quando meu pai, cheio de bebida, me expulsava da cabana.

Levantei-me e continuei andando, através do luar e da escuridão, sem me importar muito com a direção, para colocar a máxima distância possível entre eu e a aldeia. Na escuridão que precede a aurora, o sono me dominou e, me lançando ao solo fofo, caí em sono profundo, sem me importar se alguma fera ou vampiro me devoraria antes do dia nascer.

Mas, quando a aurora se ergueu sobre a floresta, eu estava viva e intacta, e dominada por uma fome terrível. Fiquei sentada, me interrogando diante da estranheza de tudo, mas logo a visão de meus trajes rasgados de noiva, e da adaga incrustada de sangue em meu cinto, trouxe tudo de volta. E eu ri novamente, ao me lembrar da expressão de François quando ele caiu, e uma selvagem onda de liberdade me inundou, a ponto de sentir vontade de dançar e cantar como uma louca. Mas, ao invés disso, limpei a adaga em algumas folhas verdes e, colocando-a novamente em meu cinto, fui em direção ao sol nascente.

Dentro em pouco, alcancei uma estrada que serpenteava através da floresta, e fiquei contente, porque meus sapatos de noiva, por serem de tecido inferior, estavam despedaçados. Eu estava acostumada a andar descalça, mas, mesmo assim, os espinhos e gravetos da floresta me feriam os pés.

O sol ainda não estava alto, quando cheguei a uma curva da estrada – que, de fato, era pouco mais que uma trilha de floresta – e ouvi o som de cascos de cavalo. O instinto me dizia para me esconder nos arbustos. Mas outro instinto me deteve. Eu procurava por medo em minha alma, e não o encontrei. Desse modo, fiquei no meio da trilha, imóvel, com a adaga na mão, quando o cavaleiro apareceu pela curva da vereda, e ele puxou bruscamente as rédeas, com uma praga assustada.

Ele me encarou e lhe devolvi o olhar, calada. Era bonito, de uma forma obscura, tinha altura mais que mediana e era um pouco magro. Seu cavalo era um magnífico garanhão negro, com arreios de couro vermelho e metal brilhante, e o montador vestia calças justas de seda e um casaco de veludo, meio surrado, com uma capa escarlate lhe caindo ao redor e uma pluma no chapéu. Não usava talabarte (1), mas uma espada lhe pendia do cinto, numa bainha de couro desgastado.

- Por São Denis! – ele exclamou – Que espírito da floresta, ou deusa da aurora, você é, garota?

- Quem é você para perguntar? – indaguei, sem sentir medo nem timidez.

- Ora, sou Etienne Villiers, outrora da Aquitânia. – ele respondeu e, no momento seguinte, mordeu os lábios e sacudiu a cabeça, como se irritado por ter dito aquilo.

Em seguida, ele me olhou da cabeça aos pés, e riu.

- De que conto louco você saiu? – perguntou – Uma jovem ruiva, em esfarrapada roupa de noiva, com uma adaga na mão, nas florestas verdes bem ao nascer do sol! Isto é melhor que um romance! Venha, boa moça, me explique a pilhéria.

- Isto não é pilhéria. – sussurrei seriamente.

- Mas quem é você? – ele insistiu.

- Meu nome é Agnes de Chastillon. – respondi.

Ele riu e deu um tapa na própria coxa.

- Uma nobre dama disfarçada! – ele zombou – Por São Yves, a história fica mais interessante! De qual quarto escondido, em qual castelo guardado por um gigante, você escapou, nestes adornos de camponesa, minha dama?

E ele tirou o chapéu, fazendo uma reverência.

- Tenho tanto direito ao nome quanto muitos que usam títulos importantes. – respondi enraivecida – Meu pai era o filho bastardo de uma camponesa com o Duque de Chastillon. Ele sempre usou o nome, e suas filhas depois dele. Se não gosta de meu nome, siga seu caminho. Não pedi pra você parar e zombar de mim.

- Não, eu não pretendia zombar de você. – ele jurou, com seu olhar me percorrendo avidamente o corpo – Por São Trignan, você é digna de um nome da alta nobreza, mais do que muitas damas de origem nobre, que já vi sorrirem afetadamente e suspirarem por causa do título. Por Zeus e Apolo, você é uma moça alta e esbelta... por minha honra, um pêssego normando! Gostaria de ser seu amigo; diga-me, por que está sozinha na floresta a esta hora, com um vestido esfarrapado de noiva e sapatos gastos?

Ele desceu rapidamente do cavalo alto e ficou diante de mim, com o gorro na mão. Seus lábios já não sorriam, e seus olhos escuros não zombavam de mim, embora parecessem brilhar com algum fogo interior e errante. Suas palavras me lembraram subitamente o quanto eu estava sozinha e indefesa, sem nenhum lugar para ir. Talvez fosse natural que eu me desabafasse com o primeiro estranho amigável – além disso, Etienne Villiers tinha algo que induzia as mulheres a confiarem nele.

- Noite passada, fugi da aldeia de La Fere. – eu disse – Queriam me casar com um homem a quem eu odiava.

- E você passou a noite sozinha na floresta?

- Por que não?

Ele sacudiu a cabeça, como se fosse difícil acreditar.

- Mas o que vai fazer agora? – ele perguntou – Você tem amigos por perto?

- Não tenho amigos. – respondi – Continuarei meu caminho até morrer de fome, ou alguma outra coisa me acontecer.

Ele meditou por algum tempo, passando o polegar e indicador pelo queixo bem barbeado. Por três vezes, levantou a cabeça e percorreu o olhar sobre mim; e, por um momento, pensei ter visto uma sombra misteriosa lhe passar pelo rosto, fazendo-o, por um momento, quase se parecer com outro homem. Por fim, levantou a cabeça e falou:

- Você é uma garota bonita demais para morrer na floresta, ou ser pega por bandidos. Se você quiser, lhe levarei para Chartres, onde você pode encontrar trabalho como criada e ganhar a vida. É capaz de trabalhar?

- Nenhum homem em La Fere é melhor. – respondi.

- Por São Yves, eu acredito. – ele disse, balançando a cabeça em admiração – Há uma aura quase pagã ao seu redor, com sua altura e maciez. Venha, você confia em mim?

- Não quero lhe causar problemas. – respondi – Os homens de La Fere estarão me seguindo.

- Bah! – ele disse, com desdém – Quem já ouviu falar de um camponês se afastando mais de uma légua de sua aldeia? Você está suficientemente segura.

- Não de meu pai. – respondi sombriamente – Ele não é um simples camponês. Já foi um soldado. Ele me seguirá até bem longe e me matará quando me encontrar.

- Neste caso – murmurou Etienne –, precisamos achar uma maneira de enganá-lo. Ah! Eu tenho! Lembrei que, a menos de uma milha de distância, deixei um rapaz cujas roupas se ajustariam em você. Espere aqui até eu voltar. Vamos lhe transformar num rapaz.

Dito isto, ele deu meia volta e se afastou a galope; e eu o observava, me perguntando se eu iria vê-lo novamente, ou se ele havia apenas me ridicularizado. Esperei, e os cascos do cavalo sumiram à distância. O silêncio reinava na floresta verde, e senti uma fome feroz me atormentar. Então, depois do que pareceu um tempo infinito, os cascos do cavalo bateram novamente pela floresta, e Etienne Villiers veio a galope, rindo alegremente e agitando uma trouxa de roupas.

- Você o matou? – perguntei.

- Não! – riu Etienne – Mas eu o fiz seguir o caminho dele... chorando e tão nu quanto Adão. Aqui, moça, vá para aquele matagal e vista logo estas roupas. Devemos seguir nosso caminho, e são muitas léguas até Chartres. Jogue seus trajes de noiva para mim, e eu os deixarei na margem daquele rio que dá a volta pela floresta, a pouca distância daqui. Talvez o encontrem, e pensem que você se afogou.

Estava de volta antes que eu terminasse de vestir as estranhas roupas, e conversava comigo através das moitas que nos separavam.

- Seu venerado pai estará procurando por uma donzela. – ele riu – Não por um garoto. Quando ele perguntar aos fazendeiros se eles viram uma moça alta e de cabelos ruivos, todos negarão com as cabeças pontiagudas. Há, há, há! Pregaremos uma boa peça no velho patife.

Logo, saí dos arbustos, e ele me olhou firmemente ao me ver com camisa, calças e chapéu. Eu me sentia estranha com aquela roupa, mas a mesma me dava uma sensação de liberdade que eu nunca havia experimentado usando saias.

- Zeus! – ele murmurou – Este disfarce é menos perfeito do que eu esperava. O lavrador mais cego dos campos verá que essas roupas não cobrem um homem. Espere; deixe-me cortar essas mechas vermelhas com minha adaga; talvez isso lhe ajude.

Mas, quando cortou meu cabelo numa juba quadrada que mal me alcançava os ombros, ele encolheu os próprios ombros.

- Mesmo assim, você é toda uma mulher. – ele disse – Mas talvez um estranho, que passe apressadamente pela estrada, seja enganado. Temos que arriscar.

- Por que se preocupa comigo? – perguntei curiosa, pois eu não estava acostumada com tanta gentileza.

- Por quê? Por Deus! – ele disse – Iria um homem, digno do nome, deixar uma jovem garota perambular e morrer de fome na floresta? Minha bolsa tem mais cobre do que prata, e minha jaqueta de veludo está gasta, mas Etienne Villiers mantém sua honra tanto quanto qualquer cavaleiro ou barão de castelo; e não deixará um fraco sofrer, enquanto sua bolsa tiver uma moeda, ou sua bainha uma espada.

Ao ouvir aquelas palavras, me senti humilde e estranhamente envergonhada, pois eu era iletrada e sem instrução, e não tinha palavras para falar da gratidão que sentia. Cambaleei e gaguejei, e ele sorriu e gentilmente me calou, dizendo que não precisava de agradecimento, pois a bondade carregava sua própria recompensa.

Logo ele montou e me deu a mão. Saltei à sela atrás dele, e galopamos pela estrada, eu agarrada a seu cinto e meio envolvida pela capa que flutuava atrás dele na brisa da manhã. Tive certeza de que qualquer um que nos visse passar a galope, juraria ver um homem e um garoto, ao invés de um homem e uma jovem.

Minha fome aumentava enquanto o sol subia, mas a sensação não era incomum em minha vida, de modo que não me queixei. Estávamos viajando numa direção sudeste, e me parecia que, à medida que avançávamos, um estranho nervosismo se evidenciava em Etienne. Ele falava pouco, e evitava as estradas menos freqüentadas, seguindo muitas vezes caminhos de terra, ou trilhas de lenhadores que serpenteavam para dentro e para fora, por entre as árvores. Encontramos pouca gente – só camponeses com machados nos ombros, ou fardos de lenha nas costas, os quais ficavam boquiabertos diante de nós e tiravam seus gorros esfarrapados.

O meio-dia se aproximava quando paramos diante de uma taverna – dentro da floresta, solitária e isolada, cujo emblema era malfeito e quase apagado; mas Etienne a chamava de Os Dedos do Patife. O estalajadeiro saiu – um sujeito desajeitado, encurvado e pesado, com um olhar atravessado, enxugando as mãos em seu engordurado avental de couro, e balançando sua cabeça pontiaguda.

- Queremos comida e um quarto. – disse Etienne, em voz alta – Sou Gerard da Bretanha, nascido em Montauban, e este é meu jovem irmão. Estivemos em Caen, e estamos viajando para Tours. Cuide do meu cavalo e ponha um frango assado na mesa, taverneiro.

O estalajadeiro moveu a cabeça, resmungou e pegou as rédeas do garanhão. Mas ele se demorou, enquanto Etienne me tirava do cavalo, pois eu estava enrijecida pela longa cavalgada, e meu disfarce não era tão completo quanto eu esperava. Pois o longo olhar do taverneiro não era o que um homem lança a um garoto.

Ao entrarmos na taberna, vimos apenas um homem, sentado num banco e bebendo avidamente vinho de um odre – um homem gordo e bruto, com a barriga se projetando sobre o cinto de couro. Ele ergueu o olhar quando entramos, se sobressaltou e abriu a boca como se para falar. Etienne não lhe disse nada, mas o olhou fixamente, e eu vi – ou senti – uma rápida fagulha de entendimento passar entre eles. O gordo voltou silenciosamente ao seu odre de vinho, e Etienne e eu nos dirigimos à mesa, onde uma criada desleixada serviu o frango pedido, com ervilhas, rabanadas de pão, uma grande vasilha de dobradinha de Caen e dois jarros de vinho.

Caí avidamente sobre a comida, usando minha adaga, mas Etienne comeu pouco. Comia distraidamente, e seu olhar mudava de posição, do homem gordo no banco – o qual agora parecia dormir –, de volta para mim e em seguida para as janelas sujas, com suas vidraças em forma de losango, e até para cima, em direção às vigas manchadas de fumaça. Mas ele bebeu muito, enchendo seu jarro várias e várias vezes; e finalmente ele me perguntou por que não toquei no meu.

- Estava ocupada demais, comendo, para beber. – admiti, erguendo-o incerta, pois eu nunca antes havia bebido vinho. Toda a bebida alcoólica, que chegava à nossa miserável cabana, era engolida por meu pai. Esvaziei o copo, como eu o vira fazer, me sufoquei e asfixiei, mas achei o sabor penetrante agradável ao meu paladar.

Etienne praguejou em voz baixa:

- Por São Miguel, nunca vi, em toda a vida, uma mulher esvaziar um copo desse jeito! Você vai se embriagar, garota.

- Você esqueceu que não sou mais uma garota. – censurei no mesmo tom – Vamos prosseguir a cavalgada.

Ele sacudiu a cabeça.

- Ficaremos aqui até de manhã. Você deve estar cansada e precisando descansar.

- Meus membros estão rígidos porque não estou acostumada a cavalgar. – respondi – Mas não estou cansada.

- Apesar disso – ele disse, com um toque de impaciência –, devemos descansar aqui até amanhã. Creio que será mais seguro.

- Como queira. – respondi – Estou completamente em suas mãos, e gostaria de fazer só o que você mandar em tudo.

- Muito bem – ele disse –; nada como uma jovem que tem prazer em obedecer.

Erguendo a voz, ele chamou o taverneiro, que havia retornado dos estábulos e estava vacilante no fundo da sala.

- Taverneiro, meu irmão está cansado. Leve-o a um quarto onde ele possa dormir. Cavalgamos muito.

- Sim, excelência! – respondeu o estalajadeiro, movendo a cabeça e esfregando as mãos; pois Etienne tinha uma forma de impressionar pessoas comuns com sua pomposidade, como se fosse, no mínimo, um conde. Mas falaremos disso mais tarde.

O estalajadeiro caminhou desajeitadamente através de uma sala de teto baixo, vizinha à taberna, e que dava numa outra sala, mais espaçosa, acima. Ficava sob o telhado íngreme, e era pouco mobiliada; mas, mesmo assim, mais aprimorada que qualquer coisa à qual eu estivesse acostumada. Eu vi – pois, de alguma forma, comecei instintivamente a notar tais detalhes – que a única entrada ou saída era pela porta que dava para a escada de mão; só havia uma janela, e era pequena demais para deixar passar até mesmo minha figura delgada. E não havia ferrolho por dentro. Vi Etienne franzir a testa e lançar um rápido olhar suspeito para o estalajadeiro, mas aquele sujeito desajeitado parecia não perceber, enquanto esfregava as mãos e discursava sobre as excelentes qualidades da espelunca para a qual havia nos trazido.

- Durma, irmão. – disse Etienne, para que o taverneiro ouvisse; logo, ao virar-se, ele sussurrou em meu ouvido: – Não confio nele; iremos embora, assim que a noite cair. Descanse enquanto isso. Vou lhe buscar ao anoitecer.

Se foi por causa do vinho, ou de um cansaço inesperado, não sei dizer; mas, ao me deitar na cama de palha, sem me despir, caí no sono antes que percebesse, e dormi durante muito tempo.


2)

O QUE ME DESPERTOU foi o suave abrir da porta. Acordei na escuridão, pouco aliviada pela luz das estrelas na pequena janela. Ninguém falava, mas alguma coisa se movia no escuro. Ouvi uma viga ranger, e acreditei ouvir os sons de uma respiração abafada.

- É você, Etienne? – sussurrei. Não houve resposta, e falei um pouco mais alto – Etienne! É você, Etienne Villiers?

Eu parecia ter ouvido uma respiração sibilar suavemente entre dentes; e depois, a viga rangeu de novo e um passo furtivo se afastou de mim. Ouvi a porta se abrir e fechar suavemente, e percebi que estava sozinha no quarto. Me ergui de um salto, sacando minha adaga. Não era Etienne vindo me buscar, como ele me prometera, e quis saber quem havia tentado se aproximar furtivamente de mim na escuridão.

Deslizando até a porta, eu a abri e desci o olhar para o cômodo de baixo. Só vi escuridão, como se eu estivesse olhando para dentro de um poço, mas ouvi alguém se movendo pela sala, e depois tateando em direção à porta mais externa. Levando minha adaga entre os dentes, deslizei silenciosamente escada abaixo, com uma facilidade e discrição que me surpreenderam. Quando meus pés tocaram o chão, e agarrei a adaga com as mãos e me agachei no escuro, vi a porta se abrir e uma figura se destacar na entrada por um instante. Reconheci a figura encurvada e pesada do taverneiro. Ele respirava tão pesadamente, que não pôde ouvir os sons fracos que eu fazia. Ele correu desajeitada, porém rapidamente, pelo pátio atrás da taberna, e eu o vi desaparecer dentro dos estábulos. Observei, forçando meus olhos sob a fraca luz das estrelas, e logo ele saiu, trazendo um cavalo. Ele não montou no animal, mas o levou para dentro da floresta, mostrando total evidência de que desejava silêncio e segredo. Pouco tempo depois, ele havia desaparecido, e ouvi o som fraco de um cavalo a galope. Evidentemente, meu anfitrião havia montado após alcançar uma boa distância da estalagem, e agora cavalgava firmemente para alguma meta desconhecida.

Tudo que pude pensar era que, de alguma forma, ele me reconheceu, sabia quem eu era e estava cavalgando para avisar meu pai. Dei meia-volta e entreabri a porta, olhando atentamente para a taverna. Não havia ninguém lá, exceto a criada, dormindo no chão. Havia uma vela acesa sobre a mesa, e mariposas voando ao redor. De algum lugar de lá, veio um murmúrio fraco e indistinto de vozes.

Deslizei pela porta dos fundos e me movi furtivamente ao redor da taberna. O silêncio pairava sobre a negra floresta sombreada, exceto por um grito fraco e distante de algum pássaro noturno, e o movimento inquieto do grande garanhão em seu estábulo.

A luz da vela se filtrava pela janela de um pequeno cômodo, no outro lado da taverna, separado da sala pública por uma passagem curta. Quando atravessei esta janela, parei bruscamente, ouvindo meu nome ser falado. Encostei-me à parede, escutando atentamente. Ouvi a voz rápida e clara – embora baixa – de Etienne, e o ribombar de outra:

- Agnes de Chastillon, ela disse. Que importa como uma garota de fazenda se chama? Ela não é uma bela bagagem?

- Já vi mais lindas em Paris; sim, e em Chartres também. – respondeu a voz ribombante, a qual vinha, eu sabia, do homem gordo que ocupava o banco quando chegamos à taberna.

- Linda! – havia desprezo na voz de Etienne – A garota é mais do que linda. Há nela algo de selvagem e indomável. Frescor e vitalidade, eu lhe digo. Qualquer nobre alquebrado pagaria caro por ela; ela é capaz de renovar a juventude do mais decrépito dos libertinos. Escute, Thibault, eu não lhe ofereceria este prêmio, se o risco não fosse tão grande para mim... de outra forma, eu cavalgaria para Chartres com ela. Além disso, desconfio daquele cão do taverneiro.

- Se ele te reconhece como o homem cuja cabeça é desejada pelo Duque de Alecon... – murmurou Thibault.

- Cala a boca, idiota! – sibilou Etienne – Essa é outra razão pela qual devo me livrar daquela moça. Fiquei surpreso ao dizê-la meu verdadeiro nome. Mas, pelos santos, Thibault, meu encontro com ela foi suficiente para sacudir a calma de um santo! Eu estava dobrando uma curva na estrada, e lá estava ela, alta e ereta, destacada contra a floresta verde em seu esfarrapado traje de noiva, com os olhos azuis ardentes, e o sol nascente brilhando vermelho em seus cabelos, e transformando numa listra de sangue a adaga em sua mão! Por um instante, me perguntei se ela era humana, e uma estranha vibração, quase de terror, se moveu em mim.

- Uma moça do campo, numa estrada no bosque, assustando Etienne Villiers, um devasso entre devassos. – riu Thibault com desdém, bebendo de um odre com um alto ruído de sucção.

- Ela era mais do que isso. – replicou Etienne – Havia algo de fatal nela, como uma figura de um drama trágico; algo terrível. Ela é bela, mas há algo estranho e sombrio ao seu redor. Não consigo explicar nem entender.

- Chega, chega! – disse Thibault bocejando – Está compondo um romance sobre uma rapariga normanda. Vá direto ao ponto.

- Já cheguei a ele. – retrucou Etienne – Eu pretendia levá-la para Chartres e vendê-la a um dono de bordel que conheço; mas já percebi minha loucura. Eu teria que passar muito perto dos domínios do Duque de Alencon, e se ele soubesse que estive em suas terras...

- Ele não esqueceu. – grunhiu Thibault – Ele pagaria caro por informações sobre seu paradeiro. Ele não ousa lhe prender abertamente; será uma adaga na escuridão, um tiro saindo das moitas... Ele calaria sua boca em segredo e silêncio, se pudesse.

- Eu sei. – rosnou Etienne, se estremecendo – Fui um idiota em vir tão longe para leste. A aurora vai me encontrar bem longe. Mas você pode levar a garota para Chartres sem medo, sim; ou a Paris, como queira. Pague-me o preço que lhe peço, e ela é sua.

- É muito caro. – protestou Thibault – E se ela lutar como uma gata selvagem?

- Isto é com você. – respondeu duramente Etienne – Você já domou muitas garotas, de modo que deve ser capaz de cuidar desta. Mas lhe aviso: há fogo nessa jovem. Mas isso é negócio seu. Você me disse que seus companheiros se encontram numa aldeia não muito distante daqui. Traga-os para lhe ajudarem. Se você não puder tirar um bom proveito dela em Chartres, Orleans ou Paris, você é ainda mais estúpido que eu.

- Está bem, está bem. – resmungou Thibault – Vou me arriscar; afinal, isso é que um homem de negócios deve fazer.

Ouvi o tilintar de moedas de prata na mesa, e o som era como o de um sino fúnebre para mim.

E, de fato, era meu sino fúnebre, pois, enquanto eu me apoiava, cega e enojada, contra a parede da taverna, morria a garota que eu havia sido, e em seu lugar se erguia a mulher na qual me tornei. Meu enjôo passou, e uma fúria fria me tornou tão irritável quanto o aço, e tão flexível quanto o fogo.

- Uma bebida para fechar o negócio – ouvi Etienne dizer –, e logo cavalgarei. Quando você for buscar a jovem...

Abri violentamente a porta, e a mão de Etienne se congelou com a taça de vinho nos lábios. Os olhos de Thibault se arregalaram diante de mim sobre a beirada de seu copo de vinho. Uma saudação morreu nos lábios de Etienne, e ele ficou subitamente pálido ao ver a morte em meus olhos.

- Agnes! – ele exclamou, se levantando. Entrei pela porta, e minha lâmina estava enfiada no coração de Thibault, antes que ele pudesse se erguer. Um grunhido de agonia lhe saiu dos lábios gordos, e ele caiu de seu banco, esguichando sangue.

- Agnes! – gritou Etienne novamente, abrindo os braços como se para desviar meus golpes – Espere, garota...

- Seu cão imundo! – guinchei, ardendo em fúria louca – Seu suíno, suíno, suíno! – Somente minha própria fúria cega o salvou, quando me lancei e brandi a faca.

Eu estava sobre ele, antes que ele pudesse se colocar na defensiva; e meu aço que estocava cegamente lhe rasgou a pele sobre as costelas. Golpeei mais três vezes, silenciosa e sanguinariamente, e ele conseguiu, de alguma forma, desviar a lâmina de seu coração, apesar da ponta lhe arrancar sangue da mão, braço e ombro. Desesperadamente, ele agarrou meu pulso e tentou quebrá-lo, e, engalfinhados, rolamos contra a mesa, sobre cuja borda ele me curvou e tentou me estrangular. Mas, para me agarrar a garganta, ele precisou segurar meu pulso com apenas uma mão, e, livrando-a, golpeei mortalmente. A ponta da adaga bateu numa fivela de metal, e o pedaço quebrado da lâmina lhe rasgou o casaco, camisa e peito. O sangue jorrou e um gemido lhe escapou dos lábios. A dor lhe enfraqueceu o aperto, e me contorci sob ele, dando-lhe um soco que lançou sua cabeça para trás e fez brotar sangue de suas narinas. Procurando-me às cegas, ele me agarrou e, enquanto eu tentava lhe arrancar os olhos, me lançou para longe com tal força que percorri toda a sala de costas e me espatifei contra a parede, caindo ao chão em seguida.

Eu estava meio atordoada, mas me levantei com um rosnado, agarrando uma perna de mesa quebrada. Ele estava limpando o sangue dos olhos com uma mão e tateando pela espada com a outra, mas ele subestimou novamente a rapidez de meu ataque, e a perna da mesa se espatifou em cheio na sua cabeça, abrindo-lhe o couro cabeludo e fazendo brotar uma torrente de sangue. Ele ergueu os braços para deter os golpes e, tanto neles quanto na sua cabeça, eu despejava golpe após golpe, fazendo-o recuar, meio encurvado, cego e cambaleante, até desabar sobre os restos da mesa.

- Por Deus, garota! – ele gemeu – Quer me matar?

- Com um coração feliz! – eu ri como nunca havia rido antes, golpeando-lhe a orelha e derrubando-o de volta aos restos da mesa da qual ele tentava sair.

Um gemido soluçante lhe saiu dos lábios esmagados:

- Em nome de Deus, garota – ele gemeu, estendendo cegamente as mãos para mim –, piedade! Detenha sua mão, em nome dos santos! Não estou pronto para morrer!

Ele se ajoelhou com dificuldade, escorrendo sangue pela cabeça espancada e com roupas pingando vermelho.

- Detenha sua mão Agnes. – grasnou – Piedade, em nome de Deus!

Hesitei, olhando-o sombriamente. Então, lancei meu porrete para o lado.

- Guarde sua vida. – eu disse, em amargo desprezo – Você é desprezível demais para manchar minhas mãos. Siga seu caminho!

Ele tentou se levantar, mas caiu novamente.

- Não consigo me levantar. – ele gemeu – A sala oscila diante de meus olhos e escurece. Oh, Agnes, você me deu um beijo amargo! Deus tenha pena de mim, pois morro em pecado. Já ri diante da morte, mas agora, que ela está sobre mim, tenho medo. Oh, Deus, tenho medo! Não me abandone, Agnes! Não me deixe morrer feito um cão!

- Por que não? – perguntei duramente – Confiei em você, e achei que você fosse mais nobre que os homens comuns, com suas palavras mentirosas de cavalheirismo e honra. Bah! Você ia me vender e condenar a uma escravidão mais indigna que a do harém de um turco.

- Eu sei. – ele gemeu – Minha alma está mais negra do que a noite que se aproxima de mim. Chame o taverneiro e faça-o buscar um padre.

- Ele partiu numa missão que só ele conhece. – respondi – Saiu às escondidas pela porta dos fundos, e cavalgou floresta adentro.

- Ele foi me denunciar ao Duque de Alencon. – murmurou Etienne – Ele me reconheceu, afinal. Estou realmente perdido.

Lembrei-me, então, que foi por eu ter chamado o nome de Etienne na escuridão do quarto lá em cima, que o estalajadeiro ficou sabendo da verdadeira identidade de meu falso amigo. Assim, poder-se-ia dizer que, se o Duque prendesse Etienne, seria por causa da minha traição involuntária. E, como muita gente do campo, eu só sentia ódio e desconfiança da nobreza.

- Vou lhe tirar daqui. – eu disse – Nem mesmo um cão cairá nas mãos da lei por minha culpa.

Saí rapidamente da taverna e me dirigi aos estábulos. Não vi sinal da mulher desmazelada. Ou ela havia fugido para a floresta, ou estava bêbada demais para se dar conta da situação. Selei e pus freio no garanhão de Etienne, embora o animal encolhesse as orelhas para trás e tentasse me dar coices, e o guiei até a porta. Logo, eu entrei e falei com Etienne; e, de fato, ele era uma visão espantosa: contundido e espancado, com o casaco e camisa esfarrapados, e todo coberto de sangue.

- Trouxe seu cavalo. – eu disse.

- Não consigo me levantar. – ele murmurou.

- Aperte os dentes. – ordenei – Vou lhe carregar.

- Você não conseguirá fazê-lo, garota. – ele afirmou, mas, enquanto ele falava, eu o ergui sobre meus ombros e o levei através da porta; e era um peso morto, com os membros se arrastando como se fossem os de um cadáver. Colocá-lo sobre o cavalo foi um trabalho exaustivo, pois ele pouco podia fazer para se ajudar, mas por fim foi realizado, e logo montei atrás da sela e o segurei.

Em seguida, hesitei, sem saber para onde ir. Ele pareceu perceber minha indecisão, pois murmurou:

- Pegue a estrada oeste, até Saint Girault. Há uma taverna lá, a uma milha da aldeia, O Javali Vermelho, cujo dono é meu amigo.

Da cavalgada pela noite, falarei brevemente. Não encontramos ninguém cavalgando pela luz das estrelas, ladeada pelas árvores negras da floresta. Minha mão estava pegajosa com o sangue de Etienne, pois os solavancos do galope fizeram com que seus muitos ferimentos sangrassem novamente; e logo, ele começou a delirar e falar de forma incoerente sobre outros tempos e pessoas, que me eram estranhos. Em seguida, ele mencionou nomes que me eram conhecidos por reputação: lordes, damas, soldados, foragidos e piratas, e delirava sobre atos sombrios, crimes sórdidos e façanhas de raro heroísmo. E, logo depois, cantava trechos de canções de marcha, de taverna, baladas obscenas e poemas de amor, e balbuciava em línguas estrangeiras que me eram incompreensíveis. Ah... já cavalguei em muitas estradas desde aquela noite – estradas de intriga e violência –, mas nunca uma cavalgada mais estranha que a daquela noite, através da floresta de Saint Girault.

A aurora se insinuava no céu atravessado por galhos, quando parei diante de uma taverna, a qual acreditei ser a que Etienne pretendia alcançar. A figura no emblema provava ser aquele o local, e chamei o taverneiro em voz alta. Um garoto desengonçado, vestindo uma camisa, bocejando e esfregando os olhos preguiçosos com os punhos, saiu dali; e, ao ver o grande cavalo e seus montadores, salpicados de sangue, ele berrou de medo e espanto, e correu de volta para dentro da taberna, com as fraldas da camisa lhe esvoaçando ao redor das costas. Em seguida, uma janela foi cuidadosamente aberta no andar de cima, e uma cabeça com gorro de dormir apareceu por trás da boca de um grande arcabuz.

- Sigam seus caminhos – disse o homem com gorro de dormir –; não nos relacionamos com bandidos nem com assassinos ensangüentados.

- Não somos bandidos. – respondi irritada, cansada e com pouca paciência – Este homem foi atacado e quase morto. Se você for dono do Javali Vermelho, ele é um amigo seu... Etienne Villiers, da Aquitânia.

- Etienne! – exclamou o taverneiro – Vou descer. Com certeza, vou descer. Por que não disse que era Etienne?

A janela foi batida, e houve um som de escadas sendo rapidamente descidas. Deslizei do alto do garanhão e tomei a forma caída de Etienne em meus braços, depositando-o sobre o chão, enquanto o estalajadeiro chegava correndo, com criados carregando tochas.

Etienne jazia como se estivesse morto, seu rosto pálido onde não estava coberto de sangue; mas seu coração batia forte, e percebi que ele estava semi-consciente.

- Quem fez isto, em nome de Deus? – indagou o taverneiro, horrorizado.

- Eu fiz. – respondi laconicamente.

Ele recuou, pálido sob a luz das tochas.

- Deus tenha piedade de nós! Um jovem como... Que o sagrado Denis nos proteja! É uma mulher!

- Chega desta tagarelice! – exclamei, enraivecida – Levante-o e leve-o ao seu melhor quarto.

- M-m-mas... – começou a falar o estalajadeiro, ainda perplexo, enquanto os criados recuavam.

Bati o pé no chão e praguejei – um costume que me era muito comum.

- Pela morte do diabo e Judas Iscariotes! – eu disse – Vai deixar seu amigo morrer, enquanto você fica boquiaberto, com os olhos arregalados? Ocupe-se dele!

Pus a mão na adaga de Etienne, a qual eu havia amarrado à minha própria cintura, e eles se apressaram em me obedecer, arregalando os olhos como se eu fosse a filha do demônio.

- Etienne é sempre bem- vindo – murmurou meu anfitrião –, mas uma demônia vestindo calças...

- Você terá uma vida mais longa, se falar menos e trabalhar mais. – eu o garanti, puxando uma pistola de boca larga do cinto de um criado, o qual estava assustado demais para se lembrar que tinha uma – Faça o que eu digo, e não haverá mais matança esta noite. Vamos!

Os acontecimentos da noite haviam realmente me amadurecido. Eu ainda não era completamente uma mulher, mas estava no caminho para me tornar uma.

Levaram Etienne para aquilo que meu anfitrião – cujo nome era Perducas – jurou ser o melhor quarto da taverna. E, verdade seja dita, era muito mais refinado que qualquer coisa em Os Dedos do Patife. Era um quarto no andar superior, que dava para o patamar de uma escada em espiral, e tinha janelas de tamanho adequado, embora sem outra porta.

Perdurcas jurou que era tão bom médico quanto qualquer homem, e desnudamos Etienne e procuramos reavivá-lo. De fato, ele havia sido tão maltratado quanto qualquer homem que já vi, se não mortalmente ferido. Mas, depois de lavarmos o sangue e a poeira de seu corpo, percebemos que nenhum de seus ferimentos de faca lhe havia tocado um órgão vital, nem seu crânio fora fraturado, embora o couro cabeludo estivesse partido em vários lugares. Seu braço direito estava quebrado, e o outro, enegrecido com contusões; consertamos o osso quebrado – eu ajudando Perducas com alguma habilidade, pois acidentes e ferimentos eram bastante comuns em La Fere.

Quando lhe vedamos os ferimentos, e ele ficou deitado numa cama limpa, recuperou os sentidos o suficiente para beber vinho sofregamente e perguntar onde estava. Quando eu lhe disse, ele murmurou:

- Não me abandone, Agnes; Perducas é um homem entre homens, mas necessito dos cuidados delicados de uma mulher.

- São Denis me livre dos cuidados delicados que esta gata do inferno mostrou. – disse Perducas em voz baixa. E eu disse:

- Vou permanecer até você ficar novamente de pé, Etienne.

E ele pareceu satisfeito com isso, e dormiu tranqüilamente.

Exigi, então, um quarto para mim, e Perducas, tendo mandado um garoto para cuidar do garanhão, me mostrou um aposento, vizinho ao de Etienne, embora não fosse ligado ao dele por nenhuma porta. Deitei-me na cama quando o sol nasceu, e aquele era o primeiro colchão de plumas que eu via, e dormi por várias horas.

Quando voltei para Etienne, eu o vi em plena posse dos sentidos, e livre do delírio. De fato, naquele tempo os homens eram de ferro; se seus ferimentos não fossem instantaneamente fatais, eles se recuperavam rapidamente – a não ser que seus ferimentos se infeccionassem por causa da negligência ou ignorância dos médicos. Perducas não usava nenhum dos remédios asquerosos e infantis, elogiados pelos médicos, mas diversas ervas e plantas que ele mesmo colhia nas profundezas das florestas. Ele me contou que havia aprendido sua técnica com os líderes dos sarracenos, entre os quais havia viajado em sua juventude. Ele era um homem surpreendente.

Juntos, cuidamos de Etienne, que se restabeleceu rapidamente. Trocamos poucas palavras. Ele e Perducas conversavam muito entre si, mas, na maior parte do tempo, Etienne simplesmente ficava deitado e me olhando silenciosamente.

Perducas falava pouco comigo, mas parecia me temer. Quando falei de minha dívida, ele respondeu que eu não lhe devia nada; que, enquanto Etienne desejasse minha presença, a comida e o alojamento seriam meus, sem pagamento. Mas ele desejava seriamente que eu não conversasse com o povo da vila, para que a curiosidade deles não os levasse a descobrir Etienne. Seus servos, ele disse, eram confiáveis e nada falariam. Eu nada perguntei a ele sobre o motivo para o Duque d’Alencon odiar Etienne, mas ele disse:

- O rancor do duque contra Etienne Villiers não é nada extraordinário. Etienne já pertenceu à comitiva daquele nobre, e foi imprudente demais ao encarregá-lo de uma missão muito delicada. D’Alencon é ambicioso; se murmura que nada irá satisfazê-lo, a não ser o cargo de agente de polícia da França. Ele agora goza do favor do rei; esse favor não brilharia com tal esplendor, se fossem conhecidas as cartas outrora trocadas entre o duque e Carlos da Germânia, agora conhecido como imperador do Sacro Império Romano.

“Etienne é o único a saber do total alcance daquela traição. Por isso, d’Alencon deseja ardentemente a morte de Etienne, mas não ousa golpear abertamente, temendo que sua vítima o denuncie e desgrace para sempre, em seu último suspiro. Ele prefere atacar súbita e silenciosamente, através de uma adaga escondida, veneno ou emboscada. Enquanto Etienne estiver aqui, sua única oportunidade de ter escapado em segurança é segredo absoluto”.

- E se houverem outros como aquele canalha do Thibault? – indaguei.

- Não. – ele disse – Não há dúvida de que existem. Conheço aquele bando de predadores muito bem. Mas sua honra se baseia em não traírem seus companheiros. E, no passado, Etienne foi um deles... batedores de carteira, raptores de mulheres, ladrões e assassinos, isso é o que eles são.

Sacudi minha cabeça, pensando na estranheza dos homens. Perducas, um homem honesto, era amigo de um velhaco como Etienne, e lhe conhecia bem as infâmias. Bem, muito homem honesto admira secretamente um bandido, pois vê nele aquilo que gostaria de ser, se tivesse coragem para isso.

Ah, bom... segui ao pé da letra os conselhos de Perducas, e o tempo se arrastou. Eu raramente saía da taverna, exceto à noite, e somente para passear na floresta, evitando os camponeses e os habitantes da vila. E uma crescente agitação se movia dentro de mim... uma sensação de estar esperando por algo que eu não conhecia, e de que eu estava pronta para fazer... não sei o quê. Assim, se passou uma semana, quando conheci Guiscard de Clisson.


3) Além do ranger das vigas roídas por ratos, em sórdidas cabanas dos campos,
Acima do gemido das rodas das carroças que moem os ratos lamacentos,
Ouvi o bater de tambores distantes, que me chamam noite e dia
Para estradas onde capitães encouraçados cavalgam, com armaduras de aço e rosas,
Com bandeiras ondulando, tingidas de vermelho... ao outro lado do mundo!
(Tambores em Meus Ouvidos)

Uma manhã, entrei na taverna, após andar bem cedo na floresta, e parei ao ver o estranho que mastigava um enorme pedaço de carne, diante da mesa. Ele também parou de comer por um instante e me encarou. Era um homem alto, magro e de constituição firme. Uma cicatriz lhe marcava as feições magras, e seus olhos cinzas eram frios como aço. Era, de fato, um homem de aço, envolto em couraça, cota-de-malha e grevas. Sua espada larga estava sobre as pernas, e seu morion (2) sobre o banco ao seu lado.

- Por Deus! – ele disse – Você é um homem ou uma mulher?

- O que acha? – repliquei, apoiando as mãos sobre a mesa e descendo o olhar para ele.

- Só um tolo faria a pergunta que fiz. – ele disse, sacudindo a cabeça – Você é completamente mulher; e esta roupa se encaixa estranhamente em você. A pistola em seu cinto, também. Você me lembra uma mulher que conheci; marchava e lutava como um homem, e foi morta pela bala de uma pistola, num campo de batalha. Ela era escura onde você é branca, mas há algo similar na posição de seu queixo, no seu porte... não, não sei. Senta-te e conversa comigo. Sou Guiscard de Clisson. Já ouviu falar de mim?

- Várias vezes. – respondi, me sentando – Em minha aldeia natal, contam-se histórias a seu respeito. Você é um líder dos mercenários e dos Companheiros Livres.

- Quando os homens têm estômago suficiente para serem liderados. – ele disse, bebendo e estendendo o jarro de vinho para mim – Há, pelas tripas e sangue de Judas, você bebe sofregamente, como um homem! Talvez as mulheres estejam se tornando homens, pois, por Saint Trignan, os homens estão se tornando mulheres nestes dias. Não ganhei nenhum recruta nesta província, onde lembro que os homens lutavam pela honra de seguir um capitão de mercenários. Morte de Satã! Com o imperador reunindo seus malditos lansquenetes (3) para varrer De Lautrec para fora de Milão, e o rei em extrema carência de soldados... sem falar do rico espólio na Itália... cada francês capacitado fisicamente deveria estar marchando para o sul, por Deus! Ah, o espírito dos homens de outrora!

Agora, ao olhar para aquele veterano cicatrizado pelas guerras, e lhe ouvir a conversa, meu coração bateu rapidamente, com uma estranha ânsia, e eu parecia ouvir – como já ouvira tão freqüentemente em meus sonhos – a batida distante de tambores.

- Cavalgarei com você! – exclamei – Estou cansada de ser uma mulher. Farei parte de sua companhia!

Ele riu e bateu na mesa com a mão aberta, como se diante de uma pilhéria.

- Por São Denis, garota! – ele disse – Você tem o espírito necessário, mas é preciso mais do que um par de calças para ser um homem.

- Se aquela outra mulher, de quem você falou, podia marchar e lutar, eu também posso! – gritei.

- Não. – ele sacudiu a cabeça – Margot, a Negra de Avignon, era uma em um milhão. Esqueça esta fantasia tola, garota. Vista tuas saias e volte a ser uma mulher decente outra vez. Depois... bem, quando você estiver em seu devido lugar, ficarei contente que você cavalgue comigo!

Soltando uma praga que o fez se sobressaltar, me ergui de um pulo, lançando meu banco para trás e derrubando-o sonoramente. Ergui-me diante dele, fechando e abrindo minhas mãos, fervendo com a raiva que sempre se erguia rapidamente em mim.

- Sempre o homem num mundo de homens! – eu disse, entre dentes – Uma mulher deve conhecer seu devido lugar: ordenhar vacas, tecer fios, costurar, cozinhar e ter filhos, não olhar além da porta da casa, nem desobedecer às ordens de seu senhor e amo! Bah! Eu cuspo em todos vocês! Não há um homem vivo que possa me enfrentar com armas e viver; e, antes de morrer, eu provarei isto ao mundo. Mulheres! Vacas! Escravas! Servas choronas que se encolhem de medo, que se curvam servilmente diante de pancadas, só se vingando ao matarem a si mesmas, como minha irmã queria que eu fizesse. Há! Você me nega um lugar entre homens? Por Deus, viverei como quero e morrerei como Deus quiser, mas, se não sirvo para ser camarada de um homem, pelo menos não serei amante de um. Então, vá-te ao inferno, Guiscard de Clisson, e que o diabo lhe arranque o coração!

Dito isto, dei meia volta e me afastei a passos largos, deixando-o boquiaberto atrás de mim. Subi as escadas e entrei no quarto de Etienne, onde o encontrei deitado – bem melhor, embora ainda pálido e fraco –, e seu braço parecia que ainda ficaria na tipóia pelas próximas semanas.

- Como vai? – indaguei.

- Suficientemente bem. – ele respondeu; e, depois de me encarar por um tempo: – Agnes – ele disse –, por que poupou minha vida, quando poderia tê-la tirado?

- Por causa da mulher que há em mim – respondi de mau-humor –, que não consegue suportar ouvir um ser indefeso implorar pela vida.

- Eu merecia morrer por suas mãos – ele murmurou – mais do que Thibault. Por que cuidou de mim?

- Eu não queria que você caísse nas mãos do duque por minha causa – respondi –, pois fui eu que lhe traí sem querer. E agora que me fez estas perguntas, vou lhe fazer uma: por que você é tão canalha?

- Só Deus sabe. – ele respondeu, fechando os olhos – Não tenho sido outra coisa, até onde consigo me lembrar; e minhas lembranças remontam às sarjetas de Poitiers, onde eu roubava pedaços de pão e mentia para conseguir esmolas, na infância, e comecei a aprender os caminhos do mundo. Fui soldado, contrabandista, alcoviteiro, matador, ladrão... sempre um canalha atroz. Por São Denis, alguns de meus atos são atrozes demais para eu repetir. E, no entanto, em algum lugar, de alguma forma, sempre houve um Etienne Villiers bem escondido lá nas profundezas da criatura que sou eu, sem ser afetado pelo resto de mim. Lá, existem remorso e medo, que causam sofrimento. Por isso, implorei pela vida, quando deveria dar boas-vindas à morte, e agora estou aqui estendido, falando a verdade quando deveria inventar mentiras para lhe seduzir. Como eu queria ser só santo, ou só canalha.

Naquele instante, ouviu-se o bater de pés na escadaria, e vozes ásperas se ergueram. Saltei para trancar a porta, ouvindo o nome de Etienne ser chamado, mas ele me deteve com sua mão erguida e o ouvido atento; em seguida se deixou cair para trás, com um suspiro de alívio.

- Não, eu reconheço a voz. Entrem, companheiros! – ele gritou.

Então, um bando de valentões repugnantes se aglomerou dentro do quarto, liderados por um velhaco barrigudo que usava botas enormes. Atrás dele, vinham outros quatro, esfarrapados, cicatrizados, com orelhas cortadas, olhos cobertos por remendos e narizes achatados. Eles me olharam maldosamente, e logo olharam ferozmente para o homem na cama.

- Então, Etienne Villiers – disse o velhaco gordo –, finalmente lhe achamos! Esconder-se de nós não é tão fácil quanto se esconder do Duque d’Alencon, hein, seu cão?

- Que maneira de falar é esta, Tristan Pelligny? – indagou Etienne, com indisfarçado assombro – Você veio saudar um camarada ferido, ou...

- Viemos fazer justiça com um rato! – rugiu Pelligny. Ele se virou e apontou pesadamente para seu bando, apontando um grosso dedo indicador em cada um – Está vendo aqui, Etienne Villiers? Jacques das Verrugas, Gaston o Lobo, Jean Sem Orelha e Conrad, o Germano. E eu mesmo, somando cinco... homens bons e verdadeiros, outrora seus companheiros, viemos fazer justiça com você, por causa de um infame assassinato!

- Você é louco! – exclamou Etienne, apoiando-se com dificuldade sobre os cotovelos – A quem matei, para vocês ficarem furiosos? Quando fui um de vocês, por acaso eu não aceitava sempre a minha parte de trabalho duro, perigos e ladroeira, dividindo a pilhagem em partes iguais?

- Não estamos falando em pilhagem! – berrou Tristan – Estamos falando do camarada Thibault Bazas, abominavelmente assassinado por você na taverna Os Dedos do Patife!

Etienne começou a abrir a boca; hesitou, me olhou de forma surpresa e logo fechou a boca novamente. Dei um passo à frente.

- Idiotas! – exclamei – Ele não assassinou aquele porco gordo do Thibault. Eu o matei.

- Por São Denis! – riu Tristan – Você é a garota de calças, da qual aquela desleixada falou! Você matou Thibault? Ah, uma bela mentira, mas nada convincente para alguém que conheceu Thibault. A criada ouviu a luta, e fugiu aterrorizada para a floresta. Quando se atreveu a voltar, Thibault jazia morto, e Etienne e a rapariga dele fugiam juntos a cavalo. Não, isto está bem claro. Etienne matou Thibault, sem dúvida por causa desta irresponsável. Bom, quando nos livrarmos dele, tomaremos conta da amante dele, não concordam, rapazes?

Um murmúrio de aprovação profana e obscena o respondeu.

- Agnes – disse Etienne –, chame Perducas.

- Chame e estará perdida. – disse Tristan – Perducas e todos os criados estão lá fora, no estábulo, curando o cavalo de Guiscard de Clisson. Vamos terminar o serviço antes que eles retornem. Aqui... estendam este traidor naquele banco. Antes de cortar-lhe a garganta, eu gostaria de passar a lâmina de minha faca em outras partes dele.

Ele me pôs de lado, com desdém, e avançou a passos largos para a cama de Etienne, seguido de perto pelos outros. Etienne tentou se levantar, e Tristan lhe deu um soco, derrubando-o de volta. Naquele instante, o quarto oscilou vermelho diante de meu olhar. Com um salto, eu tinha a espada de Etienne na mão e, ao sentir-lhe o cabo na mão, força e uma estranha confiança correram como fogo pelas minhas veias.

Com um feroz grito de alegria, corri até Tristan, e ele girou, berrando e procurando cegamente pela espada. Cortei aquele berro, quando minha espada rasgou-lhe os grossos músculos do pescoço e ele caiu, jorrando sangue, sua cabeça pendurada por um retalho de carne. Os outros bandidos uivaram como um bando de cães de caça e se lançaram sobre mim, com medo e fúria. E, me lembrando subitamente da pistola em meu cinto, eu a puxei e atirei à queima-roupa no rosto de Jacques, transformando seu crânio em pedaços vermelhos. Na fumaça flutuante, os outros avançaram contra mim, berrando pragas obscenas.

Há ações para as quais nascemos, e para as quais temos um talento que ultrapassa o mero ensinamento. Eu, que nunca antes havia tido uma espada em punho, a percebi como uma coisa viva em minha mão, manejada com instinto inimaginável. E eu percebi novamente que minha rapidez de olhos, mãos e pés não poderia ser igualada por aqueles camponeses morosos. Eles bramiam e golpeavam cegamente, desperdiçando força e movimento, como se suas espadas fossem facas de açougueiro, enquanto eu golpeava em silêncio mortal, e com precisão também mortal.

Não me lembro muito sobre aquela luta; foi uma névoa escarlate, na qual poucos detalhes são lembrados. Meus pensamentos se moviam muito rapidamente para meu cérebro se lembrar, e não sei totalmente como, com que pulos, esquivas e contra-ataques eu evitei aquelas lâminas que golpeavam. Sei que parti a cabeça de Conrad, o Germano, como se fosse um melão, e seus miolos jorraram terrivelmente pela lâmina de minha espada. E me lembro que o que se chamava Gaston, o Lobo, confiou demais numa brigantina (4) que usava sob os farrapos, e, sob meu golpe desesperado, os anéis enferrujados arrebentaram, e ele caiu sobre o chão, com as tripas se derramando para fora. Logo, numa nuvem vermelha, apenas Jean se lançava sobre mim, dando um golpe descendente com sua espada. E detive, com minha lâmina, seu pulso que descia. Sua mão que segurava a espada voou do pulso num arco escarlate, e, enquanto ele olhava estupidamente para o toco que esguichava sangue, eu lhe atravessei o corpo com tal ferocidade que a guarda em forma de cruz bateu violentamente contra o peito dele, e caí sobre ele ao derrubá-lo ao chão.

Não me lembro como levantei e puxei minha lâmina. Sobre pernas bem abertas e com a espada arrastando pelo chão, cambaleei por entre os corpos; e então, uma náusea implacável me dominou, e cambaleei até a janela, onde, inclinando a cabeça sobre a soleira, tive uma terrível ânsia de vômito. Percebi que o sangue escorria pelo meu braço, vindo de um corte em meu ombro; e minha camisa estava rasgada em tiras. O quarto oscilou vermelho diante de meus olhos, e o cheiro de sangue fresco, jorrando das vísceras dos mortos, me repugnou. Como que em meio a uma bruma, vi o rosto branco de Etienne.

Então, veio o bater de pés na escadaria, e Guiscard de Clisson irrompeu porta adentro, de espada na mão, seguindo por Perducas. Arregalaram os olhos, como se tivessem sido golpeados mortalmente, e De Clisson praguejou apavorado.

- Eu não lhe disse? – ofegou Perducas – O demônio usando calças! Por São Denis, que matança!

- É trabalho seu, garota? – perguntou Guiscard, numa estranha voz baixa. Lancei meu cabelo molhado para trás, e me ergui com dificuldade, oscilando e atordoada.

- Sim. Era uma dívida que eu tinha de pagar.

- Por Deus! – ele murmurou, de olhos arregalados – Há algo de escuro e estranho ao seu redor, apesar de sua pele clara.

- Sim; Agnes, a Escura! – disse Etienne, se apoiando em um dos cotovelos – Uma estrela de escuridão brilhou em seu nascimento, uma estrela de escuridão e agitação. Para onde ela for, haverá sangue derramado e homens morrendo. Percebi isso quando a vi, destacada contra o sol nascente que transformava em sangue a adaga em sua mão.

- Paguei minha dívida com você. – eu disse – Se coloquei sua vida em risco, paguei com sangue.

E, lançando aos seus pés sua espada gotejante, me voltei para a porta. Guiscard, que olhava fixamente como um imbecil, se sacudiu como que de um transe e andou a passos largos, me seguindo.

- Pelas garras do Demônio! – disse ele – O que acabou de acontecer mudou completamente minha opinião! Você é uma nova Margot, a Negra de Avignon. Uma verdadeira mulher espadachim vale por vinte homens. Ainda quer marchar comigo?

- Como companheira de armas. – respondi – Não sou amante de ninguém.

- De ninguém, exceto da Morte. – ele respondeu, olhando para os cadáveres.


4) Suas irmãs se curvam sobre seus teares
E mastigam suas migalhas bolorentas;
Mas ela cavalga para diante, vestindo seda e aço
Para seguir os tambores-fantasmas.
(A Balada de Agnes, a Escura)

UMA SEMANA após a luta no quarto de Etienne, Guiscard de Clisson e eu cavalgamos da taverna do Javali Vermelho, e tomamos a estrada para leste. Eu montava um valoroso cavalo de guerra, e estava vestida como convém a um companheiro de De Clisson. Usava um casaco de veludo e calças de seda, com longas botas espanholas; sob meu casaco, uma fina cota-de-malha de aço me protegia os cachos ruivos. Havia pistolas em meu cinto ricamente trabalhado, e uma espada pendia do mesmo. Por cima de tudo, havia um manto de seda escarlate. Guiscard havia comprado aquilo tudo para mim, praguejando quando protestei diante de sua generosidade.

- Você me pagará com a pilhagem que tomarmos na Itália. – ele disse – Mas um camarada de Guiscard de Clisson anda elegantemente vestido!

Às vezes, eu me perguntava se a aceitação de Guiscard a mim como um homem era tão completa quanto ele pretendia me fazer pensar. Talvez ele ainda alimentasse sua idéia original – não importava.

Aquela semana foi cheia. A cada dia, durante horas, Guiscard havia me ensinado a arte da esgrima. Ele próprio era considerado a melhor espada da França, e jurava que nunca havia encontrado um aluno mais hábil que eu. Aprendi todas as velhacarias da lâmina, como se eu tivesse nascido para isso; e a rapidez de meus olhos e mão tiravam freqüentemente pragas surpreendidas de seus lábios. No mais, ele me ensinou a atirar, com pistola e mosquete, e me mostrou muitos artifícios ardilosos e ferozes de luta corpo-a-corpo. Nunca um principiante teve um mestre tão eficiente, nem nunca um mestre teve um pupilo tão ansioso em aprender. Eu ardia em anseio para aprender tudo o que pertencia àquele ofício. Eu parecia ter nascido para um mundo novo, e, no entanto, um mundo para o qual eu estava prometida desde que nasci. Minha vida anterior parecia um sonho, prestes a ser esquecido.

Deste modo, bem cedo naquela manhã, montamos em nossos cavalos, no pátio do Javali Vermelho, enquanto Perducas nos desejava boa viagem. Quando íamos, uma voz gritou meu nome, e vi um rosto branco, num batente de janela do andar superior.

- Agnes! – gritou Etienne – Vai embora, sem ao menos me dar adeus?

- Por que deveria haver tanta cerimônia entre nós? – perguntei – Não há dívida em nenhum lado. Não temos muita amizade, que eu saiba. Você está bem o bastante para cuidar de si mesmo, e não precisa mais de meus cuidados.

E, sem dizer mais nada, sacudi as rédeas do cavalo e cavalguei com Guiscard pela estrada serpenteante da floresta. Ele me olhou atravessado e sacudiu os ombros.

- Você é uma mulher estranha, Agnes Escura. – disse ele – Você parece ir pela vida como uma das Parcas, indiferente, imutável, potente com tragédia e destino. Acho que os homens que cavalgarem com você não viverão muito.

Não respondi, e assim continuamos atravessando a floresta verde. O sol se ergueu, inundando as folhas de dourado, enquanto elas balançavam com o vento da manhã. Um cervo cruzou rapidamente a trilha diante de nós, e os pássaros cantavam sua alegria pela Vida.

Seguíamos a estrada pela qual eu havia carregado Etienne após a luta em Os Dedos do Patife; mas, perto do meio-dia, viramos para outro caminho, mais largo, que se desviava para sudeste. Não havíamos cavalgado muito após isso, quando:

- Por que será que o homem não é tão tranqüilo quanto este lugar? – disse Guiscard, e depois: – O que é, agora?

Um sujeito, que dormia sob uma árvore, havia acordado sobressaltado, se ergueu, nos olhou fixamente, e depois, se virando rapidamente para o lado, pulou por entre os grandes carvalhos que marcavam a estrada, e desapareceu. Só tive um vislumbre dele, vendo eu que ele era um velhaco mal-encarado, vestindo o capuz e o avental de um lenhador.

- Nossa aparência marcial assustou o palhaço. – riu Guiscard, mas uma estranha inquietude tomou conta de mim, me fazendo fitar nervosamente as verdes muralhas de floresta que nos cercavam.

- Não há bandidos nesta floresta. – murmurei – Ele não tinha motivo para fugir de nós. Não gosto disso. Escute!

Um assobio alto, estridente e trinante se ergueu no ar, saindo de algum lugar dentre as árvores. Após alguns segundos, foi respondido por outro, distante a leste e enfraquecido pela distância. Forçando meus ouvidos, eu parecia ouvir uma terceira resposta, ainda mais distante.

- Não gosto disto. – repeti.

- Um pássaro chamando sua companheira. – ele zombou.

- Nasci e me criei na floresta. – respondi impaciente – Não há pássaro algum acolá. São homens sinalizando uns para os outros, do outro lado da floresta. De alguma forma, isto está ligado àquele patife que fugiu da trilha.

- Você tem os instintos de um velho soldado. – riu Guiscard, tirando o elmo por causa do calor e pendurando-o em sua sela – Desconfiada... alerta... isto é muito bom. Mas está desperdiçando sua cautela nesta mata, Agnes. Não tenho inimigos nestas redondezas. Não, eu sou muito bem conhecido e amigo de todos. E, como não há salteadores por perto, não há nada a temermos de ninguém.

- Eu lhe asseguro. – protestei, enquanto seguíamos nosso caminho – Tenho um assombrado pressentimento de que não está tudo bem. Por que aquele velhaco fugiria de nós, para depois avisar algum companheiro oculto enquanto passamos? Vamos deixar a estrada e seguir alguma trilha.

Havíamos nos afastado um pouco do lugar onde havíamos ouvido o primeiro assobio, e entrado numa região acidentada, atravessada por um rio pouco profundo. Aqui, a estrada se alargava um pouco, embora continuasse rodeada por espessas árvores e arbustos. Do lado esquerdo, os arbustos eram densos, perto do caminho. No lado direito, eram esparsos, bordeando um regato raso, cuja margem oposta se erguia em penhascos abruptos. O espaço cheio de arbustos, entre a estrada e o regato, tinha talvez uns cem passos de largura.

- Agnes, minha garota... – dizia Guiscard – Eu lhe digo, estamos tão seguros quanto...

Uma saraivada trovejante retumbou dos arbustos à esquerda, cobrindo a estrada com fumaça rodopiante. Meu cavalo gritou e eu o senti cambalear. Vi Guiscard de Clisson erguer as mãos e pender para trás na sela, e logo seu cavalo empinar e cair com ele. Vi tudo isto num breve instante, pois meu cavalo disparou violenta e freneticamente através dos arbustos no lado direito da estrada, e um galho me derrubou da sela, fazendo-me jazer meio atordoada por entre as moitas.

Enquanto jazia ali, incapaz de ver a estrada por causa da densidade dos arbustos, ouvi vozes altas e ásperas, e o som de homens saindo de seus esconderijos para a estrada.

- Tão morto quanto Judas Iscariotes. – berrou um – Para onde foi a moça?

- Lá vai o cavalo dela, salpicando água pelo regato, jorrando sangue, e com a sela vazia. – disse outro – Ela caiu em algum lugar entre os arbustos.

- Poderíamos pegá-la viva. – disse um terceiro – Ela poderia nos divertir. Mas o duque nos disse para não nos arriscarmos. Ah, aqui está o Capitão d’Valence!

Houve um retumbar de cascos estrada acima, e o cavaleiro gritou:

- Ouvi os tiros; onde está a garota?

- Morta, em algum lugar por entre as moitas. – lhe responderam – Aqui está o homem.

Um breve silêncio, e depois:

- Trovões do inferno! – rugiu o capitão – Idiotas! Incompetentes! Cães! Este não é Etienne Villiers! Vocês mataram Guiscard de Clisson!

Um balbucio de confusão se ergueu – pragas, acusações e negações, dominadas pela voz daquele a quem chamavam d’Valence.

- Eu lhes asseguro, eu reconheceria De Clisson até no inferno; e este é ele, apesar de sua cabeça ser uma massa de sangue. Malditos imbecis!

- Apenas obedecemos às ordens. – resmungou outro – Quando ouviste o sinal, nos postou na armadilha e nos mandou atirar a quem avançasse pelo caminho. Como saberíamos a quem matar? Você nunca disse o nome dele; nosso trabalho era apenas atirar no homem que você indicasse. Por que não ficou conosco, para conferir nosso trabalho?

- Porque este é o serviço do duque, imbecil! – disse bruscamente d’Valence – Sou conhecido demais. Eu não poderia me arriscar a ser visto e reconhecido, se a armadilha falhasse.

Então, eles se voltaram para mais alguém. Houve o som de um golpe, e um ganido de dor.

- Cão! – praguejou d’Valence – Você não me deu o sinal de que Etienne Villiers cavalgava por este caminho?

- Não foi culpa minha! – uivou o infeliz, um camponês a julgar por seu sotaque – Eu não o conhecia. O taverneiro de Os Dedos do Patife me mandou observar um homem, que cavalgava com uma jovem ruiva vestida em trajes de homem; e, quando eu a vi passando com o soldado, pensei que ele fosse o tal Etienne Villiers... Ahhh... piedade!

Houve um tiro, um grito estridente e o som de um corpo caindo.

- Seremos enforcados, se o duque souber disto. – disse o capitão – Guiscard gozava do favor do Visconde de Lautrec, governador de Milan. D’Alencon nos enforcará para cair nas boas graças do visconde. Devemos proteger nossos pescoços. Esconderemos os corpos no regato, e ninguém saberá de nada. Agora se espalhem e procurem pelo cadáver da jovem. Se ela ainda estiver viva, devemos fechar-lhe a boca para sempre.

Diante disso, comecei a me arrastar para trás, em direção ao curso d’água. Olhando de um lado a outro, vi que a margem oposta era baixa e plana, coberta de moitas e rodeada pelos penhascos que eu havia mencionado, nos quais vi algo que parecia a entrada de um desfiladeiro. Parecia oferecer um caminho para a fuga. Arrastando-me até chegar perto da margem da água, me levantei e corri silenciosamente em direção ao regato, o qual deslizava sobre um leito rochoso e era pouco profundo, mal chegando aos joelhos. Os bandidos haviam se dispersado, formando uma lua crescente e percorrendo os arbustos. Eu os ouvia atrás de mim, e mais distantes a ambos os lados. Súbito, um deles uivou como um cão de caça que avista a presa:

- Lá vai ela! Parada, maldita!

Um arcabuz disparou, e a bala passou zunindo perto de minha orelha, mas continuei fugindo em disparada. Eles vieram fazendo estardalhaço e rugindo, através das moitas, atrás de mim – doze homens, usando morions e couraças, de espadas nas mãos.

Um deles saiu na própria margem do regato, enquanto eu atravessava a água; e, temendo uma estocada nas costas, me virei e o encontrei no meio da corrente. Ele veio, chapinhando a água feito um touro – um fanfarrão grande, de costeletas na face e espada na mão.

Cruzamos espadas, estocando, talhando e desviando, com a água na altura dos joelhos; e eu estava em desvantagem, pois a correnteza rodopiante me atrapalhava os movimentos dos pés. Sua espada batia em meu elmo, fazendo brilharem faíscas diante de meus olhos; e, ao ver os outros se aproximando, pus toda a minha força num ataque desesperado, e enfiei minha espada tão ferozmente entre seus dentes, que a ponta lhe atravessou o crânio e retiniu no forro de seu morion.

Puxei minha lâmina enquanto ele caía, tingindo o regato de escarlate e, naquele mesmo instante, uma bala de pistola me atingiu a coxa. Cambaleei, e logo recuperei o equilíbrio, saí mancando rapidamente da água e corri pela margem. Os bandidos estavam no regato, berrando ameaças e girando suas espadas. Alguns dispararam as pistolas, mas suas miras eram péssimas, e alcancei o penhasco, arrastando minha perna ferida. Minha bota estava cheia de sangue, e todo o membro estava dormente.

Mergulhei nos arbustos, em direção à entrada do desfiladeiro... depois parei, com um gélido desespero me agarrando o coração. Eu estava numa armadilha, pois só havia uma larga rachadura na rocha do penhasco, a qual seguia poucos metros adiante e depois se estreitava numa fenda. Formava um afiado triângulo, cujas paredes eram muito altas e perpendiculares para serem escaladas, com perna ferida ou não.

Os facínoras perceberam minha situação, e se aproximaram com gritos de triunfo. Caindo sobre meu joelho são, atrás das moitas na boca da rachadura, puxei a pistola e baleei o mais adiantado dos bandidos na cabeça. Aquilo lhes deteve o avanço e fez com que eles se dispersassem para se abrigarem. Os que estavam do outro lado do riacho mergulharam de volta nas árvores, enquanto os que haviam alcançado o lado de cá se espalhavam por entre as moitas próximas à margem.

Recarreguei minha pistola e fiquei próxima, enquanto eles berravam uns aos outros, e começavam a atirar com suas arcabuzes em direção ao meu esconderijo. Mas as pesadas balas voavam bem acima da minha cabeça, ou batiam em vão nas paredes rochosas. Dentro em pouco, notando um velhaco de barba negra se contorcer num espaço aberto, em direção a um arbusto mais próximo do meu refúgio, lhe alojei uma bala no corpo; diante disso, os outros gritaram, sedentos de sangue, e voltaram a atirar. Mas a distância era grande demais, para os que estavam do outro lado da margem dispararem um bom tiro, e os outros atiravam de ângulos difíceis, sem ousarem mostrar qualquer parte deles.

Logo, um gritou:

- Por que alguns de vocês, bastardos, não atravessam o riacho e encontram um lugar para subir o rochedo, para poderem atingir a meretriz por cima?

- Porque não podemos feri-la sem nos mostrarmos! – respondeu d’Valence, do seu esconderijo – E ela atira feito o próprio diabo. Esperem! Logo cairá a noite, e ela não poderá fazer mira no escuro. Ela não pode fugir. Quando estiver escuro demais para um bom tiro, correremos até ela e encerraremos este assunto com aço. A cadela está ferida, eu sei. Vamos aguardar.

Arrisquei um tiro distante em direção aos arbustos dos quais saía a voz de d’Valence, e pelo jorro de blasfêmias chamuscantes que causou, imagino que meu chumbo chegou perto demais para confortá-los.

Então, seguiu-se um período de espera, interrompido ocasionalmente por um tiro dentre as árvores. Minha perna ferida latejava e uma nuvem de moscas me cercava. O sol, que a princípio batia ferozmente na greta, se retirou, me deixando numa sombra escura, à qual eu era grata. Mas a fome me incomodava, até que a sede ficou tão feroz a ponto de me fazer esquecer a fome. A visão e o ruído sussurrante do riacho próximo me enlouqueciam. E a bala na minha coxa ardia tão intoleravelmente, que resolvi arrancá-la com minha adaga, e depois estancar o sangue, cobrindo o ferimento com folhas amarrotadas.

Eu não via saída; parecia que eu morreria lá, e comigo morreriam todos os meus sonhos de pompa e glória, e o brilhante esplendor e aventura. Os tambores obscuros, cuja batida eu havia procurado seguir, pareciam se apagar e afastar, como um distante sino fúnebre, deixando apenas as cinzas moribundas da morte e do esquecimento.

Mas, quando procurei pelo medo em minha alma, não o encontrei, nem encontrei arrependimento, nem qualquer mágoa. Melhor morrer ali, do que viver e envelhecer como as outras mulheres que eu havia conhecido. Pensei em Guiscard de Clisson, jazendo ao lado do cavalo morto, com sua cabeça banhada de sangue, e lamentei que a morte tivesse chegado até ele de uma forma tão infeliz, e que ele não tenha morrido como gostaria... num campo de batalha, com a bandeira de seu rei ondulando sobre ele, e o som das trombetas em seus ouvidos.

As horas se arrastaram lentamente. Por um momento, pensei ter ouvido um cavalo galopando, mas o som se apagou e parou. Ergui meu corpo entorpecido e amaldiçoei os mosquitos, desejando que meus inimigos atacassem enquanto ainda houvesse luz suficiente para atirar.

Então, enquanto eu os ouvia começarem a gritar uns para os outros na escuridão crescente, uma voz, acima e atrás de mim, me chamou a atenção e me fez erguer as pistolas, achando que eles finalmente haviam subido o penhasco.

- Agnes! – A voz era baixa e urgente – Não dispare! Sou eu, Etienne! – As moitas foram abertas, e um rosto pálido olhava sobre a borda da rachadura.

- Volte, idiota! – exclamei – Eles vão lhe balear como a um pombo!

- Eles não podem me ver de onde estão escondidos. – assegurou – Fale baixo, garota. Veja, vou descer esta corda. Ela está cheia de nós. Você pode subir? Não posso lhe arrastar para cima, com apenas um braço bom.

Uma súbita esperança me inflamou os olhos.

- Sim! – sibilei – Desça logo a corda e a amarre firme. Estou ouvindo-os cruzarem o regato.

Então, rapidamente, na escuridão crescente, um comprimento serpentino veio descendo o penhasco, e pus a mão nele.

Enrolando um joelho ao redor da corda, me arrastei para cima com o auxílio das mãos; e foi um trabalho penoso, pois a extremidade inferior da corda pendia livre, e eu dava voltas como um pêndulo. Então, toda a tarefa deveria ser feita somente com minhas mãos, pois minha perna ferida estava tão rígida quanto uma bainha de espada; e, de qualquer forma, minhas botas espanholas não foram feitas para escaladas com cordas.

Mas eu a completei, e me arrastei sobre a borda, no exato momento em que o cauteloso ranger de couro sobre a areia, e o tilintar do aço me avisaram que os bandidos estavam se reunindo perto da greta, para atacarem.

Etienne rapidamente recolheu a corda e, gesticulando para mim, tomou o caminho através das moitas, falando num tom apressado e nervoso:

- Ouvi os tiros enquanto seguia pela estrada; deixei meu cavalo amarrado na floresta e avancei silenciosamente a pé, para ver o que havia adiante. Vi Guiscard, caído e morto na estrada, e percebi, pelos gritos dos facínoras, que você estava encurralada. Conheço este lugar há muito tempo. Voltei furtivamente ao meu cavalo e cavalguei ao longo do riacho, até encontrar um lugar onde eu pudesse subir o despenhadeiro através de uma ravina. Fiz a corda com meu manto, rasgando-o em tiras e juntando-as com meu cinto e rédeas. Ouça!

Atrás e sob nós, brotou um louco clamor, de gritos e maldições.

- D’Alencon está mesmo ansioso por minha cabeça. – murmurou Etienne – Ouvi a conversa dos bandidos, enquanto me escondia por entre as árvores. Cada estrada que esteja ligada a Alencon está sendo patrulhada por bandos como estes, desde que aquele cão do taverneiro revelou ao duque que eu estava novamente nesta parte do reino.

“E agora você será caçada com a mesma intensidade. Eu conheço Renault D’Valence, capitão desses velhacos. Enquanto viver, sua vida não estará segura, pois ele se esforçará para destruir todas as provas de que foram os patifes deles que mataram Guiscad de Clisson. Aqui está meu cavalo. Não devemos demorar”.

- Mas por que você me seguiu? – perguntei.

Ele se voltou e me encarou – uma sombra de rosto pálido no anoitecer.

- Você estava errada quando disse que não havia débito entre nós. – ele disse – Eu lhe devo minha vida. Foi por mim que você enfrentou e matou Tristan Pelligny e seus ladrões. Por que continua me odiando? Você teve uma boa vingança por um plano errado. Aceitou Guiscard de Clisson como camarada. Não vai me deixar cavalgar para as guerras com você?

- Como camarada, e nada mais. – eu disse – Lembre-se de que não sou mais uma mulher.

- Como irmãos de armas. – ele concordou.

Estendi minha mão, e ele a dele, e nossos dedos se entrelaçaram brevemente.

- Mais uma vez, montaremos juntos o mesmo cavalo. – ele riu, recuperando a alegre cadência de seu espírito – Vamos embora, antes que esses cães encontrem o caminho para cá. D’Alencon bloqueou as estradas para Chartres, Paris e Orleans, mas o mundo nos pertence! Acho que há tempos vistosos diante de nós... aventuras, guerras e saques! Então... hei!! Para a Itália e todas as bravas aventuras!





(1) – Talabarte: Correia à qual se prende a arma a tiracolo (Nota do Tradutor).

(2) – Morion: Capacete usado por soldados europeus, nos séculos 16 e 17 (N. do T.)

(3) – Lansquenetes: Tropas mercenárias de infantaria alemã, do século 16 (idem).

(4) – Brigantina: Espécie de cota-de-malha, usada do século 16 ao 17 (ibidem).




Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão

Fontes: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Sword%20Woman%20-%20FF.txt e http://dreamers.com/lospulps/agnes.html
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