As Muitas Faces da Morte (The Devil in Iron)

por Robert E. Howard

Publicada originalmente em 1934.



1)

O pescador desatou sua faca da bainha. O gesto era instintivo, pois ele temia não haver nada que um canivete pudesse matar - nem mesmo a afiada lâmina curva do yuetshi, que poderia estripar um homem num golpe ascendente. Nem homem nem fera o ameaçavam na solidão que meditava na ilha acastelada de Xapur.

Ele havia galgado os rochedos, atravessado a floresta que os margeava, e agora estava cercado por sinais de uma nação desaparecida. Colunas quebradas vislumbravam-se entre as árvores; as linhas irregulares de paredes desagregadas serpenteavam pra fora das sombras, e, sob seus pés, haviam largas calçadas, quebradas e curvadas por raízes que cresciam por baixo.

O pescador era típico de sua raça, aquele estranho povo, cuja origem se perde no amanhecer cinzento do passado, e que havia morado em suas rudes choupanas de pescaria, ao longo da costa sul do Mar Vilayet, desde tempos imemoriais. Ele era largo, com longos braços simiescos e peito forte, mas com costas magras e pernas finas, arqueadas.

Seu rosto era largo, a testa baixa e inclinada; o cabelo, fino e emaranhado. Um cinto, para uma faca, e um farrapo, para servir de tanga, eram tudo o que ele tinha de roupa. Lá estava ele, mostrando que era mais curioso que muitos de sua gente. Os homens raramente visitavam Xapur. Era inabitada, apenas uma entre as milhares de ilhas que pontilhavam o grande mar interno. Os homens chamavam-na de Xapur, A Fortificada, por causa de suas ruínas, remanescentes de algum reino pré-histórico, perdido e esquecido antes que os conquistadores hiborianos houvessem cavalgado em direção ao sul. Ninguém sabia quem erguera aquelas pedras, embora lendas obscuras vagassem entre os yuetshis, cuja meia-compreensão sugeria um elo de antiguidade imensurável entre os pescadores e o desconhecido reino insular.

Mas, havia um milênio que algum yuetshi entendera a importância de tais lendas; eles agora a repetiam como uma fórmula sem sentido, de estrutura leviana aos lábios, por hábito.

Nenhum yuetshi viera a Xapur por um século. A costa adjacente da terra principal era inabitada; um pântano, cheio de juncos, deu lugar às feras medonhas que o assombravam. A aldeia de pescadores ficava um pouco distante, ao sul, na terra principal. Uma tempestade havia levado seu frágil barco pesqueiro para longe de seus lugares costumeiros, e o destruíra, numa noite de clarões chamejantes e de águas rugindo nos elevados penhascos da ilha. Agora, ao amanhecer, o céu brilhava azul e claro; o sol nascente dava o brilho das jóias às gotas que caíam das folhas. Ele havia escalado os penhascos, aos quais se agarrara durante a noite, porque, no meio da tempestade, ele vira uma lança aterradora de relâmpago bifurcar-se para fora dos céus negros e o choque de sua pancada, que havia sacudido a ilha inteira, fora acompanhado por um estrondo cataclísmico, o qual ele duvidava ser resultado de uma árvore quebrada.

Uma curiosidade cega fizera com que ele investigasse; agora, ele encontrou o que procurava, e um embaraço animal o dominou, uma sensação de perigo oculto. Por entre as árvores, erguia-se uma estrutura quebrada, em forma de domo, feita dos peculiares e gigantescos blocos verdes de pedra férrea, encontrados apenas nas ilhas do Vilayet. Parecia inacreditável que mãos humanas pudessem tê-las modelado e colocado; e, certamente, estava além da capacidade humana derrubar a estrutura que eles formaram.

Mas o raio havia estilhaçado toneladas de blocos feito vidro, reduzindo outros a poeira verde e arrancando quase toda a abóbada do domo.

O pescador galgou os escombros e perscrutou, e o que viu arrancou-lhe um grunhido. Dentro da cúpula arruinada, cercado pela poeira das pedras e por pedaços de alvenaria quebrada, jazia um homem sobre um bloco dourado. Ele vestia uma espécie de saia e um cinto de couro cru. Seu cabelo preto, que caía como uma juba quadrada em seus ombros maciços, estava preso às suas têmporas por uma fina faixa dourada. Sobre o musculoso peito nu, jazia uma estranha adaga, com o punho revestido de couro e incrustado de jóias, e a lâmina larga e curva. Era muito parecida com a faca que o pescador levava ao quadril, mas ela não tinha o gume serrado e era feita com muito mais habilidade.

O pescador ansiou pela arma. O homem, é claro, estava morto; havia morrido há muitos séculos. Aquele domo era seu túmulo. O pescador não teve curiosidade em saber de qual maneira os antigos preservaram o corpo, em tal vigor semelhante à vida, o qual mantivera os músculos dos membros grandes e cheios, e a carne escura vital. O cérebro obtuso do yuetshi só tinha lugar para seu desejo pela faca, com suas delicadas linhas curvas ao longo do brilho cegante da lâmina.

Arrastando-se para dentro do domo, ele ergueu a faca do peito do homem. Ao fazê-lo, algo estranho e terrível aconteceu. As mãos escuras e musculosas se emaranharam convulsivamente, as pálpebras brilhantes abriram-se, revelando olhos grandes, escuros e magnéticos que fitaram agressivamente o assustado pescador, como uma pancada física.

Este recuou, deixando cair a adornada faca, em sua perturbação. O homem no estrado levantou-se, ficando sentado, e o pescador escancarou a boca, mostrando todo o tamanho desta. Seus olhos estreitos agarraram o yuetshi e, naqueles globos rasgados, ele não viu amizade nem gratidão; viu apenas um fogo, tão alheio e hostil quanto o que brilha nos olhos de um tigre.

Subitamente, o homem ergueu-se acima dele, ameaçador em todos os aspectos. Não havia lugar, no obtuso cérebro do pescador, para o medo, pelo menos para o medo que poderia agarrar um homem que simplesmente vira as leis fundamentais da Natureza serem desafiadas. Quando as enormes mãos caíram-lhe aos ombros, ele puxou sua faca e arremeteu-a para cima num só movimento. A lâmina quebrou-se contra o abdômen do estranho, como se este fosse uma coluna de aço, e então o grosso pescoço do pescador quebrou-se como um fino galho podre nas mãos gigantes.


2)

Jehungir Agha, lorde de Khawarizm e guardião da fronteira litorânea, examinou, mais uma vez, o rolo de adornado pergaminho, com seu pavão carimbado, e sorriu, breve e sarcasticamente.

- Pois bem? – indagou seu conselheiro Ghaznavi.

Jehungir encolheu os ombros. Era um belo homem, com o orgulho impiedoso de nascença e talento.

- O rei está ficando impaciente. – ele disse – De próprio punho, ele se queixa amargamente daquilo que ele chama de minha falha em guardar a fronteira. Por Tarim, se eu não conseguir aplicar um revés nesses salteadores das estepes, Khawarizm poderá ter um novo lorde.

Ghaznavi puxou sua curta barba cinza, em reflexão. Yezdigerd, rei de Turan, era o mais poderoso monarca do mundo. Em seu palácio, na grande cidade portuária de Aghrapur, era amontoada a pilhagem de impérios. Suas frotas de navios-de-guerra, com velas púrpuras, fizeram do Vilayet um lago hirkaniano. O povo de pele escura de Zamora pagava-lhe o tributo, assim como as províncias orientais de Koth. Os shemitas se curvavam a seu governo até a distante Shushan, a oeste. Seus exércitos assolavam as fronteiras da Stygia, ao sul, e as terras nevadas dos hiperbóreos, ao norte. Seus cavaleiros abriam caminho à força, com tocha e espada, rumo a oeste, dentro da Britúnia, Ophir e Coríntia; até às fronteiras da Nemédia. Seus espadachins de elmos dourados haviam atropelado exércitos sob os cascos de seus cavalos, e cidades muradas ergueram-se em chamas ao seu comando. Nos abarrotados mercados de Aghrapur, Sultanapur, Khawarizm e Khorusun, mulheres eram vendidas por três pequenas moedas de prata: loiras britunianas, morenas stígias, zamorianas de cabelos escuros, kushitas de ébano e shemitas cor-de-oliva.

Todavia, enquanto seus velozes cavaleiros destruíam exércitos longe de suas fronteiras, nelas próprias um audacioso rival puxava-lhe a barba com mãos manchadas por fumaça e pingos rubros.

Nas largas estepes entre o Mar Vilayet e as fronteiras dos mais orientais reinos hiborianos, uma nova raça começara a soprar no último meio-século, formada originalmente por criminosos fugidos, homens falidos, escravos foragidos e soldados desertores. Eram homens de muitos crimes e países, alguns nascidos nas estepes; outros, fugindo dos reinos do Oeste. Eram chamados de kozaks, que significa vagabundos.

Morando nas estepes abertas e selvagens, não possuindo nenhuma lei, exceto seu próprio código, eles tornaram-se um povo capaz até de desafiar o Grande Monarca. Ininterruptamente, eles atacavam a fronteira turaniana, retirando-se para as estepes quando derrotados; com os piratas do Vilayet, homens em grande parte da mesma raça, eles assolavam a costa, saqueando os navios mercantes que trafegavam entre os portos hirkanianos.

- Como posso esmagar aqueles lobos? – indagou Jehungir – Se eu segui-los dentro das estepes, corro o risco, ou de ser isolado e destruído, ou deles me iludirem totalmente e queimarem a cidade na minha ausência. Ultimamente, eles têm sido mais ousados do que nunca.

- É por causa do novo líder que surgiu dentre eles. – respondeu Ghaznavi – Você sabe a quem me refiro...

- Sim! – respondeu Jehungir, intuitivamente – É aquele demônio... Conan; ele é ainda mais selvagem que os kozaks, embora seja astuto como um leão da montanha.

- É mais por selvagem instinto animal que por inteligência. – respondeu Ghaznavi – Os outros kozaks são, pelo menos, descendentes de homens civilizados. Ele é um bárbaro. Mas, livrar-se dele seria dar-lhes um golpe inutilizador.

- Mas como? – indagou Jehungir – Ele, várias vezes, se livrou de locais que lhe pareciam morte certa. E, instinto ou habilidade, ele tem evitado ou escapado de todas as ciladas feitas para ele.

- Para toda fera e para todo homem, há uma cilada da qual não escapa. – disse Ghaznavi – Quando negociamos com os kozaks pelo resgate de prisioneiros, observei este Conan. Ele tem uma aguda preferência por mulheres e por bebidas fortes. Traga aqui sua prisioneira Octavia.

Jehungir bateu palmas e um impressionante eunuco kushita, uma imagem de ébano brilhante em calças de seda, curvou-se diante deles e foi cumprir-lhes as ordens. Dentro em pouco, ele retornou, conduzindo pelo pulso uma bela garota alta, cujos cabelos amarelos, olhos claros e pele alva identificavam-na como um membro de sangue puro de sua raça. Sua túnica sumária de seda, atada à cintura, exibia os maravilhosos contornos de sua figura magnífica. Seus belos olhos brilhavam com ressentimento e seus lábios vermelhos estavam mal-humorados, mas a submissão fora ensinada a ela, em seu cativeiro. Ela ficou com a cabeça pendente diante de seu mestre, até que ele fez sinal para ela sentar-se no divã ao lado dele. Então, ele olhou interrogativamente para Ghaznavi.

- Temos que afastar Conan dos kozaks. – disse abruptamente o conselheiro – O acampamento de guerra deles está, no momento, assentado em algum lugar próximo do Rio Zaporoska, o qual, como você bem sabe, é um deserto de juncos; uma selva pantanosa, na qual nossa última expedição foi feita em pedaços por aqueles demônios sem dono.

- É pouco provável que eu esqueça aquilo. – disse Jehungir, com desagrado.

- Existe uma ilha inabitada, próxima à terra principal – disse Ghaznavi –, conhecida como Xapur, a Fortificada, por causa de algumas ruínas antigas nela. Há uma peculiaridade sobre
ela, que a faz perfeita ao nosso propósito: ela não tem praias, mas se ergue perpendicularmente do mar, em penhascos de 45 metros. Nem mesmo um macaco poderia galgá-los. O único lugar onde um homem pode subir ou descer é uma trilha estreita no lado oeste, a qual tem o aspecto de uma escada desgastada, escavada na sólida rocha dos penhascos.

- Se pudéssemos armar uma cilada para Conan, sozinho naquela ilha, poderíamos abatê-lo quando tivéssemos tempo, com flechas, como os homens caçam um leão.

- Também anseie pela lua. – disse Jehungir impaciente – Devemos enviar-lhe uma mensagem, convidando-o a subir os penhascos e esperar nossa vinda?

- Virtualmente, sim! – Vendo o olhar de espanto de Jehungir, Ghaznavi prosseguiu: – Ele pedirá uma negociação com os kozaks em relação aos prisioneiros, à orla das estepes pelo Forte Ghori. Como de costume, nós iremos com uma força e acamparemos fora do castelo. Eles virão, com uma força igual, e a negociação irá adiante, com as desconfianças e suspeitas de sempre. Mas, nessa hora, levaremos conosco, como que por acaso, sua bela cativa. – Octavia mudou de cor e escutou com interesse avivado, enquanto o conselheiro inclinou a cabeça na direção dela. – Ela usará todos os seus ardis para atrair a atenção de Conan. Não deverá ser difícil. Para aquele pirata selvagem, ela deve aparecer como uma maravilhosa visão de beleza. Sua figura vigorosa e firme deverá atraí-lo mais do que as beldades do seu harém.

Octavia explodiu, seus punhos brancos se fecharam, seus olhos faiscando e sua figura estremecendo com ultrajado ódio:

- Você me forçaria a bancar a prostituta com aquele bárbaro? – ela exclamou – Não irei! Não sou uma escrava de mercado pra dar sorrisos afetados e flertar com um ladrão das estepes! Sou a filha de um lorde nemédio.

- Você era da nobreza nemédia, antes de meus cavaleiros te levarem embora. – respondeu Jehungir cinicamente – Hoje, você é apenas uma escrava que procederá como ordenado.

- Não vou! – esbravejou ela.

- Ao contrário... – respondeu Jehungir, com premeditada crueldade – Você vai. Gosto do plano de Ghaznavi. Continue, príncipe entre conselheiros.

- Conan, provavelmente, vai querer comprá-la. Você se recusará a vendê-la, é claro, ou a trocá-la por prisioneiros hirkanianos. Ele poderá, então, tentar roubá-la ou tomá-la à força, embora eu não ache que, mesmo ele, quebraria a trégua. De qualquer forma, devemos estar preparados para tudo o que ele tentar. Então, logo após a negociação, antes que ele tenha tempo de esquecer tudo sobre Octavia, enviaremos uma mensagem a ele, sob uma bandeira de trégua, acusando-o de roubar a garota e exigindo a sua devolução. Ele poderá matar o mensageiro, mas, pelo menos, ele pensará que ela escapou. Então, mandaremos um pescador yuetshi, como espião, ao acampamento kozak, e ele dirá a Conan que Octavia está escondida em Xapur. Se eu conheço o homem, ele irá direto àquele lugar.

- Mas, não sabemos se ele irá sozinho. – argumentou Jehungir.

- Um homem leva um bando de guerreiros com ele, quando vai a um encontro com uma mulher que deseja? – retorquiu Ghaznavi – A chance dele ir sozinho é total. Mas, cuidaremos da outra alternativa. Nós não o esperaremos na ilha, onde podemos nós mesmos cair em armadilhas, mas entre os juncos de um ponto pantanoso, que sobressai mais de novecentos metros para dentro de Xapur. Se ele trouxer uma força numerosa, bateremos em retirada e pensaremos em outro plano. Se ele vier sozinho, ou com um pequeno grupo, nós o teremos. Pode ter certeza, ele chegará, lembrando-se do sorriso sedutor de sua escrava e suas olhadelas expressivas.

- Eu jamais me rebaixarei a tal vergonha! – Octavia estava louca de fúria e humilhação – Prefiro morrer!

- Você não vai morrer, minha beleza rebelde... – disse Jehungir – Mas será submetida a uma experiência muito dolorosa e humilhante.

Ele bateu as mãos e Octavia perdeu a cor. Desta vez, quem entrou não foi um kushita, mas um shemita, um homem musculoso de estatura mediana, com uma curta e encaracolada barba preto-azulada.

- Tem trabalho pra você aqui, Gilzan. – disse Jehungir – Pegue esta imbecil e divirta-se um pouco com ela. Só tome cuidado para não estragar sua beleza.

Com um grunhido inarticulado, o shemita agarrou o pulso de Octavia e, sob o domínio de seus dedos de ferro, toda a rebeldia se extinguiu dela. Com um choro lastimoso, ela lançou-se de joelhos diante do seu implacável mestre, soluçando incoerentemente por misericórdia. Com um gesto, Jehungir mandou o desapontado torturador retirar-se, e disse a Ghaznavi:

- Se seu plano der certo, encherei seu colo de ouro.


3)

Na escuridão que precede o amanhecer, um som incomum perturbou a solidão, que dormia sobre os pântanos cheios de juncos e as águas nebulosas da costa. Não era uma sonolenta ave aquática, nem uma fera despertando. Era um humano, que se movia com dificuldade através dos grossos juncos, os quais eram mais altos que um homem.

Era uma mulher e, se alguém pudesse vê-la, alta e de cabelos amarelos, seus membros magníficos modelados por uma túnica molhada. Octavia havia fugido em grande seriedade, com cada maltratada fibra sua formigando, da sua experiência em um cativeiro que se tornara insuportável.

O domínio de Jehungir sobre ela tinha sido bastante ruim; mas, com deliberada crueldade, Jehungir dera-a para um nobre, cujo nome era um provérbio de degeneração, até mesmo em Khawarizm.

A carne elástica de Octavia se arrepiava e estremecia às suas lembranças. O desespero havia encorajado-a a escalar do castelo de Jelal Khan, numa corda feita das tiras de tapeçarias rasgadas; e o acaso levou-a a um cavalo, amarrado a uma estaca. Ela cavalgara a noite inteira, e o amanhecer a encontrou com uma montaria exausta, nas praias pantanosas do mar. Trêmula de repugnância por ter sido arrastada ao revoltante destino, planejado pra ela por Jelal Khan, ela mergulhou no charco, buscando um esconderijo da perseguição que esperava. Quando os juncos ficaram esparsos ao seu redor e a água subiu-lhe quase à altura das coxas, ela viu o pálido vulto de uma ilha à sua frente, havia um largo vão de água no meio, mas ela não hesitou. Caminhou com dificuldade, até as ondas baixas se aproximarem da sua cintura; então, ela avançou fortemente, nadando com um vigor que prometia resistência incomum.

Enquanto se aproximava da ilha, ela viu que esta se erguia da água perpendicularmente, em penhascos que lembravam um castelo. Ela finalmente os alcançou, mas não encontrou nem um recife para sobressair-se sob as águas, nem para se agarrar acima delas. Ela nadou, acompanhando a curva dos penhascos, o esforço de sua longa fuga começando a pesar-lhe nos membros. Suas mãos agitaram-se ao longo da pedra íngreme e, subitamente, acharam uma depressão. Com um soluço ofegante de alívio, ela ergueu-se da água e agarrou-se ali, uma alva deusa molhada, na fraca luz das estrelas.

Ela se deparara com o que parecia serem degraus talhados no penhasco. Ela foi sobre eles, achatando-se contra a pedra, enquanto captou um frágil ruído de remos abafados. Ela estranhou o que viu e, embora vislumbrasse uma massa indistinta, movendo-se em direção ao ponto juncoso, ela simplesmente afastou-se. Mas estava muito distante dela para se ter certeza no escuro; e, dali a pouco, o frágil som cessou, e ela continuou sua subida. Se fossem seus perseguidores, ela saberia, naturalmente, se esconder na ilha. Ela sabia que muitas das ilhas daquela costa pantanosa eram inabitadas. Este poderia, talvez, ser um covil pirata; mas mesmo piratas eram preferíveis ao bruto do qual escapara.

Um pensamento errante cruzou-lhe a mente, enquanto ela subia, fazendo-a comparar mentalmente seu dono anterior com o chefe kozak, com o qual por coação ela havia vergonhosamente flertado, nas barracas do acampamento próximo a Forte Ghori, onde os lordes hirkanianos haviam conferenciado com os guerreiros das estepes. Seu fixo olhar ardente a havia amedrontado e humilhado, mas sua ferocidade honestamente natural colocava-o acima de Jelal Khan, um monstro tal como apenas uma rica civilização pode produzir.

Ela engatinhou sobre a borda do penhasco e olhou timidamente para as densas sombras que a confrontavam. As árvores cresciam perto dos penhascos, apresentando uma massa sólida de escuridão. Alguma coisa zuniu sobre sua cabeça e ela se encolheu, embora percebesse que era só um morcego.

Ela não gostou do aspecto daquelas sombras de ébano, mas cerrou os dentes e foi até elas, tentando não pensar nas cobras. Seus pés descalços não faziam barulho no esponjoso marga¹ sob as árvores.

Uma vez dentre elas, a escuridão se fechou assustadoramente sobre ela. Ela não tinha dado uma dúzia de passos e já não podia mais olhar para trás e ver os penhascos e o mar além destes. Poucos passos depois, ela ficou desesperadamente confusa e perdeu seu senso de direção. Através dos galhos emaranhados, nem mesmo uma estrela se deixava entrever. Ela andou às cegas e debateu-se cegamente, e então chegou a uma súbita parada.

Em algum lugar adiante, começou o bramido rítmico de um tambor. Não era o som que ela esperava ouvir naquela hora e local. Então, ela o esqueceu, enquanto sentia uma presença perto dela. Ela não podia ver, mas sabia que algo estava junto dela, na escuridão. Com um choro abafado, ela recuou e, enquanto fazia isto, algo, que mesmo em seu pânico ela reconheceu como um braço humano, se curvou na sua cintura. Ela guinchou e lançou toda a sua flexível força jovem, numa arremetida selvagem por liberdade, mas seu captor segurou-a como a uma criança, subjugando sua frenética resistência com facilidade. O silêncio, com o qual seu arrebatado protesto foi recebido, acrescentou-lhe terror, enquanto ela se sentiu sendo carregada, através do escuro, na direção do distante tambor, que ainda pulsava e murmurava.


4)

Enquanto o primeiro toque do amanhecer avermelhava o mar, um pequeno barco, com um ocupante solitário, aproximou-se dos penhascos. O homem no barco era uma imagem pitoresca. Um lenço escarlate estava amarrado ao redor de sua cabeça; os calções largos, de seda, de matiz rubra, eram seguros por uma faixa larga, que também segurava uma cimitarra numa bainha de couro cru. Suas botas de couro, com acabamento dourado, eram mais típicas de cavaleiro que de marujo, mas ele manejava seu bote com habilidade. Pela abertura de sua camisa de seda branca, mostrava-se o peito largo e musculoso, bronzeado pelo sol.

Os músculos de seus pesados braços bronzeados ondulavam, enquanto ele puxava os remos com uma facilidade quase felina de movimento. Uma vitalidade selvagem, que estava evidente em cada característica e movimento, diferenciava-o dos homens comuns; sua expressão não era selvagem nem sombria, embora os ardentes olhos azuis sugerissem ferocidade facilmente despertada. Este era Conan, que se aventurara para dentro dos acampamentos armados dos kozaks, sem nada, exceto sua inteligência e espada, e que talhara seu caminho para a liderança entre eles.

Ele remou para a escada entalhada, familiarizado com seus arredores, e amarrou o barco a uma projeção da rocha. Então, subiu os degraus desgastados sem hesitação. Ele estava vivamente alerta, não porque suspeitasse conscientemente de perigo oculto, mas porque a prontidão fazia parte dele, aguçada pela vida selvagem que ele seguia.

O que Ghaznavi havia considerado intuição animal, ou algum sexto sentido, eram apenas as capacidades afiadas e a inteligência selvagem do bárbaro. Conan não tinha instinto que lhe dissesse que havia homens, observando-o de um esconderijo entre os juncos da terra principal.

Enquanto ele subia o rochedo, um desses homens suspirou profundamente e, furtivamente, ergueu um arco. Jehungir agarrou-lhe o pulso e sibilou uma praga em seu ouvido:

- Idiota! Quer nos denunciar? Não percebe que ele está fora de alcance? Deixe-o chegar ao topo da ilha. Ele irá procurar a garota. Vamos ficar aqui por algum tempo. Ele pode ter sentido nossa presença aqui, ou imaginado o nosso plano. Ele pode ter guerreiros escondidos em algum lugar. Vamos esperar. Em uma hora, se não ocorrer nada suspeito, remaremos até o pé da escadaria e o esperaremos lá. Se ele não retornar em um tempo razoável, alguns de nós subirão a ilha e irão abatê-lo. Mas eu não gostaria de fazê-lo, se isto pode ser ajudado. Alguns de nós irão, certamente, morrer, se tivermos que entrar no mato atrás dele. Eu prefiro surpreendê-lo com flechas, a uma distância segura.

Nesse meio tempo, o confiante kozak havia mergulhado numa floresta. Ele seguiu silenciosamente em suas botas de couro macio, seu olhar atento examinando cuidadosamente toda sombra, em ânsia de avistar a esplêndida beldade de cabelos dourados, com a qual ele sonhava, desde que a vira na barraca de Jehungir Agha, em Forte Ghori. Ele a desejaria, mesmo se ela demonstrasse repugnância para com ele. Mas, seu sorriso e olhadela misteriosos ferveram-lhe o sangue e, com toda a violência bárbara que herdara, ele desejou aquela clara e loira mulher da civilização.

Ele havia estado antes em Xapur. Menos de um mês atrás, ele havia mantido uma reunião secreta com uma tripulação pirata. Ele sabia que estava se aproximando de um ponto, no qual podia ver as ruínas misteriosas que deram nome à ilha, e ele se perguntava se poderia encontrar a garota por entre elas. Mesmo com o pensamento, ele parou como se atacado mortalmente.

Diante dele, entre as árvores, erguia-se algo que a sua razão lhe dizia não ser possível. Era uma grande parede verde-escura, com torres erguendo-se além das ameias.

Conan ficou paralisado na ruptura de suas capacidades, a qual tira a coragem de qualquer um que é confrontado por uma impossível negação de sanidade. Ele não duvidou de sua visão, nem de sua razão, mas algo estava monstruosamente fora do comum. Há menos de um mês, somente ruínas despedaçadas apareciam entre as árvores. Quais mãos humanas poderiam erguer tal gigantesco pilar, como seus olhos agora encontraram, nas poucas semanas que decorreram? Além disso, os piratas, que percorriam incessantemente o Vilayet, ficariam sabendo de algum trabalho, andando em tão estupenda escala, e teriam informado os kozaks.

Não havia explicação para esta coisa, mas assim o era. Ele estava em Xapur, aquela fantástica ilha de pedras elevadas estava em Xapur, e tudo era loucura e contradição; no entanto, tudo era verdade.

Ele se virou, para correr através da selva, descer a escada entalhada e atravessar as águas azuis, até o distante acampamento, na foz no Zaporoska. Naquele momento de pânico absurdo, até a idéia de parar tão perto do mar interior era repugnante. Ele o deixaria pra trás, abandonaria os acampamentos armados, e colocaria mil milhas entre ele e o Leste azul e misterioso, onde as leis mais básicas da Natureza podiam ser zeradas por um diabolismo que ele não poderia calcular.

Por um instante, o futuro de reinos, que dependiam deste bárbaro de roupas alegres, penderam na balança. Era uma pequena coisa que equilibrava os pratos: meramente uma tira de seda, agarrada num arbusto, que pegou seu inquieto olhar de relance. Ele se inclinou pra ela, suas narinas se expandindo, seus nervos palpitando a um sutil estimulante. Naquele pedacinho de roupa rasgada, tão tênue que era, menos com suas faculdades físicas que por algum obscuro senso instintivo, ele a reconheceu; demorou-se no perfume provocante, que ele associou com a doce carne firme da mulher que vira na tenda de Jehungir. O pescador não havia mentido, então; ela estava lá! Então, ele viu, no solo, uma única pegada no marga; a marca de um pé descalço, longo e fino, porém de homem, não de mulher, e com uma profundidade maior que o normal. A conclusão era óbvia: o homem que fez aquela pegada estava carregando alguma coisa, e o que mais poderia ser, senão a garota que o kozak estava procurando?

Ele ficou encarando silenciosamente as torres escuras que avultavam através das árvores, seus olhos talhados em fogo azul. O desejo pela mulher de cabelos amarelos rivalizava com um ódio sombrio e primordial por quem quer que a houvesse raptado. Sua paixão humana lutava contra seus medos sobre-humanos e, abaixando-se como uma pantera que vai caçar, ele deslizou em direção aos muros, tirando vantagem das folhagens densas para escapar de ser descoberto pelas ameias.

Enquanto se aproximava, ele viu que os muros eram feitos da mesma pedra verde que moldara as ruínas, e foi assombrado por uma vaga sensação de familiaridade. Era como se olhasse algo que nunca vira antes, mas que já havia sonhado ou imaginado. Por fim, ele identificou a situação. As muralhas e torres seguiam a planta das ruínas. Era como se as linhas desagregadas tivessem voltado às estruturas originais.

Nenhum som perturbava a manhã tranqüila, enquanto Conan se movia silenciosamente ao pé da muralha, que se erguia absoluta da vegetação luxuriante. Nas extensões meridionais do mar interior, a vegetação era quase tropical. Ele não viu ninguém nas ameias, não escutou sons internos. Ele viu um pesado portão a uma pequena distância, à sua esquerda, e não havia razão para achar que não estava trancado e vigiado. Mas, ele acreditava que a mulher que ele estava procurando, estivesse em algum lugar além daquela parede, e a marcha que ele tomou era caracteristicamente indiferente.

Acima dele, galhos de trepadeiras se estendiam além das ameias. Ele subiu uma grande árvore feito um gato e, alcançando um ponto acima do parapeito, ele agarrou um galho grosso com ambas as mãos, balançou-se para trás e para frente, ao comprimento de um braço, até ganhar impulso, e então se atirou e catapultou-se pelo ar, pousando feito um gato nas ameias. Agarrando-se ali, ele olhou fixamente pra baixo, dentro das ruas de uma cidade.

A circunferência da parede não era grande, mas a quantidade de pedras verdes, das quais era construída, era surpreendente. Tinha três ou quatro pavimentos de altura, sobretudo o teto plano, revelando um fino estilo arquitetônico. As ruas convergiam, como os raios de uma roda, para um pátio octogonal no centro da cidade, este com um majestoso edifício, o qual, com suas cúpulas e torres, dominava a cidade inteira. Ele não viu ninguém caminhando pelas ruas, ou olhando para fora das janelas, embora o sol já avançasse. O silêncio que ali reinava poderia ser o de uma cidade morta ou deserta. Uma estreita escada de pedra se elevava no muro próximo; ele a desceu.

As casas se amontoavam tão próximas ao muro, que, no meio da descida da escada, ele se viu ao alcance de um braço de uma janela e parou para olhá-la com atenção. Não havia trancas, e as cortinas de seda eram amarradas com cordões de cetim. Ele examinou um compartimento, cujas paredes eram encobertas por tapeçarias de veludo escuro. O chão era coberto por pequenos e grossos tapetes felpudos; lá, haviam assentos de ébano polido e um estrado de marfim, abarrotado de peles.

Estava prestes a continuar descendo, quando ouviu o som de alguém se aproximando na rua abaixo. Antes que a pessoa ignorada pudesse dobrar a esquina e vê-lo na escada, ele rapidamente atravessou a janela e adentrou a sala, puxando sua cimitarra. Por um instante, ele ficou parado feito uma estátua; então, como nada ocorrera, avançou pelos tapetes felpudos até uma porta arcada, quando uma cortina foi puxada para o lado, revelando uma alcova almofadada, da qual uma delgada jovem de cabelos negros fitava-o com olhos lânguidos.

Conan olhou-a de forma tensa, esperando que ela logo começasse a gritar. Mas ela simplesmente sufocou um bocejo com uma delicada mão, se ergueu da alcova, e se inclinou negligentemente contra a cortina, que ela agarrou com uma das mãos. Ela era, indubitavelmente, um membro de uma raça branca, embora sua pele fosse bem escura. Seu cabelo de corte reto era negro como a meia-noite e, sua única roupa, uma tira de seda ao redor de seus flexíveis quadris.

Ela logo falou, mas a língua lhe era pouco familiar, e ele sacudiu a cabeça. Ela bocejou outra vez, estirou-se graciosamente e, sem nenhuma demonstração de medo ou surpresa, mudou para uma linguagem que ele entendeu, um dialeto do Yuetshi, o qual soou estranhamente arcaico.

- Você está procurando por alguém? – perguntou ela, de forma tão indiferente, como se a invasão de seu aposento por um forasteiro armado fosse a coisa mais comum de se imaginar.

- Quem é você? – ele indagou.

- Eu sou Yateli. – respondeu ela languidamente – Eu devo ter me banqueteado tarde, na noite passada. Estou com muito sono. Quem é você?

- Eu sou Conan, um hetman dos kozaks. – ele respondeu, observando-a estreitamente. Ele acreditou que a atitude dela fosse uma pose e esperou que ela tentasse fugir do quarto ou acordasse a casa. Mas, apesar de uma corda de veludo que poderia ser um cordão de aviso, pendurada perto dela, a jovem não estendeu a mão até ela.

- Conan. – ela repetiu, sonolenta – Você não é um dagoniano. Acho que você é um mercenário. Já cortou as cabeças de muitos yuetshis?

- Não luto com ratos de esgoto! – bufou ele.

- Mas eles são muito terríveis. – sussurrou ela – Eu lembro quando eles eram nossos escravos. Mas eles se rebelaram, queimaram e mataram. Somente a magia de Khosatral Khel os mantinha longe dos muros... – ela se interrompeu, um olhar perplexo lutava com a sonolência de sua expressão – Esqueci. – ela resmungou – Eles... subiram os muros, na noite passada. Houve gritos e fogo, e o povo implorando em vão a Khosatral.

Ela sacudiu a cabeça, como se para clareá-la.

- Mas aquilo não podia ser – ela murmurou –, pois estou viva e pensei que eu estivesse morta. Ah, pro diabo com isto!

Ela encontrou o quarto e, tomando a mão de Conan, puxou-o para o estrado. Ele sucumbia em perplexidade e incerteza. A garota sorriu para ele, como uma criança com sono; seus longos cílios sedosos curvados sobre olhos escuros e nebulosos. Ela correu os dedos pelas grossas madeixas negras do bárbaro, como que para se certificar que ele era real.

- Foi um sonho. – ela bocejou – Talvez seja tudo um sonho. Eu me sinto sonhando agora. Não me importo. Não consigo lembrar algo... eu esqueci... há algo que eu não consigo entender, mas fico muito sonolenta quando tento pensar. De qualquer modo, não importa.

- O que quer dizer? – ele perguntou inquietamente - Você disse que eles subiram os muros, na noite passada? Quem?

- Os yuetshis. Eu pensei assim, de qualquer forma. Uma nuvem de fumaça encobria tudo, mas um diabo nu e manchado de sangue me agarrou pela garganta e enfiou sua faca em meu peito. Oh, doeu! Mas era um sonho, porque, veja!... Não há cicatriz.

Ela, ociosamente, examinou seu suave busto e, então, mergulhou no colo de Conan e passou seus flexíveis braços sobre seu pescoço maciço.

- Não consigo lembrar. – ela sussurrou, aconchegando a cabeça escura contra o peito forte do cimério – Tudo é indistinto e nebuloso. Não importa. Você não é um sonho. Você é forte. Vamos viver enquanto podemos. Me ame!

Ele deitou a garota de cabeça brilhante na curva de seu braço pesado, e beijou-lhe os rubros lábios cheios, com sincero prazer.

- Você é forte. - ela repetiu, com a voz esmorecendo Me ame... me am...

O sonolento sussurro murchou; os olhos escuros fecharam-se, os longos cílios cerrando-se sobre as bochechas sensuais; o corpo flexível relaxou nos braços de Conan.

Ele franziu a testa para ela. Ela parecia fazer parte da ilusão que assombrava a cidade inteira, mas a firme elasticidade de seus membros, sob seus dedos aventureiros, o convenceu que havia uma garota humana viva em seus braços, e não a sombra de um sonho. Não menos perturbado, ele deitou-a rapidamente nas peles sobre o estrado. O sono dela era muito profundo para ser normal. Ele concluiu que ela deveria ser viciada em alguma droga, talvez como a lótus negra de Xuthal.

Então, ele encontrou uma outra coisa para surpreendê-lo. Entre as peles do estrado, havia uma magnífica pele marcada com pintas, cujo matiz principal era o dourado. Não era uma cópia engenhosa, mas uma autêntica pele de fera. E aquela fera, Conan sabia, havia sido extinta há pelo menos mil anos; era o grande leopardo dourado, que figura tão proeminentemente na lenda hiboriana, e à qual os antigos artistas se deleitavam a retratar em pigmentos e mármore.

Sacudindo a cabeça em perplexidade, Conan passou pelo arco, dentro de um corredor sinuoso. O silêncio pairava na casa, mas, do lado de fora, ele ouviu um som, o qual seus ouvidos aguçados reconheceram como algo subindo a escada, no muro onde ele adentrara a construção. Um momento depois, ele foi surpreendido ao ouvir algo pousar com uma pancada suave, porém pesada, no chão do quarto que ele havia deixado pouco antes. Virando-se rapidamente, ele se apressou ao longo do retorcido saguão, até que alguma coisa, no chão à sua frente, o fez parar.

Era uma figura humana, que estava deitada, metade no salão e metade numa abertura que, óbvio, era normalmente oculta por uma porta, a qual era uma cópia dos panos da parede. Era um homem, escuro e magro, vestindo apenas uma tanga de seda, com a cabeça raspada e feições cruéis, e jazia como se a morte o tivesse atacado no momento em que ele saía da cortina. Conan se curvou sobre ele, procurando-lhe a causa da morte, e descobriu que ele havia submergido no mesmo sono profundo que a garota no quarto.

Mas, por que ele escolheria tal lugar para seu sono? Enquanto meditava sobre o caso, Conan foi arrebatado por um som atrás de si. Algo se movia no corredor em sua direção. Uma rápida olhadela para baixo mostrou que ele terminava numa grande porta, a qual poderia estar trancada. Conan puxou bruscamente o corpo inerte, pra fora da entrada enfeitada com pano, e caminhou, puxando a cortina fechada atrás de si. Um estalido disse que ela estava engatada no lugar. Pondo-se de pé na escuridão total, ele ouviu um passo arrastado parar exatamente do lado de fora da porta, e um leve calafrio correu por sua espinha. Não havia passos humanos, nem os de qualquer fera que ele houvesse enfrentado.

Houve um instante de silêncio, e então um fino ranger de madeira e metal. Dirigindo sua mão, ele sentiu a porta esticando e dobrando pra dentro, como se um grande peso estivesse sendo solidamente sustentado contra ela, de fora. Enquanto ele estendia a mão para pegar sua espada, ela parou e ele ouviu um estranho e salivante abrir, que arrepiou os cabelos curtos de sua cabeça. Cimitarra na mão, ele começou a retroceder, e seus calcanhares sentiram degraus, sob os quais ele quase caiu. Ele estava em uma escada estreita, que o levava para baixo.

Ele tateou sua descida na escuridão, lamentando, mas não achando algum outro indo parar nas muralhas. Justamente quando ele concluiu que não estava mais na casa, mas mergulhado embaixo da terra, os degraus pararam num túnel plano.


5)

Ao longo do túnel escuro e silencioso, Conan tateava, receando momentaneamente uma queda, dentro de algum buraco invisível; mas, pelo menos, seus pés pisaram novamente em degraus, e ele os subiu até chegar a uma porta, na qual seus dedos, desajeitadamente, acharam um trinco de metal. Ele foi parar dentro de uma fosca e elevada sala, de enormes proporções. Colunas fantásticas avançavam sobre as paredes mosqueadas, sustentando um teto, o qual, outrora translúcido e escuro, parecia um céu nublado da meia-noite, dando uma ilusão de peso impossível. Se alguma luz se filtrava lá, vinda do lado de fora, ela era curiosamente modificada.

Numa longa e triste penumbra, Conan se movia através do chão verde e descoberto. A grande sala era circular, perfurada num lado pelas grandes válvulas de bronze de uma porta gigante. No lado oposto, num estrado contra a parede, sobre a qual havia largos degraus curvos, erguia-se um trono de cobre e, quando Conan viu o que estava enrolado sobre este trono, ele recuou apressadamente, erguendo sua cimitarra.

Então, como a coisa não se movia, ele a examinou mais de perto e, dentro em pouco, subiu os degraus de vidro e olhou-a fixamente. Era uma cobra gigantesca, aparentemente esculpida em alguma substância semelhante a jade. Cada escama se sobressaía tão nitidamente quanto na vida real, e as cores iridescentes eram intensamente reproduzidas. A grande cabeça em forma de cunha estava meio submersa nas dobras do seu tronco; só os olhos e presas não eram visíveis. O reconhecimento se agitava em sua mente. Era uma evidente representação de um dos monstros sombrios do pântano, que, em eras passadas, haviam assombrado as orlas juncosas das praias do sul do Vilayet. Mas, como o leopardo dourado, eles tinham sido extintos há centenas de anos. Conan vira imagens toscas delas, em miniaturas, entre as cabanas de ídolos dos yuetshis, e havia uma descrição delas, no Livro de Skelos, o qual redigia eras pré-históricas.

Conan admirou o tronco escamoso, grosso como sua coxa e, obviamente, de grande omprimento; e ele estendeu o braço, pondo uma mão curiosa na coisa. E, quando ele o fez, seu coração quase parou. Um arrepio gelado congelou o sangue em suas veias e eriçou os cabelos curtos de sua cabeça. Sob sua mão, não havia a superfície polida e quebradiça de vidro, metal ou pedra, mas a massa fibrosa de uma coisa viva. Ele sentiu vida fria e inerte, fluindo sob seus dedos.

Sua mão recuou bruscamente, em repulsa instintiva. A espada tremendo em seu punho; o horror, a reação e o medo quase asfixiando-o, ele retrocedeu e desceu os degraus de vidro, com árdua cautela, olhando ferozmente, em medonha fascinação, para a coisa pavorosa que dormitava sobre o trono de cobre. Ela não se movia.

Ele estendeu a mão à porta de bronze e forçou-a, com seu coração nos dentes e suando de medo, por se imaginar trancado com aquele horror delgado. Mas, as válvulas cederam ao seu toque e ele deslizou através delas, fechando-as atrás de si.

Ele se viu num largo saguão, com altas paredes cobertas por tapeçarias, onde a luz era a mesma escuridão crepuscular. Ela tornava indistintos os objetos distantes, e aquilo o deixava inquieto, despertando idéias de serpentes deslizando pela escuridão, sem serem vistas. Uma porta, na outra extremidade, parecia a milhas de distância, na luz ilusória. Mais próxima da mão, a tapeçaria pendia de tal modo que sugeria uma abertura atrás dela, e, levantando-a cuidadosamente, ele descobriu uma escada estreita que levava para cima. Enquanto hesitava, ele ouviu, na grande sala que tinha acabado de deixar, o mesmo passo arrastado que escutara do lado de fora da porta trancada. Será que ele estava sendo seguido pelo túnel? Ele subiu a escada apressadamente, baixando a tapeçaria no local atrás dele.

Indo parar num corredor retorcido, ele pegou a primeira entrada que alcançou. Ele tinha um duplo objetivo, em sua ronda aparentemente sem propósito: escapar daquela construção e seus mistérios, e encontrar a garota nemédia, a qual, ele sentia, fora aprisionada em algum lugar do palácio ou templo, ou o que quer que fosse. Ele acreditava que ali era o grande edifício abobadado do centro da cidade, e era provável que aqui morasse o governante da cidade, para o qual uma mulher cativa seria indubitavelmente levada.

Ele se viu num compartimento, não em outro corredor, e estava prestes a voltar, quando ouviu uma voz, vinda de trás de uma das paredes. Não havia porta naquela parede, mas ele se encostou bem perto e ouviu distintamente. E um arrepio gelado arrastou-se devagar, ao longo de sua espinha. A língua era o Nemédio, mas a voz era inumana. Havia uma aterradora ressonância sobre ela, como um sino dobrando à meia-noite.

- Não havia vida no Abismo, a não ser a que fora incorporada em mim. – disse a voz – Nem havia luz, nem movimento, nem som algum. Apenas o anseio, por trás e além, me guiava e me impelia na minha jornada para o alto... cega, insensata, inexorável. Após eras sobre eras, eu galguei a camada imutável...

Enfeitiçado pela ressonância, Conan agachou-se, esquecido de tudo, até que aquele poder hipnótico causou uma estranha substituição das faculdades e percepção, e o som criou a ilusão de vista. Conan não estava consciente da voz, exceto pelas ondas rítmicas de som.

Transportado para além de sua época e de sua própria individualidade, ele foi vendo a transformação do ser chamado Khosatral Khel, arrastando-se da Noite e do Abismo, eras atrás, para se vestir na substância do universo material.

Mas, a carne humana era muito frágil e insignificante para suportar a espantosa essência que era Khosatral Khel. Então, ele ergueu-se na forma e aspecto de um homem, mas sua carne não era carne; os ossos não eram ossos, nem seu sangue era sangue. Ele se tornou uma blasfêmia contra toda a Natureza, por ter decidido viver, pensar e agir uma substância básica que nunca antes conhecera o pulso e a atividade de um ser animado.

Ele andou altivamente pelo mundo como um deus, ao qual nenhuma arma terrestre pudesse danificar, e, para ele, um século era como uma hora. Em suas perambulações, ele caiu sobre um povo primitivo que habitava a ilha de Dagônia, e ela o agradou, a ponto dele dar cultura e civilização a esta raça e, com sua ajuda, eles construíram a cidade de Dagon, moraram lá e o cultuaram. Estranhos e pavorosos eram seus criados, trazidos das regiões obscuras do planeta, onde sobreviventes sombrios de eras esquecidas ainda se escondiam.

Sua casa em Dagon era conectada com todas as outras casas, por túneis, através dos quais seus sacerdotes de cabeça raspada traziam vítimas para o sacrifício.

Mas, depois de muitas eras, um povo bruto e feroz apareceu nas praias marinhas. Eles se chamavam yuetshis e, após uma feroz batalha, foram derrotados e escravizados; e, por quase uma geração, eles morreram nos altares de Khosatral.

Sua feitiçaria os manteve retidos. Então, o sacerdote deles, um homem estranho e magro, de raça desconhecida, mergulhou nos desertos e, quando voltou, trazia uma faca que não era de substância terrestre. Ela foi forjada de um meteoro, o qual faiscara através do céu como uma flecha flamejante, e caíra num vale distante. Os escravos se rebelaram. Suas adagas curvas abateram os homens de Dagon como se fossem carneiros e, contra aquele punhal alienígena, a magia de Khosatral Khel era impotente. Enquanto a matança e a carnificina bramiam através da fumaça vermelha que calçava as ruas, o ato mais sombrio daquele drama implacável foi feito na cripta abobadada, atrás da grande sala, com seu trono de cobre e suas paredes mosqueadas como peles de serpentes.

Daquele domo, o sacerdote yuetshi se erguera sozinho. Ele não matara seu rival, porque ele desejava manter uma ameaça solta sobre a cabeça de seus próprios rebeldes. Ele deixara Khosatral jazendo sobre o estrado, com a adaga mística sobre o peito, e um encantamento para mantê-lo insensível e inanimado até o dia do juízo.

Mas, as eras passaram e o sacerdote morreu; as torres da abandonada Dagon desmoronaram, as histórias se tornaram obscuras e os yuetshis foram diminuídos, por epidemias, fome e guerra, a remanescentes dispersos, morando miseravelmente ao longo do litoral marinho.

Apenas o domo críptico resistiu à decomposição do tempo, até que um relâmpago casual e a curiosidade de um pescador levantaram, do peito do deus, a lâmina mágica e quebraram o encantamento. Khosatral Khel ergueu-se, viveu e ficou poderoso, mais uma vez. Agradou-lhe restaurar a cidade, como ela era nos dias anteriores à sua queda. Com sua necromancia, ele ergueu as torres da poeira dos milênios esquecidos; e o povo, que fora pó durante eras, voltou a viver.

Mas, o povo que já experimentara a morte, era apenas parcialmente vivo. Nos cantos escuros de suas mentes e almas, a morte ainda se esconde invicta. À noite, o povo de Dagon caminhava, amava, odiava e se banqueteava, lembrando-se da queda de Dagon e seus próprios assassinatos, apenas como um sonho. Com a chegada do dia, eles caíam num sono profundo, para serem despertados só ao chegar da noite, a qual assemelha-se à morte.

Tudo isso rolava-se num terrível panorama, na consciência de Conan, enquanto ele se agachava ao lado da parede decorada com tapetes. Toda a certeza e sanidade foram varridas, deixando um universo sombrio, através do qual se moviam, furtivamente, figuras encapuzadas, de medonhas potencialidades. Através da ressonância da voz, a qual era como um anúncio de triunfo sobre as leis dispostas de um planeta sensato, um som histérico ancorou a mente de Conan do seu vôo através das esferas da loucura. Era o soluço histérico de uma mulher.

Involuntariamente, ele ergueu-se em um pulo.


6)

Jehungir Agha esperou com crescente impaciência, em seu barco por entre os juncos. Mais de uma hora passara e Conan não havia reaparecido. Sem dúvida, ele ainda procurava, na ilha, pela garota que ele imaginou escondida lá. Mas uma outra suposição ocorreu a Agha. Teria o hetman deixado seus guerreiros muito próximos, e eles, desconfiados, teriam ido investigar sua longa ausência? Jehungir falou com o remador, e o longo bote deslizou, de dentro dos juncos, em direção às escadas esculpidas.

Deixando meia dúzia de homens no bote, ele levou o restante, dez poderosos arqueiros de Khawarizm, com elmos espiralados e mantos de pele de tigre. Como caçadores que invadem o refúgio do leão, eles penetraram por debaixo das árvores, com flechas nos cordões dos arcos. O silêncio reinava sobre a floresta, exceto quando uma grande coisa verde, que poderia ser um papagaio, rodopiou sobre suas cabeças, com um pequeno estrondo de suas largas asas, e então voou por entre as árvores. Então, com um gesto repentino, Jehungir deteve seu bando, e eles ficaram incrédulos diante das torres que apareciam à distância, por trás do verdor.

- Tarim! – resmungou Jehungir - Os piratas reconstruíram as ruínas! Sem dúvida, Conan está lá. Precisamos investigar isto. Uma cidade fortificada, perto da terra principal!... Venham!

Com precaução redobrada, eles deslizaram por entre as árvores. O jogo foi mudado: de perseguidores e caçadores, eles se tornaram espiões.

E, enquanto eles se moviam furtivamente pela vegetação emaranhada, o homem que eles procuravam estava em perigo mais mortal que suas flechas delicadas.

Conan percebeu, com um arrepio de sua pele, que, além da parede, a voz ressonante havia cessado. Ele ficou parado como uma estátua, seu olhar atentamente fixo numa porta cortinada, através da qual ele sabia que um horror culminante iria logo aparecer.

A sala estava obscura e nebulosa, e o cabelo de Conan começou a eriçar, enquanto olhava. Ele viu uma cabeça e um par de ombros gigantescos saindo da porta crepuscular. Não havia som de passos, mas a grande forma escura ficou mais distinta, até Conan reconhecer a figura de um homem. Estava vestido com sandálias, uma saia e um largo cinturão de couro cru. Sua juba de corte reto era retida por um círculo de ouro. Conan encarou a curva de seus ombros monstruosos, a largura de seu peito volumoso; as faixas, sulcos e agrupamentos dos músculos no tronco e membros. O rosto era desprovido de fraqueza e misericórdia. Os olhos eram bolas de fogo escuro. E Conan estava ciente que aquele era Khosatral Khel, o patriarca do Abismo, o deus de Dagônia.

Nenhuma palavra foi dita. Nenhuma palavra era necessária. Khosatral abriu seus grandes braços, e Conan, agachando-se sob eles, deu um talho na barriga do gigante. Então, o cimério pulou para trás, com os olhos brilhando de surpresa. A lâmina afiada havia retinido no poderoso corpo, como se numa bigorna, ecoando sem cortar. Então, Khosatral caiu sobre ele, num irresistível vagalhão.

Houve um choque veloz, uma feroz contorção e entrelaçamento de membros e corpos, e então Conan pulou fora, com todos os músculos estremecendo pela violência de seus esforços; o sangue latejando, onde os dedos escoriantes haviam rasgado a pele. Naquele instante de contato, ele havia experimentado a última loucura da Natureza blasfemada: nenhuma carne humana o havia ferido, mas metal animado e com sensações; era um corpo de ferro vivo que lhe havia resistido.

Khosatral avultou sobre o guerreiro na escuridão. Uma vez deixando aqueles grandes dedos aprisionarem, eles não afrouxarão até o corpo humano ficar flácido em seu domínio. Naquela câmara escura, era como se um homem lutasse contra um monstro saído de um pesadelo noturno.

Lançando pra baixo sua espada sem uso, Conan pegou um banco pesado e o atirou com toda a sua força. Foi um projétil tal, que poucos homens conseguiriam sequer levantar. No peito poderoso de Khosatral, ele se despedaçou em trapos e tiras de madeira. Ele nem sequer balançou o gigante sobre suas pernas robustas. Seu rosto perdeu um pouco do aspecto humano, o fogo tremulou ao redor de sua terrível cabeça e, como uma torre móvel, ele avançou.

Com um desesperado puxão violento, Conan arrancou uma parte interna da tapeçaria da parede e, rodopiando-a com um esforço muscular maior que aquele exigido para lançar o banco, ele a arremessou sobre a cabeça do gigante. Por um instante, Khosatral se debateu, se sufocou e ficou cego, devido ao pano agarrado, que resistiu à sua força como madeira ou aço nunca teriam feito, e, naquele instante, Conan apanhou sua cimitarra e disparou pra dentro do corredor. Sem frear sua velocidade, ele se arremessou pela porta da sala vizinha, bateu a porta e atravessou rapidamente o ferrolho.

Então, enquanto se virava, ele parou abruptamente, com todo o seu sangue parecendo rolar até sua cabeça. Agachada numa pilha de almofadas de seda, o cabelo dourado fluindo sobre seus ombros nus, os olhos pasmados de terror, estava a mulher pela qual ele havia se arriscado tanto. Ele quase esqueceu o horror em seus calcanhares, até que um ruído estilhaçante atrás de si devolveu-lhe os sentidos. Ele agarrou a garota e se lançou a uma outra porta. Ela estava muito impotente de terror, fosse para resistir a ele, ou para ajudá-lo. Uma débil lamúria era o único som do qual ela parecia capaz.

Conan não perdeu tempo testando a porta. Um golpe despedaçante de sua cimitarra cortou a fechadura em pedaços e, enquanto ele se lançava pela escada que avultava depois da porta, ele viu a cabeça e ombros de Khosatral despedaçando a outra porta. O colosso estava desfiando as maciças barras da porta como se fossem de papelão.

Conan subiu a escada, correndo e carregando a grande garota sobre um dos ombros, tão facilmente quanto se ela fosse uma criança. Para onde ia, ele não tinha idéia, mas a escada terminou na porta de um quarto redondo e abobadado. Khosatral vinha subindo a escada atrás deles, silencioso como um vento de morte, e tão rápido quanto.

As paredes do quarto eram de aço sólido, assim como a porta. Conan fechou-a e pôs no lugar todas as trancas com as quais ela era guarnecida. Veio-lhe à imaginação que aquele era o quarto de Khosatral, onde ele se trancava por dentro, para dormir seguro dos monstros que soltara da Cova para cumprirem suas ordens.

Mal estavam as trancas no lugar, quando a grande porta sacudiu e tremeu ao ataque do gigante. Conan encolheu os ombros. Este era o fim do caminho. Não havia outra porta no quarto, e nenhuma janela. Ar, e a estranha luz brumosa, vinham, evidentemente, das fendas na cúpula. Ele testou o fio marcado de sua cimitarra, tão frio agora quanto era na baía. Ele havia feito seu vulcânico melhor para escapar; quando viesse arrebentando aquela porta, ele explodiria em outro furioso ataque selvagem com a ineficaz espada, não porque esperasse sair-se bem, mas porque era de sua natureza morrer lutando. No momento, não havia curso de ação para seguir, e sua calma não foi forçada, nem fingida.

O olhar fixo, que ele dirigiu em sua bela companheira, foi tão admirador e intenso quanto se ele tivesse cem anos para viver. Ele havia descarregado-a sem cerimônia no chão, quando virou para fechar a porta, e ela havia se erguido em seus joelhos, dispondo mecanicamente seus fechos gotejantes e suas roupas escassas. Os olhos ferozes de Conan arderam de aprovação, enquanto devoravam seu abundante cabelo dourado, seus arregalados olhos claros; sua pele leitosa, macia e com saúde exuberante, a firme dilatação de seus seios e o contorno de seus esplêndidos quadris.

Um choro baixo escapou dela, enquanto a porta sacudia e um ferrolho cedia com um estalo. Conan não olhou em redor. Ele sabia que a porta iria resistir por mais algum tempo.

- Me contaram que você havia escapado. – ele disse – Um pescador yuetshi me falou que você estava escondida aqui. Qual o seu nome?

- Octavia. – arquejou ela, mecanicamente. Então, as palavras vieram num ímpeto. Ela o agarrou, com dedos desesperados: – Oh, Mitra! Que pesadelo é este? O povo... o povo de pele escura... um deles me pegou na floresta e me trouxe pra cá. Eles me levaram para... para aquela... aquela coisa. Ele me contou... ele disse... estou louca? Isto é um sonho?

Ele olhou de relance a porta, cujo bojo interno se assemelhava ao impacto de um aríete.

- Não. – ele disse – Não é um sonho. Aquela dobradiça está cedendo. Estranho que um demônio tenha que arrebentar uma porta como um homem comum; mas, apesar de tudo, sua força, por si só, já é um diabolismo.

- Você não pode matá-lo? – ofegou ela – Você é forte.

Conan era honesto demais para mentir pra ela.

- Se algum mortal pudesse matá-lo, ele agora estaria morto. – ele respondeu – Arranhei minha lâmina em sua barriga.

Os olhos dela perderam o brilho:

- Então você morrerá, e eu também... oh, Mitra! – ela guinchou em súbito frenesi, e Conan pegou-lhe as mãos, temendo que ela se ferisse – Ele me falou o que vai fazer comigo! – ela ofegou – Me mate! Mate-me com sua espada, antes que ele arrombe a porta!

Conan olhou para ela e sacudiu a cabeça.

- Farei o que puder. – ele disse – Não será muito, mas lhe darei uma chance de escapar dele, descendo a escada. Então, corra para os penhascos. Tenho um bote amarrado ao pé das escadas. Se você conseguir sair do palácio, ainda pode escapar. O povo desta cidade é todo adormecido.

Ela deixou a cabeça cair nas mãos. Conan ergueu a cimitarra e seguiu para ficar em frente à porta ressoante. Quem o olhasse, não acharia que ele estava esperando por uma morte que considerava inevitável. Seus olhos brilhavam mais vivamente; sua mão musculosa se enlaçava com mais força no punho de sua espada; aquilo era tudo.

As dobradiças haviam cedido à terrível investida do gigante, e a porta sacudia loucamente, segura apenas pelos ferrolhos. E aquelas sólidas barras de ferro estavam vergando, entortando e se destacando pra fora de seus encaixes. Conan observava numa fascinação quase impessoal, invejando a força inumana do monstro.

Então, sem aviso, o bombardeio cessou. Na quietude, Conan ouviu outros ruídos, do outro lado do patamar da escada... o bater de asas e uma voz murmurante, que era como o gemido do vento sobre os galhos da meia-noite. Então, daí a pouco, houve silêncio, mas havia uma nova sensação no ar. Apenas os sentidos aguçados da barbárie poderiam senti-la, mas Conan sabia, sem ver ou ouvir sua partida, que o mestre de Dagon não estava do outro lado da porta.

Ele olhou ferozmente através de uma fenda que fora iniciada no aço do portal. O patamar da escada estava vazio. Ele puxou as trancas empenadas e, cuidadosamente, empurrou para o lado a porta vergada. Khosatral não estava na escada, mas lá embaixo ele ouviu o estrondo de uma porta de metal. Ele não sabia se o gigante estava planejando novas crueldades, ou se fora chamado pela voz murmurante, mas não perdeu tempo em conjecturas.

Ele chamou por Octavia, e o seu novo tom de voz colocou-a de pé, ao seu lado, quase que sem sua vontade consciente.

- O que é? – ela arfou.

- Não pare pra conversar! – ele pegou seu pulso. – Vamos! – A chance para ação o havia transformado; seus olhos resplandeciam, sua voz crepitava. – A lâmina! – ele murmurou, enquanto quase arrastava a garota pela escada em sua pressa feroz: – A adaga mágica yuetshi! Ele a deixou dentro da cúpula!... – sua voz morreu repentinamente, enquanto uma clara imagem mental estalou diante dele. Aquela cúpula era adjacente ao grande salão onde se erguia o trono de cobre... o suor brotou de seu corpo. O único caminho para aquele domo era através do salão com o trono de cobre e a coisa repugnante que dormia nele.

Mas ele não hesitou. Rapidamente, eles desceram a escada, atravessaram outra sala, desceram a escada seguinte e adentraram o grande salão obscuro, com suas misteriosas colgaduras. Eles não viram sinal do colosso. Parando diante da grande porta de válvula de bronze, Conan pegou Octavia e sacudiu-a intensamente.

- Escute! – falou ele bruscamente – Estou indo pra dentro da sala, e segure a porta. Fique aqui e ouça: se Khosatral vier, me chame. Se me ouvir gritar por você, corra como se o Diabo estivesse em seus calcanhares... e ele provavelmente estará. Dirija-se daquela porta à outra, no fim do salão, porque eu passarei pra te salvar. Irei buscar a adaga yuetshi!

Antes que ela pudesse exprimir o protesto que seu lábios estavam planejando, ele havia deslizado pelas válvulas e fechou-as atrás dele. Ele baixou cuidadosamente a tranca, sem avisar que ela poderia ser operada do lado de fora. Na pálida meia-luz, seu olhar atento buscava aquele sombrio trono de cobre; sim, a fera escamosa ainda estava lá, preenchendo o trono com seus rolos repugnantes. Ele viu uma porta atrás do trono e soube que ela o guiava até lá. Mas, para alcançá-lo, ele teria de galgar o estrado, a poucos pés do próprio trono.

Um vento, soprando ao longo do chão verde, faria menos barulho que os pés furtivos de Conan. Com os olhos grudados no réptil adormecido, ele alcançou o estrado e galgou os degraus de vidro. Ele estava alcançando a porta...

A tranca no portal de bronze retiniu e Conan reprimiu uma enorme blasfêmia, enquanto viu Octavia adentrar a sala. Ela olhava fixamente ao redor, incerta na mais profunda escuridão, e ele ficou congelado, não se atrevendo a gritar um aviso. Então, ela viu sua figura sombreada e correu em direção ao estrado, gritando:

- Quero ir com você! Tenho medo de ficar sozinha... Oh!

Ela lançou as mãos para o alto, com um guincho terrível, quando, pela primeira vez, ela viu o ocupante do trono. A cabeça em forma de cunha erguera-se de seus rolos e se arremeteu pra fora em direção a ela, numa jarda² de pescoço brilhante.

Então, com um suave movimento fluido, começou a verter do trono, rolo a rolo, sua cabeça horrenda bamboleando-se na direção da garota paralisada.

Conan transpôs o espaço entre ele e o trono, com um salto desesperado, sua cimitarra balançando com toda a força dele. E a serpente se moveu com tal velocidade cegante, que ela se fustigou pra cima e o encontrou em pleno ar, dobrando seus membros e corpo, com meia-dúzia de rolos. Seu ataque repentino se tornou fútil, quando ele se espatifou no estrado, cortando o tronco escamoso, mas sem separá-lo.

Então, ele foi contorcido nos degraus de vidro, dobra após dobra delgada se prendendo a ele, enlaçando-o, espremendo-o, matando-o. Seu braço direito ainda estava livre, mas ele não conseguia adquirir um meio de arremeter um golpe mortal, e ele sabia que um golpe deveria bastar. Com uma dolorosa convulsão de expansão muscular que inchou-lhe as veias, quase arrebentando suas têmporas e unindo seus músculos em nós trêmulos e torturados, ele ergueu-se sobre os pés, levantando quase todo o peso daquele demônio de 12 metros.

Num instante, ele se moveu, vacilante, em pernas largamente firmadas, sentindo suas costelas escavarem seus órgãos vitais, e sua vista escurecendo, enquanto sua cimitarra raiou acima de sua cabeça. Então, a espada caiu, cortando através de escamas, carne e vértebras. E, onde havia uma enorme cabeça contorcida, agora haviam horrivelmente duas, batendo e sacudindo nas convulsões da morte. Conan cambaleou de seus ataques cegos.

Ele tinha enjôo e vertigens, e o sangue escorria por seu nariz. Tateando numa bruma escura, ele agarrou Octavia e sacudiu-a até ela ofegar por respiração.

- Na próxima vez que eu lhe disser pra ficar em algum lugar... – ele ofegou – Você fica!

Ele estava vertiginoso demais, até para saber o que ela respondeu. Agarrando-lhe o pulso, como se ela fosse uma aluna negligente, ele a conduziu ao redor da cepa medonha que ainda avultava e se enrolava no chão. Em algum lugar, à distância, ele pensou ter ouvido homens gritando, mas seus ouvidos ainda zuniam tanto que ele podia não ter certeza.

A porta cedeu aos seus esforços. Se Khosatral colocara a cobra lá, para guardar a coisa que ele temia, evidentemente ele considerava-a ampla precaução. Conan quase esperou que uma outra monstruosidade se lançasse a ele, com o abrir da porta, mas, naquela luz mais turva, ele viu apenas a vaga curva de um arco no alto, o fraco vislumbre de um bloco de ouro e uma fraca luz em meia-lua, sobre a pedra.

Com um suspiro de alívio, ele tirou-a de lá e não se demorou com mais exploração. Ele virou-se, correu através da sala e desceu o grande salão, em direção à distante porta, a qual ele percebia que levava ao espaço externo. Ele estava certo. Poucos minutos depois, saiu pelas ruas silenciosas, meio carregando, meio guiando sua companheira. Não havia ninguém a ser visto, mas, além da parede oeste, foram ouvidos guinchos e lamentosos gritos de dor, que fizeram Octavia tremer. Ele a levou para o muro sudoeste e, sem dificuldade, encontrou uma escada de pedra, que subia a rampa. Ele se apropriara de uma grossa corda de tapeçaria no grande salão, e agora, tendo alcançado o parapeito, ele amarrou o cordão macio e forte ao redor do quadril da garota e baixou-a à terra. Então, amarrando rapidamente uma das pontas da corda a uma ameia, ele deslizou para baixo depois dela. Havia, porém, um único meio de escapar da ilha... a escada nos penhascos ocidentais. Ele correu naquela direção, contornando à distância o local de onde vieram os gritos e os sons dos terríveis golpes.

Octavia percebeu aquele perigo sombrio espreitando naquela fortaleza folhada. Seu fôlego veio ofegante, e ela encolheu-se a seu protetor. Mas, agora, a floresta estava silenciosa e eles não viram forma de ameaça alguma, até que saíram das árvores e perceberam rapidamente uma figura de pé, na borda dos penhascos.

Jehungir Agha escapara do destino que surpreendera seus guerreiros, quando um gigante de ferro saiu repentinamente do portão, os quebrou e esmagou em pequenos pedaços de carne retalhada e ossos estilhaçados. Quando viu as espadas de seus arqueiros quebrarem nele, ele ficou sabendo que não era um inimigo humano que eles enfrentavam, e fugiu, se escondendo nas florestas profundas, até os sons da matança cessarem. Então, silenciosamente, voltou para a escada, mas seus remadores não estavam esperando por ele.

Eles haviam escutado os gritos estridentes e, daí a pouco, esperando nervosamente, viram, no penhasco acima deles, um monstro manchado de sangue, agitando braços gigantescos em medonho triunfo. Eles não esperaram mais nada. Quando Jehungir alcançou os penhascos, eles haviam acabado de sumir entre os juncos além da terra. Khosatral havia ido embora... ou retornara à cidade, ou estava rondando a floresta, em busca do homem que havia fugido dele, do outro lado dos muros.

Jehungir estava justamente se preparando para descer as escadas e partir no bote de Conan, quando ele viu o hetman e a garota saírem das árvores. A experiência, que congelara seu sangue e quase secou-lhe a razão, não alterou as intenções de Jehungir com relação ao chefe kozak. A visão do homem que ele viera matar encheu-o de satisfação. Ele estava surpreso em ver a garota que dera a Jelal Khan, mas não perdeu tempo com ela.

Erguendo o arco, ele puxou a flecha até a cabeça e atirou. Conan se agachou, a haste se estilhaçou numa árvore e Conan riu.

- Cão! – ele disse, com escárnio – Você não pode me atingir! Não nasci para morrer no aço hirkaniano! Tente de novo, porco de Turan.

Jehungir não tentou novamente. Era sua última flecha. Ele puxou a cimitarra e avançou, confiante em seu elmo espiralado e sua cota-de-malha. Conan o recebeu a meio caminho, num cegante rodopio de espadas. As lâminas curvas rangiam juntas, pulavam umas das outras, girando em arcos brilhantes que obscureciam a vista de quem tentasse acompanhá-las.

Octavia, observando, não viu o golpe, mas ela ouviu seu impacto retalhante e viu Jehungir cair, o sangue jorrando do seu lado, onde o aço do cimério partira sua malha e dilacerara sua espinha.

Mas, o guincho de Octavia não foi causado pela morte de seu primeiro dono. Com um estrondo de galhos torcidos, Khosatral Khel estava sobre eles. A garota não conseguiu fugir; um grito lamentoso escapou dela, enquanto seus joelhos cederam e lançaram-na aviltantemente ao gramado.

Conan, parado acima do corpo de Agha, não fez movimento pra fugir. Mudando sua cimitarra avermelhada para sua mão esquerda, ele puxou a grande lâmina do yuetshi. Khosatral Khel erguia-se sobre ele, seus braços levantados como marretas; mas, quando a lâmina refletiu o brilho do sol, o gigante recuou abruptamente.

Mas o sangue de Conan estava exaltado. Ele investiu, golpeando com a lâmina curva. E ela não se quebrou. Sob seu gume, o sombrio metal do corpo de Khosatral cedia como carne comum sob o cutelo de um açougueiro. Do profundo corte fluía um estranho líquido, e Khosatral gritava alto, como o canto fúnebre de um sino. Seus terríveis braços caíram, mas Conan, mais rápido que os arqueiros que morreram sob aqueles terríveis manguais, evitou-lhe os ataques e atacou novamente, novamente e ainda novamente. Khosatral cambaleou e tremeu; seus gritos eram terríveis de se ouvir, como se o metal tivesse ganhado uma língua de dor, como se o ferro emitisse sons agudos sob suplício.

Então, virando-se, ele cambaleou em direção à floresta; ele vacilava em seu passo, arrebentava moitas e girava árvores. Ainda assim, Conan o seguiu com a rapidez da ira quente; as paredes e torres de Dagon avultaram por entre as árvores, antes do homem chegar à distância de uma adaga do gigante.

Então, Khosatral girou novamente, farejando o ar em sopros desesperados, mas Conan, inflamado por uma fúria louca, não se permitia ser evitado. Como uma pantera ataca um alce macho encurralado, assim ele mergulhou sob os braços em forma de porrete e dirigiu a lâmina curva, até o punho, sob o lugar onde ficaria um coração humano.

Khosatral cambaleou e caiu. Em forma de homem ele cambaleou, mas não foi a forma de um homem que atingiu o marga. Onde havia a aparência de um rosto humano, não havia absolutamente rosto algum, e os membros de metal derreteram e mudaram... Conan, que não havia recuado diante de Khosatral vivo, recuou diante de Khosatral morto, pois havia testemunhado uma medonha transformação: em seus espasmos de morte, Khosatral se tornara a coisa que havia se arrastado do Abismo, milênios atrás. Calando-se em intolerável repugnância, Conan virou-se para correr pro lado; e ele ficou repentinamente a par de que os pináculos de Dagon não mais se vislumbravam por entre as árvores. Eles haviam se desvanecido como fumaça... as ameias, as torres, os grandes portões de ferro, as válvulas, o marfim; as mulheres de cabelos negros e os homens, com seus crânios raspados. Com a partida da inteligência inumana que os fizera renascer, eles voltaram ao pó que foram durante incontáveis eras. Apenas os tocos de colunas quebradas erguiam-se sobre muros desagregados, pavimentos quebrados e o domo despedaçado. Conan olhou novamente as ruínas de Xapur, enquanto lembrava delas.

O selvagem hetman ficou como uma estátua por um espaço, obscuramente entendendo um pouco da tragédia cósmica da vacilante e efêmera humanidade, e as formas encobertas de escuridão que a depredam. Então, enquanto ouvia sua voz convocada em pronúncias de medo, ele se sobressaltou como se despertasse de um sonho, olhando novamente a coisa no chão, estremeceu e virou-se em direção aos penhascos e à garota que esperava ali.

Ela estava perscrutando apreensivamente, sob as árvores, e o recebeu com um choro meio abafado de alívio. Ele sacudira as obscuras visões monstruosas, que haviam lhe assombrado momentaneamente, e estava de novo com seu caráter exuberante.

- Onde está ele? – ela estremeceu.

- Voltou ao Inferno do qual veio. – ele respondeu alegremente – Por que você não desceu a escada e fugiu em meu bote?

- Eu não iria desistir de... – ela começou, e então mudou o pensamento e emendou, mais propriamente mal-humorada: – Eu não tenho pra onde ir. Os hirkanianos me escravizariam novamente, e os piratas...

- E os kozaks? – ele sugeriu.

- Eles são melhores que os piratas? – ela perguntou desdenhosamente.

A admiração de Conan cresceu, ao ver quão bem ela recuperou o equilíbrio, após ter suportado tão desvairado terror. Sua arrogância o divertiu.

- Você parece ter pensado assim, no acampamento perto de Ghori. – ele respondeu – Você estava bem à vontade com seus sorrisos, na ocasião.

Seus lábios vermelhos se torceram em desdém: – Você acha que eu estava apaixonada por você? Você acha que eu me humilharia diante de um bárbaro bebedor-de-cerveja e devorador de carne, sem ter sido mandada? Meu dono... cujo corpo jaz ali... me forçou a fazer o que fiz.

- Oh! – Conan parecia um tanto desanimado. Então, ele riu com prazer não-diminuído – Não importa. Você me pertence agora. Me dê um beijo.

- Seu atrevido... – ela começou furiosamente, quando se viu arrebatada e subjugada ao peito musculoso do hetman. Ela resistiu-lhe furiosamente, com toda a força elástica de sua magnífica juventude, mas ele apenas riu exuberantemente, embriagado com a posse daquela esplêndida criatura a debater-se em seus braços.

Ele arrebatou facilmente seus esforços, bebendo o néctar de seus lábios, com toda a incontida paixão que lhe era característica, até os braços, que se esforçaram contra os dele, amolecerem e se juntarem convulsivamente ao redor de seu pescoço maciço. Então, ele riu e mirou-lhe os olhos claros, dizendo: – Por que um chefe do Povo Livre não seria preferível a um cão das cidades de Turan?

Ela sacudiu suas mechas fulvas, ainda tilintando em todos os nervos, pelo fogo de seus beijos. Ela não soltou seus braços do pescoço dele: – Você se julga igual a Agha? – ela desafiou.

Ele riu e andou a passos largos, com ela em seus braços, em direção à escada. – Você julgará. – ele exultou – Vou queimar Khawarizm como uma tocha, para iluminar seu caminho para a minha tenda.




1) marga: Calcário argiloso ou argila com maior ou menor teor em calcário.

2) jarda: Medida equivalente a 91,44 cm.




Tradução: Fernando Neeser de Aragão (fernando.neeser2@bol.com.br).
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