(por Fernando Neeser de Aragão)
Há dias, no
Mar de Vilayet, em que as ondas encapeladas parecem um imenso colar de pérolas
líquidas... E, quando o dourado do sol se multiplica nas águas, é como se o
tesouro do Rei Yildiz de Turan se juntasse a elas.
Tal é o dia de
Conan, nascido na Ciméria, mas há meses um líder dos piratas da Irmandade
Vermelha do Mar de Vilayet. Um braço apoiado no leme, uma perna sobre uma pipa
cheia de vinho e um mapa, ondulado pela brisa, nas mãos... o que mais um bárbaro
poderia querer?
Gaivotas de
asas longas flutuam graciosamente, parecendo nadar nos ventos amistosos, como
se fossem os peixes em seus bicos pontudos; e seus guinchos agudos são quase
uma canção que o mar entoa a estes nômades marinhos, que singram o Vilayet em
busca de navios e portos turanianos para serem saqueados. No convés inferior, a
tripulação heterogênea – composta por 40 britunianos, coríntios, zamorianos,
shemitas e kothianos – se diverte, jogando dados. Seus rostos refletem sua
natureza selvagem. Muitos deles têm cicatrizes de espadas, de chicotes ou de
ferros incandescentes. Há também orelhas cortadas, narizes decepados, órbitas
sem olhos e amputações em braços e pernas – marcas de carrascos e de múltiplas
batalhas. A maioria deles anda seminua, mas o pouco que vestem é de excelente
qualidade: jaquetas com bordados de ouro, cintos de cetim e calças de seda. Em
alguns casos, as peças de roupa cobrem couraças prateadas, finamente trabalhadas
em prata. Jóias
reluzem em suas orelhas e narizes, assim como nos cabos de suas adagas.
Conan sorri de
longe. Houve épocas em que ele gostaria de estar jogando com eles, ganhando ou
perdendo com gosto. Mas, como líder daquela nau da Irmandade Vermelha, ele
dispõe de pouco tempo para isto. No momento seguinte, uma bela voz feminina o
chama. É a jovem ex-princesa Olívia de Ophir – agora não mais aquela garota
indefesa que o cimério conhecera há um ano, mas uma guerreira espadachim, a
qual devia toda a sua atual habilidade de esgrima a Conan. Ao invés do vestido
que usava doze meses antes, quando se aventurara com o bárbaro naquela ilha
terrível, onde estátuas de ferro ganhavam vida sob o luar, ela agora usa um par
de calças de seda turaniana, enfiadas em botas de couro e cingidas por cetim
bordado a pérolas; um corpete de algodão a lhe cobrir os seios alvos, e um
lenço escarlate sobre os sedosos cabelos escuros – uma rainha do mar azul, como
Conan prometera torná-la no ano anterior; quase tão admirável e valorosa quanto
a saudosa e insubstituível Bêlit.
- Conan – diz
a bela ophiriana, que, há meses, divide o leito com o bárbaro –; agora que,
graças a você, me tornei uma guerreira, eu me sinto mais pronta do que nunca
para lutar e recuperar meu título de princesa de Ophir. Gostaria de poder
retornar à minha terra natal, para depor meu pai, o infame rei Thelrus, e me
tornar, mais do que princesa, rainha
daquele país, ao lado do jovem Amalrus.
- Por Crom,
garota! – responde o cimério. – Eu gostaria, mas não posso. Meus homens ainda
precisam de mim, e não posso simplesmente abandoná-los. Se você ainda quiser,
posso fazer isso depois, quando eu perceber que Ivanos pode liderá-los em meu
lugar, mas não agora.
Com um muxoxo,
Olívia semi-resignada, caminha de volta à sua cabine, deixando para trás um
Conan em silêncio meditativo.
O cimério
nunca manteve uma mulher consigo contra a vontade dela... Mas ele não consegue
se forçar a deixar esta bela jovem. Conan diz a si mesmo que só falou a verdade
para ela, mas suspeita que tenha razões mais profundas, as quais ele não consegue
entender totalmente.
Súbito, um
grito interrompe tanto os pensamentos do cimério quanto a ida da ophiriana à
cabine. É o coríntio Ivanos, no alto do mastro, anunciando ter avistado uma
vela turaniana no horizonte, indo em direção a eles. Conan, Olívia, Ivanos e
todos aqueles piratas do Mar de Vilayet ficam com seus arcos de prontidão e se
dirigem aos seus respectivos postos de batalha.
Tiros de
flechas cada vez mais próximos são trocados entre os turanianos e os piratas,
enquanto no convés da nave de guerra turaniana, os soldados os observam como
uma alcatéia pronta para atacar e os dois navios vão ficando cada vez mais
perto um do outro, até a odiada bandeira do Lobo Branco de Turan ficar visível
aos homens da Irmandade Vermelha, os quais agora desembainham suas espadas.
Logo as
flechas terminam em ambas as embarcações, os primeiros ganchos de abordagem são
lançados pelos piratas e as duas naves se encontram como dois grandes dragões
marinhos; e o cimério – a espada entre os dentes, e vestido com calções de seda
e uma cota-de-malha – lidera seus homens por sobre a amurada.
- Mostrem a
esta ralé do que somos feitos, homens! – grita o comandante da galé turaniana
aos soldados vestidos, como todos os turanianos e hirkanianos, em aço, seda e
ouro.
E é pelo comandante
que Conan procura enquanto começa a abrir um caminho sangrento entre os homens
à sua frente, cortando-os como se estivesse ceifando trigo. A velocidade dos
pés de Conan, ao mudar constantemente de posição, derrota qualquer propósito
inimigo de envolvê-lo numa luta desigual. O cimério detém a cimitarra do
primeiro homem com a própria lâmina, empurrando-lhe o sabre contra o peito
encouraçado, num contragolpe letal, sem lhe dar chance de se afastar ou se
defender. O turaniano seguinte tem seu elmo aberto e cérebro derramado sobre o
próprio rosto, num golpe fendente. Ao mesmo tempo, Ivanos trespassa a garganta
de um, um shemita decepa o pescoço de outro, um zamoriano racha a cabeça de
mais um e o sangue turaniano vai encharcando aquele convés.
Olívia, por
sua vez, é quase tão forte quanto um homem, e sua rapidez e ferocidade superam
qualquer turaniano que se oponha a ela. Sua espada dobra uma lâmina que tenta
detê-la, e a ponta penetra 15 centímetros num diafragma vestido em aço. O homem arfa e cai de
joelhos. Um companheiro do que acabara de morrer investe num silêncio feroz.
Ele dá um golpe atrás do outro, num turbilhão de aço, tão furiosamente que Olívia
não tem oportunidade de contra-atacar. Ela recua friamente, desviando os golpes
selvagens e aguardando sua oportunidade. Ele não consegue manter por muito
tempo aquele furacão de golpes e, num momento de hesitação provocada pelo
cansaço, o turaniano tem seu coração trespassado pela espada da ophiriana.
Outro turaniano que ataca a ophiriana tem suas entranhas derramadas por um giro
sangrento da lâmina da ex-princesa.
Subitamente, Conan
é interceptado por uma onda de soldados que lhe barram o caminho, tanto de seu
objetivo quanto de seus homens. Por um momento, apenas seu escudo,
cota-de-malha e espada ficam visíveis na batalha. Mas, no instante seguinte, o
cimério atravessa a barreira, espalhando turanianos dilacerados e
ensangüentados por todos os lados, e não ouvindo nada, a não ser a sua
tripulação – juntamente com os escravos recém-libertos da galé inimiga –
comemorando às suas costas.
Então, ele
finalmente encara o comandante em meio a um mar de soldados mortos.
- Bem, capitão
de estrume – diz Conan –; você não quis dar piedade, nem nós pedimos. Mas para
que mais carne e sangue do que os tubarões já terão? Suas tropas foram
dizimadas. É melhor se render, se quiser poupar sua vida miserável.
- Seu cão
bárbaro! – grita o turaniano. – Eu, Ozan de Akif, não me rendo a ninguém!
Prefiro ver um de nós no Inferno!
Ele tenta
decepar a cabeça de Conan, o qual, se esquivando, rasga a barriga do comandante,
num giro sangrento; o turaniano cai morto ao chão, numa poça de sangue e tripas
a lhe escorrerem pela abertura em sua armadura de cota-de-malha.
Todos bradam
de alegria, os escravos da galé turaniana se juntam aos piratas da Irmandade
Vermelha e o navio imperial é saqueado, queimado e afundado nas águas azuis do
Mar Interno.
Então, o
cimério chama Ivanos e um brituniano para trazerem um barril de vinho, a fim de
comemorarem a vitória.
- Vamos
brindar a mais uma abordagem bem-sucedida! – grita Ivanos, no que é respondido
por todos os presentes, ao mesmo tempo em que Olívia enche a caneca de Conan. Este a
esvazia em dois goles, enquanto os outros piratas se acotovelam para terminarem
de esvaziar o barril.
Súbito, o cimério
sente uma sutil letargia se apossar dos seus sentidos. Apesar disso, ele ainda
consegue agarrar Olívia – a qual agora abraça Ivanos e, beijando os lábios do
coríntio, brinda com ele – pelos belos ombros, e perguntar:
- Por quê?
- Você não
disse que deixaria o navio para mim, quando percebesse que eu poderia
liderá-los, cimério? – diz Ivanos, em tom de desafio e desembainhando a espada.
– Então, vamos testar isso?
No entanto,
alucinado pelo lótus negro – obtido por Olívia num pequeno estoque na cabine, outrora
pertencente a Sergius, e colocado no fundo de sua caneca sem que o bárbaro
visse –, Conan não responde ao desafio do coríntio e começa a ver, com sua
mente entorpecida pela droga, o rosto do falecido Shah Amurath num dos piratas.
Furioso, o cimério lhe derrama as entranhas no convés com um giro de sua
espada. A seguir, vendo o rosto do também finado Aratus em outro pirata, o
bárbaro o estrangula, antes que o lobo-do-mar consiga brandir sua espada. Quem
detém Conan é Ivanos, cruzando espadas com o cimério por alguns instantes e dando-lhe
um chute nos testículos. Em estado normal, Conan se recuperaria em um segundo;
mas o lótus continua a fazer efeito, e agora o enfraquece de tal modo, que até
uma criança mataria o bárbaro.
- Poupe-o,
Ivanos! – grita Olívia, em tom de comando.
Atendendo ao
pedido de sua nova companheira, o coríntio deixa Conan inconsciente com um
golpe do cabo da espada. Desmaiado, o gigante cimério desaba sobre o convés, como
um boi abatido.
- Devo minha
vida a Conan, apesar de tudo – diz a nova comandante do navio. – Sem ele, eu
não estaria onde estou.
Então, Ivanos
sorri, brindando outra vez com a ophiriana que agora lhe pertence:
- Então, vamos
para saques mais gordos a novos portos e navios turanianos, Capitã Olívia?
Por um
instante, a ex-princesa se sente vítima da própria cilada, ao perceber a convicção
nas palavras entusiasmadas de seu novo parceiro e nos olhares de alegria feroz
da sua tripulação. Mas em seguida, ela se conforma, sorri, assente e brinda com
o coríntio, bebendo intensamente e beijando-o ao som de vivas dos piratas. Olívia
pode não ser mais princesa de Ophir, mas agora ela é senhora do Mar de Vilayet!
*
* *
Em meio a uma
escuridão decrescente e a um latejar de suas têmporas, Conan da Ciméria faz um
enorme esforço para romper os laços invisíveis que o mantêm preso ao sono do
lótus e, erguendo-se de um salto, se vê no alto de um promontório. Ao seu lado,
sua espada e um pequeno barril de água.
Ele rosna uma
praga ao avistar, lá embaixo, um navio de vela branca se afastando para o sul.
“Que o diabo
leve essa maldita tripulação traiçoeira!”, pensa o cimério, embora se lembre do
motivo que os levou a abandonarem-no: a insistência do bárbaro em manter Olívia no
Vilayet com ele. Conan também se lembra do pouco entusiasmo daqueles ex-piratas
do falecido Sergius, quando os mesmos se juntaram a ele, há um ano.
De qualquer
modo, ele não deixa de notar que, apesar de tudo, Olívia lhe poupou a vida,
além de deixá-lo numa área do Vilayet que fica longe da fronteira norte de
Turan. Então, dirigindo seus passos para sudoeste, com barril e espada nas mãos,
o bárbaro pensa em entrar para o serviço mercenário em alguma nação hiboriana.
O reino de Khauran é uma boa opção, ele pensa, se dirigindo para a distante
Zamora, onde sobreviverá de alguns roubos, antes de se alistar no exército
khaurani.
FIM
A Seguir: Nascerá uma Bruxa – parte 1 (por Robert E. Howard).