A Irmã de Atali



 A Irmã de Atali

(por Fernando Neeser de Aragão)


Prólogo:


Embora parte dos aesires de cabelos loiros e vanires de cabelos ruivos, desde as planícies geladas da gélida Nordheim, enviassem suas tribos de olhos azuis pelo mundo, em migrações seculares, para deixar a marca de sua passagem em muitos lugares estranhos, Fjolnir nasceu em Asgard e – assim como Jarl Sigurd, Bragi e mais da metade dos nordheimrs – nunca saiu de lá, exceto para participar de incursões a Vanaheim. Por escassez quase total de madeira em suas terras – mesmo antes das glaciações que agora enviavam parte deles naquelas migrações seculares –, os aesires e vanires usavam ossos de animais para confeccionarem os cabos de seus punhais e machados; as fogueiras de seus acampamentos eram alimentadas por ossos e estrume de cavalos, os quais também lhes forneciam carne como alimento e peles para a construção de suas tendas. E presas de mamute, retificadas com fogo, lhes serviam como estacas para suas cabanas e cabos para suas lanças. Os aesires e vanires não reconheciam deus algum, exceto Ymir – o gigante da barba gelada pelo orvalho congelado – e suas filhas.



1)


– Certo; já chega – disse um alto e imponente líder aesir, usando tanga, botas e manto de pele de cavalo. – O ruivo falou?

– É claro, Jarl Sigurd. Esse bando de cães foi só um aperitivo – disse o aesir, que torturara um prisioneiro vanir amarrado entre quatro estacas feitas de presa de mamute, enquanto olhava para um grupo de vanires mortos, cujos sangues e vísceras manchavam de vermelho a neve branca. – Amleth os mandou para nos atrasar. Assim ele ganhou tempo para atacar nossos aliados, no Lago de Gelo.

– Hmmm – resmungou Sigurd. – Aquele vanir maldito realmente não respeita nenhuma tradição.

– Neste instante – disse o prisioneiro vanir, cujo corpo estava todo cortado –, Amleth… está esmagando seus irmãos… E, esta noite, ele vai urinar nos cadáveres de vocês.

– Hmmm – disse outro aesir, erguendo o elmo de osso –; então quer dizer que você gosta de urina, ruivo? – E levantou a tanga de pele de urso polar e urinou no rosto ferido e ensangüentado do vanir, enquanto ria.

– Estamos meio dia atrasados em relação aos nossos aliados – disse Sigurd, enquanto os lobos de caça do bando devoravam vivo o prisioneiro vanir. – A esta altura, eles já devem ter caído na armadilha de Amleth.

– E nós vamos assim mesmo? – indagou um de seus homens, um velho de olhar selvagem e estranho. – O combate vai ser acirrado… um de nós contra dois deles.

– Nós conhecemos todas as tradições: “Morrem nossos inimigos, e nós perecemos também, mas há uma coisa que não morre jamais: O julgamento que se faz de cada morto”! – Esta última frase foi pronunciada em coro, por todo o bando de Sigurd.


Horas haviam se passado, e as planícies intermináveis pareciam em nada mudar, enquanto os aesires de Sigurd marchavam em direção ao Lago de Gelo.

– Que a porca que pôs aquele vanir fétido no mundo congele no Helheim! – gritou o velho de olhar estranho e selvagem ao líder.

– Sentiu tanta falta assim de Amleth e daqueles ruivos, durante o inverno? – perguntou Sigurd.

– Com certeza! E garanto que eles sentirão meu machado, antes de eu morrer! Atali, Dagobrit e as outras filhas do Gigante de Gelo verão como se morre um verdadeiro aesir.

Sigurd gargalhou:

– Acha mesmo que elas vão escolher você? Vá se conformando, meu velho. Não é para sua pessoa que os olhos delas estarão voltados… para nenhum de nós, aliás… Nosso sangue ficou fraco. Se elas retornarem, será por Amleth. Ele é o mais forte.

– Amleth?! – gritou o velho. – Por Ymir, Sigurd! Você está ofendendo a nossa raça!!

– Quieto, velho! Você pode ter sido o último a vê-la. Mas, após a nossa última batalha, foi Wulfhere a quem uma delas levou… E não você. Portanto, esqueça-as, e vamos lá matar simples mortais no Lago de Gelo.

– Esquecê-las? – disse o velho. – Faz quinze anos que uma delas me assombra: Gudrun, a terceira irmã mais nova de Atali. Quinze anos que ouço sua risada cristalina. Quinze anos que sonho em sentir seu olhar, enquanto luto, e que ela me leve para seu pai, em Valhalla.



2)


O sangue corria no Lago de Gelo. Furor! Gritaria! Lacerações! Cabeças decepadas! Crânios abertos! Corpos perfurados ou partidos! Eles se enfrentavam ao longe, mas alguém podia ouvi-los. Alguém os sentia. Ali, onde ela estava, não havia, para aquela belíssima mulher, aesires nem vanires. Apenas mortais que se odiavam. Que matavam uns aos outros. Ela adorava isso.

Os homens de Nordheim sabiam encarar diretamente os olhos da morte. Eles não a temiam, porque todos esperavam que, com ela, viesse a deusa de cabelos vermelhos – ou suas irmãs. Fazia tempo que uma delas não descia para escolher um herói. Nos últimos anos, porém, um vanir vinha chamando a atenção da deusa ruiva: Amleth. Aquela batalha estava sendo sua obra-prima – seu ódio ancestral pelos aesires, sua fúria no momento do corpo a corpo. Ele a excitava; o corpo dela tremia de prazer.

Súbito, ela ouviu uma pulsação diferente!  Era tão regular, que ela não o percebera à primeira vista. Um som abafado, que se sobrepunha ao pandemônio das armas. Um coração que batia mais forte e lentamente que o dos outros. Ela conhecia cada um dos homens que guerreavam no Lago de Gelo, mas aquele homem de cabelos loiros pertencia a um ramo dos aesires que só conhecia o deus Ymir, e nenhuma outra divindade – nem ao menos as filhas de Ymir! Ele era jovem, forte e poderoso. Sua respiração era profunda. Ela podia sentir os golpes do seu pesado machado, que afastavam a derrota e forçavam o desfecho da batalha; seu prazer brutal pela morte e pelo massacre; era um urso no meio de lobos – um senhor da guerra!

Tanto Amleth quanto aquele aesir se lançavam à luta, como um furacão abatedor que caía sobre um bosque de jovens árvores. Embora todos os guerreiros de Nordheim fossem excelentes lutadores, diante dos quais nenhum civilizado do longínquo sul conseguisse opor resistência, aqueles dois se deslocavam pela massa confusa e turbulenta, com a segurança e a ação avassaladoras de lobos cinzentos em meio a um bando de cãezinhos impotentes. Ambos venciam seus adversários, tanto pela força pura e vigor dos golpes, quanto pela rapidez e habilidade. Eles uivavam como lobos! Suas mentes de urso queimavam em seus corpos de homens! Sob seus golpes, guerreiros caíam como se vítimas de garras de ursos! Num único giro de sua lança, Amleth abriu os olhos de dois antagonistas que investiram contra ele. Ao mesmo tempo, o aesir ouviu, às suas costas, o som de um arco se retesando e lançou certeira uma adaga, na testa do arqueiro que pretendia matá-lo por trás. Impiedosamente, ambos abriam crânios, peitos e costelas, com golpes precisos de seus respectivos machados.


O fragor das lanças e machados de guerra havia se extinguido; os gritos já não ecoavam no céu, e agora reinava o silêncio sobre a neve manchada de vermelho. O pálido sol iluminava obtusamente as lâminas de sílex, e se refletia nos cabos de marfim das armas quebradas, disseminadas pelo campo de batalha em que jaziam os mortos. Mãos geladas ainda seguravam as empunhaduras dos machados, e os cabos das lanças e facas; as cabeças, cobertas com elmos de crânios de lobos e viradas para trás em um último estertor, apontavam lugubremente contra o céu as barbas ruivas e douradas, como em uma última invocação a Ymir, o gigante de gelo, deus daquela raça guerreira.

Ao redor dos ensangüentados despojos e dos corpos mal cobertos por peles de animais, dois homens se olhavam fixamente. Eram os únicos seres vivos naquela paisagem desolada. O céu gelado os cobria e estavam rodeados pela branca planície sem limites, com dezenas de cadáveres a seus pés. Foram se aproximando lentamente um em direção ao outro entre os corpos sem vida, como fantasmas que se encontram sobre as ruínas de um mundo morto. Em meio a um silêncio quase absoluto, os dois homens ficaram cara a cara.

Ambos eram altos e fortes como tigres. Haviam perdido os escudos, e suas peles brancas estavam cheias de ferimentos e contusões. O sangue seco cobria suas tangas de pele e os machados estavam manchados de vermelho. Um deles possuía longa barba loira e abundante cabeleira dourada, a qual caía sobre seus poderosos ombros como a juba de um leão; o cabelo e a barba encaracolada do outro eram tão vermelhos como o sangue derramado sobre a neve iluminada pelo sol.

– Homem! – disse este último. – Diga-me o seu nome, para que meus irmãos de Vanaheim saibam quem foi o último homem do bando de Bragi que caiu ante o machado de Amleth.

– Não será em Vanaheim – resmungou o guerreiro de cabeleira dourada –, e sim em Valhalla, aonde dirá a seus irmãos que encontrou com Fjolnir!

Amleth saltou lançando um rugido, enquanto seu machado descrevia um arco mortal.

Quando a lâmina de sílex golpeou quase fatalmente seu crânio, Fjolnir cambaleou e sua vista foi tomada por um fogo rubro. Porém, ao recuar, ele juntou todas as forças de seus ombros poderosos por trás do machado. A afiada lâmina afundou nas costelas e no coração do inimigo, e o guerreiro de cabelos ruivos caiu moribundo aos pés do aesir. Não contente, Fjolnir ainda puxou a barba vermelha de Amleth e lhe decepou a cabeça. Com um grito selvagem, o aesir jurou entregá-la a Sigurd, o qual muito se orgulharia de sua façanha e o encheria de presentes. Assim foi encerrada a carreira de um patife cruel e irresponsável, o qual assassinara a própria mãe e irmãos, e abandonara a esposa grávida de gêmeos, somente para morrer em busca de um Valhalla que só existia na mitologia vanir e aesir.

O loiro ergueu-se, com o longo cabo do enorme machado apoiado no chão, e se sentiu repentinamente invadido por um profundo cansaço. O brilho do sol sobre a neve feria seus olhos como uma navalha, enquanto que o céu parecia encolher-se estranhamente. Afastou-se daquela planície onde guerreiros de barbas douradas jaziam entrelaçados com os assassinos de barbas vermelhas, em um abraço de morte. Dera uns poucos passos, quando o resplendor dos campos nevados de repente se apagou. Uma onda de cegueira o envolveu, e ele deixou cair a cabeça de Amleth e caiu sobre a neve, apoiando o corpo em um dos braços, tentando afastar a cegueira como um leão sacudindo a juba dourada.

Uma gargalhada aguda rasgou sua inconsciência, e ele notou que sua vista clareava pouco a pouco. Fjolnir olhou para o alto; havia algo estranho na paisagem, algo que ele não podia precisar nem definir, como um estranho matiz na terra e no céu. Mas não teve muito tempo pra pensar nisso. À sua frente, balançando como capim ao vento, havia uma mulher em pé. Para o seu olhar confuso, o corpo dela parecia ser feito de marfim e, com exceção de um véu muito fino e flutuante, estava tão nua quanto a luz do dia. Seus delicados pés eram mais brancos que a neve onde pisavam. Ela riu para o confuso guerreiro; seu riso era mais doce que o murmúrio das fontes cristalinas, mas estava carregado da mais pura zombaria.

– Quem é você? – perguntou o aesir. – De onde vem?

– Que importa? – ela retrucou, com uma voz mais musical que as cordas de uma harpa, embora carregada de crueldade, enquanto fazia malabarismo com a cabeça ensangüentada de Amleth e de dois aesires.

– Pode chamar seus homens! – disse Fjolnir agarrando o machado. – Ainda que não me restem mais forças, não me entregarei sem lutar até a morte! Vejo que você é vanir.

– Está dizendo isso porque meus cabelos são vermelhos? Gosta deles?

– Silêncio, cadela vanir! – gritou o loiro, agarrando-lhe a garganta. – Se eu fechar meu punho…

Os olhos dela confundiam: não eram de todo azuis nem cinzentos, mas mudavam de cor de acordo com a luz e o resplendor das nuvens, criando tonalidades que o bárbaro jamais havia visto. Seus lábios vermelhos sorriram delicadamente. Desde as pontas dos pés até a cegante aura de seus cabelos esvoaçantes, aquele corpo de marfim era tão perfeito quanto o sonho de um deus. O sangue nos pulsos de Fjolnir parecia querer ferver em suas veias, mas desta vez não era mais de fúria.

– Não sei quem é você – disse ele, soltando-lhe o pescoço. – Já tive muitos sonhos, mas jamais vi uma mulher como você. Seus cabelos me cegam com seu fulgor. Jamais vi um cabelo semelhante, nem sequer entre as mulheres do povo vanir! Por Ymir...

– Não sabe quem eu sou? – ela interrompeu, com um sorriso ao mesmo tempo sarcástico e sensual, apesar de já saber a resposta.

– Não – disse Fjolnir. – Só sei que hoje, vi caírem mortos dezenas de homens, e só eu sobrevivi no campo de batalha, onde os guerreiros de Amleth se enfrentaram com os lobos de Bragi! Diga-me, mulher, você não viu o brilho das lanças e machados sobre os campos nevados? Não viu homens armados avançando sobre a neve?

– Eu vi o orvalho gelado brilhar sob os raios de sol – respondeu ela. – E ouvi o vento assobiando sobre as neves eternas. Pobre Amleth… ser derrotado tão próximo de ganhar sua inesperada recompensa…

Fjolnir moveu a cabeça e lançou um suspiro.

– Conhecia este cão? Então você é mesmo uma vanir!

– Já chega! Sou muito mais que uma vanir, Fjolnir! – ela gritou, rindo.

– Por Ymir, como você sabe…?

– E, se estou nua – ela prosseguiu, ignorando-lhe a pergunta –, é porque não sinto frio. Agora, levante-se e venha comigo, se não quiser terminar como todos estes idiotas. – Depois abriu os braços e dançou diante dele, agitando sensualmente sua rubra cabeleira e com os olhos cintilantes emoldurados pelos longos e curvados cílios vermelhos. – A não ser que você prefira rastejar… Gosta de rastejar pelas mulheres, guerreiro? – ela acrescentou, tirando o véu fino e ficando de quatro para o aesir lhe ver a vulva.

– Você… – Fjolnir começou a falar, mas, no momento seguinte, a ruiva lhe arremessou uma bola de neve no rosto.

– Você não pode me seguir para onde eu vou! – ela gritou, rindo.

O aesir lançou um juramento e se pôs de pé, ao mesmo tempo em que seus olhos azuis cintilavam e seu rosto cicatrizado ardia. A ira embargava sua alma, mas o desejo, que lhe inspirava o corpo tentador diante dele, martelava em suas têmporas e fazia latejar o sangue em suas veias.

Uma paixão tão violenta quanto a agonia física invadia todo o seu ser, a ponto de a terra o céu ficarem vermelhos diante de sua vista nublada. Em meio à sua loucura, o cansaço e fraqueza lhe desapareceram.

O aesir não disse uma só palavra, enquanto guardava o machado ensangüentado em seu cinto e abria seus braços em direção à mulher, tentando agarrar sua pele macia. Com um grito e uma risada, ela saltou para trás e correu, os olhos sorrindo para ele por cima dos ombros brancos. Fjolnir a seguiu, lançando grunhidos. Havia se esquecido da luta, dos guerreiros que jaziam banhados em sangue; se esquecido de Sigurd e de seus homens, que não chegaram a tempo para a batalha. Só tinha em mente a esbelta silhueta branca e esguia que parecia flutuar, ao invés de correr diante dele.

A louca perseguição continuou através da gelada planície branca. O rubro campo de batalha ficou para trás, e Fjolnir continuou correndo com a silenciosa tenacidade dos homens de sua raça. Seus pés, cobertos com peles de lobo, rompiam a camada de gelo e afundavam até os tornozelos na neve amontoada pelo vento, e ele seguia adiante, sustentado pela enorme força de seus músculos. A garota parecia dançar sobre a neve, como uma pluma flutuando numa lagoa; seus pés desnudos deixavam leves vestígios na superfície gelada. Apesar do fogo que ardia nas veias do bárbaro, o frio lhe mordia o corpo seminu, mas a jovem, usando apenas seu tênue véu, corria tão leve e alegremente como se estivesse bailando entre as palmeiras dos distantes povos civilizados do sul – ou melhor, do que ainda restava deles.

Ela correu mais e mais, e Fjolnir a seguiu. Seus lábios ressecados lançavam esporádicos palavrões. As enormes veias de suas têmporas estavam inchadas e pulsavam, enquanto seus dentes rangiam.

– Não conseguirá escapar de mim! – rugiu o aesir. – Se isso for uma armadilha, empilharei os cadáveres de seus guerreiros a seus pés! E não tente se esconder, pois derrubarei cada montanha até lhe encontrar! Vou segui-la, nem que tenha de ir até o inferno!

A espuma fluía dos lábios do bárbaro, enquanto a enlouquecedora risada da misteriosa mulher chegava até seus ouvidos. A jovem o levou cada vez mais longe, no interior da tundra. À medida que passavam as horas e o sol se ocultava por trás da linha do horizonte, a paisagem mudava; a extensa planície deu lugar a pequenas colinas arredondadas que ascendiam em acidentadas cordilheiras. Lá longe, em direção ao norte e oeste, Fjolnir divisou uma enorme cadeia de elevadas geleiras, cujo infindável gelo azul se tingia de vermelho sob o sol poente. No céu escuro, brilhavam resplandecentes os raios da aurora boreal. Estendiam-se como um arco-íris no céu, como labaredas de mil cores, cuja intensidade crescia e aumentava no ar.

O céu brilhava e espocava sobre a cabeça de Fjolnir com uma luz e resplendor estranhos. A neve tinha um brilho assustador: por momentos, era de um azul forte, logo depois de cor carmesim, ou de um frio tom prateado. Fjolnir continuava avançando com uma determinação inquebrantável através daquele gelado reino deslumbrante e encantado, um labirinto cristalino em que a única realidade era o branco corpo que bailava à sua frente sobre a neve, longe de seu alcance... cada vez mais longe de seu alcance.

O aesir não se assombrou ante a estranheza de tudo aquilo, nem sequer quando duas gigantescas figuras apareceram para obstruir seu caminho. Eram dois enormes ursos brancos. A neve cobria seus pêlos e seus olhos eram tão frios quanto as luzes que dançavam no céu.

– Vejam! – exclamou a mulher, bailando entre eles. – Vejam quem me segue! Eu atraí um guerreiro para que o matem! Arranquem seu coração, para queimá-lo sobre a mesa de meu pai!

Os ursos gigantescos emitiram um rugido, que parecia o atritar dos icebergs ao roçar contra a superfície congelada de um lago. Levantaram-se sobre as patas traseiras, que brilharam sob a luz das estrelas, e, nesse momento o aesir se lançou enlouquecido sobre eles. Garras afiadas passaram bem perto dos olhos de Fjolnir. Com todas as forças que lhe restavam, ele desfechou um terrível golpe que rasgou as patas traseiras de um de seus inimigos à altura do joelho.

A vítima caiu com um berro, e no mesmo instante, Fjolnir despencou sobre a neve, com o ombro esquerdo adormecido por uma patada repentina do outro urso. Ele viu que o outro animal se firmava sobre ele, como um colosso talhado em gelo recortando-se contra o frio firmamento. A pata se tombou, mas mergulhou na neve branca, pois Fjolnir rolou para o lado e, logo de um salto, se pôs em pé. O urso lançou um rugido e começou a erguer novamente as patas, mas enquanto o fazia, o machado de Fjolnir assobiou com a rapidez de um raio. O gigantesco urso polar tombou lentamente sobre a neve, que se tingiu de vermelho pelo sangue que jorrava do pescoço cortado em dois.

Fjolnir girou rapidamente e viu que a garota se encontrava parada a pouca distância, observando-o com os olhos arregalados pelo horror; o ar de zombaria havia desaparecido de seu rosto. O aesir gritou violentamente, e as gotas de sangue caíam por seu machado, enquanto sua mão tremia pela intensidade de sua paixão.

– Chame o resto de seus animais! – gritou Fjolnir. – Eu darei seus corações aos lobos! Você não vai escapar de mim...

Com um grito de guerra, ele disparou na direção da mulher. Agora ela já não ria, nem gozava dele quando o olhava por cima de seus ombros brancos. Agora corria como se disso dependesse toda a sua vida. Por mais que Fjolnir forçasse até a última fibra de seus músculos, e sentisse como se as veias de sua cabeça fossem explodir, vendo tudo de uma cor rubra, a mulher alva, de cabelos ruivos, continuava afastando-se dele sob os céus iluminados por um fogo arcano, até que se transformou em uma figura diminuta, logo em uma branca chama que dançava sobre a neve e, por último, em uma pequena mancha perdida na imensidão. Mas, ainda que seus dentes rangessem até brotar sangue das gengivas, Fjolnir seguiu avançando até que a pequena mancha voltou a aparecer aos olhos do aesir como uma branca chama que dançava, logo como uma minúscula figura e, por último, a garota corria a menos de cem passos diante do aesir. Lentamente, metro a metro, a distância ia diminuindo.

Agora a jovem corria fazendo um visível esforço, com seus cabelos vermelhos balançando ao sabor do vento. Fjolnir percebeu o intenso arfar de seu peito e viu o medo refletido em seus olhos quando ela o olhou por cima do ombro. A resistência selvagem do bárbaro lhe proporcionou o fruto tão desejado. As forças pareciam abandonar suas brancas pernas; seus passos já não eram tão seguros. Na alma descontrolada de Fjolnir, se atiçou novamente o fogo infernal que ela alimentara. Lançando um grito inumano, Fjolnir se lançou sobre a jovem no momento em que esta se virou e lançou um grito de espanto, ao mesmo tempo em que erguia seus braços para se defender.

O machado de pedra do aesir caiu sobre a neve quando este a apertou num abraço selvagem. O delicado corpo dela dobrou para trás enquanto lutava desesperadamente nos braços de Fjolnir. Seu cabelo ruivo se agitava ao vento e lhe caía sobre o rosto, cegando o aesir com seu esplendor. O contato daquele corpo escultural, que se retorcia entre seus braços o levou às bordas da loucura. Os fortes dedos de Fjolnir afundaram na suave e branca carne... uma carne fria como o gelo. Era como se estivesse abraçando um corpo de gelo ao invés de uma mulher de carne e osso. Ela jogou para o lado sua rubra cabeleira, tratando de se esquivar dos violentos beijos do bárbaro, que machucavam seus lábios vermelhos.

– Você é fria como a neve – ele resmungou. – Mas lhe esquentarei com o fogo de meu próprio sangue...

Lançando um grito agudo, a jovem resistiu com todas as suas forças, sem conseguir fugir dos braços do aesir, enquanto ele lhe sugava avidamente os seios brancos, gelados e trêmulos como gelatina, como um felino saboreando sua presa. Quando Fjolnir estava prestes a penetrá-la, ele começou a ouvir outras risadas femininas, tão doces quanto a da ruiva. Por uma fração de segundo, Fjolnir ficou paralisado, ao levantar o rosto, estupefato ante outras duas inacreditáveis belezas que se destacavam nuas sobre a neve: ambas eram parecidíssimas com a moça de cabelos vermelhos em seus braços – exceto pelo fato de uma ser loira, e a outra ter cabelos loiro-arruivados –, e dançavam sensualmente diante dele; a loira com os seios balouçando a cada passo de sua dança, enquanto a dos cabelos dourados, após dançar, erguia os braços e fazia o busto tremer tanto quanto o da ruiva – só que com a mera contração dos próprios músculos peitorais – e voltava a dançar.

A distração excitante, causada por elas a Fjolnir, fez com que o aesir afrouxasse o aperto dos braços, permitindo à ruiva – ninguém menos que Gudrun – se desvencilhar de seu pretenso estuprador. Ela saltou para trás e ficou em frente a ele, com seus fios vermelhos em completa desordem. Nesse momento, a loira Dagobrit e Atali, dos cabelos alaranjados – as irmãs da ruiva, velozes como o vento –, pararam de dançar e abraçaram o aesir, que, mesmo com Gudrun tendo se afastado dele, ficou excitado com o abraço.  Então, com um estampido de dezenas de raios estourando ao mesmo tempo, o céu inteiro se converteu em um fogo gelado. Súbito, o chão nevado cedeu sob os pés de Fjolnir, e as três filhas de Ymir sorriram ao ver o medo brilhar nos olhos azuis do loiro. Então, Gudrun enfiou a mão no peito de Fjolnir, cuspiu-lhe na cara e, antes que sua saliva congelasse no rosto do aesir, ela disse:

– Isso foi por ter tentado me estuprar, seu verme!

Em seguida, ele caiu num lago gelado subterrâneo, de crosta fina, o qual se abrira sob seus pés, quando o chão cedera. Gudrun, com o coração ensangüentado de Fjolnir na mão, ergueu os braços até as luzes coloridas que brilhavam no firmamento e exclamou:

– Ymir, nosso pai! Sirva-se com este coração em vossa mesa!

Então, o corpo de marfim da ruiva se viu envolto repentinamente numa chama cegante de fogo azulado. Durante um breve instante, os céus e as montanhas nevadas foram inundadas por crepitantes chamas brancas, azuis dardos de uma luz gelada e fogos gélidos de cor carmesim. A garota havia desaparecido no ar. Bem acima, luzes geladas dançavam num céu enlouquecido. Entre as distantes geleiras azuladas, ecoava um trovão, como o de um gigantesco carro de guerra arrastado por cavalos frenéticos cujos cascos arrancavam faíscas da neve, enquanto do céu chegavam ecos distantes.

Ao mesmo tempo, Atali e Dagobrit, filhas de Ymir, se masturbavam loucamente sobre a neve, dando-se ao prazer de um delicioso orgasmo, enquanto o cadáver do aesir afundava cada vez mais na água gelada.

 


FIM




Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Osvaldo Magalhães de Oliveira, de Brasília – DF; Deuce Richardson, dos EUA, e Marco Antonio Collares.



Compartilhar