(por Robert E. Howard)
1) “Minhas canções são cravos para o ataúde de um rei”
- O rei deve morrer à meia-noite!
Quem havia falado assim era alto e magro; uma cicatriz encurvada, perto de sua boca, lhe dava um aspecto insolitamente sinistro. Os que lhe escutaram, concordaram, com olhares brilhantes. Eram quatro: um homem baixo e gordo, com um rosto tímido, uma boca débil e uns olhos exagerados que lhe davam um aspecto de permanente curiosidade; um sombrio gigante, peludo e primitivo; um homem alto e nervudo, com as roupagens de bufão, cujos olhos azuis emitiam um brilho que não parecia ser de todo sensato; e um anão robusto, anormalmente largo de ombros e com braços compridos.
O que falara primeiro sorriu, de uma forma glacial.
- Façamos o juramento que não pode ser quebrado, o juramento da adaga e do fogo. Confio em vocês, oh, sim, claro que sim. Mas é muito melhor que cada um de nós tenha a segurança mais absoluta. Observo tremores em alguns de vós.
- Fica muito bem que tu o digas, Ardyon. – disse o homem baixo e gordo – De qualquer modo, já és um proscrito, um fora-da-lei, cuja cabeça foi posta a prêmio. Tens muito o que ganhar e nada a perder, enquanto nós...
- Tens muito que perder e muito mais a ganhar. – lhe interrompeu o proscrito, imperturbável – Me chamaste, me fez sair de meu esconderijo nas montanhas, para que os ajudasse a derrubar o rei. Tenho preparado os planos, tenho posto a arapuca, mantido a isca e estou preparado agora para destruir a presa, mas pra isso, tenho que estar seguro do vosso apoio. O jurareis?
- Já basta de estupidez! – exclamou o homem de intensos olhos azuis – Sim, o juraremos este amanhecer e, à noite, teremos o rei dançando na corda. “Oh, o canto dos carros de guerra e o rumor das asas dos abutres!”.
- Podes deixar suas canções para outro momento, Ridondo. – disse Ardyon com uma gargalhada – Este é o momento para usar as adagas, e não as rimas.
- Minhas canções são cravos para o ataúde de um rei! – exclamou o menestrel, ao mesmo tempo em que sacava uma adaga longa e fina. – Varlets, traga aqui uma vela. Eu serei o primeiro a prestar o juramento!
Um escravo sombrio e silencioso trouxe uma vela, e Ridondo se espetou no pulso, fazendo brotar sangue. Um após outro, todos os demais imitaram-lhe o exemplo e logo sustentaram cuidadosamente os pulsos ensangüentados, para que o sangue ainda não pingasse. Se tomaram depois as mãos e formaram um círculo, com o círio aceso no centro, e fizeram avançar os pulsos até ele, de modo que as gotas de sangue caíram em cima e, enquanto a chama diminuía, repetiram:
- Eu, Ardyon, um homem sem terra, juro cumprir o prometido e guardar silêncio, e que meu juramento seja inquebrável.
- E também juro eu, Ridondo, primeiro menestrel da corte de Valúsia!
- E o mesmo juro eu, Enaros, comandante da Legião Negra! – disse o gigante.
- E o mesmo juro eu, Ducalon, conde de Komahar! – disse o anão.
- E o mesmo juro eu, Kaanub, Barão de Blaal! – disse o homem baixo e gordo, com uma trêmula voz aguda.
A luz da vela tremeluziu e se apagou, esmagada pelas gotas cor-de-rubi que caíram sobre ela.
- Que assim se apague a vida de nosso inimigo – concluiu Ardyon.
Soltou as mãos de seus colegas e fitou-lhes um após outro, com um desprezo cuidadosamente oculto. O proscrito sabia que os juramentos podiam romper-se, inclusive os “inquebráveis”, mas também sabia que Kaanub, de quem mais desconfiava, era um homem supersticioso. Valia a pena levar em consideração qualquer possível custódia, por mais leve que pudesse parecer.
- Amanhã... – disse Ardyon, bruscamente – Ou melhor, hoje mesmo, pois já amanhece, Brule, o assassino da lança e mão direita do rei, parte em direção a Grondar, na companhia de Ka-nu, o embaixador picto; irão acompanhados por uma escolta de pictos e uma boa quantidade dos Matadores Vermelhos, a guarda pessoal do rei.
- Efetivamente... – assentiu Ducalon com certa satisfação – Esse plano foi teu, Ardyon, mas eu o fiz funcionar. Disponho de um parente no conselho de Grondar, e foi bastante simples convencer o rei de Grondar a solicitar a presença de Ka-nu. E, como está claro que Kull quer honrar Ka-nu acima de qualquer outro, deve ir acompanhado de escolta suficiente.
O fora-da-lei assentiu com um gesto.
- Bem. Por fim, através de Enaros, consegui corromper um oficial da guarda vermelha. Esta noite, logo antes da meia-noite, esse oficial afastará seus homens do dormitório do rei, com o pretexto de investigar algum ruído suspeito, ou algo parecido. Previamente, nós estaremos infiltrados no palácio, misturados com os cortesãos, e estaremos esperando, os cinco, e dezesseis desesperados, a quem fiz convocar para que descessem de suas montanhas, e que agora se acham escondidos em diversos lugares da cidade. Assim, pois, seremos vinte e um contra um só...
Pôs-se a rir. Enaros assentiu com um gesto, Ducalon sorriu com uma careta, Kaanub se pôs pálido e Ridondo esfregou alegremente as mãos, e cantou entoadamente:
- Por Valka, que todos recordarão esta noite, quando soarem as cordas douradas! A queda do tirano, a morte do déspota... que canções poderei compor!
Seus olhos se incendiaram com uma selvagem luz fanática, e os outros se viraram a olhá-lo, com expressões de dúvida. Todos, exceto Ardyon, que inclinou a cabeça para esconder uma careta. Logo, o proscrito se ergueu de repente:
- Já basta! Que cada um volte agora a seu posto habitual, e que nem uma só palavra, ato ou olhar traiam o que está na mente de todos nós. – Hesitou por um momento, olhou para Kaanub e acrescentou: – Barão, a palidez de vosso rosto os delata. Se Kull se encontra convosco e lhe miras com aqueles penetrantes olhos cinzas, o derrubarás. Será melhor que se dirijas à vossa mansão e espere lá, até que lhe chamemos. Porque, com quatro, bastamos.
Kaanub quase esteve a ponto de cair, devido à sua reação de alegria, e foi embora, balbuciando incoerências. Os demais saudaram o proscrito, com um gesto, e se retiraram.
Ardyon se espreguiçou como um grande felino e sorriu. Chamou um escravo e chegou um tipo de aspecto sombrio, em cujo ombro se via a cicatriz, marcada a fogo, que sinalizava os ladrões.
- Amanhã, sairei até a sacada e deixarei que o povo da Valúsia me contemple. – disse Ardyon, bebendo a taça que lhe aproximava – Faz meses, desde que me chamaram para descer das montanhas, que tenho me escondido como uma ratazana, tenho vivido no próprio coração de meus inimigos, me afastando da luz durante o dia, encolhido e mascarado pelas noites, quando tinha que caminhar por becos sem saída e corredores escuros à noite. E, no entanto, consegui o que esses senhores rebeldes não haviam conseguido. Trabalhar através deles e de muitos outros agentes, muitos dos quais nem sequer viu o meu rosto, dedicado a semear o descontentamento e a corrupção por todo o império. Tenho subornado e agitado os funcionários, estendido a revolta entre o povo e, em resumo, trabalhado na sombra, preparado o caminho para a queda do rei que agora se senta, coroado no mesmo sol. Ah, meu amigo, quase havia esquecido que fui um estadista, antes de um proscrito, até que Kaanub e Ducalon mandaram me buscar.
- Trabalhas com estranhos colegas. – disse o escravo.
- São homens débeis, porém fortes nas suas maneiras de atuar. – replicou languidamente o proscrito – Ducalon é um homem astuto, ousado e audaz, e tem parentes que ocupam altos postos na corte, mas está submerso na pobreza e as propriedades despojadas que possui se acham sobrecarregadas de dívidas. Enaros não é mais que uma besta feroz, forte e valente como um leão, com uma influência considerável entre os soldados, mas de resto um inútil, pois lhe falta o cérebro que merece ter. Kaanub é astuto ao seu modo e não deixa de ser um pequeno tramante, mas é estúpido e um covarde; avaricioso, mas possuidor de uma imensa riqueza, que tem sido essencial aos meus propósitos. Quanto a Ridondo, não é mais do que um poeta louco, cheio de planos concebidos nos pêlos, valoroso mas inconstante; um favorito entre o povo, graças às suas canções, que sabem rasgar as cordas de seus corações. Ele é nossa melhor aposta para alcançar a popularidade, uma vez que tenhamos alcançado nosso propósito.
- Quem subirá ao trono, então?
- Kaanub, sem dúvida, isto é, ao menos o que ele crê! Tem, em suas veias, um rastro de sangue real, o sangue daquele rei a quem Kull matou com as próprias mãos. Um grave erro por parte do rei atual. Sabe que ainda restam homens que fanfarroneiam descender da velha dinastia, mas os deixou com vida. Tão logo, Kaanub conspira para apoderar-se do trono. Ducalon deseja recuperar o benefício que desfrutava no antigo regime, para poder elevar suas possessões e seu título, até recuperar a antiga grandeza perdida. Enaros odeia Kelkor, o comandante dos Matadores Vermelhos, e crê que deveria ser ele a ocupar esse posto. Deseja se tornar o comandante de todos os exércitos da Valúsia. Quanto a Ridondo... bah! O desprezo e admiro ao mesmo tempo. É um verdadeiro idealista. Vê em Kull o estrangeiro, o bárbaro, o selvagem rude, com as mãos manchadas de sangue, que apareceu do mar para invadir uma nação pacífica e agradável. Idealizou ao rei que Kull assassinou, esquecendo-lhe a natureza vil. Esquece todas as desumanidades, sob as quais o país gemeu durante seu reinado, e é o mais apto para fazer o povo esquecer. Já canta o Lamento pelo rei, no qual santifica o vilão e vilipendia Kull como “o selvagem de coração negro”. Kull ri dessas canções e tolera Ridondo, mas ao mesmo tempo se pergunta por que o povo se revolta contra ele.
- Mas, por que Ridondo odeia Kull?
- Porque é um poeta, e os poetas odeiam a quem detêm o poder, e se voltam até os tempos do passado, em busca de alívio para seus sonhos. Ridondo é uma tocha acesa de idealismo, e ele mesmo se concebe como um herói, como um cavaleiro sem marcha que se ergue para derrubar o tirano.
- E vós?
Ardyon pôs-se a rir e esvaziou o conteúdo de sua taça.
- Eu tenho idéias próprias. Os poetas são perigosos, porque crêem no que cantam em cada momento. Eu, por minha vez, creio no que penso. E acho que Kaanub não poderá conservar o trono por muito tempo. Há uns poucos meses, eu já havia perdido todas as minhas ambições, exceto a de assaltar povoados e caravanas enquanto vivesse. Agora, no entanto... agora veremos.
2) “Naquele momento, fui o libertador, e agora...”
Uma habitação estranhamente vazia, em contraste com os ricos tapetes nas paredes e os tapetes afofados que cobriam o chão. Uma pequena escrivaninha, atrás da qual se achava sentado um homem. Um homem que se destaca entre um milhão, e não só devido ao seu tamanho insólito, sua altura ou seus grandes ombros – embora, por si só, estas características contribuíssem para causar este efeito –, mas devido a seu rosto, moreno e imóvel, capaz de sustentar qualquer olhar, e a seus rígidos olhos cinzas, que poderiam impor, com seu frio magnetismo, a vontade de seu dono sobre os demais.
Cada movimento que realizava, por mais rápido que fosse, fazia ressaltar os rígidos músculos de aço, e o cérebro se conectava com esses músculos, numa perfeita coordenação. Não havia nada de deliberado, nem de pré-concebido, nesses movimentos; ou bem se sentia perfeitamente satisfeito no descanso, ainda que se assemelhasse a uma estátua de bronze, ou bem se achava em movimento, com essa rapidez felina que nublava a visão de quem tentasse seguir seus movimentos.
Agora, este homem apoiava o queixo sobre o punho, com os cotovelos apoiados sobre a escrivaninha, e observava obscuramente o homem que se encontrava de pé, diante dele. Este último estava ocupado, por um momento, em seus próprios assuntos, dedicado a amarrar os nós do peito. E mais, assobiava distraidamente, uma atitude estranha e pouco convencional, sobretudo tendo-se em conta que se encontrava na presença de um rei.
- Brule... – disse o rei – Estas questões de estado me cansam como nem uma batalha o faria.
- Isso faz parte do jogo, Kull. – comentou Brule – É o rei, e deve representar esse papel.
- Desejaria cavalgar com você e acompanhar-lhe até Grondar. – disse Kull, com uma expressão de inveja – Tenho a impressão de que se passaram muitos anos, desde a última vez que tive um cavalo entre as pernas, mas Tu me assegura que há assuntos que exigem minha presença aqui. Maldito seja!
“Há meses, muitos meses – prosseguiu, com uma crescente melancolia ao não obter resposta, falando com total liberdade –, derrubei a velha dinastia e me apoderei do trono da Valúsia, com o qual eu sonhara desde que era um garoto, criado nos territórios dos homens de minha tribo. Isso foi fácil. Agora, ao olhar para trás e ver o longo e duro caminho percorrido, ao pensar naqueles tempos de trabalhos, matanças e tribulações, me parece que são como outros tantos sonhos. De um aldeão atlante que era, passei pelas galeras da Lemúria, nas quais trabalhei durante dois anos como remador escravo; logo fui um proscrito fora-da-lei nas montanhas da Valúsia, depois um prisioneiro em suas masmorras, um gladiador em suas arenas, um soldado em seus exércitos, até me tornar seu comandante e, finalmente, seu rei.
“O problema comigo, Brule, é que não sonhei mais além. Sempre havia fantasiado até o momento de apoderar-me do trono, mas não mirei mais longe. Quando o rei Borna caiu morto a meus pés e lhe arranquei a coroa ensangüentada, alcancei os limites máximos de meus sonhos. Desde então, tudo tem sido um labirinto de ilusões e erros. Me preparei para apoderar-me do trono, mas não para conservá-lo.
“Ao derrubar Borna, o povo me aclamou; naquele momento, fui o libertador, e agora... agora murmuram e dirigem olhares sombrios às minhas costas, cospem na minha sombra quando acham que não os olho. Colocaram uma estátua de Borna, esse suíno morto, no Templo da Serpente, e o povo comparece a ela para chorar, para aclamá-lo como um monarca santificado, que foi assassinado por um bárbaro com as mãos manchadas de sangue. Quando, como um soldado, dirigi seus exércitos à vitória, a Valúsia deixou de lado o fato de que eu era um estrangeiro; agora, não consegue me perdoar por isso.
“E agora, no Templo da Serpente, vão queimar incenso em memória a Borna... exatamente os mesmos homens a quem seus carrascos cegaram e mutilaram, pais cujos filhos morreram nas masmorras, maridos cujas mulheres foram raptadas para fazer parte de seu harém. Bah! Os homens são uns estúpidos.”
- Em grande parte, Ridondo é o responsável por isso. – disse o picto, apertando em mais um buraco o cinto da espada – Entoa canções que enlouquecem os homens. Pendure-o, em suas roupas de palhaço, na torre mais alta da cidade. Que componha rimas para os abutres.
Kull sacudiu sua cabeça leonina.
- Não, Brule, está fora do meu alcance. Um poeta é maior que qualquer rei. Me odeia e, no entanto, me agrada a sua amizade. Suas canções são mais poderosas que meu cetro, pois, uma e outra vez, quase rasgou-me o coração quando decidiu cantar para mim. Eu morrerei e serei esquecido, mas suas canções viverão eternamente.
O picto encolheu os ombros.
- Como queira. Continua sendo o rei, e o povo não pode lhe fazer cair. Os Matadores Vermelhos são seus até o último homem, e tem toda a nação picta atrás de si. Ambos somos bárbaros, ainda que tenhamos passado a maior parte de nossas vidas neste país. E agora vou embora. Não tem nada a temer, salvo uma tentativa de assassinato, que tampouco há de temer, tendo em conta o fato de que sua pessoa se acha protegida, dia e noite, por um esquadrão de Matadores Vermelhos.
Kull ergueu a mão, num gesto de despedida, e o picto deixou a sala, com o ruído metálico de sua armadura.
Naquele momento, outro homem reclamou sua atenção, lembrando a Kull que, a um rei, o tempo nunca lhe pertence por inteiro.
Este homem era um jovem nobre da cidade, chamado Seno Val Dor. Este famoso e jovem espadachim se apresentou ante o rei, com evidentes sinais de experimentar uma grande perturbação mental. Sua capa de veludo estava enrugada e, ao ajoelhar-se ao chão, o penacho lhe caiu lastimavelmente. Sua vestimenta exibia manchas, como se, em sua agonia mental, houvesse descuidado por completo da atenção a seu aspecto pessoal, por algum tempo.
- Meu rei e senhor – disse em tom de profunda sinceridade –, se o glorioso passado de minha família significa algo para Vossa Majestade, se minha própria lealdade significa algo para vós, pelo amor de Valka, conceda-me o que lhe peço.
- Diga do que se trata.
- Meu rei e senhor, amo a uma donzela. Sem ela, não posso viver. Sem mim, ela morrerá. Não consigo comer nem dormir, só de pensar nela. Sua beleza me persegue dia e noite, a radiante visão de sua divina formosura...
Kull remexeu-se, inquieto, em seu assento. Nunca havia amado uma mulher.
- Nesse caso, em nome de Valka, casa-te com ela.
- Ah! – exclamou o jovem – Esse é o problema, porque ela é uma escrava chamada Ala, que pertence a um tal Ducalon, conde de Komahar. E, nos livros negros da lei valusiana, se diz que um nobre não pode casar-se com uma escrava. Foi sempre assim. Tenho me dirigido à nobreza, e sempre recebo a mesma resposta: “Nobre e escravo não podem contrair matrimônio”. É terrível. Me dizem que, nunca antes na história do império, se conheceu o caso de um nobre que quisesse casar-se com uma escrava. O que isso representa para mim? Apelo a ti, como último recurso.
- Não estaria esse Ducalon disposto a vendê-la?
- O faria, mas isso dificilmente mudaria a situação, porque ela continuaria sendo uma escrava, e um homem não pode se casar com sua própria escrava. Só a desejo como esposa. Qualquer outra saída não seria mais que uma vazia zombaria de todo conteúdo. Desejo mostrá-la ante o mundo, envolta em peles de arminho e coberta de jóias, como a esposa de Val Dor. Mas isso não ocorrerá, a menos que me ajude. Ela nasceu escrava, de cem gerações de escravos, e continuará sendo escrava enquanto viver, e seus filhos o serão. E, como tal, não pode casar-se com um homem livre.
- Em tal caso, abraça você mesmo a escravidão, para ficar ao lado dela. – sugeriu Kull, olhando atentamente o jovem.
- É isso o que desejo. – respondeu Seno com tanta franqueza e rapidez que Kull lhe acreditou de imediato – Cheguei a procurar Ducalon e lhe disse: “Tens uma escrava a quem amo; desejo casar-me com ela. Toma-me, então, como escravo para que assim eu possa, assim, estar perto dela”. Ele se negou sem rodeios, horrorizado. Estava disposto a me vendê-la, e até a me entregá-la, mas não quis permitir que eu me tornasse seu escravo. E meu pai tem jurado, de forma inquebrável, matar-me se eu degradar, desse modo, o bom nome dos Val Dor. Não, meu rei e senhor; só você pode me ajudar.
Kull chamou Tu e lhe propôs o caso. Tu, o conselheiro-chefe, sacudiu a cabeça, pesaroso.
- Está escrito nos grandes livros encadernados a ferro, tal e qual Seno havia dito. Essa sempre foi a lei, e essa continuará sendo sempre a lei. Nenhum nobre pode casar-se com uma escrava.
- E por que eu não posso mudar essa lei? – perguntou Kull.
Tu colocou diante dele uma tabuleta de pedra, na qual fora gravada a lei.
- Esta lei existe há milhares de anos. A vês, Kull? Foi esculpida nesta tabuleta pelos primeiros legisladores, já faz tantos séculos, que um homem poderia passar a noite toda contando-os e não acabaria. Nem vós, nem qualquer outro rei pode mudar isso.
Kull experimentou repentinamente a nauseante e debilitante sensação de impotência, algo que ultimamente havia começado a invadi-lo com certa freqüência. Parecia-lhe que a realeza não era mais que outra forma de escravidão; sempre fizera o que queria contra a vontade alheia, abrindo caminho entre seus inimigos com sua grande espada. Como poderia prevalecer agora contra amigos solícitos e respeitosos, que se inclinavam diante dele e o lisonjeavam, e que, entretanto, se mostravam inflexíveis a tudo que era novo, que se entrincheiravam atrás dos costumes com tradição e antiguidade, e desafiavam tranqüilamente a quem se atrevesse a mudar algo?
- Retire-se. – disse ao jovem, com um gesto fatigado de sua mão – Sinto muito, mas não posso te ajudar.
Seno Val Dor saiu da sala com o coração destroçado, a cabeça e os ombros inclinados, os olhos apagados e arrastando os pés ao caminhar, como se nada tivesse importância alguma para ele.
3) “Pensei que fosses um tigre humano”
Um vento frio soprou por entre os bosques verdes. Um fio de prata abriu caminho, como uma ferida, por entre as grandes árvores, das quais pendiam trepadeiras de cores vivas. Um pássaro cantou e a suave luz solar de fim de verão se deslocou por entre os ramos entrelaçados, para cair em forma de aveludados desenhos dourados e negros de luz e sombra sobre a terra coberta de capim. Em meio a esta quietude pastoril, deitava-se uma jovem escrava, com o rosto oculto entre os suaves braços brancos, e chorava como se o coração lhe fora sido dilacerado. Os pássaros cantavam, mas ela estava surda; o riacho a chamava, mas ela era muda; o sol brilhava, mas ela era cega. Todo o universo era como um vácuo negro, onde só a dor e as lágrimas eram reais.
Em seu estado, ela não ouviu os passos rápidos, nem viu o homem alto, de ombros largos, que surgiu de dentro da vegetação espessa e ficou ali, em pé diante ela. Não se deu conta de sua presença, até que ele se ajoelhou, levantou-a em seus braços e limpou-lhe os olhos com as mãos, tão suavemente como o faria uma mulher.
A jovem escrava ergueu o olhar e contemplou um rosto impávido e moreno, com uns rígidos e frios olhos cinzas que, agora, se encontravam estranhamente abrandados. A julgar por seu aspecto, sabia que este homem não era um valusiano, e em tempos tão difíceis, não era bom que uma jovem escrava como ela fosse surpreendida por um estranho, num bosque solitário, sobretudo se ele fosse um estrangeiro. No entanto, se sentia desgraçada demais para ter medo e, além do mais, o homem parecia gentil.
- O que está havendo, garota? – ele perguntou.
E, como uma mulher que se encontre na dor mais extrema tende a expor seus sofrimentos a qualquer um que demonstre interesse e simpatia, ela sussurrou:
- Oh, senhor, sou uma mulher muito desgraçada. Amo a um jovem nobre.
- Seno Val Dor?
- Sim, senhor. – respondeu ela, olhando-o com surpresa – Como sabe? Deseja casar-se comigo e hoje, depois de haver tentado em vão obter o consentimento, recorreu ao próprio rei. Mas o rei se negou a ajudá-lo.
Uma sombra passou pelo rosto moreno do estranho.
- Seno disse que o rei se negou?
- Não, o rei convocou o conselheiro-chefe e discutiu com ele, por um momento, mas acabou cedendo. Oh! – soluçou – Já sabia eu que seria inútil! As leis da Valúsia são inalteráveis, não importam o quão sejam cruéis e injustas! São maiores que o próprio rei.
A jovem sentiu os músculos dos braços sustentando-a, inchados e endurecidos, transformados em grandes cabos de ferro. Pelo rosto do estranho passou uma expressão de impotência.
- Com certeza... – murmurou em voz baixa – As leis da Valúsia são maiores que o rei.
Contar-lhe seus problemas havia ajudado um pouco a jovem, que agora secou os olhos. As escravas estão acostumadas a suportar problemas e sofrimentos; mesmo este, que havia lhe dilacerado a vida.
- Seno odeia o rei? – perguntou o estranho.
Ela negou com um gesto da cabeça.
- Não. Ele entende que o rei não pode fazer nada.
- E você?
- Eu... o quê?
- Você odeia o rei?
Os olhos da garota se acenderam.
- Eu! Quem sou eu, oh senhor, para odiar um rei? Jamais me ocorrera tal coisa.
- Me alegra ouvir-lhe dizer essas palavras. – disse o homem, com um tom de voz pesado. – Afinal, o rei não é mais que um escravo, aprisionado por correntes mais pesadas.
- Pobre homem. – ela exclamou, apiedada, ainda que sem compreender totalmente. E logo acendeu sua cólera: – Mas odeio essas leis cruéis às quais o povo obedece! Por que não podem mudar as leis? O tempo nunca fica parado! Por que as pessoas de hoje devem se ver governadas por leis que foram feitas por nossos antepassados bárbaros, há milhares de anos? – Ela se deteve subitamente e olhou, temerosa, ao seu redor. – Não o diga a ninguém. – sussurrou, apoiando a cabeça, suplicante, sobre o ombro de seu acompanhante – Não é próprio de uma mulher, e muito menos uma escrava, que se expresse de forma tão desavergonhada diante de alguém. Seria açoitada por meus senhores, se eles tomassem conhecimento.
O homem corpulento sorriu.
- Pode ficar tranqüila, garota. Nem o próprio rei se sentiria ofendido por seus sentimentos. Na verdade, creio que ele está bastante de acordo contigo.
- Tens visto o rei? – perguntou ela, com uma curiosidade infantil que superou, por um momento, a desgraça que sentia.
- Freqüentemente.
- E é verdade que ele mede mais de dois metros e quarenta de altura? – perguntou com avidez – E que tem chifres sob a coroa, como dizem as pessoas?
- De modo algum. – ele respondeu, rindo – Lhe falta mais de meio metro para alcançar a altura que descreve, pois, quanto ao tamanho, poderia ser meu irmão gêmeo. Não chegamos nem a um centímetro de diferença.
- E é tão amável quanto vós?
- Às vezes, quando não se sente agitado por assuntos de governo que não compreende, e pela superficialidade de umas pessoas que nem sempre podem compreendê-lo.
- É realmente um bárbaro?
- É, na realidade: nasceu e passou sua primeira infância entre os bárbaros pagãos que habitam o país da Atlântida. Teve um sonho e o realizou. Como era um grande lutador e um selvagem espadachim, como era muito hábil no combate e agradava muito aos mercenários bárbaros do exército valusiano, terminou por transformar-se em rei. Mas o trono cambaleia sob ele, porque é um guerreiro, não um político, e sua habilidade com a espada de nada lhe serve agora.
- E é muito prejudicado?
- Nem sempre. – respondeu o homem corpulento, com um sorriso. – Às vezes, quando escapa para desfrutar a sós de umas poucas horas de liberdade, caminhando entre os bosques, se sente quase feliz, sobretudo quando encontra uma garota formosa como...
A jovem lançou um grito, repentinamente aterrorizada, e ficou de joelhos diante dele.
- Oh, meu senhor, tende piedade! Não o sabia... tu és o rei!
- Não temas. – Kull se ajoelhou de novo a seu lado e a envolveu com um braço, notando que a garota tremia dos pés à cabeça – Antes, disse que era amável...
- E o sois, meu senhor. – ela sussurrou debilmente – Eu... pensei que fosses um tigre humano, a julgar pelo que dizem os homens, mas agora vejo que sois afável e terno, ainda que... sejas o rei, e eu...
De repente, completamente confusa e perplexa, ela se levantou em um pulo, pôs-se a correr e logo desapareceu. Perceber que o rei, a quem só sonhara ver algum dia, à distância, era o homem a quem havia contado suas aflições, a encheu de vergonha e confusão, e produziu-lhe um terror quase físico.
Kull deu um suspiro e se levantou. Os assuntos do palácio voltavam a reclamar sua atenção, e tinha que voltar para defrontar-se com problemas, de cuja natureza não tinha mais que uma vaga e remota idéia, e sobre cuja solução não tinha nenhuma idéia.
4) “Quem quer morrer primeiro?”
Vinte pessoas deslizavam furtivamente, através do máximo silêncio que rodeava os corredores e salões do palácio. Seus pés sigilosos, calçados com sapatos de couro macio, não produziam o menor ruído sobre os tapetes fofos ou as lajes de mármore claro. As tochas colocadas entre os nichos, ao longo dos corredores e salões, brilhavam com tonalidades vermelhas e se refletiam nas adagas desembainhadas, nas espadas de lâminas largas e nos machados afiados.
- Alto, alto todos! – disse Ardyon, que se deteve um instante para olhar atrás, pra seus seguidores – Pare com essa maldita respiração ruidosa, seja quem for. O oficial da guarda noturna deslocou todos os guardas de todos os corredores e patamares de escada, mediante ordem direta ou embriagando-os, mas devemos ter cuidado. É uma sorte para nós que esses malditos pictos, os lobos ágeis, estejam de farra no consulado ou a caminho de Grondar. Silêncio! Para trás, aí vem a guarda!
Se amontoaram todos atrás de uma enorme coluna, capaz de esconder um regimento inteiro de homens, e esperaram. Quase que imediatamente, apareceram dez homens, altos e bronzeados, vestidos com armaduras vermelhas, que avançavam como se fossem estátuas de ferro. Iam fortemente armados e, nos rostos de alguns deles, se observava uma ligeira incerteza. O oficial que os comandava estava bastante pálido. Seu rosto estava riscado por duras linhas e levou uma das mãos à frente, para limpar o suor, no momento em que a guarda passou diante da enorme coluna, atrás da qual se escondiam os assassinos. Era um homem jovem, e esta traição a um rei não lhe era nada fácil.
Passaram diante deles, com ruído metálico de armas, e desapareceram pelo corredor.
- Bem. – disse Ardyon em voz baixa, com um sorriso – Foi cumprido o prometido. Agora Kull dorme desprotegido. Depressa, temos muito que fazer! Se nos pegam assassinando-o, estaremos perdidos, mas um rei morto se transforma facilmente numa simples lembrança. Se apressem!
- Sim, depressa! – disse Ridondo em voz baixa.
Se apressaram pelo corredor, já sem tomar precauções, e pararam diante de uma porta.
- Aqui! – apontou Ardyon – Enaros, abra-me esta porta.
O gigante lançou todo o seu peso contra o painel, e se produziu um rugido de trancas e um estalo de madeira. A porta cedeu e se abriu toda para dentro.
- Entrem! – gritou Ardyon, incendiado pela intenção de assassinar.
- Entrem! – rugiu Ridondo – Morte ao tirano...
Todos pararam involuntariamente. Kull os enfrentava. Não era um Kull sem roupas, desperto repentinamente de um sono profundo, confuso e desarmado diante daqueles carniceiros, como uma ovelha desamparada, mas um Kull plenamente desperto e feroz, parcialmente vestido com a armadura de um Matador Vermelho, com uma longa espada na mão.
Kull havia se levantado tranqüilamente, uns poucos minutos antes, incapaz de dormir. Havia tido a idéia de pedir ao oficial da guarda que entrasse em seu aposento, para conversar um pouco com ele; mas, ao olhar pelo olho-mágico da porta, o viu à frente de seus homens, afastando-se. Imediatamente, na mente desconfiada do rei bárbaro, surgiu a suspeita de que se cometia um ato de traição contra a sua pessoa. Nem sequer lhe ocorreu chamar os homens para que voltassem, pois imaginou que também faziam parte da conspiração. Não havia nenhum bom motivo para que se produzisse esta deserção. Assim que Kull começou a vestir tranqüilamente a armadura que sempre tinha à mão, e mal tinha acabado de fazê-lo, Enaros se lançou contra a porta e a abriu.
Por um momento, a cena pareceu ficar congelada. Os quatro nobres rebeldes que se encontravam junto à porta e os dezesseis proscritos desesperados que lhes seguiam, se viram contidos simplesmente pelo terrível olhar do gigante silencioso que se erguia no meio do quarto real, com a espada preparada.
- Matem-no! – gritou Ardyon, então – É apenas um contra vinte, e está sem o capacete!
Com um grito que se elevou até o teto, todos os assassinos entraram no aposento. O primeiro de todos foi Enaros. O fez como um touro lançando o ataque, com a cabeça inclinada e a espada baixa, disposta a rasgar-lhe as entranhas. Kull saltou para partir a seu encontro, como um tigre poderia fazer contra um touro, e todo o peso da poderosa força do rei se concentrou no braço que empunhava a espada. A grande lâmina reluziu no ar, traçando um arco sibilante, e se espatifou contra o capacete do comandante. Lâmina e capacete se encontraram estrondosamente e romperam-se ao mesmo tempo. Enaros rolou sem vida sobre o chão, enquanto Kull recuou, segurando o punho da espada, do qual desaparecera a maior parte da lâmina.
- Enaros! – exclamou surpreso, quando o capacete destroçado deixou à mostra a cabeça esmagada.
Logo, o resto do grupo se arremessou sobre ele. Sentiu que a ponta de uma adaga lhe escorregava ao longo das costelas, e lançou o atacante para o lado, com um poderoso movimento de seu braço esquerdo. Amassou a espada quebrada entre os olhos de outro atacante e o deixou sem sentidos, sangrando no solo.
- Que quatro de vocês vigiem a porta! – gritou Ardyon, que se movia na beirada daquele redemoinho de aço.
Temia que Kull, com seus enormes peso e velocidade, pudesse abrir caminho entre eles e escapar. Quatro dos rebeldes recuaram e postaram-se diante da única porta do quarto. Nesse exato momento, Kull saltou até a parede e retirou dela um velho machado de guerra, que possivelmente estivera pendurado ali durante cem anos.
De costas contra a parede, encarou-os por um momento e logo saltou adiante. Kull não era um lutador defensivo! Sempre era ele que levava o combate ao campo do inimigo. Um só movimento do machado serviu para estender um dos proscritos ao chão, com um ombro gravemente fendido. E, movendo o machado em sentido contrário, ele amassou o crânio do outro. Uma espada se estatelou, então, contra o peito de sua armadura, de tal modo que, se não a tivesse vestido, morreria ali mesmo. O que mais lhe preocupava era proteger a cabeça, que estava descoberta, assim como os espaços entre o peito e as costas, pois a armadura valusiana era intrincada e ele não havia tido tempo para amarrá-la completamente. Já sangrava dos ferimentos recebidos na face, nos braços e nas pernas, mas seus movimentos eram tão rápidos e mortais, e tão grande sua habilidade como combatente, que, apesar de contarem com todas as possibilidades a seu favor, os assassinos vacilaram em seu ataque. Além do mais, seu número já se via consideravelmente reduzido.
Por um momento, o cansaram com uma chuva de golpes e estocadas, mas logo retrocederam e o rodearam, enquanto ele, por sua vez, investia e detia seus golpes; um par de cadáveres estendidos ao chão constituía uma silenciosa mostra da estupidez do plano daqueles assassinos.
- Cavalheiros! – gritou Ridondo num acesso de raiva, jogando para trás o capuz que lhe cobria a cabeça, mirando seus companheiros com expressão de cólera selvagem – Se acovardam diante do combate? O déspota deve continuar vivendo? A ele!
Se precipitou para a frente, mas Kull, ao reconhecê-lo, deteve a estocada com um tremendo golpe curto; e logo, com um empurrão, o fez retroceder cambaleante, fazendo-o cair de pernas bem abertas sobre o solo. O rei recebeu, no braço esquerdo, uma estocada de Ardyon, e o proscrito só salvou a vida ao agachar-se diante do machado de Kull, vendo-se obrigado a recuar. Um dos bandidos se agachou e lançou-se contra as pernas de Kull, confiante em derrubá-lo desta maneira, mas, depois de resistir por um breve instante contra o que parecia uma sólida torre de ferro, levantou o olhar só a tempo de ver como o machado descia sobre ele, mas não de evitá-lo. Enquanto isso, um de seus colegas havia erguido a espada com ambas as mãos, e descarregou-a com tal força, que cortou a placa que cobria o ombro esquerdo de Kull, e feriu-lhe o mesmo. Num instante, o peito de Kull se encontrou cheio de sangue.
Ducalon, em sua selvagem impaciência, driblou seus atacantes à direita e esquerda, e se arremessou para a frente com uma selvagem estocada dirigida contra a cabeça de Kull. Este se agachou a tempo, e a espada passou assobiando por cima, cortando-lhe uma mecha do cabelo. Evitar os golpes de um anão como Ducalon é difícil para um homem da altura de Kull.
O rei girou sobre os calcanhares e golpeou desde o flanco, como o salto de um lobo, traçando um amplo arco para baixo. Ducalon caiu para trás, com todo o lado esquerdo dilacerado, pelo qual se lhe derramavam os pulmões.
- Ducalon! – exclamou Kull, ofegante – Eu reconheceria esse anão no inferno!...
Se endireitou para defender-se das loucas investidas de Ridondo, que voltou a atacar sem proteger-se, armado apenas com uma adaga. Kull saltou para trás e levantou o machado.
- Ridondo! Para trás! – gritou com voz aguda – Não te farei mal...
- Morra, tirano! – gritou, por sua vez, o enlouquecido menestrel, que se lançou de cabeça sobre o rei.
Kull retrocedeu o golpe que se dispunha a dar, até que foi tarde demais. Somente ao sentir a mordida do aço sobre seu flanco desprotegido, desferiu o machado num frenesi de desespero cego.
Ridondo caiu ao chão, com o crânio esmagado, e Kull voltou a recuar contra a parede, enquanto o sangue brotava da ferida em seu flanco, através dos dedos da mão que ele havia, instintivamente, levado até lá.
- Em frente, agora! A ele! – rugiu Ardyon, preparado para encabeçar o ataque.
Kull apoiou as costas contra a parede e ergueu o machado. Oferecia uma imagem terrível e primitiva. As pernas bem afastadas, a cabeça inclinada, uma mão avermelhada agarrando-se à parede em busca de apoio, a outra sustentando o machado no alto, enquanto suas ferozes feições permaneciam congeladas numa expressão de ódio, e os olhos frios miravam através de uma bruma de sangue, que dificultava sua visão. Os homens vacilaram; era possível que o tigre estivesse a ponto de morrer, mas ainda era capaz de produzir a morte.
- Quem quer morrer primeiro? – provocou Kull, através dos lábios esmagados e ensangüentados.
Ardyon saltou como só um lobo o faria, se deteve quase em pleno ar, com a incrível velocidade que lhe caracterizava, e caiu prostrado para evitar a morte que lhe assobiava na forma da lâmina avermelhada do machado. Agitou freneticamente os pés para afastar-se dali e girou até um lado, bem a tempo de evitar o segundo golpe que lhe dirigiu Kull, uma vez recuperado de seu falido primeiro intento. Desta vez, o machado afundou a muito poucos centímetros das pernas de Ardyon, que girava precipitadamente sobre si mesmo.
Outro impaciente se arremessou naquele instante, seguido sem muita convicção por seus companheiros. O primeiro imaginou chegar diante dele e lhe alcançar, antes que pudesse erguer o machado do chão, e acabar com sua vida, mas não levou em conta a velocidade dos movimentos do rei, ou iniciou seu ataque um segundo tarde demais. De qualquer forma, o machado traçou um arco até o alto, golpeando por baixo; o homem se deteve bruscamente, e uma avermelhada caricatura de ser humano saiu catapultada para trás, contra as pernas de seus companheiros.
Neste momento, passos apressados soaram metalicamente no corredor externo, e os que vigiavam a porta gritaram:
- Vêm soldados!
Ardyon soltou uma praga e seus homens lhe abandonaram de imediato, como ratazanas que abandonam o barco que afunda. Se precipitaram pra fora do aposento, coxeando e deixando atrás de si rastros de sangue. No corredor, se ouviram gritos e iniciou-se a perseguição.
À exceção dos mortos e moribundos que jaziam no chão, Kull e Ardyon ficaram a sós nos aposentos reais. Os joelhos de Kull se dobravam, e ele se apoiou pesadamente contra a parede, sem deixar de vigiar o proscrito com os olhos de um lobo moribundo. Nesta extrema situação, não fugiu de Ardyon sua cínica filosofia:
- Tudo parece estar perdido, particularmente a honra. – sussurrou – E, no entanto, o rei morre de pé e...
Fossem quais fossem os pensamentos que lhe passaram pela mente, não chegaram a ser expressos, pois, nesse instante, lançou-se contra Kull ao ver que este usava o braço que segurava o machado, para limpar o sangue que lhe cegava a visão. Um homem com a espada preparada pode ser mais rápido que um homem ferido, que se vê roubado pela surpresa, e que só pode golpear com um machado que pesa como chumbo em seu fatigado braço.
Mas, no exato momento em que Ardyon iniciava sua investida, Seno Val Dor apareceu na porta e, dali mesmo, arremessou pelo ar algo que brilhou, pareceu cantar e terminou seu vôo ao afundar no pescoço de Ardyon. O proscrito cambaleou, deixou cair a espada e despencou ao chão, aos pés de Kull, inundando o mármore com a torrente de uma jugular cortada, como testemunha muda de que, entre as habilidades de combate de Seno incluía-se o arremesso de faca. Kull observou, desconcertado, o proscrito morto, e os olhos sem vida de Ardyon lhe devolveram um olhar aparentemente zombeteiro, como se seu dono ainda mantivesse a inutilidade dos reis e proscritos, das conspirações e contra-conspirações.
Logo, Seno se apressou em oferecer seu apoio ao rei, e o quarto logo se viu invadido por homens armados, que vestiam o uniforme da grande família Val Dor, e Kull percebeu que uma jovem escrava lhe sustentava pelo outro braço.
- Kull, Kull, estás morto? – perguntou Val Dor, cujo rosto se encontrava mortalmente pálido.
- Ainda não. – respondeu o rei com voz rouca – Cuide do ferimento em meu lado esquerdo. Se eu morrer, será por causa dele. É profundo... Ridondo me escreveu nele uma canção de morte... mas os demais não são mortais. Costure-o rapidamente, pois tenho trabalho pra fazer.
Se apressaram em obedecê-lo, admirados, e quando cessou o fluxo de sangue, Kull, embora estivesse muito pálido pela perda de sangue, sentiu que recuperava um pouco as forças. Agora, todo o palácio estava alvoroçado. As damas, os lordes, os homens armados, os conselheiros, todos compareceram em tumulto, sem deixar de falar. Os Matadores Vermelhos se preparavam, cegos de raiva, dispostos a tudo, ciumentos do fato de que tinham sido outros os que ajudaram seu rei. Quanto ao jovem oficial que havia comandado a guarda, ele fugiu na escuridão e já não se podia encontrá-lo, nem antes nem depois, apesar de ter sido seriamente procurado.
Kull, que continuava mantendo-se tenazmente de pé, sem deixar de segurar o machado na mão, e apoiado com a outra sobre o ombro de Seno, apontou para Tu, que permanecia ali, de pé, retorcendo as mãos.
- Traga-me a tabuleta onde está escrita a lei referente aos escravos.
- Mas, meu senhor...
- Faça o que lhe digo! – gritou o rei, que levantou o machado.
Tu se apressou em obedecer.
Enquanto esperava e as damas da corte lhe rodeavam para curar-lhe as feridas, e tentavam em vão separar seus dedos do cabo do machado ensangüentado, Kull escutou a história que lhe contou o ofegante Seno.
- Ala ouviu Kaanub e Ducalon conspirarem. Havia se escondido num canto escuro, para chorar ali a sós, por causa de... nossos problemas, e nesse momento se aproximou Kaanub, que havia chegado de sua mansão, e que tremia de terror por medo de que os planos pudessem fracassar, e voltara para se assegurar de que tudo corria bem. A noite não avançara muito, e só então Ala encontrou uma oportunidade para sair furtivamente e vir me avisar. Mas é um longo caminho da casa de Ducalon até a casa dos Val Dor, sobretudo se uma garota tiver que percorrê-lo sozinha. Assim, apesar de ter reunido meus homens num instante, nós quase chegamos tarde demais.
Kull se segurou com firmeza ao seu ombro.
- Não o esquecerei.
Tu entrou naquele momento. Trazia, numa das mãos, a tabuleta da lei, que colocou com um gesto reverente na mesa. Kull afastou para um lado todos os que se interpunham em seu caminho e ficou só, de pé.
- Escute-me, povo da Valúsia. – exclamou, sustentado pela vitalidade bestial que lhe era peculiar – Estou aqui, de pé... e eu sou o rei. Me feriram até quase acabarem comigo, mas sobrevivi a ferimentos maciços. Escutem-me! Já estou farto desta situação. Não sou um rei, mas um escravo! Me vejo obstruído por leis, leis e mais leis! Não posso punir os malfeitores, nem recompensar os amigos, devido à lei, aos costumes e à tradição. Por Valka! A partir de hoje, serei o rei, tanto de direito quanto de fato. Aqui estão os dois que me salvaram a vida. Em conseqüência, têm plena liberdade para se casarem e fazerem o que lhes agradar.
Seno e Ala se lançaram aos braços um do outro, com gritos de alegrias.
- Mas a lei... – exclamou Tu.
- Eu sou a lei! – rugiu Kull, levantando o machado. O deixou cair, com um movimento rápido, e a mesa se fez em pedaços. Os presentes se apertaram as mãos, horrorizados, paralisados, quase como que esperando que o céu caísse sobre eles. Kull retrocedeu, com os olhos relampejantes. A sala pareceu girar por um momento, diante de seus olhos tontos.
- Eu sou o rei, o estado e a lei! – rugiu. Tomou o cetro que estava próximo, o partiu em dois e o arremessou para longe de si – Este será meu único cetro!
Brandiu o machado no alto e salpicou os pálidos nobres com gotas de sangue. Kull tomou a fina coroa com a mão esquerda, e apoiou as costas contra a parede; só este apoio lhe impediu de cair, mas seus braços ainda conservavam a força dos leões.
- Não sou nem rei, nem cadáver! – continuou rugindo, com os nodosos músculos avolumados e com uma mirada terrível nos olhos – Se não gostam de meu reinado... venham e tomem a coroa!
O braço esquerdo estendeu a coroa, enquanto o direito segurava firmemente o ameaçador machado acima dele.
- Com este machado, eu governo! Este é meu cetro! Tenho me esforçado e suado para ser o rei-fantoche que vocês queriam que eu fosse... para governar ao modo de vocês. Agora o farei à minha maneira. Se vocês não vão lutar, devem obedecer. Leis que são justas permanecerão; leis que já passaram do tempo, eu despedaçarei, como despedacei aquela... porque eu sou o rei!
Lentamente, os nobres pálidos e as damas assustadas se ajoelharam e se inclinaram, em medo e reverência ao gigante manchado de sangue, que elevou-se acima de todos eles, com os olhos inflamados.
- Eu sou o rei!
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Fonte: http://www.ebooket.net/
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