A Última Trilogia

Por Fernando Neeser de Aragão

Com personagens e conceitos criados por Robert E. Howard,
L. Sprague DeCamp, Lin Carter e outros








Introdução:


Inicialmente, cheguei a temer que o título desta aventura em três partes estivesse pouco criativo (em virtude das diversas trilogias cinematográficas, como a mais recente delas – os Episódios 1, 2 e 3 de “Guerra nas Estrelas”); mas no Minidicionário Ruth Rocha, da Ed. Scipione, a palavra “trilogia” é definida como “Obra literária ou científica dividida em três partes”. Por isso resolvi manter o título aqui mostrado aos caros leitores. É também chamada de “A Última Trilogia”, porque encerra o ciclo de aventuras que escrevi para preencher as lacunas, deixadas pelos contos e quadrinhos, na vida de Conan.

Escrever esta pequena saga foi um desafio, pois me propus a dividi-la em três partes:

1) “Mayapan!”: Conan (este com 67 anos) e todos os seus amigos piratas, pouco depois da queda de Ptahuacán, chegando à costa de Mayapan – atual México – e fundando um novo reino;
2) “Tlapallan”: livremente inspirada no enredo de “Conan – Sangue e Gelo”, de Robert E. Howard e Willis O’Brien, mostra o Cimério, 13 anos depois, enfrentando uma conspiração contra seu império;
3) “O Último Vôo da Serpente Alada”: Aos noventa anos, o bárbaro da Ciméria luta a sua última batalha. Logo depois, narro o destino do Império de Mayapan.

Foi uma tarefa árdua e, nos seus longos meses, aproveitei para adaptar trechos de “Homens das Sombras”, de R. E. Howard (quadrinizada na ESC 44), onde o criador de Conan descreve a história dos pictos na América (a “Raça Sem Nome”), desde a Era Thuriana até a época de Bran Mak Morn.

Quanto aos personagens, Mouhana e Okethla – assim como os príncipes Amalric e Akhtlana – foram criações exclusivamente minhas. Já o Senhor da Noite, embora com identidade própria, foi livremente inspirado no bruxo Galdec (do já citado enredo de “Conan – Sangue e Gelo”) e em Tezcatlipoca, deus tolteca da noite – do qual fiquei sabendo, através do nosso grande amigo, o conanmaníaco Dionísio Lisboa. Incorporei, também, conceitos apresentados pelo webmaster Osvaldo Magalhães, no conto “Réquiem Rubro” – disponível neste site –, além de adaptar livremente alguns conceitos da ilustre escritora Jean M. Auel (autora da saga “Os Filhos da Terra”, agora no quinto volume) e, claro, inserir e adaptar mais alguns elementos culturais e mitológicos de povos pré-colombianos.

A história propriamente dita começa alguns meses após os eventos narrados em “Conan das Ilhas” (ESCOR 11), desconsiderando totalmente a aventura “Necromantes de Na’at” (ESC 161), onde Roy Thomas, num de seus piores deslizes – se não o pior –, contradisse frontalmente a idéia que ficou implícita nos trechos finais da versão em quadrinhos de “Conan das Ilhas”, e explícita no fim da versão original do conto de L. Sprague DeCamp e Lin Carter: a da chegada do cimério em Mayapan, na companhia de quase todos os piratas que ele reunira em Tortage.

Por fim, espero que o enredo desta trilogia esteja à altura do importante momento que pretendo narrar...


(Obs.: Após concluir este conto, entretanto, comecei a traduzir outras aventuras de Howard, as quais deixam bem claro que a América da Era Hiboriana não era povoada por ameríndios, nem tinha cultura pré-Colombiana, como na aventura a seguir - isso pode ser visto claramente nos contos howardianos "Marchadores de Valhalla" e "Os Deuses de Bal-Sagoth" (disponíveis neste site), dentre outros a mostrarem que, na Era Hiboriana de Conan, o Continente Sem Nome era habitado por povos parentes dos stígios!
E mais: em sua carta a Schuyler Miller, Howard, ao falar das viagens de Conan, menciona que o cimério "visitou um Continente Sem Nome no Hemisfério Ocidental"! Ora, "visitar" é muito diferente de "fixar residência", como eu havia equivocadamente pensado que Conan o havia feito na América... De qualquer modo, enquanto não escrevo algo mais fiel a Robert E. Howard, espero que os caros fãs possam apreciar este exercício de imaginação, que fiz há quase seis anos).



Parte I – Mayapan!


1)

- Terra à vista, cães! – grita uma voz, falando o Argoseano com forte sotaque bárbaro. Por entre as barbas cinzas que cobrem o rosto bronzeado do homem que gritara, aparece um sorriso de alegria, e seus olhos azuis, a contrastarem com a pele escurecida e cicatrizada, brilham novamente.

Era Conan, nascido na tribo ciméria dos Canachs – ou Falcões da Neve. Filho do ferreiro Corin com a mestiça de aesir chamada Gresham, fora graças aos relatos de Drogin, seu avô paterno, acerca do mundo “civilizado”, aliados ao primeiro vislumbre daquele mundo, em Venarium, que o agora grisalho Conan deixara, antes dos 16 anos, as terras de bosques sombrios e céus nublados que o viram nascer.

Ele fora de tudo um pouco: saqueador, ladrão, mercenário, pirata, chefe de exércitos civilizados e tribos bárbaras, bucaneiro em Zingara, militar na Aquilônia e, finalmente, rei desta última nação. Naqueles 26 anos de reinado, ele derrotou conspirações, casou-se com a bela Zenóbia, foi pai de três filhos e ficou viúvo quando sua esposa deu à luz a quarta criança, a qual ele batizara de Zenóbia II. Embora sua melancolia pela perda da esposa tenha sido temporariamente reduzida, quando o agora pirata cimério conhecera o filho dele com Sonja da Hirkânia, seu bom-humor voltou a diminuir nos anos seguintes, devido às posteriores mortes de Publius e Pallantides.

Quando o Conde Trocero desapareceu misteriosamente, envolto em estranhas sombras vermelhas – o primeiro de setecentos aquilonianos nas semanas seguintes –, Conan teve um novo sonho com Epemitreus e, uma vez sabendo o segredo das “Sombras Vermelhas”, ele abdicou do trono em favor de seu primogênito. Após reencontrar Sigurd de Vanaheim, ele conseguiu, com a ajuda secreta do rei Ariosto de Argos, recrutar novos e antigos marinheiros, e partir para o oeste. No mar, o navio Leão Vermelho, de Conan, enfrentou vários perigos, até ser incendiado por um navio-dragão. A tripulação de Conan foi capturada, mas o cimério entrou sorrateiro na cidade chamada Ptahuacan, última sobrevivente da Atlântida, nas ilhas Antillias. Após aprender a língua local (com a ajuda de uma prostituta), Conan conheceu Metemphoc, o rei dos ladrões. O bárbaro se aliou a Metemphoc, para salvar seus piratas, que estavam para ser ofertados ao deus-demônio Xotli. Conan avançou pelos túneis subterrâneos da cidade até ficar sob a pirâmide no centro da cidade, onde seus homens seriam mortos. No caminho, ele enfrentou alguns dragões e acabou abrindo a passagem para o exterior, libertando os dragões, que dizimaram tudo à sua frente. Conan libertou seus homens e partiu em um navio-dragão, deixando a cidade para Metemphoc e seguindo à misteriosa terra de Mayapan.

Neste momento, toda a tripulação se alegra. Os primeiros a se dirigirem ao lado de Conan – este na proa – são um ruivo e um negro. O ruivo, apesar das rugas, calvície, cintura larga e roupas de mercador, tem os ombros sólidos, pernas e braços maciços, e é quase tão alto quanto o cimério ao seu lado. É Sigurd de Vanaheim, amigo de Conan desde que se conheceram, há mais de trinta anos na Ilha sem Nome, quando o atual ex-monarca da Aquilônia trabalhava como bucaneiro a serviço de Zingara. Quando outros zíngaros, não tão leais ao rei deles, afundaram o navio dos dois marujos bárbaros, Sigurd fora um dos poucos que conseguiram escapar. Seguiram caminhos divergentes, mas se reencontraram há vários meses em Messântia.

Quanto ao grisalho negro, este era amigo do cimério há muito mais tempo – mais de quatro décadas –, desde que navegaram juntos, ao lado de Bêlit, A Rainha da Costa Negra. Tiveram um breve reencontro, vinte anos mais tarde, quando Conan (“Amra”, como era chamado pelos corsários negros e agora também pelos marujos do Dragão Alado) estava temporariamente destronado e em busca de uma preciosa jóia para recuperar a coroa aquiloniana. A alegria mútua, ao se reencontrarem em Tortage não fora menor que a do reencontro entre Conan e Sigurd: era Yasunga, das Ilhas Prateadas, um excelente lanceiro e com físico ainda musculoso, apesar de ter acabado de completar sessenta anos.

- Será que é Mayapan, Amra? – pergunta Sigurd.

Os olhos azuis de Conan se estreitam. Ele pensa, por um instante, ter avistado um pequeno movimento na exuberante mata verde além da praia branca.

- Talvez sim, talvez não, Barba-Ruiva. Uma coisa é certa: a água dos barris está acabando. Você, Yasunga e Goram-Singh, reúnam dez homens para quando adentrarem a mata comigo, assim que desembarcarmos.

Assim é feito. Sigurd, Yasunga e Goram-Singh escolhem dez marujos, não de Argos, mas de Antillia, pois eles parecem estar mais bem familiarizados com aquela terra – tão tropical quanto o arquipélago que os viu nascerem.

O pequeno movimento que Conan vira – e distante demais para que o líder cimério pudesse imaginar do que se tratava – fora causado quando duas silhuetas, de narizes aquilinos e adornadas com penas verdes (para uma melhor camuflagem), avistaram, assustadas, aquele enorme e estranho navio que Conan pilotava, semelhante ao gigantesco dragão alado que dava nome à embarcação. Eles estavam na mata que comprimia as areias da praia local, naquele momento. Um deles disse ao outro:

- Quetza!

- Quetzacoatl! – respondeu o outro, completando a palavra do companheiro e tão espantado quanto ele.

* * *

Durante a missão de reconhecimento, Conan, Sigurd, Yasunga, o vendhiano Goram-Singh e os jovens marujos antillianos se maravilham com as belezas naturais do local, como as aves de plumas coloridas, o verdor da mata úmida e, até mesmo, um leopardo que pára próximo ao grupo, mas desiste de atacar os piratas, devido à quantidade destes. Ele lembra muito os velozes leopardos que Conan e Yasunga conheceram nas florestas ao sul de Kush, exceto pelo fato da parte clara de seu pêlo ser dourada. A maioria dos piratas a desembarcarem no local – com exceção de Conan e Sigurd – se sente em casa, naquele clima quente e úmido, afinal Goram-Singh, Yasunga e os antillianos nasceram em climas como aquele.

A mata é espessa, mas os piratas – os primeiros barachos a chegarem àquela costa – precisam de água para reabastecer seus barris. E assim, eles vão abrindo caminho por entre as árvores, usando suas espadas para cortarem os galhos que barram sua passagem. Então, eles se deparam com uma clareira que parece natural; mas os olhos agudos de Conan detectam, pelo aspecto da grama, que esta fora pisada horas antes deles chegarem – além disso, há também, aqui e ali, tocos quase imperceptíveis de talos de plantas cortadas. Vendo isso, o líder pirata ordena, em voz baixa, que todos se escondam na espessura antes da clareira.

Subitamente, um tucano voa em sentido contrário ao dos piratas, fazendo-os apertarem firmemente os cabos das espadas. E o chão começa a estremecer, como se mil elefantes estivessem marchando. E isso não deixava de ser verdade: eram enormes animais parecidos com elefantes, só que mais altos, com presas retas, trombas meio achatadas e orelhas curtas. Eram mastodontes, uma espécie de proboscídeo que o próprio chefe cimério vira pouquíssimas vezes – uma delas ao sul de Kush, e a outra, a leste do Vilayet. E o mais inusitado: eram montados por homens – nativos seminus, de pele morena, rosto aquilino, lisos cabelos pretos e negros olhos rasgados, vestindo tangas de pele de leopardo e armados de lanças com ponta de pedra.

O grupo é cercado, mas Conan da Ciméria é o primeiro a agir, puxando sua adaga do cinto e lançando-a na testa de um dos montadores, fazendo-o cair morto do alto do paquiderme. Este pára. Então, “Amra” grita:

- Mirem nos montadores! Sem eles, os animais são inofensivos!

Com um grito selvagem, que parece evocar todos os deuses gelados de sua terra natal, Sigurd puxa seus punhais e faz, com três montadores de mastodontes, o mesmo que o cimério fizera com o primeiro. Yasunga, por sua vez, indisposto a perder sua arma, esquiva-se da lança de um dos montadores e crava a sua no coração de um dos animais. Com um barrido ensurdecedor, este cai morto – e mortalmente – sobre o próprio montador.

Com suas respectivas espadas, Conan e Goram-Singh fazem, com mais dois mastodontes, o mesmo que Yasunga fizera com o uso da lança (o vendhiano não dispõe de uma adaga, e o cimério perdera a sua). Yasunga pensa em montar um dos mastodontes, assim como alguns homens dos distantes Reinos Negros fazem com seus elefantes. No momento seguinte, contudo, surgem vários outros montadores, a atirarem lanças com propulsores de madeira – que, embora não tão eficazes quanto arcos, fazem os dardos ganharem o dobro da velocidade normal.

Três segundos depois, Conan, Sigurd, Yasunga e Goram-Singh se vêem cercados por várias lanças cravadas no solo. No instante seguinte, os jovens marujos antillianos ficam na mesma situação que os seus líderes. Os montadores que atiraram as lanças já estão com seus propulsores novamente armados e apontados, e cada um dispõe de duas lanças de reserva na outra mão.

Com os olhos azuis faiscando de ódio, Conan deixa cair sua longa espada ao chão; Sigurd faz o mesmo com seu sabre de vidro antilliano, Yasunga com a lança e Goram-Singh com o sabre de aço. Os antillianos seguem o exemplo dos quatro ex-piratas, enquanto todas as armas são recolhidas por alguns nativos que desmontam.

Conan e os demais membros do destacamento são amarrados e levados a uma tribo adoradora da Serpente Gigante. O cimério – assim como Sigurd, Yasunga e Goram-Singh – nota que, embora semelhantes aos antillianos, alguns daqueles imberbes nativos não têm nenhum traço de ascendência atlante, como o povo de Ptahuacán, mais parecendo, para eles, “uma mistura de pictos com khitaianos”, como o próprio Sigurd comenta.


2)

Chegando à tribo, o grupo encontra, amarrada num tronco próximo a outros, uma bela jovem seminua, de escuros olhos rasgados, negros cabelos lisos, pele bronzeada como os demais aldeões, lábios e corpo belos e carnudos, e busto farto. E, antes de serem amarrados nos demais troncos, descobrem que terão seus corações arrancados em louvor à Serpente Gigante. Então, Conan e seus três maiores amigos piratas tentam reagir – mesmo com os pulsos amarrados –, chutando seus captores. Mas, no momento seguinte, quatro pedras, lançadas por fundas, derrubam o cimério sem sentidos, juntamente com Sigurd, Yasunga e Goram-Singh.

Ao acordarem, eles já estão atados às estacas. As amarras são feitas com cordas de navios-piratas antillianos – os poucos que não tiveram sucesso naquela costa –, o que impossibilita até mesmo Conan de arrebentá-las.

No momento seguinte, um velho xamã pintado – usando apenas uma tanga como todos os outros ali, mas o único a ter barba naquela tribo – começa a dançar e balançar um chocalho, enquanto entoa cânticos morosos diante de um tronco de árvore, em cujo topo está esculpida, de forma tosca e estilizada, a cabeça de uma serpente.

Todavia, a garota trazia, escondida no cinto da tanga, uma faca rudimentar de pedra lascada, com a qual corta as amarras dos pulsos. Uma vez solta, a jovem desamarra o cimério próximo a ela e, quando os aldeões percebem o que está ocorrendo, Conan, já livre, chuta a barriga do guerreiro mais próximo, tomando-lhe a lança com ponta de pedra. Enquanto a bela jovem – pertencente a uma das tribos adoradoras do Tigre de Dentes de Sabre – liberta os outros piratas, o cimério dá cobertura aos amigos, colegas e à inesperada aliada, manejando implacavelmente sua lança contra os atacantes.

Antes que os atiradores de fundas possam entrar em ação, Conan e Yasunga, seguidos por Goram-Singh e Sigurd, atiram as lanças certeiras nos corações e barrigas dos quatro que lhes deixaram sem sentidos. Então, com a ajuda dos jovens marujos de Antillia, todos os ex-prisioneiros recuperam as respectivas armas e continuam resistindo, mesmo quando reaparecem os quase invencíveis montadores de mastodontes.

Eles são novamente cercados, mas cerram os dentes e apertam os cabos das armas, prontos para morrerem sem se entregarem, e distribuírem o máximo de dor e morte antes de caírem. Quando tudo parece perdido, uma inesperada chuva de flechas derruba mortalmente os montadores de seus respectivos mastodontes. O cimério agarra a lança de um dos nativos mortos para acertar o xamã daquela tribo; mas outra saraivada de setas é disparada, sem que nenhuma delas atinja as quase vítimas do sacrifício. E uma daquelas flechas perfura mortalmente o cérebro do velho feiticeiro. Então, sem perder tempo, Conan toma a jovem nativa nos braços e, juntamente com seus homens, abre um caminho sangrento através dos guerreiros a pé – uma vez que os mastodontes ficaram mansos sem seus montadores –, até voltarem correndo à praia onde o Dragão Alado ancorara. A caminho da mesma, a presença de um pirata meio calvo, de traços hirkanianos, confirma o que o cimério já sabia: o arqueiro Yakov e outros piratas amigos haviam seguido de perto a pequena expedição.

Assustada, a jovem índia nos braços de Conan vê o navio e grita “Quetzacoatl!”; mas o cimério tranqüiliza-a com palavras meigas, enquanto sobe com ela a bordo da nave.


3)

A salvo no navio, o bárbaro da Ciméria, que sempre foi uma pessoa direta nas perguntas, se dirige a Yakov:

- Por que se preocupou em nos salvar? Você e Milo já haviam se amotinado contra mim uma vez... Só precisavam zarpar.

- Eu poderia fazê-lo se quisesse – responde Yakov –, mas eu me privaria dos dois melhores chefes piratas que já tive. Você e Sigurd são muito mais justos que o zíngaro Álvaro, a quem você matou. – acrescenta o arqueiro, finalmente reconhecendo quão valorosos são os líderes que ele há meses acompanha – E, como você mesmo disse ao Barba-Ruiva, eu também não quero fantasmas no navio.

Conan sorri satisfeito. Horas mais tarde, a nativa também sorri e conversa com Conan num idioma que, embora rudimentar, assemelha-se ao Antilliano. Seu nome é Mouhana e o pai dela,
chefe de uma tribo, fora morto por uma incursão daqueles adoradores da Serpente Gigante.

O ex-rei da Aquilônia não deixa de notar uma certa similaridade entre tal demônio e o deus-serpente Set, dos stígios. Alguns dos pictos que já viviam naquele continente, séculos antes do Grande Cataclismo, se miscigenaram com uma maioria de lemurianos, a qual fugia da catástrofe, ocorrida milhares de quilômetros a oeste, há vários milênios. Parte dos pictos não-miscigenados – também chamados de “Tribo Sem Nome” – seguiram depois para o sul, empurrados por glaciações.

Parte dos lemurianos mestiços permaneceu ali, mantendo com eles a religião da Grande Serpente, oriunda do Continente Thuriano. Uma outra, adoradora de Xotli, seguiu para as ilhas adjacentes – agora chamadas de Antillia – e se miscigenou com os descendentes de fugitivos atlantes da mesma catástrofe que atacara a Lemúria e, é claro, a Atlântida. Já os lemurianos menos miscigenados do Continente Sem Nome, se dividiram entre os adoradores da Serpente Gigante e os adoradores do Tigre de Dentes de Sabre – este último, um animal bastante comum em Mayapan. Outro ramo de adoradores da Grande Serpente permaneceu num Reino Pré-Humano do Velho Continente – inatingido pelo Cataclismo e futuramente a Stygia –, originando o culto a Set (daí a semelhança percebida por Conan).


4)

Chegando à tribo da garota, os lobos-do-mar se reabastecem com a água do rio que corta aquela aldeia; primeiro, bebendo sofregamente o precioso líquido que corre pelo leito, e depois enchendo suas bolsas de couro e os barris de madeira. Conan e Mouhana, por sua vez, descobrem, após várias noites calorosas no interior do navio, que seus sentimentos mútuos não se restringem a uma mera atração física.

Ao ver as ruínas fumegantes das choças, o cimério de bronze pergunta:

- Então foi aqui que você nasceu, hein?

- É. Mas como você pode ver, minha tribo... a tribo Tula foi quase toda destruída por adoradores da Serpente Gigante.

Conan sorri e mira apaixonadamente a jovem que ele iniciara sexualmente na cabine do Dragão Alado:

- Nós vamos reconstruir a sua tribo, Mouhana. Iremos governá-la juntos! E depois conquistaremos outras tribos até criarmos um império! Um império que resistirá aos ataques das tribos da Serpente Gigante e às incursões piratas de Antillia.

Mouhana sorri, contagiada pela determinação indomável daquele gigante de barbas e cabelos grisalhos. Por um instante, ele fica sério e acrescenta:

- Só peço uma condição: não haverá mais sacrifícios humanos aqui, nem nas regiões que dominarmos.

Mouhana concorda imediatamente. Por causa daqueles malditos sacrifícios, ela havia perdido o pai – assassinado durante o ataque rival –, vários amigos, e por pouco a própria vida. Colocando-se nas pontas dos pés, ela abraça a cintura do bárbaro da Ciméria e este toma a jovem nos braços, beijando-lhe sofregamente os lábios.

Erguendo a lança, o veterano pirata Yasunga grita:

- Viva Amra e Mouhana!

Todos os outros piratas repetem a mesma frase em coro. Todos aqueles barachos estavam dispostos a irem até o fim do mundo, se preciso fosse, pelo líder deles e para realizar a promessa que o ex-rei da Aquilônia fizera àquela jovem nativa: a de eles serem reis ali... talvez os reis de toda Mayapan!

* * *

Conan casa-se com a nova líder da tribo e, combinando forças entre seus piratas e os nativos daquela aldeia, começa a conquistar várias outras tribos, criando um império cada vez maior e mais sofisticado. Após ele e Mouhana proibirem os sacrifícios humanos em todas as regiões por eles governadas, Conan e seus companheiros do Dragão Alado ensinam aqueles povos a forjarem metais, polirem pedras preciosas, além de aperfeiçoarem-lhes as técnicas de cura de ferimentos e criarem um calendário para eles, dando-lhes o conhecimento da astronomia, agricultura e artesanato, e defendendo a região de ataques antillianos.

Assim, a aldeia de Tula, onde nascera a bela Mouhana, torna-se a capital de um império fundado pelo velho Conan, o qual gera, em sua nova rainha, dois filhos: o primeiro, chamado de Amalric pelo pai; e o segundo, uma menina chamada de Akhtlana pela mãe. O cimério domestica filhotes de dentes-de-sabre – para ajudarem-nos nas guerras e caçadas –, bem como paleolhamas (assim como também o fazem seus amigos), para facilitar os transportes e viagens comerciais; além de mastodontes, para defesa de sua aldeia – cada vez maior e mais avançada tecnicamente – e para o ataque a inimigos.

Assim como Conan, os outros ex-tripulantes do Dragão Alado – cujo nome Quetzacoatl” (serpente alada) fora transferido para Conan – também se casaram com as belas nativas de Tula, gerando descendentes com sangue mayapano misturado a sangue hiboriano, vendhiano, negro, antilliano e vanir, dentre outros. Com os nativos de Mayapan, os ex-piratas de “Amra” conhecem o uso da goma, extraída de certas árvores, para higiene bucal e estímulo à digestão. Ao conhecer uma avançada cidade chamada Tlapallan, o ex-rei da Aquilônia descobre que esta pratica sacrifícios humanos. Conan oferece a substituição das ferramentas, de obsidiana polida e de jade, pelo conhecimento da forja de metais – do cobre ao aço –, da agricultura e do artesanato, em troca da abolição dos sacrifícios humanos que o cimério tanto abomina. O jovem e recém-coroado rei da cidade aprova imediatamente a idéia, apesar dos protestos dos sacerdotes.
Produtos da agricultura mayapana, como o milho e a batata-doce (os quais Conan já conhecia desde sua época de chefe dos Bamulas), bem como o feijão preto e o tomate, passam a fazer parte da dieta dos ex-barachos, que também encontram uvas naquelas terras e passam a fazer vinho com elas. Os mayapanos possuíam também um sistema de correio oral, que Conan substituiu por um correio escrito, no idioma do povo nativo, mas com caracteres hiborianos. Pouco depois, o cimério descobre que o nome “Kukulkan”, dado anteriormente por Metemphoc, era uma versão antilliana de “Quetzacoatl”. Então o povo do crescente império de Mayapan passa a chamar o Quetzacoatl cimério de Kukulkan.







Parte II: Tlapallan


- Malditos sejam Crom, Mitra, Ymir, Ajujo e Ishtar. Malditos sejam todos os deuses do mundo hiboriano! E maldito seja também o Tigre Dentes de Sabre a quem os mayapanos do sul ainda veneram! A Serpente Gigante é a verdadeira divindade! Aquela que devora os corações humanos e bebe o sangue das virgens e crianças!

Quem falara isto era um homem de aspecto jovem, corpo musculoso e estatura mediana, com pele escura, negros cabelos lisos e olhos rasgados. Um típico mayapano, trajando um manto de penas azuis e um colar de ouro sobre suas alvas roupas de lã fina. Após pronunciar tais palavras, aquele homem se concentrou por um instante, pronunciando nomes estranhos, numa língua ainda mais estranha, mais esquecida que a Atlântida, submersa há milhares de anos. Então, ele vê, no pequeno globo de vidro na mesa à sua frente, imagens distantes no espaço, e talvez até no tempo:

Montado numa paleolhama, um guerreiro solitário atravessa, à noite, os campos assombrados a noroeste do Império de Mayapan. Sua pele é morena e seus lisos cabelos são quase brancos; uma barba bem aparada emoldura seu rosto cicatrizado e, embora velho, o homem tem um físico quase hercúleo.

Então, uivos lupinos causam-lhe repentino sobressalto. Poderiam ser alguns dos coiotes que percorrem aquela região desolada, assim como outras bem ao norte dali. Mas os uivos se assemelham muito mais aos dos lobos que ele conhecera no continente onde nascera, do outro lado do oceano.

Os sons partiram de algumas árvores ao seu redor. Fustigando a montaria para a frente, ele se vê subitamente cercado pelas criaturas cujos uivos escutara: seus corpos são humanos, mas são muito peludos; e suas cabeças, com longos focinhos, presas afiadas, olhos amarelos e orelhas pontiagudas, são de lobos. Lobisomens! Ele só imaginava que eles existissem em lendas, mas ali estavam. Sem pensar duas vezes, o idoso guerreiro desembainha o sabre e, no segundo seguinte, faz voar até o solo a peluda e ensangüentada cabeça de um deles. Embora o forte montador barbado consiga abrir o crânio de uma segunda criatura, o número delas é grande demais para ele. No momento seguinte, ele é arrancado da sela e derrubado de sua paleolhama.

Quando tudo parece perdido, um outro grito rasga a noite: um grito humano. Ele parece vislumbrar outro homem, semelhante a ele na idade e físico, estripar e desmembrar aqueles lobisomens, ao mesmo tempo em que sente a pressão diminuir. Então, ele reage, brandindo habilmente a espada – embora não tão habilmente quanto o montador que veio em seu auxílio.

Enquanto termina de lutar, o homem que fora atacado percebe algo de familiar na forma de gritar e combater daquele que o ajudara. Este último usa roupas e botas finamente costuradas, feitas com couro de mastodonte; suas botas são folheadas a ouro, assim como os braceletes, o cabo de sua espada reta e as peças metálicas nos ombros, pouco acima das curtas mangas da túnica de couro.

Suas extraordinárias habilidades de luta, bem como o físico e altura do mesmo, fazem o primeiro montador, o vendhiano Goram-Singh, reconhecer seu salvador, antes que, terminado o combate, a lua cheia ilumine os olhos azuis do imperador cimério Conan, chamado de Amra, O Conquistador da Terra do Sol Poente, pelos seus ex-companheiros do Leão Vermelho e Dragão Alado, além do título de Kukulkan, como o bárbaro de 80 anos é, há muito, conhecido pelos mayapanos.

Goram-Singh, que estava ali como batedor, espanta-se ao perceber que seu imperador, de longos e brancos cabelos e barba, esquecera até mesmo o próprio nome e a missão que impusera a si mesmo e a seus súditos: unificar as tribos das pradarias a oeste das fronteiras de Mayapan sob seu comando, para atacar e conquistar a cidade de Tlapallan, agora governada por um sinistro mago sem nome, e de rosto desconhecido.

Interessado nas riquezas naturais de Mayapan e incendiado pela cobiça imperial, o Senhor da Noite – um renegado mayapano do norte, cujo totem era a Águia – ludibriava seus comandados, inventando para eles que os mayapanos do sul eram “uma ameaça para o mundo” (“o mundo”, para os seguidores do Senhor da Noite, era apenas Mayapan; as terras ao norte, onde nasceram, e o arquipélago de Antillia).

O objetivo do tirano era “unificar o mundo sob uma única cultura”. A cultura dele, é claro. Sumo-sacerdote da Serpente Gigante, ele afirmava que a abolição dos sacrifícios humanos, feita por Kukulkan, era uma ofensa aos deuses eternos.

Ao assumir a chefia da tribo em que nascera, o Senhor da Noite (que sacrificara cinco mulheres e cinco crianças na ocasião, em honra à Grande Serpente, como primeiro ato oficial) tinha poucos poderes mágicos. Mas, a cada tribo conquistada, seus poderes sobrenaturais (ou “juju”, como dizia o velho Yasunga) aumentavam.

Ele acusava Conan de “ameaçar o mundo”, mas o imperador cimério vivia em pacífica relação comercial com a velha e próspera cidade de Tlapallan, enquanto o Senhor da Noite, com seu exército tribal e magia, marchou até Tlapallan e conquistou-a numa noite marcada por sangue e fogo, derrotando os exércitos locais, executando a Família Real da cidade e metade dos prisioneiros (e escravizando a outra metade), além de sacrificar um décimo da população de Tlapallan – homens, mulheres e crianças – à sua divindade malévola.

O imperador Conan de Mayapan (chamado de Amra pelos amigos e de Kukulkan pelos súditos) ficou indignado com atitudes tão vis, não apenas pelo mero comprometimento do comércio entre Amra-Mouhana (capital de Mayapan) e Tlapallan, mas pelos assassinatos covardes cometidos pelo Senhor da Noite. Ensinado pelos pais desde pequeno a não derramar sangue inocente, o velho cimério – também chamado de Conquistador da Terra do Sol Poente – ficou furioso e revoltado com as execuções e, mais ainda, com os sacrifícios de moradores indefesos da cidade aliada.

Como na tribo em que Conan nasceu – e em todas que ele visitou –, havia, em Amra-Mouhana, uma hierarquia social, onde ele e a esposa estavam no topo. Entretanto, não havia ali a desigualdade econômica que o cimério havia reduzido – mas que infelizmente não conseguiu extinguir – nos seus vinte e seis anos de governo na Aquilônia. Isto, porque o império mayapano que “Amra” construía não tinha o ranço de Acheron, herdado pela política aquiloniana nos quase três mil anos do reino que o cimério deixara ao filho – e que se acentuara bastante até o governo do falecido Numedides. Ao contrário de outras cidades sofisticadas que Conan conhecera, esta vinha sendo construída pelo próprio “Kukulkan”, e por isso nenhum habitante da cidade comia mais nem menos que o próprio fundador e rei desta, nem tinha mais nem menos terras. E ninguém – na cidade, no campo e nas tribos que o cimério governava – dormia de estômago vazio. A única alteração nas estruturas tribais e citadinas, feita por Conan, foi a proibição de sacrifícios humanos, e neste ponto o gigante de bronze era irredutível.

Assim, encabeçando um exército de guerreiros mayapanos, montados em paleolhamas e mastodontes, para invadir Tlapallan, e destronar o Senhor da Noite, “Amra” se perdeu do próprio exército ao aproximar-se da cidade. Tudo o que o cimério se recorda é de ter enfrentado, horas antes num rio subterrâneo, um jovem guerreiro alto e forte, o qual dizia coisas incoerentes sobre passado e futuro, e de uma estranha sensação de afogamento naquele mesmo rio, pouco antes de acordar – ou avançar no tempo –, ao som dos uivos dos lobisomens que atacaram o vendhiano.

Enquanto isso, o homem que observava na bola de vidro fica furioso com a frustração de dois dos seus planos: o de deslocar Conan para o passado e o de matar Goram-Singh.

* * *

Acreditando que a proximidade de uma cidade governada por um mago esteja enfeitiçando seu líder e amigo, o vendhiano resolve levá-lo de volta à cidade de Amra-Mouhana – que, há mais de uma década, era apenas a aldeia chamada Tula, onde nascera a herdeira tribal, a qual agora é imperatriz e esposa de Conan –, para que o cimério recupere a memória.

No caminho, porém, Conan e Goram-Singh encontram uma bela jovem em apuros, acuada contra uma parede em ruínas e prestes a ser morta por um dragão. Desmontando, Conan puxa uma adaga e esfaqueia o olho direito do monstro. Este, urrando de dor, o arremessa para longe. Então, Goram-Singh se interpõe entre a garota e o dragão que ergue-se sobre eles, cravando a cimitarra no peito e pescoço escamosos da criatura. Esta dá uma violenta patada no vendhiano, a qual só não arranca os músculos e órgãos de Goram, graças à cota-de-malha que este usa. No momento seguinte, o cimério crava sua longa espada, até o cabo, no outro olho da criatura, acabando de vez com a vida da mesma.

Um belo sorriso adorna o lindo rosto largo daquela belíssima morena nativa, de seios médios, cintura fina e largos quadris redondos. Seu sorriso não é apenas de agradecimento. Ela fica fascinada pela estatura elevada e olhos azuis do cimério. Há algo de familiar e meio lendário no que ela vê, mas antes que a morena possa fazer qualquer pergunta, o bárbaro sorri e acaricia as longas madeixas negras da jovem, e seu olhar é mais eloqüente que qualquer palavra. Assim, contagiada pelo desejo do cimério, a moça de olhos rasgados não consegue resistir aos fortes braços musculosos que envolvem-lhe o corpo curvilíneo e puxam-na para um ardente beijo na boca.

Apaixonado pela jovem e esquecido da existência de Mouhana, o bárbaro adentra as ruínas de uma cidade, onde faz amor com a bela garota, enquanto seu leal amigo Goram-Singh monta guarda na parte externa daquele local.

Durante a troca de prazeres carnais, em uma das salas menos arruinadas do local, a jovem nativa se mostra experiente na arte de amar e surpreende o cimério, ao, não só permitir, mas implorar para que Conan a sodomize durante a relação. Ele, é claro, atende o pedido dela, após lubrificá-la adequadamente. Extasiado em vê-la sentir ainda mais prazer na parte traseira que na frontal, o cimério atinge o clímax ao mesmo tempo em que a mulher de pele morena, e bem antes que o normal para os seus oitenta anos de idade.

Após o orgasmo, eles descansam lado a lado. Então, se levantando sobre os cotovelos, ele pergunta-lhe o nome:

- Okethla. – responde a jovem – E o seu?

- Conan. – ele responde, após um lampejo que lhe reduz significativamente a amnésia.

Com a memória quase recuperada após o enlace amoroso, o satisfeito cimério começa a se vestir, e se surpreende novamente, desta vez ao ver o desenho de um dragão numa coluna – igual às representações do Dragão Alado (ou Quetzacoatl), feita nas residências de Amra-Mouhana. Ainda surpreso, Conan vê uma outra criatura monstruosa sair da escuridão. Os gritos de Okethla chamam a atenção de Goram-Singh, o qual parte para ajudar o cimério a salvar a jovem ainda nua.

Ao chegar, ele vê o cimerio enfiar uma lança, encontrada ao acaso no chão daquele quarto, na enorme boca do segundo dragão – pois não teve tempo de ajustar em sua roupa o cinto com a espada. Goram completa o serviço do cimério, enfiando, até o cabo, sua cimitarra na cabeça da criatura. Esta se debate e grita durante um minuto – o qual mais parece uma eternidade – e, num último espasmo, morre.

Após o último estertor de morte da criatura, o cimério e o vendhiano retiram as armas do enorme corpo da mesma e percebem que estão na própria capital do Império que Conan fundou, só que séculos ou milênios no futuro. Goram-Singh atribui isso ao governante feiticeiro de Tlapallan, o Senhor da Noite. Embora já lembrando o próprio nome e missão, nomes como “Tlapallan”, “Senhor da Noite” – assim como o de sua querida imperatriz – ainda são meras lembranças, vagas e sem sentido, na mente de Conan.

* * *

As horas se passam, mas, para estranheza de Conan e Goram-Singh, a lua não se move. Eles estão prestes a interrogar Okethla – esta, montada na traseira da paleolhama que o cimério cavalga –, quando repentinamente avistam uma cena: uma bela mulher, de pouco mais de trinta anos, seminua e amarrada a um tronco de árvore. Três selvagens atarracados, emplumados e pintados, vestidos com tangas de pele, cercam-na. Um deles se põe a uma distância de dez metros dela e atira um machado de pedra em sua direção. A lâmina se crava no tronco de madeira, apenas dois centímetros à esquerda do rosto dela, cortando-lhe uma mecha do longo cabelo negro.

Sem pensar duas vezes, Conan arremessa sua lança, certeira, nas costas do que estava jogando com a vida da mulher, e com tal força que a ponta do longo dardo se projeta pelo peito robusto do selvagem de pele escura. O segundo investe contra o grupo, mas Goram-Singh desmonta.

- Deixe esse pra mim, Amra! – diz o vendhiano, pouco antes de atravessar o pescoço do atacante.

O terceiro tenta cortar a garganta da vítima amarrada, mas um repentino e inesperado raio de luz azul sai da mão estendida de Okethla, fulminando o pretenso assassino covarde, que cai morto ao chão, com o peito e coração queimados e fumegantes.

Apesar de espantados com o fato de Okethla demonstrar poderes até então desconhecidos para eles, Conan e Goram-Singh preferem não olhar os dentes de um cavalo dado e correm em direção à mulher amarrada. Eles olham rapidamente os corpos estendidos ao chão. Embora morenos e atarracados, como a maioria dos nativos de Mayapan, aqueles estranhos selvagens não têm olhos rasgados nem narizes aquilinos. Ao contrário, eles têm traços ocidentais que causam estranheza ao par de guerreiros. Goram-Singh nunca vira um assim, mas Conan já. Este último, porém, não se recorda onde conhecera homens daquele tipo. Então, eles desamarram a bela mulher na árvore.

Ao vê-la, o bárbaro cimério reconhece-lhe os negros olhos puxados, incrustados em sua bela pele marrom; a boca carnuda e avermelhada, o par de seios fartos e morenos – agora ainda maiores que há 13 anos passados – e o voluptuoso corpo curvilíneo, coberto apenas por uma tanga de pele de jaguar. Então, ele recupera totalmente a memória:

- Crom! Mouhana!?

- Oh, Conan! – ela ofega, por sua vez, num sorriso de satisfação.

Ambos se abraçam e trocam um beijo, enquanto Goram-Singh consola Okethla, explicando-lhe a situação – e ao mesmo tempo contente, por sua rainha não ter percebido o breve choro da garota, o que poderia ser bastante comprometedor ao seu rei e amigo.

Uma vez consolada, Okethla conta aos dois guerreiros que ela era uma descendente do bom rei de Tlapallan – o qual deixara de praticar sacrifícios humanos por ordem de um guerreiro branco chamado Kukulkan, 500 anos antes de sua época – e que tinha poderes suficientes para derrotar a magia do tempo, feita pelo Senhor da Noite. Mas este a transportou para nove séculos após a época dela e invocou as duas criaturas monstruosas para matá-la. Seu último ato de magia, antes de perdê-la, foi o de chamar um grande guerreiro para ajudá-la se necessário. Para sua sorte, apareceram dois: Conan e Goram-Singh.

Uma vez mortos os dois monstros, seus poderes haviam retornado, enquanto o Senhor da Noite, que os observava de longe numa bola de vidro, os perdeu de vista. Assim, a jovem ergue ambos os braços, fazendo uma cintilante bola azul brotar de ambas as mãos. A esfera luminosa, de uns 20 centímetros de diâmetro, se derrama sobre os quatro em forma de raios, semelhantes a uma enorme gaiola azul e fluorescente.

Em seguida, num clarão enorme, Conan, Mouhana, Goram-Singh e Okethla retornam à época na qual os três primeiros viviam. Okethla por sua vez, apesar de desiludida com o cimério, sabia que este havia perdido a memória recém-recuperada e estava ainda mais desiludida com sua época futura, na qual a magia do Senhor da Noite extinguira a luz do dia, só deixando lua e estrelas, além de arruinar a secular Civilização Mayapana, cujo fundador estava ali ao seu lado.

“Por outro lado”, pensa ela, “o vendhiano também não é tão feio assim... Além disso, é leal e tão maduro quanto Conan/Kukulkan”, conclui intimamente a jovem maga, que sempre teve uma forte atração por homens bem mais velhos que ela.

* * *

Algumas noites depois...

Em Amra-Mouhana, cidade construída numa elevação próxima ao mar azul e ao límpido rio que nele desemboca, a lua está a meio caminho de seu zênite quando o velho Sigurd – um dos atuais conselheiros de Conan – encontra os príncipes reais: Amalric, de 12 anos, e Akhtlana, de dez, arrumados em seus trajes de lã fina de paleolhama e debruçados sobre a enorme janela do Palácio de Kukulkan, com os olhares fixos no horizonte além das muralhas da cidade.

“Pela Filha de Ymir e as presas do Dentes de Sabre!”, pensa o corpulento vanir, cuja barba agora já não era tão ruiva, “A ausência de Amra e da rainha não é melhor para seus filhos do que para mim e seus amigos”. Então, se aproximando dos dois, ele abraça os príncipes de Mayapan e sorri, dizendo:

- Não está na hora de os rapazes irem dormir?

Akhtlana se vira para Sigurd, aborrecida. Mas o bárbaro de Vanaheim sabe que a raiva da menina e seu irmão não são por sua causa, nem devido à sua pergunta.

- Só durmo quando papai e mamãe voltarem! – responde a princesa, com a melancolia estampada em seus negros olhos amendoados.

- Eu também. – acrescenta Amalric – Enquanto eles não estiverem aqui, o calhorda do Senhor da Noite continuará sendo uma ameaça a todos nós.

Com um leve suspiro, Sigurd pensa no que dirá no momento seguinte, para acalmar os príncipes – apesar de o vanir estar tão preocupado quanto eles com os dois velhos amigos, Conan e Goram-Singh.

No instante posterior, um dos sentinelas envia um mensageiro ao grisalho Sigurd, informando-lhe da aproximação de dois homens, cavalgando em direção aos portões de Amra-Mouhana. Alerta, o vanir pede ao amigo Yasunga – que divide com o ruivo o cargo de conselheiro-chefe – para que cuide dos príncipes, enquanto ele se dirige aos portões. Quando estes se abrem, o vanir – à frente de um exército de homens, mastodontes e paleolhamas que, embora menor que o do Senhor da Noite, é suficiente para defender e proteger a capital de Mayapan – sente o coração pular de alegria e felicidade, ao reconhecer os dois montadores que se aproximam.

- Amra! – exclama ele – Você e Goram-Singh... vivos!!

- Fale mais baixo, caro amigo. – responde Conan – Vamos agir rápida e discretamente. Reúna cinqüenta homens do exército da cidade e nos sigam! Mouhana e Okethla nos aguardam logo após aquela pequena elevação! Mande avisar Yasunga e meus dois filhos que estamos vivos.

- Certo, mas... quem é Okethla?! – pergunta Sigurd.

- No caminho eu lhe conto, Barba-Ruiva. – responde Conan.

* * *

Os dias seguintes são bastante movimentados para os quatro guerreiros e a jovem feiticeira. Para reunirem a maior quantidade possível de guerreiros das tribos das estepes, eles recorrem aos poderes de Okethla, inventando-lhes que esta é uma deusa, a qual viera ajudá-los contra uma ameaça diabólica – o que, de certa forma, é verdade – e que, para isso, precisavam deixar as rixas tribais de lado e se aliarem àquele exército cada vez maior. Pouco a pouco, o cimério, o vanir, o vendhiano, a mayapana e a jovem do futuro vão obtendo êxito.


Então, numa noite pontilhada de estrelas, com as tribos unidas e os exércitos acampados numa verdejante planície a apenas quinze dias de Tlapallan, Okethla e Goram-Singh trocam olhares de intenso desejo, e o vendhiano – agora mais tranqüilo que no dia em que a conhecera – leva a jovem para dentro de sua tenda.

As fogueiras do acampamento ainda estão acesas, quando a bela Mouhana avista a cena e sorri para Conan, dizendo:

- Eles nos deram ótimas idéias, não acha?

O cimério também sorri e, tomando a esposa nos braços, caminha para sua tenda e segue o exemplo de Goram-Singh.

Observando tudo isso, Sigurd se amaldiçoa, por um momento, por não ter trazido a própria esposa. Mas depois, ele mesmo ri do próprio – e fugaz – instante de mal-humor.

* * *

A velha cidade de Tlapallan, com seus zigurates em honra aos deuses – agora desonrados pela volta dos sacrifícios humanos – e suas liteiras que carregavam os mais abastados pelas ruas, esquinas e avenidas pavimentadas por blocos de pedra (detalhes, estes, que a tornavam semelhante à cidade antilliana de Ptahuacan) tinha seus muros assentados sobre uma elevação inclinada, de uns dez metros de altura, o que dificultava o cerco àquele local.

Então, usando de um mesmo ardil com o qual invadira Khauran, mais de meio século atrás à frente dos zuagires, Conan consegue atrair para a planície os exércitos do Senhor da Noite, o qual só descobre tarde demais a manobra do cimério: as supostas catapultas e torres de assédio eram meras estruturas pintadas à distância, feitas para enganar os guerreiros tribais do feiticeiro.

Embora um grande número de guerreiros do Senhor da Noite use armas com lâminas metálicas – forjadas tanto em Tlapallan quanto em Amra-Mouhana –, a grande maioria empunha lanças e machados de pedra. E a formação relativamente desorganizada dos guerreiros tribais do feiticeiro, bem como as suas lâminas de jade e obsidiana polidos, não são páreos para a sólida formação hirkaniana em meia-lua dos exércitos de Conan, assim como suas lâminas de ferro e aço mayapanos (boa parte destes forjados pelo próprio Conan, durante a unificação das tribos), e de vidro antilliano – este último, tão forte quanto metal.

Chuvas de flechas com pontas metálicas caem impiedosamente sobre os guerreiros mayapanos do norte. Após isto, começa o combate corpo-a-corpo. As lanças e machados de pedra dos selvagens, apesar das baixas causadas ao exército de Amra-Mouhana, não resistem às armas de vidro antilliano e aço mayapano, empunhadas por Conan, Sigurd, Yasunga, Goram-Singh e Mouhana – bem como por todo o exército que viera acudir Tlapallan.

Os seguidores do bruxo que caem vivos ao chão são impiedosamente pisoteados pelas paleolhamas e mastodontes, montados por metade do exército de “Kukulkan”. Barridos elefantinos, gritos de dor, ódio, triunfo e medo, se misturam ao inconfundível som de metal e pedra afundando em carne e ossos. Corpos, cabeças, membros, entranhas e miolos se misturam, imóveis, ao chão.

No entanto, flechas continuam chovendo das ameias de Tlapallan. Mas o arqueiro Yakov e seus atiradores voltam a disparar, uma vez após outra e sem interrupção, suas flechas no exército rival até chegarem às ameias, nas quais os poucos arqueiros da cidade são impiedosamente flechados pelos do ex-baracho, até que os muros da cidade fiquem totalmente sem defesa.

Ao finalmente adentrarem Tlapallan, os exércitos de Conan avançam pelas praças vazias, onde sacerdotes tentam apunhalar o líder dos invasores. Naquele momento, então, o cimério sorri ameaçadoramente, lembrando das vítimas que eles, após arrancarem os corações, queimaram em praça pública. Então, numa velocidade que olhos humanos dificilmente acompanhariam, o octogenário “Amra” embainha a espada e brande um braseiro próximo, queimando os mantos de penas e togas de lã dos vis sacerdotes, assim como a eles próprios.

Quando os exércitos de “Kukulkan” adentram as ruas da cidade, o povo – até então, escondido nas casas – se enche de esperança e coragem. Então, usando de pedras e de utensílios domésticos (pois estavam proibidos de usar armas), a população de Tlapallan começa a ajudar Conan a matar os soldados e guerreiros do Senhor da Noite, bem como aos infames sacerdotes da Serpente Gigante, os quais haviam sacrificado pessoas inocentes a mando do feiticeiro que usurpara o trono da cidade – esta, há anos sem os detestados sacrifícios de vidas humanas aos deuses.

Naquele momento, no alto do Templo do Jaguar – um dos templos transformados em local de culto à infame Serpente Gigante –, os guerreiros vitoriosos da batalha moribunda avistam os dois líderes rivais se defrontando...

- Você bem que merece o seu totem, sacerdote dos infernos... – diz Conan, furioso, de espada em punho e avançando a passos lentos e ameaçadores em direção ao Senhor da Noite, enquanto este recua na mesma velocidade – A águia!... Um predador que, como você, nunca enfrenta adversários à altura... covarde! Adorador de serpente maldito; assassino de mulheres e crianças! Você, que mandou aqueles lobisomens infernais para tentar matar Goram-Singh, e quase matou minha esposa com aqueles selvagens do futuro! Pensou que conseguiria mesmo tirar minha memória por muito tempo, a ponto de fazer com que eu matasse minha versão do passado em Kutchemes, deixando Mayapan desprotegida?

Então, o suado e ensangüentado cimério de barba branca nota que o olhar de medo daquele feiticeiro, de aparência jovem e cabelos em corte reto, é dirigido à jovem de vestido vermelho, com cinto dourado, atrás de Conan. É Okethla, com o braço estendido, o olhar firme e vingador, e a boca carnuda se movendo discretamente, enquanto sussurra encantamentos. Nesse momento, “Amra” percebe que a jovem do futuro está minando as energias místicas do Senhor da Noite.

Quando o Conquistador da Terra do Sol Poente se prepara para acertar um golpe fatal de sua espada ensangüentada no pescoço do feiticeiro, este ergue subitamente o braço que segura o cetro dourado daquela cidade, e pronuncia diversas palavras sem pausa, como se fosse uma frase enorme numa palavra só, com consoantes de som seco e numa língua ininteligível. Então, uma luz verde envolve o corpo do Senhor da Noite e, com o que restava de sua magia, ele desaparece, deixando apenas o cetro de ouro, incrustado de esmeraldas, que cai ao chão logo depois. Mas, em sua mente, Conan ouve a voz do bruxo dizer: “Eu voltarei!”.

Então, num som tão pulsante e regular quanto o rufar de um tambor ou a batida de um coração, todo o povo volta a gritar: “Kukulkan”. Mas Conan ergue o braço e todos os seus partidários silenciam.

- Não precisam agradecer! – responde o cimério em voz alta, para que todos ouçam – Foi Okethla quem venceu a batalha por mim. – ele acrescenta, olhando para a bela maga – Que ela e Goram-Singh sejam os novos reis de Tlapallan! – conclui Conan, que, já sabendo que ela se apaixonara pelo vendhiano, ergue os braços do casal e une as mãos um do outro no cetro dourado de Tlapallan.

Um novo alarido de júbilo e aclamação invade a noite naquela cidade secular. Mesmo sabendo que conseguiu evitar um futuro terrível, Okethla prefere ficar naquela época (para ela meio lendária a princípio), por ter se apaixonado pelo vendhiano – cuja esposa mayapana morrera de parto há 11 anos.

* * *

Na tarde seguinte, todos os guerreiros que ajudaram a libertar a cidade de Tlapallan estão reunidos no Palácio Real da mesma. Travessas de milho, batata-doce, carne de mastodonte, e de pratos com feijão preto e tomate, estão dispostas ao longo de uma enorme mesa na sala do trono. Conan, Mouhana, Sigurd, Yasunga, Milo, Yakov e o frio ex-pirata de Kush meridional – cuja língua fora cortada, há muitos anos, por stígios –, bem como as esposas dos cinco últimos, e todos os convidados para a coroação de Goram-Singh e Okethla (antes da qual ambos se casariam) estão banhados e vestindo luxuosas roupas coloridas de lã fina, algodão e pele de jaguar naquela ocasião solene.

Por serem bárbaros e não terem muita paciência para cerimônias, Conan, Sigurd e Yasunga são os primeiros a se servirem com as iguarias, ali postas, da culinária mayapana, seguidos pelos outros. Logo depois, um idoso xamã, vestindo uma tanga de pele de dentes-de-sabre, com o cetro de Tlapallan nas mãos e plumas coloridas pelo corpo, começa a dançar diante de Okethla e Goram-Singh. Após minutos de frenesi, em comunhão com os deuses para os quais dança, o velho de barbas brancas aponta o cetro para o vendhiano e, logo depois, para a jovem maga, dizendo:

- A partir de hoje, vocês são esposo e esposa, com as bênçãos do grande Tigre de Dentes de Sabre e de Seu filho, o Grande Jaguar.

Então, os recém-casados sorriem, enquanto o xamã se aproxima deles e lhes entrega o cetro. Com ele em mãos, Goram-Singh beija Okethla nos lábios e, do mesmo modo que na noite anterior, ambos erguem os braços, unindo suas mãos no cetro. Em seguida, o novo casal real da cidade, seguindo os costumes da mesma, fica um de frente para o outro, cada um segurando uma curiosa peça de ouro com penas coloridas.

- Eu, Okethla de Mayapan, lhe corôo novo rei de Tlapallan, com as bênçãos do grande Tigre de Dentes de Sabre. – diz a jovem, colocando o longo elmo emplumado na cabeça do vendhiano (bem diferente da coroa dourada, em forma de aro, que Conan forjara para si mesmo há anos).

- E eu, Goram-Singh de Vendhia, lhe corôo rainha de Tlapallan, com as bênçãos de Asura. – responde o novo monarca da velha cidade, imitando o gesto de sua amada.

O filho caçula do falecido rei de Tlapallan – ainda um recém-nascido e último sobrevivente da chacina feita pelo Senhor da Noite – é criado pelo novo casal real, sem perder o direito à herança do trono da cidade, apesar do filho de Goram-Singh ter se tornado príncipe da mesma. Okethla não deixa de achar engraçada a situação: ela se tornou madrasta de um longínquo ancestral.

* * *

Um pouco chateado por não ter podido participar da batalha, o príncipe Amalric, de doze anos, se queixa a seu pai. Ele, então, lhe repete uma frase que lhe fora ensinada há muito tempo pelo próprio pai, o ferreiro Corin, na tribo dos Falcões da Neve:

- Uma criança observa à beira d’água, um menino nada perto da margem, mas um homem deixa que os ventos o levem para o mar.

E sorrindo, Conan acrescenta:

- Já está na hora de deixar que os ventos lhe levem, filho. Na próxima batalha, por menor que seja, você irá participar.

Os oblíquos olhos verdes do príncipe de Mayapan se iluminam com aquela promessa.







Parte III – O Último Vôo da Serpente Alada



1)

O cimério volta do local onde dorme seu tigre de estimação favorito (um dentes-de-sabre), ao qual acabara de alimentar, e chega aos aposentos reais, onde encontra sua imperatriz deitada na cama, mas ainda acordada. A esposa de Conan era uma mulher meio corpulenta – mas ainda bem-feita de corpo –, com quarenta e três anos de idade, um metro e sessenta de altura, pele marrom bronzeada, negros olhos oblíquos, lábios carnudos e cabelos prateados, contrastando com o belo rosto sem rugas.

Ela preferia seu marido com o rosto barbeado, como ele deixava no verão. A ausência de barba, aliada à textura lisa dos cabelos brancos do guerreiro e à pele bronzeada deste, tornava-o um pouco mais parecido com o povo dela do que com o restante dos ex-piratas – e atuais súditos deles –, dos quais os velhos Yasunga e Sigurd eram hoje conselheiros reais. O cimério, apesar de seus noventa anos de idade – e mais rugas que vinte e poucos anos antes –, continuava com o físico tão musculoso quanto no dia em que salvara a então herdeira da tribo Tula de ser sacrificada ao culto da Serpente Gigante, e, embora menos forte, sua habilidade guerreira era ainda maior que dez anos antes, quando, transportado temporariamente no tempo e espaço, quase matara uma versão jovem de si mesmo. Isso, aliás, era um detalhe no qual Conan sempre se superou: sua intimidade com a lâmina. Tanto seu filho Amalric, quanto a jovem Akhtlana, foram igual e habilmente treinados – pelo pai e pela vida, assim como Conan – no manejo da espada, do machado, lança e adaga.

No momento seguinte, em seu leito, Mouhana, com seu corpo mal coberto por suas roupas sumárias de algodão, cruza as pernas e sorri, chamando o marido convidativamente, com desejo na voz. Este, porém, não a ouve. Naquele momento, com a brisa noturna a bater-lhe no rosto bronzeado, o cimério pensa na batalha decisiva que se dará na manhã seguinte.

Com sua magia enfraquecida pela perda da posse de Tlapallan e pelo fortalecimento das regiões que pretendia conquistar – mas ainda inflamado pela cobiça em se apossar, a todo custo, das riquezas naturais de Mayapan –, o Senhor da Noite passou os últimos tempos forjando uma aliança com os piratas antillianos, os quais tinham os mesmos interesses na região. Parte daqueles homens de Antillia – os mais velhos – tinha, também, interesse em se vingar, não apenas da proibição que o imperador Conan de Mayapan lhes fizera, impedindo-os de atacarem aquela região, mas também da queda de Ptahuacán, ocorrida vinte e três anos antes.

Então, os olhos azuis do imperador cimério miram os negros da grisalha, mas ainda bela, imperatriz Mouhana, de rubros lábios de mel, cujos seios enormes balançam ao sabor de seus passos. E, nesse breve olhar mútuo, vários anos de aventuras, batalhas, ganhos, perdas, encontros e desencontros são relembrados em questão de momentos. Eles aproximam-se lentamente, um mirando o corpo moreno do outro, até que, como em várias vezes anteriores, seus lábios se tocam, desta vez somando o calor de todas. Enquanto ela passa as mãos pelo torneado torso nu e peito peludo de Conan, este faz o mesmo com Mouhana, tirando o corpete de algodão da esposa e pondo-lhe à mostra o busto grande, bronzeado, mole e quente, que começa a receber o toque da língua áspera do marido, do qual ela tirou a tanga, enquanto este lhe fez o mesmo.

Ofegante, Mouhana sente os dedos calejados de Conan, acariciando-lhe os ralos pêlos entre as pernas e umedecendo sua negra mata com a essência lubrificante que começava a inundar-lhe o pequeno vale pubiano, ao mesmo tempo em que o cimério põe a língua no meio de seu busto para, em seguida, abocanhar-lhe os grandes e enrijecidos mamilos marrons, bem como as partes superiores e inferiores de ambos os seios. Então, o bárbaro desce lentamente a língua para a barriga, umbigo e monte-de-Vênus. Então, num misto de desejo por seu marido e ansiedade pela guerra, que começará no dia seguinte, a imperatriz de Mayapan arqueia para trás, com os olhos fechados e a boca entreaberta, num gemido de prazer, pouco antes de abocanhar doce e umidamente o órgão latejante do bárbaro.

Minutos depois, suavemente adentrada por Conan, ela sente, assim como no beijo que trocara, o atrito entre sexos ainda mais intenso e prazeroso do que nunca em sua vida – como se, apesar de já ter sido satisfeita na cama com ele incontáveis vezes, aquela fosse a primeira. O próprio bárbaro sente o desejo por ela aumentar, numa proporção inimaginada, nos minutos seguintes. E é no seu êxtase máximo que a índia nativa arranha as costas e pernas do cimério, pouco antes de sentir a calidez úmida de Conan lhe jorrar nas entranhas palpitantes.

Exaustos e aliviados, ambos adormecem rapidamente e sonham... sonham com seus respectivos passados. Mouhana se vê criança, na tribo Tula, com seu pai a lhe sorrir e contar-lhe belas lendas. Já o maior guerreiro dos Falcões da Neve sonha com um passado ainda mais longínquo, milênios antes da própria Era de Kull: ele se vê num mundo onde todos os homens e mulheres vestem peles de animais e usam instrumentos com lâminas de pedra lascada; onde espécies raras, como mamutes e dentes-de-sabre, são comuns e abundantes. Ele se vê com cabelos loiros e olhos violetas, embora igualmente alto e musculoso; e avista, também, uma jovem loira, de olhos azul-acinzentados e corpo voluptuoso, aproximar-se totalmente nua e montada em pêlo num cavalo de pouca estatura. Ela sorri e seus olhos cor-de-sílex ficam verdes, enquanto o cabelo também começa a mudar de cor.

Então, Conan acorda sobressaltado e vê, na penumbra do seu quarto, uma silhueta feminina, de pé, a qual ele sabe que não é a de sua rainha.


2)

“Devagar abriu a porta
e eu estava apaixonado.
Foi futuro, foi presente,
Foi particípio, foi passado.
Na boca trazia um beijo e a maçã do desejo,
coração escancarado!”


(Alceu Valença em “Casaca de Couro”)


Seu busto volumoso, entrevisto pela abertura de sua camisa de pele, agora caía-lhe pouco acima do umbigo; havia rugas em suas mãos, seu ventre, e um pouco nos antebraços e parte das coxas de grossura média. No entanto, havia algo de altivo, vigoroso e majestoso naquele estranho vulto feminino que se aproximava do leito do imperador de Mayapan, não apenas na forma resoluta de caminhar, mas também em seu aspecto: os ombros e quadris ainda eram firmes e sólidos. Ao chegar à luz da lua, que penetra pela janela, o rosto daquela mulher de andar silencioso aparece diante dos olhos espantados do cimério.

Os longos cabelos rebeldes eram alvos como neve e a face, tão enrugada quanto a de Conan. Mas o formato do rosto e o verde dos olhos, assim como seu sorriso rosado, eram inconfundíveis.

- Sonja? – sussurra o imperador bárbaro, com espanto – Sonja da Hirkânia!? O que faz aqui?

Ainda sorrindo, ela responde:

- Vim pra lhe ajudar, Conan da Ciméria, hoje Conan de Mayapan. Sei que, amanhã, você lutará uma batalha muito difícil... uma batalha contra o Tirano do Norte, um secular bruxo mayapano renegado, o qual quer impor sua vontade e sua cultura aos povos do sul. Estou aqui para lhe ajudar.

Intrigado, Conan pergunta:

- Como conseguiu entrar aqui, sem ser vista pelos guardas?

A hirkaniana só não gargalha para não acordar a imperatriz, que dorme ao lado do cimério.

- Sempre fui boa nisso. – responde ela, sentando-se no tapete de pele de jaguar, ao lado da cama real – Meu caminhar sempre foi sorrateiro...

- É verdade. – diz Conan, com um quase riso, a zombar da própria pergunta. Certa vez, em Pelishtia, Sonja chegara a afiar a própria espada sem acordá-lo.

- Nosso filho Ghonary já nos deu bisnetos e, depois disso, resolvi vagar pelo mundo, assim como você.

Observando a sua velha companheira de batalhas – e, anos mais tarde, de cama –, o cimério percebe que ela ganhara um novo tipo de beleza, ao ter, assim como ele, acabado de completar nove décadas: a beleza da experiência e de uma longa maturidade. Intimamente, o ex-monarca da Aquilônia se amaldiçoa por já ter feito amor com a esposa. Na sua idade atual, Conan só era capaz de ficar excitado e ter orgasmo uma vez por dia.

Sorrindo novamente, a idosa guerreira – outrora ruiva – diz a Conan:

- Ajudarei os seus homens a vencerem a batalha de amanhã... por um preço.

Erguendo-se de joelhos sobre o tapete, Sonja abre e retira a própria camisa de pele, despindo os alvos seios balouçantes diante do cimério nu. Então, sem o menor aviso e nenhuma explicação lógica, Conan sente o próprio órgão ficar dilatado e rijo. Sem questionar o fato de sua excitação voltar tão rapidamente e arrebatado pela visão daquela mulher alva ficando nua, o Conquistador da Terra do Sol Poente desce da cama para o tapete e beija sofregamente os lábios de Sonja.

O único questionamento que passa pela cabeça do cimério era o de como a guerreira sabia que ele vivia lá. Mas a crescente onda de paixão, que arrebata-lhe os sentidos, abafa tal pensamento, à medida que beijos e carícias se espalham por seus corpos nus.

Há pouco, Conan tivera um sonho meio distorcido, onde ele e uma bela jovem da Idade da Pedra eram versões loiras de Askios e Emblia, o primeiro casal humano da mitologia ciméria. Não deixava de ser uma premonição do reencontro recém-ocorrido, afinal ele e Sonja haviam fundado uma nova linhagem numa terra que lhes era estrangeira, ao gerarem, na Ciméria, um loiro que, embora nascido em Vanaheim, não era vanir. E, como Askios e Emblia, eles mais uma vez se amam ardorosamente, evitando gemerem para não acordarem Mouhana, mas suspirando de prazer cada vez mais intensamente.



3)

“Adeus, meus amigos de horas sombrias,
rainhas e criadas de peles macias...
Não lamento o que fui nas noites vadias,
Nem os passos na estrada que finda os meus dias...”


(Lin Carter, em “A Última Canção de Conan”).


Amanhece o dia sobre a planície que se estende além das muralhas de Amra-Mouhana, cujo poder e prosperidade cresceram espantosamente naqueles pouco mais de vinte anos, graças às técnicas trazidas pelos ex-barachos e pelo seu líder a quem chamam de Amra, e também ao comércio com a próspera cidade aliada de Tlapallan. Os exércitos rivais se aglomeram, frente a frente, cada um no seu lugar. Vestido com uma longa cota-de-malha sob um manto ainda mais longo, de pele de leopardo, está o imperador Conan de Mayapan, ladeado pela esposa e filhos à direita (ambos usando placas de metal no tronco, além de espadas, escudos e proteções de cota-de-malha nas pernas) e por Sigurd – cujos ralos cabelos e espessa barba já não tinham um só fio ruivo –, o filho de Yasunga (cujo pai, passado dos 80 anos e não tão resistente quanto Conan, não tinha mais condições de manusear uma lança) e Sonja à esquerda.

Esta última chama a atenção do cimério pelo fato de – apesar da tanga de pele, das mãos enluvadas e das botas de couro – seus longos seios alvos estarem completamente nus. Embora a hirkaniana ali presente não fosse dona do coração de Conan – como já o foram Bêlit, Zenóbia e agora Mouhana –, seu rosto, busto e corpo maduros o excitavam tanto quanto os da própria esposa.

- Por que você vai lutar assim, seminua, Sonja? – pergunta o rei cimério à guerreira hirkaniana.

- Porque assim será mais fácil. – responde ela – Além de eu me locomover melhor, meus seios causarão pouca indiferença entre os antillianos. Alguns dos piratas os acharão horríveis; já outros irão achá-los belos e atraentes, como você achou. – acrescenta Sonja, sorrindo – O certo é que a maioria deles vai hesitar quando vê-los. E esta hesitação será a ruína deles. – conclui a hirkaniana.

Do outro lado, por sua vez, embora não estejam encouraçados como os mayapanos, os antillianos se encontram em vantagem numérica, equilibrando deste modo as chances para ambos os lados. Todos aqueles homens de pele escura e olhos rasgados usam espadas e machados, tanto de ferro mayapano quanto de vidro e aço antillianos. O chefe daquele exército, por sua vez, é o único a usar armadura – uma couraça de oricalco, o lendário metal atlante que se assemelha ao cobre –, além de plumas verdes na cabeça e tornozelos, para diferenciá-lo daqueles lobos-do-mar que não eram nascidos em Mayapan, como ele e a maioria de seus rivais.

Então, um enorme trompete, de presa escavada de mastodonte, soa estridente, anunciando o início da batalha.

A drástica redução da quantidade de mastodontes em Mayapan, ocorrida há 10 anos, na primeira batalha contra o Senhor da Noite, levou o cimério a usá-los apenas como gado. E como os primeiros domesticadores foram completamente exterminados pelos guerreiros sanguissedentos do líder rival, este não aprendera (apesar das vãs torturas que ele fizera, de mayapanos capturados) como domar aqueles estranhos elefantes de orelhas pequenas e presas retas – embora sua magia, agora escassa, lhe tenha permitido aprender a forjar o ferro. Os mesmos fatos ocorridos com os mastodontes, também se deram com as paleolhamas, fazendo ambos os exércitos se enfrentarem a pé, desta vez. Mas todos os que estavam na vanguarda – com exceção de Sonja – dispunham de dentes-de-sabre de estimação, os quais eram usados nas guerras. O Senhor da Noite só dispunha de um.

Em pouco tempo, mayapanos de sangue puro se digladiam com seus primos mestiços das ilhas próximas. Sabendo que a formação hirkaniana em meia-lua já era conhecida por seu odiado rival, o imperador Conan optou pela velha e inexpugnável formação em cunha, utilizada para derrotar os exércitos de Amalrus e Strabonus, nos primórdios do reinado do cimério na Aquilônia, e para vencer as forças do rei Tarascus, dois anos mais tarde. O bárbaro da Ciméria é um dos primeiros a investir contra os piratas de Antillia, decepando a cabeça do mais próximo, ao mesmo tempo em que Sigurd, com seu enorme porrete de osso de mastodonte, destroça o crânio de outro e o filho de Yasunga perfura, com sua lança, o coração de um terceiro. Então, enquanto Mouhana abre o tronco de um dos piratas num golpe vertical ascendente, sua filha Akhtlana – uma jovem alta, de 20 anos, negra cabeleira ao vento e olhos negros, a vestir uma tanga escarlate entre a couraça no tronco e a cota-de-malha nas pernas – perfura o pescoço de outro. O príncipe Amalric, por sua vez – um ágil leão de vinte e duas primaveras, olhos verdes oblíquos e quase o mesmo físico e rosto do pai quando jovem –, faz jus à sua excelente mira, ensinada pelo velho Yakov, disparando dez flechas num curto intervalo de tempo, sem errar um único alvo e deixando, em apenas meio minuto, uma dezena de cadáveres antillianos caídos ao chão, com peitos, barrigas, olhos e pescoços perfurados.

Então, desembainhando sua espada, o herdeiro do Império de Mayapan, juntamente com a mãe e irmã, investe contra o exército inimigo, colocando-se ao lado do jovem filho de Goram-Singh – e chefe dos aliados tlapallanos – e matando qualquer atacante rival.

Yasunga, por sua vez, ficou do alto de uma das ameias, disparando lanças contra os invasores de Antillia. Embora o velho pai do jovem lanceiro Meroê não pudesse manejar lanças, ele ainda podia dispará-las, sem errar um alvo. Enquanto isso, o velho Yakov continua disparando suas setas certeiras contra as fileiras posteriores dos antillianos. Outros arqueiros, menos hábeis, usam balestras – desenhadas pelo próprio Conan e confeccionadas na própria Amra-Mouhana – com a mesma finalidade e pontaria.

Ao mesmo tempo, atrás daquelas mesmas ameias, diversas catapultas lançam enormes matacões sobre as últimas fileiras dos invasores piratas de Antillia, esmagando rostos, crânios e órgãos sob costelas. Enquanto isso, os dentes-de-sabre de Conan, Sigurd, Yasunga, Amalric e Akhtlana continuam ajudando os defensores de Mayapan, também esmagando costelas, crânios e órgãos dos antillianos, bem como quebrando-lhes os pescoços com os caninos. Um dos ex-barachos do imperador – hoje um cortesão –, nascido no sul de Kush, e cuja língua fora cortada há várias décadas por um stígio, é mortalmente atacado pelo único tigre rival, pertencente ao Senhor da Noite. Mas, no instante seguinte à sua morte, os cinco dentes-de-sabre de Amra-Mouhana atacam o felino rival e põem um rápido fim à sua vida. O líder rival urra de ira.

Por sua vez, o grito de ódio de Conan pelo chefe inimigo – decorrente da morte de mais um amigo, mas desencadeado pela junção disso com diversas razões anteriores – ecoa na planície, abafando, por um instante, o entrechocar das armas. Em resposta, seus partidários repetem o grito de guerra do imperador de Mayapan.

Por um momento em meio à loucura da batalha, o guerreiro cimério lembra que, embora os antillianos pudessem ver Sonja, ela, por sua vez – apesar de ser a única mulher idosa e branca daquela região, e estar com o busto à mostra –, parecia não ter chamado, nem um pouco, a atenção da esposa, filhos e amigos de “Amra”, os quais estavam bastante próximos a ela, antes da batalha começar. Mas este pensamento logo desaparece da mente do “Kukulkan” das montanhas cimérias, cujo corpo se banha cada vez mais de suor, sangue (tanto dele quanto alheio) e miolos.

Conan sempre foi mais um lutador de ofensiva que de defensiva, e esse detalhe se acentua ainda mais num dado momento, quando vê o argoseano Milo, cercado por oito a dez piratas antillianos, cair morto com uma bordunada na têmpora direita, seguida por um golpe de espada que lhe abre a têmpora esquerda.

Desde que Conan desfez um pequeno motim, feito por Milo há muitos anos em alto-mar, este se tornou um dos seus marujos – e depois um de seus súditos – mais leais. A visão do amigo morto fez uma onda vermelha de fúria tomar conta de sua alma. Com seu feroz e assustador grito-de-guerra cimério, o imperador de Mayapan investe contra aqueles homens, abrindo crânios, peitos e intestinos, e decepando mãos, antebraços e cabeças. Os antillianos que avistaram a cena correm, apavorados.

Mas a fúria e a sede de sangue estavam longe de abandonar aquele homem, que parecia um tigre entre lobos. Parte dos piratas fugitivos foi morta enquanto corria. A outra, estimulada pelas ordens do Senhor da Noite (o qual queria a cabeça de Conan), cercou o agigantado montanhês cimério.

Enquanto isso, a nonagenária hirkaniana seminua, ao lado da imperatriz – e também guerreira – Mouhana, traça outros círculos de sangue, com força e agilidade incompatíveis à sua idade avançada, aleijando um, trespassando outro, abrindo a jugular de um terceiro, e assim por diante. O sangue a empapar-lhe a branca cabeleira dava a impressão de que esta voltara a ser ruiva, como décadas antes.

Sangrando de meia centena de ferimentos, Conan sente uma adaga de aço atravessar-lhe o antebraço esquerdo por trás, enquanto o machado de outro antilliano arranca-lhe a orelha direita. Mas, traçando um semicírculo com a espada, o cimério abre o ventre dos dois pretensos assassinos, ao mesmo tempo em que sente os joelhos tremerem.

Mas, revigorado pela loucura da batalha, o Conquistador da Terra do Sol Poente golpeia como um leão moribundo, abrindo os rostos de outros dois atacantes, que caem mortos ao chão. A mão esquerda de outro pirata de Antillia agarra o ainda musculoso pescoço do imperador de Mayapan, enquanto com a outra, o invasor antilliano esfaqueia as costelas de Conan. Irado por mais uma dor, o ex-monarca da Aquilônia, num golpe ascendente, rasga seu atacante, da genitália até a boca do estômago, abrindo-lhe verticalmente toda a metade inferior da coluna vertebral, ao mesmo tempo em que a lâmina curta do pirata, cravada no lado esquerdo do tronco do cimério, parte-se na cota-de-malha que este usa.

O bárbaro da Ciméria cai sob o ataque de cinco piratas. Mas, num surpreendente contragolpe, ele agarra e quebra o pescoço de um deles, ao mesmo tempo em que se levanta, abrindo o peito de outros três e a garganta do último, traçando, num único golpe, mais um dos enormes jatos escarlates daquela tremenda batalha.

Seus parentes e amigos, embora possam vislumbrar o idoso “Amra” lutando, estão ocupados demais para ajudá-lo. Sigurd, por exemplo, ao ver seu porrete enfraquecido pelos inúmeros golpes de espadas e machados antillianos, destroça-o na têmpora de um dos piratas e puxa, uma por uma, as facas que leva embainhadas a tiracolo na camisa vermelha, lançando-as, tão velozes, certeiras e mortíferas quanto flechas mayapanas, nas testas, barrigas, corações e pescoços dos invasores. Então, ele desembainha sua velha – porém afiada e resistente – cimitarra de vidro antilliano, roubada há anos de Ptahuacán. No instante seguinte, a velha espada do vanir – outrora chamado Barba-Ruiva – entoa cânticos sangrentos e mortíferos a cada subida e descida. Somente ao perceber que a resistência inimiga diminuiu, é que o amigo nórdico de Conan se permite pouco mais de um minuto de descanso. Mas, o simples fato de não estar sendo atacado é suficiente para que o alto e corpulento Sigurd ataque os inimigos que estejam cercando um de seus aliados. E assim faz o vanir de cintura larga e quase 80 anos, ao ajudar a jovem – porém inexperiente – princesa Akhtlana.

O jovem Meroê, por sua vez, se mostra tão bom lanceiro quanto seu pai Yasunga era na juventude, manuseando seu longo dardo de ponta de aço com a mesma habilidade que “Amra” tem com a espada. O filho de Sigurd – um jovem mestiço loiro, tão grande e musculoso quanto um urso pardo – também não fica atrás, aleijando, decepando e matando com extrema habilidade, e – assim como o pai – com uma agilidade surpreendente para seu físico avantajado.

É neste momento que Conan se vê, frente a frente, com o chefe do exército inimigo a lhe esboçar um sorriso zombeteiro e maligno. Naquele momento, o pensamento do ex-rei da Aquilônia queima, com a lembrança dos amigos mortos, não só em batalha, como também nas câmaras de tortura, patíbulos e altares de sacrifícios tlapallanos, durante o breve período em que aquela cidade fora governada pelo emplumado mago moreno à sua frente.

Coberto de sangue da cabeça aos pés, ele enfrenta o Senhor da Noite (o qual – dizem – tem séculos de idade) no corpo-a-corpo, apesar do antebraço e tronco esquerdo do cimério estarem atravessados, cada um por uma faca.

Quase todos os antillianos sobreviventes – apenas uma dúzia dos mais de duzentos que desembarcaram – já fugiram para seus barcos. Mas o arqui-rival mayapano de Conan está cego de ódio pela humilhação causada pela nova vitória dos mayapanos de Tlapallan e Amra-Mouhana.

Então, enfraquecido pelas nove turbulentas décadas de existência, aliadas aos vários ferimentos desta batalha, o ex-monarca da Aquilônia – cujos soldados impuseram dura derrota aos piratas antillianos – cambaleia quando o enorme machado, empunhado pelo aparentemente jovem, mas experiente guerreiro mayapano, atinge-lhe em cheio o ventre bronzeado, fazendo-o curvar-se para a frente. O mundo parece girar ao redor do bárbaro da Ciméria, enquanto seus joelhos fraquejam.

Mas, com as poucas forças que lhe restam, Conan empunha a espada com ambas as mãos, decepando, por trás e de um só golpe, a cabeça do feiticeiro que o atormentara por dez anos. Este cai debruçado e finalmente morto, com um chafariz vermelho a lhe escorrer do corpo decapitado. O vitorioso cimério, por sua vez, debruça-se em sentido contrário, vomitando sangue pela boca, e intestinos pela barriga. Conan mal ouve o grito desesperado de sua esposa, filhos e amigos, enquanto vislumbra a imagem de Sonja, que estava lutando ali, desaparecer como uma miragem ante seus arregalados olhos azuis.

Então, chega-lhe aos ouvidos a voz da ruiva, a qual ele conhecera pela primeira vez há setenta anos em Makkalet:

“Já cruzei, há vários dias em Vanaheim, o rio escuro que se forma diante dos seus olhos, Conan. Agora, é chegado o seu momento. Sempre lhe admirei como você a mim, meu cimério. Espero que nos reencontremos”.

O bárbaro da Ciméria, ex-rei da Aquilônia e agora imperador de Mayapan surpreende-se ao ver a idosa Sonja, antes de desaparecer, assumir a mesma aparência jovem de decênios atrás. Então, tomado de dores, ele vira de frente e vê o corpulento guerreiro vanir que se ajoelha a seu lado, juntamente com o ex-corsário negro (que, ao avistar seu ex-comandante, e agora rei, ser ferido de morte, saiu do alto das muralhas e percorreu todo o campo de batalha até “Amra”), Mouhana e os dois filhos. Respirar é cada vez mais difícil e doloroso para o velho imperador cimério de Mayapan, que sente cada vez menos os braços e pernas. Mesmo assim, ele sorri, com a visão turva – embora não o bastante para não reconhecer as pessoas que lhe são caras – e olha para seu primogênito. Este derrama lágrimas. Conan não as vê com clareza e diz:

- Você herdará este império e o governará com sua mãe. Só depois que Mouhana falecer, é que sua esposa será a rainha, Amalric. Sejam fortes, vocês e Akhtlana, e zelem por meus netos.

Em seguida, ele olha para Sigurd e Yasunga:

- Meus grandes amigos... – ele tenta rir, mas acaba tossindo sangue – Da juventude e da velhice... da pirataria, das boas batalhas e meus conselheiros. Vocês dois... e seus filhos serão os conselheiros de minha rainha e do novo rei.

Em seguida, ele olha pela última vez a bela índia Mouhana, cujo enorme busto moreno está apertado pelo colete de aço usado nesta batalha. O rei de Mayapan estreita os olhos, para melhor enxergar.

- Não me enterrem... Cremem meu corpo, como faz o povo de Sigurd. – e, num sorriso, o Conquistador da Terra do Sol Poente acrescenta: – Eu... te amo... minha doce rainha...

Num último e débil espasmo, Conan da Ciméria solta uma derradeira golfada de sangue pela boca, e seus olhos, azuis como o céu que ele não mais enxerga, param de se mover. Com o olhar fixo no firmamento, ele dá seu último suspiro, entregando sua alma aos Deuses.

O último pensamento que passa pela mente do cimério é a lembrança de uma frase, dita por ele há muitos anos para um falecido rival: a de que pretendia estar entre amigos quando morresse. E, como desejava, o bárbaro de olhos azuis morre entre amigos, com uma espada na mão e em meio a uma grande batalha, como nasceu.

Chorando convulsivamente, Mouhana deixa cair duas lágrimas sobre o bronzeado rosto maduro e cicatrizado de seu marido, e fecha-lhe os olhos.

* * *

Três dias depois...

Como o “Kukulkan” cimério havia pedido, seu corpo é cremado na praça central de Amra-Mouhana, enquanto Sigurd e Yasunga entoam canções melancólicas a seus respectivos deuses: Ymir, O Gigante de Gelo; e Ajujo, O Negro.

Os corpos dos partidários de Conan, mortos em batalha, foram cremados em pequenas embarcações que desciam a foz do rio em direção ao mar. Já as dezenas de piratas antillianos tiveram seus corpos cremados numa enorme vala comum, a fim de não contaminarem a cidade, cujos habitantes e líderes não se deram ao trabalho de enterrá-los.

Amalric, filho de Conan e herdeiro do Império de Mayapan, sucede o pai no trono, tendo os anciãos Sigurd e Yasunga como conselheiros. E, como Conan pedira, Mouhana continua sendo a imperatriz, dividindo o poder com o primogênito.

Nos cinco séculos seguintes, invasões em massa das tribos atlantes da Idade da Pedra, moradoras do arquipélago de Antillia, destruiriam a antiga civilização fundada pelos lemurianos, pondo fim à ameaça dos piratas que vinham daquelas ilhas. Porém, a subseqüente – e excessiva – autoconfiança dos mayapanos de Tlapallan e Amra-Mouhana, os deixaria vulneráveis a um ataque em massa da Tribo Sem Nome, a qual, empurrada por glaciações, destruiria o próspero Império de Mayapan e expulsaria os poucos remanescentes de pele clara daquele continente para as ilhas adjacentes. Não satisfeita com isso, aquela enorme Tribo de ascendência picta ainda expulsaria, para o outro lado do oceano, os inúmeros descendentes puros de atlantes das ilhas de Antillia. Enfim, a derrota do Senhor da Noite impediria um futuro sombrio causado por ele, mas a confiança excessiva, causada aos descendentes mayapanos das famílias reais do império, aceleraria a queda do mesmo. Por esta razão que os três selvagens, que tentaram matar Mouhana, 1400 anos após sua época, não tinham traços mayapanos, pois eram descendentes de pictos da Tribo Sem Nome.
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