O Retorno de Kwarada

por Fernando Neeser de Aragão



Introdução:


O conto a seguir estava inicialmente programado para fazer parte de “A Última Trilogia”. Mas, a inclusão do mesmo me levaria a mudar o título da última seqüência de aventuras que escrevi do Cimério (afinal de contas, não existe trilogia com quatro capítulos...), e me faria omitir detalhes, presentes no prólogo e epílogo da aventura seguinte, os quais servem de complemento a fatos posteriores à morte de Conan da Ciméria. Desse modo, resolvi publicar posteriormente a estória que os caros leitores irão ver.

A aventura – cuja parte inicial foi livremente inspirada num fragmento de Robert E. Howard, estrelado por Bran Mak Morn – visa, dentre outras coisas, falar um pouco mais sobre o Continente Sem Nome (América), e também a respeito da família que Conan fez em Mayapan – abordando, inclusive, os netos dos quais o cimério falara muito por alto em “A Última Trilogia” –, além de tentar explorar um pouco mais alguns dos personagens que acompanharam Conan em suas andanças pelo Novo Continente.

Os personagens Leirnan e Imiktla foram criações minhas. Já Leirsa (uma das personagens-título), embora com vida própria, é livremente adaptada de uma coadjuvante do já citado fragmento com Bran Mak Morn.

Os eventos do conto que segue se passam cinco anos após a segunda parte de “A Última Trilogia” (“Tlapallan”), e cinco antes da terceira (“O Último Vôo da Serpente Alada”). Espero que a aventura seguinte possa satisfazer aos conanmaníacos mais exigentes, e desejo a todos uma boa leitura.











Prólogo:


Dois invernos se passaram desde a morte de Conan da Ciméria, em duelo contra o também falecido Senhor da Noite. O atual rei de Mayapan, o jovem Amalric, filho de Conan com a ainda imperatriz Mouhana, está sentado no topo de uma colina verdejante e pensando o quão difícil seria governar aquele país se não fosse a ajuda dos conselheiros Yasunga e Sigurd, bem como dos filhos destes.

Ele termina de bebericar, numa cuia de casca de abóbora, uma bebida, feita com o pó das sementes torradas de cacau, misturada com leite e adoçada com mel, e está prestes a descer a elevação até o Palácio de Kukulkan, em Amra-Mouhana, quando um casal de crianças o aborda, sorridente. Um deles é seu primogênito, um menino de 6 anos, pele levemente morena, cabelos castanho-claros e olhos azuis mais graúdos que os de Amalric, e mais ainda que os da mãe deste, a imperatriz de Mayapan.

- O que é, filho? – pergunta Amalric, sorrindo.

- Minha prima, Imiktla, quer que você conte a ela como você e mamãe se conheceram. – responde o príncipe de Mayapan.

A garota, filha de Akhtlana e da mesma idade que o menino, sorri e dá pulos, insistindo:

- Conta, tio, conta!

- Está bem. – responde o imperador – Mas só se você prometer que não vai contar nada à sua mãe, nem ao seu avô Sigurd.

- Tudo bem, eu prometo.

Então, aproveitando aquele raro momento de descontração, o jovem rei começa a contar à sobrinha a história solicitada. À medida que Amalric conta, sua mente recua no tempo. Então, é como se tudo aquilo tivesse ocorrido ontem, e não há sete anos.



Amalric e Leirsa – O Retorno de Kwarada
(por Fernando Neeser de Aragão)


O sol se põe no horizonte verdejante de Mayapan e nas muralhas de sua capital, a cidade de Amra-Mouhana. A pedido do pai, o príncipe Amalric, um jovem de 17 anos e já musculoso – quase como o seu genitor naquela mesma idade –, fora ao bosque, catar lenha para cozinharem o jantar do palácio real. É nesse momento que ele avista uma forma esguia, se movendo por entre as árvores em sua direção. É uma jovem, trajando roupas sumárias de pele de urso – um corpete, uma tanga e um par de botas.

Ele se surpreende ao ver, naquela região onde as poucas pessoas de pele clara eram ex-piratas ou descendentes dos mesmos, uma garota, aparentando a mesma idade que ele, e com a pele e cabelos semelhantes aos do conselheiro Sigurd.

Os mayapanos de Tlapallan e Amra-Mouhana – os povos mais sofisticados de toda aquela região –, não a considerariam bela, mas qualquer um dos ex-marujos – hoje súditos palacianos do imperador Conan, e nascidos em Argos e outros países a leste do oceano – enlouqueceria de desejo ao ver aquela jovem de cabelos ruivos, pele alva e frios olhos cinzas – inclusive o próprio Conan e seu filho mestiço ali presente, o qual aprendera, com o pai cimério, a valorizar todos os tipos de beleza feminina.

- Quem é você? – ela pergunta, dirigindo-se ao príncipe e com os cabelos flamejantes resplandecendo ao pôr-do-sol.

- Sou Kukulkan, Conquistador da Terra do Sol Poente. – responde Amalric.

- Mentiroso! – exclama a jovem, mirando fundo os olhos esmeraldas do príncipe – Estou procurando um guerreiro idoso, com a força do deus Ymir, e não um moleque! Se você é realmente o imperador destas terras, nós lutaremos agora! Se me derrotar, acreditarei nas suas palavras.

Aborrecido, o herdeiro de Mayapan vira-lhe as costas e está prestes a sair daquele pequeno bosque próximo a Amra-Mouhana. Mas no instante seguinte, a garota o agarra por trás, segurando-o com uma força surpreendente.

- Está com medo, seu bastardo? – ela fala, em tom de desafio – Será que os mayapanos estão tão acovardados pelos piratas de Antillia, que temem enfrentar uma desconhecida?

- Me largue, mulher... – reclama Amalric – Senão eu lhe arrebento.

- Faça-o, se for capaz, “Kukulkan”. – ela responde, derrubando o príncipe com uma rasteira.

Este se levanta, mas ela o agarra novamente. Com sua força maior, Amalric consegue se soltar sem machucá-la. Embora aborrecido, o filho mayapano de Conan não reage, apesar de, no momento seguinte, receber um tapa no rosto, dado pela mão delicada, mas forte, da bela desconhecida, e limita-se apenas a segurar-lhe o pulso quando a garota tenta esbofeteá-lo com a outra mão.

Desde criança, o agora adolescente Amalric aprendera a não agredir mulheres. Mas no momento seguinte, quando a jovem ruiva lhe acerta um chute nos testículos, o príncipe de Mayapan reage cegamente, acertando uma bofetada no rosto da bela garota e deixando-a sem sentidos.
Logo depois, desgostoso com o que fez, Amalric pega seu cantil de pele de mastodonte e derrama um pouco do conteúdo – um suco fresco e adoçado de polpa de cacau – sobre a boca da jovem. Com um sobressalto, ela acorda, e então o rapaz solta-lhe a cabeça com delicadeza.

- Pelo visto, eu estava enganada. – diz a moça – Você é Kukulkan.

- Não, não sou. O homem a quem você chama de Kukulkan é meu pai. Mas tanto ele quanto eu achamos vergonhoso agredir uma mulher.

- Eu não sou uma mulher comum. – responde a garota – Sou uma com os ventos e geadas deste continente selvagem. Mas aqui, exilada por Kwarada e pelo Senhor da Noite, meus poderes nada significam. Preciso de você e seu pai para me escoltarem de volta ao norte gelado, onde nasci.

Os oblíquos olhos verdes de Amalric brilham de ódio, ante a alusão ao homem que tentara matar-lhe os pais há meia década.

- Siga-me. – diz ele, acenando – Irei levá-la ao imperador.

* * *

É quase noite, quando Conan e Mouhana, após uma tarde de bem-sucedidas petições, descansam depois de quase uma hora de prazeres carnais e jantam, cada um, um prato de carne de mastodonte com frutas. Embora seja inverno, o idoso cimério sente-se à vontade naquele clima, bebendo vinho, enquanto sua esposa prefere beber um cacau em pó, misturado com leite quente de paleolhama e adoçado com mel silvestre.

Mouhana está coberta até a barriga com um fino lençol branco de algodão, enquanto o Conquistador da Terra do Sol Poente lhe admira o enorme e esparramado busto moreno, e começa a planejar o que ele e a esposa farão quando acordarem no meio da madrugada...
Nisso, um dos guardas bate à porta do quarto, e automaticamente a imperatriz – sabendo que o soldado a chamar é antilliano, e não mayapano – puxa o lençol até os ombros, para cobrir os seios. Conan, por sua vez, com a fome saciada, enrola o seu lençol na própria cintura, ergue-se do leito e caminha até a porta.

- O que houve? – resmunga Conan ao guarda.

- Seu filho quer falar contigo, Majestade.

Abrindo a porta, o cimério não fica menos surpreso quando vê aquela moça ao lado de seu primogênito. O que diabos uma jovem, de aparência vanir, fazia naquele lugar, milhares de quilômetros a sudoeste da terra natal?

- Pai, esta jovem disse que queria falar com “Kukulkan”, e mandou que eu sussurrasse esta frase em seu ouvido...

Ao se abaixar para ouvir, Conan fica mais surpreso ainda, e manda um dos dois sentinelas da porta procurar Yasunga e pedir pra que o conselheiro negro se arrume para viajar com ele, Amalric e a ruiva até os confins gelados daquele continente.

- Só vocês quatro, Conan? – pergunta Mouhana, espantada – É perigoso demais. – ela acrescenta, erguendo-se e abraçando-o.

O cimério sorri ternamente.

- Eu vou voltar, minha rainha. Irão poucos, para que a cidade não fique desprotegida em minha ausência. Mas eu volto.

E eles se beijam, numa paixão aumentada pela possibilidade de não se verem novamente.

- Você e Sigurd ficarão em meu lugar, durante a minha ausência. Vocês e meu genro cuidem bem de minha filha. E você, filho, lembra da promessa que lhe fiz há cinco anos?

O príncipe Amalric assente, com um sorriso nos lábios e um brilho nos olhos.

- Já está na hora de deixar que os ventos me levem para o mar, como você me falou, pai.

O cimério sorri orgulhoso, enquanto o conselheiro Yasunga aparece. É um grisalho lanceiro negro, em roupas de pele de leopardo, e velho amigo de Conan.

- Prepare o “Quetzacoatl”, Yasunga.

- Para onde vamos, Amra? – pergunta o ex-corsário negro.

- Para as geleiras do extremo norte, velho amigo. – responde Conan, com seu velho espírito aventureiro a lhe acelerar o coração.

O espírito do pirata – que ele fora na Costa Negra com Bêlit, com os barachos nas ilhas homônimas a sudoeste de Zingara, e com os próprios zíngaros a serviço do saudoso rei Ferdrugo – se agita dentro do cimério. Enquanto o bárbaro da Ciméria veste sua armadura de malha, sua esposa começa e cantarolar baixinho a “Canção de Thak”, para se tranqüilizar. Embora Thak fosse um gorila gigante, de mente semi-humana, ele era mencionado na canção – criada pelo próprio Conan e outrora cantada por Bêlit e Zenóbia – como um poderoso guerreiro humano e “uma das almas mais nobres que Conan despachou para as trevas”.

* * *

Embora o cimério confiasse em Sigurd como marujo, a capital de Mayapan precisaria dele e dos ex-barachos – hoje seus súditos – para administrá-la na ausência de “Kukulkan”. Mas, com a ajuda de dez marujos mayapanos, e mais dez nascidos em Antillia – os mesmos que fugiram de lá há 18 anos, por ocasião da queda de Ptahuacan –, os remos são manejados habilmente contra o vento setentrional de inverno. As velas, é claro, foram baixadas para facilitar a viagem. Não raro, Conan, Amalric e Yasunga se revezam nos remos, ajudando os leais amigos nativos durante o dia, além de se alternarem também nos turnos de vigília. Por ter olhos verdes, Amalric enxerga na escuridão melhor que o próprio pai.

O odor salgado do mar aberto traz à mente de Yasunga lembranças da puberdade, quando conheceu Bêlit – na época, amante forçada de um capitão zíngaro racista, após cuja morte a shemita encontrara Conan –; do dia, quase vinte anos depois do assassinato da Rainha da Costa Negra, quando “Amra” libertara a ele e a vários outros negros, no mar entre as costas de Argos e Shem; e, finalmente, dos meses de navegação com o ex-monarca da Aquiônia, de Porto Tortage até Ptahuacan e Mayapan.

O quase octogenário coração do ex-corsário das Ilhas do Sul também canta alegre, se acelerando de empolgação ante a possibilidade de novas aventuras. Se não fosse o navio zíngaro Tigresa e sua implacável – e saudosa – capitã Bêlit, talvez aquele menino das Ilhas Prateadas nunca tivesse se interessado em tornar-se um dos muitos lobos-do-mar cor-de-ébano, que assolaram as costas dos Reinos Negros, do litoral de Kush até o de Zimbabo – sem contar as incursões até Stygia, Shem, Argos e Zingara. E, certamente, não se tornaria um navegador mais experiente que o próprio Conan.

Ele pensa no filho que deixou em Amra-Mouhana: um adolescente chamado Meroê, e o primeiro que fizera em sua longa vida. Nas Ilhas Prateadas, para onde retornara após ajudar Conan a desembarcar em Zingara com o Coração de Ahriman, Yasunga havia tido uma companheira com a qual vivera duas décadas de intensa paixão. Quando a mulher finalmente engravidou, esta infelizmente morreu de parto, dando à luz um natimorto. Amargurado, Yasunga voltou a vagar pela Costa Negra – desta vez, a pé – e, reencontrando o velho amigo Ajonga pouco ao sul do país de Kush, ambos navegaram até as Ilhas Barachas.

Entretanto, o velho Ajonga adoeceu na viagem e morreu ao desembarcar com o amigo nas Barachas. Um zíngaro, de nome Álvaro, o qual adotara a profissão de baracho ao invés da de bucaneiro, permitiu a Yasunga enterrar o corpo do saudoso companheiro de aventuras. Contudo, o novo capitão zíngaro a quem o negro obedecia costumava sempre jogar isso na cara de Yasunga, como justificativa dos próprios desmandos. Até o dia em que o ex-corsário negro reencontrou “Amra” em Tortage, e este matou Álvaro num duelo.

Depois de tantas aventuras e perdas, o nascimento de um herdeiro era, para ele, um presente dos deuses negros do sul.

* * *

Após um mês, eles param numa parte desabitada da costa pra se reabastecerem. O máximo de peles de leopardos, mastodontes, ursos e dentes-de-sabre fora juntado para aquecerem a tripulação, quando chegassem à região polar de onde viera aquela bela ruiva, de nome Leirsa, e onde ela recuperaria seus poderes. Mas a comida e água estavam escassas, e assim, eles desembarcam numa planície verdejante, onde se deparam com bandos de um estranho animal: a macrauquênia, um mamífero herbívoro semelhante a um cavalo, mas com o focinho semelhante a uma pequena tromba. Apesar de estranho, ele não é carnívoro – o que significa que sua carne deve ser macia – e a tripulação precisa de um novo estoque de comida.

Encabeçando a caçada, juntamente com o também veterano Yasunga, Conan e seus marujos conseguem matar e esquartejar uma macrauquênia que se afastou demais da manada, além de um solitário tatu gigante. Após defumarem e salgarem suas carnes, os marinheiros retornam ao Dragão Alado. Este se mantém a uma distância segura da praia, de modo que esta possa ser avistada, mas longe do alcance de uma possível chuva de flechas, vinda daquelas costas nunca antes navegadas por aqueles marinheiros. Após jantarem, Conan se dirige à jovem ruiva:

-Então, Leirsa, “Soraya, a ex-Dama de Ferro, precisa da ajuda de um cimério”, hein? A propósito, como ela veio parar aqui?

- Minha mãe engravidou, há vários anos, de um chefe vanir. – ela responde – Mas, com a morte dele, ela preferiu viajar para este lado do mar, onde ficasse isolada do mundo. Quando notou que estava grávida de meu falecido pai, ela quase voltou para Vanaheim. Contudo, uma visão... segundo ela, o nosso deus Ymir... disse a ela que, se permanecesse aqui, ela governaria “todos os animais da neve, e sua filha, todos os ventos e tempestades da região onde nascesse”. Os anos se passaram e eu cresci naquela região, fazendo um pouco de amizade com os povos morenos ao sul, mas tendo como principais amigos os ursos polares e mamutes, dentre outros animais daquela região, além, é claro, de minha mãe.

“Há alguns anos, contudo, apareceu uma estranha mulher em meio àquele povo que era meu amigo. Ela era tão morena quanto eles, mas seus olhos não eram rasgados, nem seu nariz era aquilino. O certo é que, com alguns encantamentos, ela conquistou a confiança do povo nativo, num momento em que eu estava afastada da caverna onde minha mãe reina. Por isso, não tive poderes suficientes para reagir quando os nativos se insurgiram contra mim, sob a liderança daquela mulher, e fui obrigada a fugir mais ainda para o sul, onde não tenho quase nenhum poder sobre as forças da natureza.

“Ainda assim, apesar da distância entre nós e da perda dos meus poderes – conclui Leirsa –, minha mãe conseguiu, num esforço supremo, se comunicar comigo e me indicar a pessoa que poderia me ajudar: ‘Um cimério, apelidado de Kukulkan’”.

A ruiva também fala a Conan sobre o deus Xultha, venerado pelo Povo das Geleiras com o qual ela e a mãe conviviam; e que, com a chegada do Senhor da Noite e sua amante, aquela divindade, inicialmente cultuada de forma benigna, passou a receber sacrifícios humanos, nos quais os corações das vítimas eram arrancados, e todo o sangue destas, colocado em vasilhas de madeira. O cimério estranha o último procedimento – embora já conhecesse a não menos abominável prática de arrancar corações humanos, tanto em Ptahuacan quanto em Mayapan. O nome do deus, Conan percebe, é semelhante ao de Xotli, que quase lhe devorara a mente há 18 anos em Antillia.

Mas o que realmente intrigou o cimério foi o nome, dado por Leirsa à mulher que se aliara ao Senhor da Noite, e principalmente a descrição física da referida feiticeira. “Será que...?”, pensa o idoso imperador de Mayapan.

Enquanto isso, os pensamentos de Leirsa se voltam para outra pessoa. Ela lembra da beleza de Conan, como fora descrita por sua mãe Soraya. “Bom...”, pensa ela, que tem preferência por homens jovens, “ele deve ter sido bonito no passado; mas de qualquer forma, o filho dele é lindo... tem uma beleza que nunca vi antes!”. De fato, os traços de Amalric – semelhantes tanto aos da mãe da ruiva quanto aos do Povo das Geleiras, e com um par de olhos cuja cor esmeralda ela nunca vira antes – eram bastante atraentes a Leirsa, por serem exóticos aos olhos dela.

Ela, por sua vez, não sai da cabeça do príncipe de Mayapan, que só conhecera mulheres com aquela aparência e força, na sua imaginação, atiçada pelos relatos de Sigurd – cujo primogênito era agora marido da princesa Akhtlana – sobre as mulheres de Vanaheim, terra natal do outrora Barba-Ruiva. Num momento em que vê a jovem filha de Soraya, Amalric sorri, encarando aqueles belos olhos prateados. Ela percebe e também sorri. É a primeira vez que o filho do imperador cimério se vê – após um mês de longas e interessantes conversas com a ruiva –, não só admirando, mas também trocando olhares de desejo com uma bela garota.

De relance, Conan percebe a cena e sorri orgulhoso. Embora o seu filho tenha descido à cabine para dormir, o idoso cimério nota como a bela Leirsa, com os alvos cotovelos apoiados no parapeito do Dragão Alado, suspira e encara as estrelas, extasiada pela breve troca de olhares com o rapaz. O Conquistador da Terra do Sol Poente gosta mais ainda quando vê, minutos depois, a ruiva sorrir maliciosamente, enquanto busca determinado objeto no convés daquele navio.

* * *

Com uma grande tina de água, segura numa das mãos à altura do quadril, Leirsa desce os poucos degraus que levam para a cabine. Lá fora, Conan e Yasunga se revezam na vigia noturna; lá dentro, Amalric acorda ao som dos passos da belíssima ruiva que, embora aparente 18 anos, já viveu quarenta e cinco invernos – os poderes que ela adquirira no extremo norte lhe permitiram se manter jovem.

Por um momento, o rapaz fica surpreso; mas, ao ver o sorriso da jovem que deposita a tina d’água a um canto, ele desconfia sobre o que a filha de Soraya deseja. Qualquer dúvida sobre as intenções de Leirsa se desfaz, quando esta desnuda os seios alvos e debruça-se sobre o príncipe de Mayapan. Embora inexperiente, Amalric tem certa idéia de como proceder, enquanto seu coração dispara de excitação, ao mesmo tempo em que o filho de Conan e Mouhana tira a parte superior da própria túnica.

Debruçada sobre o jovem moreno, ela roça horizontalmente seu nariz no dele. Amalric percebe que, naquele momento, os olhos cinzas de Leirsa já não eram frios, mas ardentes de desejo. A carícia que a ruiva lhe faz é desconhecida ao rapaz de olhos verdes; então, ele resolve ensinar a ela algo do que já vira os pais fazerem – e também todos os ex-piratas –, ao beijar os lábios vermelhos dela e roçar sua língua na da filha de Soraya. Leirsa fica mais excitada ainda e, ao perceber isso, ele aproveita o fato de os seios dela – apesar de firmes – serem fartos, e, imitando uma carícia que vira o pai fazer em Mouhana, Amalric junta os dois bicos rosados da ruiva e suga ambos ao mesmo tempo – muito excitado, mas evitando mordê-los, por ter ouvido falar que doeriam caso mordesse.

Mais arrebatada ainda de desejo, Leirsa abaixa a parte superior das calças de pele do príncipe e, esquecendo de tirar a própria tanga, ela suspende a mesma, monta sobre o ereto falo virgem de Amalric, e começa a descer e subir sobre este, arrancando suspiros de prazer, tanto dele quanto de si mesma. Abaixando o corpo, Leirsa deixa o rapaz sugar-lhe um pouco mais os seios.
Em seguida, colocando o jovem ajoelhado atrás dela, a ruiva se apóia nas próprias mãos e joelhos, e continua o vaivém de genitálias que começara sobre ele; e, gemendo cada vez mais alto de prazer, ela estremece num grande orgasmo, tão arrebatador que, por alguns segundos, Leirsa fica com a cabeça baixa e a enorme cabeleira ruiva caída sobre seu lindo rosto.

Então, erguendo o rosto e virando-se de frente para Amalric, ela se apóia num dos cotovelos e, valendo-se dos poucos poderes que conservava longe de casa, faz o príncipe lhe expelir, sobre a parte superior dos cabelos ruivos, uma quantidade de esperma cinco vezes superior à de uma ejaculação comum, encharcando o topo de sua cabeleira avermelhada.

A seguir, friccionando o rígido membro do jovem com a forte mão delicada, Leirsa o faz ejacular a mesma quantidade que este lhe expelira no cabelo, desta vez no belo rosto da ruiva, deixando toda a face da jovem com uma cor ainda mais branca. E é com três longas gotas de sêmen penduradas pelo queixo, que a bela guerreira suga o ainda ereto falo do príncipe mayapano, fazendo-o ejacular pela terceira vez – poucos minutos após a primeira –, agora dentro de sua linda boca vermelha.

Qualquer homem, experiente ou não, ficaria exausto se não fosse a pouca força mística ainda presente em Leirsa; e qualquer um teria doces e eternas lembranças daquele momento, mesmo se a ruiva parasse por ali. Mas, no instante seguinte, abrindo os olhos cinzas – apesar destes arderem em contato com o esperma –, a filha de vanires sorri de boca aberta para Amalric e gargareja-lhe o sêmen, só fechando a boca para engolir o esperma diante dos olhos extasiados do mayapano.

Sem fazer perguntas óbvias sobre como Leirsa conseguira mantê-lo cheio de energia após três intensos orgasmos – e excitado demais para se importar com isso – Amalric deita-a sobre o leito de pele, sugando-lhe novamente os seios alvos, ao mesmo tempo em que volta a adentrá-la, até ele alcançar o quarto clímax de prazer, e ela o segundo.


Ainda ofegante de desejo e prazer, Amalric se vê surpreso com aquela ruiva. O príncipe de Mayapan, ao ensiná-la a beijar na boca, esperava encontrar uma jovem tão virgem e inexperiente quanto ele. No entanto, o rapaz aprendera muito mais com a filha de Soraya do que a ruiva com ele.

- Pelos Deuses... – diz Amalric, minutos após o último orgasmo, não exausto, mas levemente cansado – Sei que você é uma deusa ou semideusa, mas... onde aprendeu a fazer tudo o que fez?

Leirsa sorri, enquanto lava o rosto e cabelos na tina d’água, e responde:

- Observando o povo que gostava de mim e de minha mãe. Quando menor, eu espiava através de furos nas paredes das cabanas do povo do norte gelado. Lá, é costume entre eles um homem oferecer a própria esposa para um amigo visitante. Às vezes, acontece de a mulher ir para o leito com ambos; e, quando ela não quer engravidar, se vale disso que eu fiz como meio anticoncepcional.

Embora filho de um cimério, Amalric não era tão resistente ao frio noturno quanto o pai. Mas, naquela sua primeira noite de amor, ele se deixa adormecer, coberto apenas pela longa cabeleira flamejante de Leirsa – cabeleira que alcança as panturrilhas daquela bela mulher, quando esta se encontra de pé e ereta.

* * *

Longas semanas se passam, sem grandes novidades – exceto para o recém-formado casal Leirsa e Amalric. Este último se alterna: uma noite, se revezando na vigia noturna com o pai e Yasunga sobre a cobertura dourada daquele imenso navio, e a outra, no leito com a belíssima ruiva. “Uma princesa das cavernas geladas se orgulharia em ter um homem como este governando ao seu lado. O filho de ‘Kukulkan’ é belo em todos os aspectos”, pensa a filha de Soraya. Amalric tem pensamento similar sobre aquela jovem, um dia no trono de Mayapan.

De repente, os devaneios do casal são interrompidos, pois o oceano parece ganhar vida, quando uma enorme onda surge à frente do “Quetzacoatl” – apesar da ausência de chuva naquele dia e daqueles mares banharem regiões tectonicamente estáveis. Desde o dia anterior, o vento soprava mais forte que o normal, mas não o bastante para causar aquela enorme convulsão marítima. Logo após, outra onda aparece por trás, fazendo o navio se inclinar perigosamente para a frente, como se o mar quisesse lançar o Dragão Alado em direção à costa, da qual aquela embarcação procurava se manter distante – desta vez, não pelo perigo de um possível ataque de nativos, mas pelo risco de bater contra um penhasco bastante próximo. Contudo, desafiando a fúria do oceano, Conan maneja o leme com sua força ainda estupenda, e consegue desviar o curso do navio, redirecionando-o para o norte.

Mas o estranho maremoto não pára, enquanto a lua no céu assiste àquele perigoso espetáculo, como o alvo olho indiferente de alguma deusa da noite.

Enquanto isso, alguns marujos mergulham e buscam desesperadamente alcançarem logo a parte mais segura da costa – ou seja, a praia. Percebendo isso, o antilliano Ictlan, em meio àquele caos, ajuda Conan no leme. Contudo, uma onda gigantesca arrasta o marujo de Antillia para fora da nau. Vendo a cena, Yasunga e vários outros marinheiros mergulham para ajudarem a ele e a outros que também caíram ao mar.

Ictlan nadava tão bem quanto Conan e Yasunga; mas, nada habituado ao frio daqueles mares temperados de início de inverno, estava usando roupas muito pesadas para se aquecer. Assim, enquanto Conan ajuda Leirsa a se amarrar ao mastro naquela tempestade sobrenatural, o ex-corsário negro mergulha fundo para tentar salvar o antilliano com um dos capacetes de oxigênio – cuja eficácia Conan pôde verificar ao adentrar Ptahuacan secretamente há 18 anos. Mas, para frustração de Yasunga, Ictlan é tragado mortalmente para as profundezas, juntamente com outros que também caíram na temeridade de se aquecerem demais.

Após ajudar Leirsa, o cimério mergulha fundo no mar, seguido pelo filho e com dois capacetes de oxigênio nas mãos, enquanto Amalric leva um. Mais preocupados com o bem-estar dos outros que com o deles mesmos, os excelentes nadadores Conan, Yasunga e Amalric põem os capacetes naqueles que não sabem nadar. Entretanto, outra enorme onda faz balançar o Dragão Alado, deixando apenas Leirsa e cinco antillianos a bordo do “Quetzacoatl”.

Em meio àquele caos que faz o navio rodopiar descontroladamente no mar, um relâmpago atinge em cheio a vela do mesmo, apesar do céu estar sem nuvem alguma. “Isto fede a juju”, pensa o velho Yasunga, já na superfície do mar, com um dos piratas a salvo em seus braços. Um dos antillianos ali presentes – apesar de meio tonto pelos giros que o Dragão Alado havia feito – ajuda Leirsa a se desamarrar do mastro, antes que o fogo na vela se alastre até a ruiva.

Quando o navio é violentamente arrastado até o enorme penhasco, todos os sobreviventes mergulham no mar, um segundo antes do impacto que destroça toda a proa do resistente Dragão Alado, como se este não passasse de um monte de feno. Somente com a destruição da proa que deu nome àquela embarcação, é que a estranha convulsão marítima pára.

Tremendo de frio – à exceção de Conan e da ruiva –, os sobreviventes ganham a praia a nado. Das vinte e quatro pessoas que embarcaram naquela aventura, somente metade escapou viva – dentre elas, Yasunga, Amalric e Leirsa.

A lenda sobre a serpente emplumada perduraria pelos próximos milhares de anos, mas o navio a quem os mayapanos chamavam de Quetzacoatl já não mais existia.

* * *

- Aquele naufrágio foi coisa do Senhor da Noite. – resmunga o cimério, reunindo-se com o filho e amigos ao redor de uma fogueira para se aquecerem do frio da madrugada.

- Ou talvez da bruxa que se aliou a ele, Conan. – diz Leirsa – Você não disse que aquele renegado de Mayapan perdeu os poderes há cinco anos em Tlapallan? Ou foi ela a causadora direta do naufrágio, ou então Kwarada usou aquele ex-feiticeiro para canalizar os poderes dela.

O dia amanhece. A aurora ilumina dois picos lilases ao sul de onde acamparam os ex-piratas, o príncipe e a bela ruiva. Logo abaixo das duas elevações, se encontra o penhasco onde o Dragão Alado foi irremediavelmente destruído na noite anterior. Toda a carga possível é recuperada para que o grupo continue seguindo para o norte.

- Você conhece aqueles dois montes, Leirsa? – pergunta Amalric, levado pela curiosidade, pois nunca vira algo semelhante. As montanhas de onde vinham as agora escassas paleolhamas de Mayapan eram de cor azul.

A ruiva abre um sorriso de paixão, correspondido na mesma intensidade pelo príncipe de Mayapan.

- Não, Amalric. Cheguei a Mayapan por terra, bem longe da costa leste. Mas sinto que, quanto mais para norte, mais meus poderes aumentam.

E assim, privado da embarcação que o levaria mais rapidamente à terra natal de Leirsa, o grupo segue a pé, liderado por Conan, em direção a uma selva de pinheiros, que fica a um dia de caminhada dali.

* * *

“Você nunca sonhou ser currada por animais?”
(Cazuza, em “Só as Mães São Felizes”/ 1985)


No dia seguinte, eles atravessam a selva – cheia de pinheiros, como as da Ciméria natal de Conan –, e encontram uma clareira, infestada por estranhos sons. Crânios de mastodontes são percutidos ali como tambores, imitando o pulsar de um coração, como se estivesse em harmonia com a expectativa dos nativos que os tocam e com a apreensão dos intrusos, quando estes vêem a bizarra cena. A ruiva se assusta ao reconhecer uma mulher amarrada num tronco bem podado.

- É a minha mãe, Conan! – sussurra Leirsa, apavorada, ao mesmo tempo em que se esconde, com Amalric e os ex-piratas, por entre as árvores da floresta.

Embora a tora em forma de forquilha, onde a loira está amarrada, seja leve e meça apenas meio palmo de diâmetro, era de uma madeira bastante resistente e estava firmemente enterrada no chão. Um xamã abre os braços morenos e, sussurrando estranhas palavras rituais, faz com que diversos animais se aproximem daquela clareira. Estão todos sob o seu comando, apesar de terem nascido selvagens. Um arrepio percorre a espinha de Conan, fazendo-o se lembrar dos filhos de Jhebbal Sag, os quais conhecera há décadas nas distantes selvas pictas.

Lentamente, a clareira é invadida por salamandras, dois jaguares, um tigre dentes-de-sabre, um mastodonte e até mesmo coiotes dos cerrados. Todos passam direto pelos guerreiros que assistem ao ritual e se aproximam da jovem loira amarrada. O cimério percebe que nem todos os animais da fauna daquele continente apareceram – na verdade, só uma parcela ínfima deles.
Será que aquela limitação mística se deve ao mesmo motivo pelo qual o falecido Zogar Sag não conseguia comandar toda a fauna dos longínquos Sertões Pictos, exceto os que recordavam o nome do deus que o gerara?

No entanto, não há tempo para refletir. O momento exige apenas ação. E é no instante em que o tigre dentes-de-sabre se aproxima da mulher amarrada, lambendo-lhe a vulva e fazendo-a se contorcer de nojo e repulsa, que todos percebem que o bruxo daquela aldeia planeja para a loira um destino pior do que a morte.

Sem pensar duas vezes, Conan dispara sua lança, certeira e mortífera, no coração do chefe feiticeiro daquela tribo. Então, um pandemônio toma conta da aldeia, pois, com a morte do bruxo, o controle deste sobre os animais desaparece, e os jaguares e coiotes investem contra os aldeões mais próximos. Os poucos que tentam resistir ao repentino ataque dos ex-piratas sob o comando de Conan, são ceifados como trigo sob o aço afiado.

Entretanto, o tigre, que despertou de seu transe libidinoso, estava de estômago vazio quando o feiticeiro o chamara e, ao acordar da hipnose com aquela mulher amarrada à sua frente, se viu disposto a “saboreá-la” de uma forma bem mais comum.

Percebendo isso, Conan e Amalric, à frente dos guerreiros que os acompanham, investem contra o dentes-de-sabre. O gigantesco felino dá um salto em direção ao cimério, que só tem tempo de erguer a espada e cravá-la no coração do animal, como já fizera com outros daquela espécie no passado. Amalric, quase tão forte quanto o pai e tão sabedor quanto este de que aquela fera é famosa por lutar e matar até o último suspiro, esfacela o crânio do felino com uma só bordunada, deixando-o quase morto e sem a coordenação motora da qual o tigre precisaria para matar. Com um enorme esforço e a ajuda do filho, Conan sai de baixo do enorme animal. “Isto já foi mais fácil”, pensa o cimério.

O felino ainda está em seus últimos espasmos, quando Amalric vê as poucas feras remanescentes se retirarem dali, arrastando carcaças humanas e animais pelas bocas. Em meio à luta, uma das mulheres da tribo investe, de machado na mão, em direção a Leirsa – que havia matado alguns guerreiros, talvez parentes da morena –, mas tem o pulso seguro pela mão esquerda da bela ruiva, e o pescoço, quebrado pela destra da filha de Soraya. Parte dos aldeões morre pisoteada pelo mastodonte em fuga – este assustado pelos predadores.

As mulheres e crianças foram poupadas por ordem do velho imperador de Mayapan, à exceção da que já fora morta, em luta justa, por uma ruiva do mesmo sexo e aparentemente da mesma idade. Desde que soubera da loira, o idoso cimério esperava encontrar, naquela selva de pinheiros, uma mulher que houvesse envelhecido naqueles 47 anos, transcorridos desde que se viram pela última vez. Entretanto, a ex-Dama de Ferro estava surpreendentemente tão jovem quanto no dia em que o guerreiro de olhos azuis, ela e suas caçadoras de recompensa perseguiram e derrotaram o traiçoeiro e covarde bandoleiro Hasra Khalli.

Após Conan desamarrar as mãos e pés de Soraya, esta e a filha se abraçam emocionadas. Pouco depois, com o machado de Amalric emprestado, Leirsa derruba o fino tronco onde a mãe fora amarrada e leva o objeto consigo.


Leirsa e Soraya haviam ficado desapontadas, quando os animais que comandavam, nos arredores das geleiras, lhes ficaram indiferentes. Agora, ambas estão apavoradas, ao saberem que seus poderes foram usurpados – ao menos, longe do pólo norte – pela feiticeira das longínquas Terras Pictas. Aquele xamã, que Conan matou ao ver Soraya em perigo, servia, segundo a ex-Dama de Ferro, como intermediário entre Kwarada e os animais que esta controla à distância. A bruxa mestiça pretendia, naquela aldeia de homens emplumados e pintados, dar uma morte sem honra à bela filha de vanir com gunderlandesa. Agora, retornar às margens das geleiras setentrionais e derrotar a atual amante do Senhor da Noite é uma questão de sobrevivência.

* * *

A carne escasseou rapidamente – em virtude de metade dela ter afundado junto com a proa do Dragão Alado. Mas, antes que as provisões acabem, o grupo avista uma rena por entre as árvores do bosque. A rena é um animal que tem a capacidade de, em questão de segundos, correr com a mesma velocidade que os avestruzes da distante terra natal de Yasunga. Sabedores disso, Conan e Soraya tomam a frente e, antes que a presa consiga se afastar de suas miras, o cimério e a semi-nórdica também correm, ao mesmo tempo em que preparam os respectivos arcos e disparam simultaneamente contra o animal. A flecha da loira atinge o flanco direito da rena, alojando-se em sua pata traseira, quase na junção com a pélvis. Já Conan foi mais preciso em seu tiro, perfurando o cérebro do animal. A força da velocidade da rena arremessa-a, já morta, sobre a neve onde corria com tanta desenvoltura.

Em seguida, os dias vão se transformando em semanas. Enquanto Conan, Amalric, Leirsa, Soraya e os oito demais sobreviventes do naufrágio caminham inexoravelmente para o norte, as árvores das florestas de pinheiro vão ficando cada vez mais raras; e o clima, cada vez mais frio. Então, as frias estepes que sucedem as florestas temperadas vão dando lugar a regiões geladas, onde só se vê neve. Esta, por sua vez, vai se tornando mais espessa a cada dia de caminhada para o norte. Até Conan, que já esteve em regiões como Nordheim, do outro lado do mar, se agasalha cada vez mais do frio, a cada dia mais intenso e cortante. Os demais, seguindo as instruções do cimério, usam, além dos longos casacos e calças de pele que Conan também veste, uma proteção para nariz e boca – um pedaço de pele que só deixa de fora os olhos –; e respiram a intervalos curtos, para evitarem que os pulmões resfriem. Para surpresa de todos – exceto Soraya –, Leirsa é a única que, assim como a mãe, não apenas continua usando seus trajes sumários de pele de urso, mas parece se sentir cada vez mais revigorada pela proximidade do frio polar.

Aos olhos de Yasunga – que custou a acreditar que Bêlit (para ele uma deusa) houvesse morrido há quase seis décadas –, parecia que a Rainha da Costa Negra havia voltado, com cabelos cor-de-sangue e olhos cor-de-chumbo, para trazer a felicidade conjugal, desta vez ao filho de “Amra”. Afinal, ele não duvidava que uma ruiva capaz de usar pouca roupa naquele frio fosse a encarnação de uma deusa.

Mas, até mesmo nas duas mulheres que se sentem em casa naquele frio, os cristais de gelo também formam uma delicada máscara sobre suas peles e cabelos alvos; e a cada movimento, tal película se quebra, apenas para se formar outra vez, no momento seguinte.

O céu também muda, ficando com os dias cada vez mais curtos e com os crepúsculos cada vez mais violetas, azuis, dourados e rubros sobre a neve; até que, quando Leirsa e Soraya lhes indicam terem chegado ao lar, o grupo alcança uma vasta e infindável área onde a noite parece ser permanente. Assim como a distante Vanaheim, aquela é uma região nevada, com seis meses de noite e seis de dia. O nascer e o pôr-do-sol só ocorrem uma vez por ano. Também há lobos, focas, mamutes, leões marinhos e enormes ursos brancos, além de morsas e pingüins. Naquela época, era noite naquele local pouco distante das altas geleiras. A lua cheia é um enorme olho branco a iluminar Conan, Amalric, Yasunga, Soraya, Leirsa e os oito ex-marujos de Mayapan e Antillia.

O cimério percebe, com seu invejável senso de direção e de distância, que ele e seus guerreiros remanescentes percorreram, por mar e terra, uma distância menor do que levariam, no distante continente hiboriano, para saírem da tropical Kush até o extremo norte de Nordheim. Então, ele lembra de quando Leirsa lhe contara, no agora destroçado Dragão Alado, que, graças a ela, as geleiras foram detidas em seu avanço para o sul, embora não tenham chegado a recuarem para o norte. Parece que, naquele Novo Continente onde Conan vivia há quase 20 anos, as geleiras tinham um alcance meridional maior que no continente onde nascera o rei de Mayapan.

Conan da Ciméria também instrui seus comandados a usarem lanças para cutucarem sempre o chão gelado, a fim de evitarem um possível buraco ou lago congelado sob a neve. Nascida em Vanaheim, Soraya é a única que conhece este cuidado tão bem quanto o rei de Mayapan.

Após caçarem e matarem uma morsa solitária – a qual foi enfraquecida pelas flechas de Amalric e a lança de Yasunga, e morta com um golpe fatal da espada de Conan no crânio –, eles assam a carne da mesma. Após se alimentar, o grupo leva o restante estocado em partes iguais nos alforjes de cada um. Para matarem a sede, os guerreiros derretem neve e pedaços de gelo com o mesmo fogo que usam para assarem as carnes. A pele da morsa é aproveitada como agasalho por Yasunga, que, em seus 78 anos de vida, nunca sentira frio tão grande.

Dias depois, o pequeno grupo avista uma enorme aldeia, composta por choupanas, tanto de pele quanto de gelo.

Os imberbes nativos daquela região viviam em cabanas de pele e em iglus. Parentes mestiços de remanescentes da Tribo Sem Nome com descendentes de lemurianos, aquele povo venerava o deus Xultha e construía suas cabanas de pele e gelo com três cômodos cada casa: dois laterais e um central. O cômodo do meio ajudava a regular a temperatura; um dos laterais era a cozinha, e o outro, o depósito.

Também conheciam a cerâmica e faziam seus rituais com máscaras de madeira, bem como esculturas e gravuras em osso de baleia. Registravam fatos que lhes eram importantes sobre plaquetas de marfim – as quais também serviam para se comunicarem com povos vizinhos de línguas diferentes, nas viagens comerciais. Andavam a pé e em trenós puxados por cães selvagens, que mais se assemelhavam a lobos. Era assim que aquele povo caçava, em grupos, animais como ursos e mamutes.

Entretanto, quase tudo mudou quando a feiticeira de aparência jovem se aliou ao Senhor da Noite. A ambição desmedida daquele casal maligno trouxe a fome, a opressão e os abomináveis sacrifícios humanos ao chamado Povo das Geleiras. O mesmo povo que, vários meses antes, havia sido ludibriado e levado a expulsar Soraya e Leirsa, e que agora clama pela volta das duas.

Tochas ardiam naquela aldeia, a fim de iluminarem a escuridão e afastarem o frio. Ao fundo daquele local avista-se uma geleira de mais de um quilômetro de altura, se estendendo indefinidamente a norte, leste e oeste, além de qualquer alcance visual. Eles pareciam ter chegado ao fim do mundo. Contudo, não é aquela imensurável geleira o que mais chama a atenção de Conan, Soraya e Leirsa, mas sim um cercado, dentro do qual estão presos homens, mulheres e crianças com olhares suplicantes. “Vítimas de futuros sacrifícios para aquele casal dos infernos!”, deduzem, indignados, o imperador de Mayapan e as duas brancas pouco agasalhadas. Pareciam gado humano, aguardando o dia do abate.

Estranhando a ausência de guardas no local, Conan aguça todos os sentidos, mas nada percebe. Então, ele desembainha sua espada, no intuito de abrir a porta da cerca. Mas, no instante seguinte, uma imensa forma branca parece se destacar da neve, investindo contra o cimério. É um enorme urso polar, com mais de três metros de altura e pesando quase uma tonelada.

O cimério se esquiva do abraço fatal, ao mesmo tempo em que vislumbra um casal sair de uma das choupanas, e consegue acertar um golpe numa das patas dianteiras do animal, inutilizando a mesma. Amalric percebe que aquele golpe não foi suficiente, e é o primeiro a se recuperar do elemento-surpresa, arremessando o machado rumo à cabeça da fera polar. O animal se esquiva, recebendo a machadada num dos ombros.

Então, revigorada pelo retorno à região onde morou por mais de 45 anos, Soraya de Vanaheim detém o enfurecido urso, com seu recém-recuperado poder místico sobre os animais. Leirsa vê e reconhece Kwarada ali perto. Esta última está usando seus poderes para controlar o animal, e ao mesmo tempo se valendo de aldeões inocentes como escudos humanos.

Por alguns instantes, dois comandos opostos ecoam na mente do urso: o de Kwarada e o de Soraya. O impasse é quebrado no segundo seguinte, quando, refeito da surpresa, Yasunga acerta uma lança, certeira e mortífera, no coração da fera. Os ex-marujos nativos, que acompanhavam Conan, também se recuperam do elemento surpresa e, seguindo o exemplo do ex-corsário negro, terminam de derrubar aquele animal.

Enquanto todos retiram suas respectivas armas da fera morta, a bruxa e o Senhor da Noite se aproximam um pouco mais, enquanto renegados daquele próprio povo saem de algumas cabanas, ficando frente a frente com os seguidores de Conan. Um dos renegados assume a guarda do cercado – agora que o urso mandado por Kwarada está morto. Vendo que a mãe precisará de algumas horas para recuperar os agora limitados poderes sobre a fauna local, e ciente de que ainda não recuperou os seus sobre o clima, Leirsa grita para a feiticeira:

- Por que não me enfrenta sozinha, bruxa covarde? Você e seu parceiro só têm coragem se estiverem protegidos por gente inocente ou por bichos e renegados?

- Por que me expor, se eu posso sozinha acabar com uma dúzia de rebeldes insanos? Se eu quisesse pôr fim à minha vida, eu não me chamaria Kwarada dos Sertões Pictos.

A feiticeira, que respondeu ao desafio de Leirsa, era uma mulher de pele escura e beleza selvagem, usando – apesar do clima frio daquele local – uma curta saia de pele de urso polar e um par de botas de pele de mamute, cobertas por pedras preciosas. Sua negra cabeleira, espessa e brilhante, estava amarrada atrás por uma faixa dourada com desenhos enigmáticos. Sua roupa era semelhante à que lhe fora descrita por um jovem da Bossônia, nos primórdios de Conan como rei da Aquilônia, e as feições eram as mesmas que Leirsa lhe descrevera a bordo do “Quetzacoatl”. E o fato de ela usar trajes tão sumários naquela região gelada só pode significar duas coisas: ou é uma deusa resistente a baixíssimas temperaturas, como Leirsa e Soraya, ou – o mais possível para quem a conhece – uma feiticeira, que tem pacto com os demônios que vivem nos golfos escuros que separam os mundos.

Ao ouvir aquela bela, porém malévola, mestiça de picto com ligur confirmar o próprio nome, os olhos azuis do cimério de barbas brancas se arregalam, reconhecendo-a:

- Por Crom, a Bruxa de Skandaga! – exclama Conan – Eu nunca lhe vi, mas um bossoniano, filho de Gault Hagar, me falou de você, durante uma audiência na corte de Tarântia, pouco após a minha coroação.

Kwarada sorri, enquanto uma luz de reconhecimento brilha também em seus olhos negros.

- Espere aí... não me diga que estou falando com o cimério que usurpou o trono da Aquilônia, há mais de quatro décadas! Está muito velho e longe demais de sua casa. – ela acrescenta, em tom de mofa. – Mas, graças ao sangue dos sacrifícios feitos a Xultha, eu me mantenho jovem e bela... – ela acrescenta, esclarecendo o motivo de todos os cadáveres dos sacrifícios humanos terem o sangue completamente retirado.

- Vampira maldita! – grunhe Conan, agarrando o cabo de sua arma – Pensei que você tivesse morrido, há 45 anos em Schondara.

- Vampira? – ri Kwarada – Não, não bebo o sangue de ninguém, mas me banho no mesmo líquido vermelho, misturado com poções mágicas, para renovar minha juventude. – ela diz cinicamente, enquanto dispensa os “escudos humanos” – Mas quem disse que morri? Minha magia era forte o bastante para desaparecer dali para muito longe. Principalmente, quando vi meu Valerian sendo desmembrado e morto pelos...

- Pelos demônios que você mesma tentou usar pra acabar com o povo daquele local, sua vadia dos infernos! – completa Conan, ainda mais furioso.

- Pois é... Depois disso, me teletransportei para um forte em Vanaheim, povoado por mestiços de pictos com vanires, mas ao ver que seus dois chefes, Gunar e Iranyr, eram poderosos demais para que eu pudesse controlá-los, segui até a Hiperbórea. Infelizmente, depois de 25 anos governando aquele local, vi que o povo estava farto de mim... Parece que eles já foram dominados por uma outra feiticeira de aparência jovem, a qual transformava os mortos de lá em zumbis... Então, antes que eles se rebelassem, eu mesma fugi de lá. Ciente que a Aquilônia estava quente demais para mim, segui cada vez mais para leste, de tribo em tribo, usando sangue e magia para não envelhecer, até chegar aqui e conhecer este belo mayapano ao meu lado, o qual fugira de uma distante cidade chamada Tlapallan. Então, percebi que poderia, através dele, canalizar meus poderes para muitos quilômetros de distância neste continente selvagem.

Com a espada em punho e os olhos azuis semicerrados de ódio, Conan investe na direção do casal, disposto a mandar o Senhor da Noite para o inferno e, se preciso, a consorte deste. Mas, a um gesto de Kwarada, os vários lacaios da Bruxa de Skandaga – e por este motivo renegados pelo próprio povo – agarram o cimério e o nocauteiam com uma grande pedra na nuca. Amalric voa em direção ao casal que mandou derrubar-lhe o pai inconsciente, e é barrado por uma verdadeira muralha de guerreiros morenos, aos quais enfrenta com seu machado de aço na mão direita e sua borduna na esquerda. Leirsa e Yasunga saltam ao seu lado – ela com a enorme forquilha que pegara vários quilômetros ao sul, e ele com sua lança –, seguidos por Soraya e os sobreviventes do naufrágio, que formam um círculo, com todos de costas uns para os outros e protegendo Conan no meio, enquanto este recupera os sentidos.

Embora seus poderes remanescentes – mesmo sem a ajuda de Kwarada – lhe tenham permitido aprender a forjar metais, o Senhor da Noite não havia ensinado o Povo das Geleiras a fazê-lo, receoso por uma rebelião. Mesmo sabendo dos poderes da companheira, o renegado de Mayapan temia que mesmo estes fossem insuficientes para deter uma possível revolta por parte de seus subordinados. Kwarada, por sua vez, sabia o que seu parceiro achava, e concordava com ele.

Assim, com seu machado de ferro, ele investe contra a facção de Conan, matando a quem consegue matar, e se esquivando de quem não consegue. Quando Kwarada resolve usar seus poderes para dar um fim definitivo àqueles que tentaram libertar a tribo, surge um novo elemento na batalha: os moradores até então pacíficos daquela aldeia, armados com afiados utensílios domésticos – uma vez que foram proibidos pelo perverso casal de usarem armas –, com os escuros rostos aquilinos crispados de fúria, e os olhos negros brilhando com um ódio mortal, acumulado durante meses. Eles saem de suas cabanas, onde ficaram recolhidos durante meses, com ira e ressentimento no coração, e um deles esfaqueia o pescoço do guardião do cercado, libertando, em seguida, todos os que estavam ali presos.

A mestiça de picto usa sua magia contra a massa oprimida que, estimulada pela inesperada e bem-vinda chegada daqueles estranhos que vieram do sul, se insurgiu contra ela e seu homem. Mas o Povo das Geleiras vem às dezenas, fluindo como uma torrente humana e ameaçando até mesmo os perigosos renegados; e a feitiçaria da Bruxa de Skandaga não é bastante para deter tanta gente – como temia o Senhor da Noite. Até aqueles que Kwarada usava como escudos humanos, começam a trucidar os renegados que os mantinham afastados de seus opressores.

Enquanto isso, em meio à loucura da batalha, Amalric abre o crânio de um com sua borduna, ao mesmo tempo em que, com seu machado, decepa o pescoço desprotegido de outro, que investe contra ele. Após matar uma dezena de renegados, o príncipe de Mayapan tem o cabo de seu machado cortado pela lâmina de pedra de um dos renegados, o qual tenta cravar o machado de obsidiana na cabeça do guerreiro adolescente. Mas este trava a mão esquerda do guerreiro canhoto, e este faz o mesmo com a borduna de Amalric. O filho de Mouhana desfaz o impasse com uma joelhada nos testículos do renegado e, em seguida, arrebentando a borduna no crânio do mesmo, e fazendo espirrar miolos sobre a neve.

Ao mesmo tempo, um antilliano é atingido por três flechas e cai moribundo sobre o chão alvo, com a clavícula, fígado e boca do estômago perfurados. Um mayapano ao seu lado vinga o amigo mestiço, com flechadas no pescoço, peito e testa dos atiradores.

No momento seguinte, o velho lanceiro Yasunga é alvejado por uma seta na perna direita e por outra, pouco abaixo do pulmão, arranhando-lhe o órgão que permite respirar. Uma terceira flecha atinge o ombro esquerdo do conselheiro negro.

Vendo isso, Amalric de Mayapan puxa seu arco a tiracolo e atira três flechas certeiras – cuja excelente pontaria lhe fora ensinada por Yakov – matando os pretensos assassinos do conselheiro real. Enquanto o príncipe arrasta o amigo das Ilhas Prateadas para longe daquele pandemônio, seu pai cimério termina de recobrar a consciência e vê, próximo a ele, o vil companheiro da não menos terrível Kwarada. Como um felino, Conan se ergue e ataca de surpresa a um só tempo, pegando desprevenido o consorte da Bruxa de Skandaga, o qual mal tem tempo de erguer seu machado para se defender da afiada espada do imperador de Mayapan.

Após um breve entrechocar de armas, Conan percebe que o renegado mayapano está mais hábil em armas do que há cinco anos, em Tlapallan, quando o ex-bruxo usara apenas a magia para tentar derrotá-lo. Ao que parece, o seu arqui-rival de Mayapan resolveu tentar compensar a perda dos poderes místicos, com o aprimoramento nas artes da luta corpo-a-corpo – além, é claro, da ajuda de sua amante feiticeira dos Sertões Pictos.

Mas, sua habilidade – mesmo aprendida com a pouca magia que lhe restava, e conseqüentemente, com muito mais rapidez que qualquer guerreiro comum –, ainda não se comparava à longa experiência do enorme lobo branco da Ciméria. Embora não esteja mais no auge da força e agilidade físicas, o cimério domina, não apenas golpes que aprendera na adolescência em sua terra natal, mas inúmeros outros, como a Litania de Erlik, aprendida com Sennan em Aghrapur; o contra-golpe zamoriano, a arte de estocar – aperfeiçoada com Murilo da Coríntia –; a esgrima do mestre Valério de Zingara, e muitíssimo mais. Mesmo que não dominasse nenhuma dessas técnicas, ele continuaria sendo um adversário perigosíssimo para o renegado mayapano, pois conhece outros incontáveis truques com a espada – com os quais quase matara uma versão jovem de si mesmo nas ruínas de Kuthchemes.

Quando percebe que estará morto em apenas alguns golpes, o Senhor da Noite arregala os olhos e grita, apavorado, o nome de sua Kwarada. Esta intercede, apontando o indicador para seu homem e o teletransporta para o sul, fazendo-o desaparecer numa explosão cegante, cujo brilho atordoa Conan por tempo suficiente para este receber, por trás, um chute nos testículos, dado pela Bruxa de Skandaga. Esta irradia uma magia que atrasa o poder de recuperação do cimério, ao mesmo tempo em que arremete novamente o pé, desta vez na barriga do rei de Mayapan, sobre o qual a mulher concentra sua magia naquele momento.

Com uma gargalhada malévola, Kwarada está prestes a decepar a cabeça de Conan, enquanto este ainda arfa de dor e os amigos do cimério estão ocupados demais para ajudarem-no. No momento seguinte, todavia, uma pancada na nuca atordoa a feiticeira mestiça, que, cambaleando, só se vira a tempo de ver uma enorme e afiada forquilha penetrar-lhe, uma ponta na garganta e outra no coração. Sua última visão é a do rosto branco e ruivo daquela que a matou. Admirado, Amalric avista a cena, ainda ocupado.

Salpicada de sangue da cabeça aos pés, a aparentemente jovem Leirsa se ergue em meio ao tumulto, com o rosto crispado e a boca escancarada a soltar um selvagem grito de triunfo: em sua mão esquerda, se encontra uma afiada faca de pedra e, na direita, a cabeça ensangüentada de Kwarada. Os sequazes da outrora Bruxa de Skandaga correm apavorados, enquanto nuvens cinzentas se aglomeram no céu, e relâmpagos começam a trovejar, fulminando alguns dos fugitivos, ao mesmo tempo em que um mamute adentra o campo de batalha, pisoteando um seguidor da falecida feiticeira e estrangulando outro com a tromba.

Enquanto isso, uma águia das neves dilacera, com suas garras, o pescoço de um outro proscrito, ao mesmo tempo em que um dos últimos partidários de Kwarada é mortalmente abraçado por um urso polar. Apenas meia dúzia dos guerreiros traidores foge dali, seguida de perto por cães nativos, sob o comando de Soraya. E mesmo estes são arrastados, pelos ventos invocados por Leirsa, até as presas afiadas dos cães semi-selvagens, os quais mastigam impiedosamente as gargantas dos últimos vis traidores.

O mesmo poder que Kwarada tinha à distância daquela região polar, Soraya possuía naquele ermo glacial onde morava. A mãe de Leirsa esteve à mercê da bruxa meio picta, quilômetros ao sul dali, mas aqui, na terra natal de sua filha ruiva, isso não aconteceria, se ela tivesse enfrentado pessoalmente aquela que havia assombrado tanto bossonianos quanto os povos daquele continente ignorado por quase todos os hiborianos. Enquanto viva, a Bruxa de Skandaga – pelo menos naquela região polar – tinha poderes iguais aos da loira mestiça de vanir. E agora que Kwarada morreu, todos os poderes que Leirsa e Soraya perderam ao pé das geleiras foram completamente recuperados por ambas.

* * *

No interior de uma bela caverna de cristal e gelo, Yasunga das Ilhas do Sul delira em febre alta, sentindo o peito arder em agonia, e a respiração, cada vez mais difícil.

- Nasci entre as montanhas vulcânicas do extremo sul... – ofega o velho guerreiro negro, levemente aliviado pela ausência de frio na moradia de Leirsa e Soraya, cujo frescor é o de um chuvoso inverno kushita – E agora estou indo ao encontro de Ajujo, o deus negro do meu povo. Naveguei com uma deusa e um leão... – ele diz, tossindo – E agora morrerei ao lado do mesmo leão, e espero que estas duas novas deusas me levem para servir à primeira deusa branca, que foi minha capitã há sessenta anos...

- Não diga bobagens, velho amigo. – fala Conan, com sua velha voz de comando, mas ao mesmo tempo num tom calmante e amigável para aquele, cuja confiança inspirada em “Kukulkan”, o tornou conselheiro real de Mayapan.

- Não diga mais nada, bravo guerreiro do sul. – diz Soraya.

- Apenas descanse, que eu e minha mãe nos encarregaremos de tudo. – acrescenta Leirsa, cuja voz é doce até para aqueles que não estão apaixonados por ela. “Se eu estivesse à beira da morte...”, pensa Amalric, com um sorriso no seu jovem coração, “esta voz por si só já me ressuscitaria”.

“Estou indo ao encontro de vocês, meu xamã, minha deusa e meus conterrâneos piratas que morreram às margens do Zarkheba”, pensa, por sua vez, o ex-corsário nascido nas ilhas ao sul da Terra Sem Retorno.

Então, as trevas tomam conta do lanceiro.

* * *

Ele não faz idéia de quanto tempo ficou desacordado, mas sua primeira sensação é a surpreendente e bem-vinda ausência de dor. Aliás, desde que deixara a mulher, filho e amigos em Mayapan, ele não se sente tão bem.

Ele abre os olhos e vê uma bela e voluptuosa mulher branca caminhar sorridente em sua direção.

- É você, Deusa? Estou no Reino de Ajujo?

- Você ainda está vivo, bravo lanceiro do outro continente.

Ao ouvir isso, ele percebe que a jovem branca não tem os olhos nem os cabelos negros como Bêlit. Ela é ruiva de olhos cinzas, e está ladeada por uma mulher loira de olhos azuis e um jovem moreno de olhos verdes.

- Leirsa... Soraya... Amalric?

O príncipe sorri.

- Elas gastaram quase todos os poderes para lhe salvar a vida, meu caro conselheiro. Você ficou quatro dias na cama, chamando por seu filho, sua mulher, meu pai e por esta Bêlit. Estou vendo que meu pai teve outra mulher magnífica, antes de conhecer minha mãe... se metade do que você disse em seu delírio for verdade.

Os olhos negros de Yasunga se arregalam em sinal de preocupação.

- Por Ajujo, eu disse alguma coisa que ofendeu Amra?

- Claro que não. – responde o príncipe, demonstrando uma surpreendente sabedoria e maturidade para seus 17 anos – Você só aumentou o orgulho que tenho de papai, e das duas grandes rainhas brancas que ele teve no leste, antes de conhecer mamãe.

Yasunga tenta se levantar, mas só o consegue com esforço.

- Preciso descansar mais, ou já estou recuperado?

- Totalmente recuperado, Yasunga. – responde Soraya.

- Pode ser, mas acho que meus dias como lanceiro acabaram... – diz o negro, com um sorriso de resignação – Ainda bem que meu filho já é quase um homem, e já maneja a lança tão bem quanto eu fazia no Tigresa, quando jovem. – ele acrescenta, mais animado – O importante é que, graças a vocês duas, estou vivo. E terei muitas histórias pra contar a meu filho e à princesa de Mayapan. – conclui o ex-corsário, já quase totalmente adaptado à sua nova condição, de ex-guerreiro. O falecido xamã N’Yaga já era idoso quando Yasunga nasceu, e este nunca viu o feiticeiro das Ilhas Prateadas se queixar por não poder participar de uma batalha naval.

* * *

- Quer dizer, então, Soraya, que suas ex-colegas se deram quase tão bem quanto você. – diz Conan, sorrindo, na caverna onde a ex-Dama de Ferro mora com a filha, e tão aliviado quanto ambas com a derrota de Kwarada e a recuperação de Yasunga.

- Pois é, cimério... Perséfone se casou com um oficial gunderlandês, em Ophir; Martika voltou à Britúnia, e assumiu o comando de uma das cidades-estado daquele país. Já Lupara se tornou conselheira da princesa Kyra.

- Princesa Kyra? – indaga, surpreso, o idoso rei de Mayapan.

- Sim. Não lembra que ela era filha de um príncipe turaniano deposto? As riquezas, que ela havia obtido como caçadora de recompensa, garantiram ao pai dela o trono perdido. Os nobres turanianos não têm preconceito de cor... pelo menos, não com a cor do ouro.

Conan gargalha. O próprio rei Yildiz, a quem servira há mais de seis décadas, era filho de uma kothiana chamada Khushia, e certos turanianos, como o rei Than de Yaralet, tinham os mesmos olhos cinzas dos gunderlandeses – o único povo hiboriano não-miscigenado da Era de Conan. O pai de Kyra fora deposto, não porque a mãe desta fosse negra, mas devido a dívidas financeiras, devidamente pagas pela filha há quatro décadas.

Soraya também sorri, e acrescenta:

- Você, seu filho e seus amigos me ajudaram a derrotar a mulher que ameaçava a mim e à minha filha. Embora eu tenha, de bom grado, ajudado Yasunga a se recuperar dos ferimentos, ainda me sinto em débito e, assim sendo, qualquer um de vocês pode me pedir o que quiser.

- Milady Soraya... – diz o príncipe Amalric, desde o início daquela conversa abraçado à filha ruiva da ex-Dama de Ferro – Agora que Kwarada está morta e o Senhor da Noite fugiu novamente, a garota não corre mais perigo. E, bem, eu... – ele acrescenta, sorrindo e reunindo coragem – Mesmo sabendo que Leirsa não tem poderes longe daqui, teria eu vossa permissão para desposá-la e torná-la princesa de Mayapan?

Um sorriso de aprovação da loira é tudo que o príncipe de Mayapan e a princesa das Geleiras precisam.

* * *


Dez meses após a união matrimonial, realizada na própria caverna governada por Soraya, nasce o primeiro neto de Conan – pelo menos, o primeiro a quem o cimério conheceu pessoalmente –, um garoto de cabelos claros e olhos azuis, chamado de Leirnan, em homenagem ao avô paterno e à mãe. No mês seguinte, a princesa Akhtlana deu à luz a pequena Imiktla, enquanto a rainha Mouhana trazia ao mundo o terceiro filho de Conan com ela.

Quanto a Soraya, ela resolve abrir mão da imortalidade para ir viver com a filha, nas terras governadas pelo velho companheiro de batalhas e, por duas vezes – nas longínquas terras de Keshan e de Shem Oriental –, de cama. Depois de tudo o que ocorrera, a loira já não confiava mais no Povo das Geleiras – e a idéia de conviver, sozinha, com pessoas que traíram a ela e à filha não lhe agradava nem um pouco. Além disso, faz mais de quatro décadas que a ex-Dama de Ferro não sente o gostinho da civilização.


Epílogo:


À distância, Amalric avista um enorme obelisco de pedra, com as feições negróides do kushita sem língua, morto há dois anos pela facção do Senhor da Noite – e a primeira de muitas estátuas gigantescas que seriam feitas nos milênios seguintes, naquele continente e ao sul –, e acrescenta:

- Eu não teria suportado a morte de meu pai, se não fossem Sigurd, Yasunga, suas famílias, minha mãe... e Leirsa. Foi exatamente aqui, onde conheci Leirsa, que ela deu à luz nosso filho caçula, quinze dias após minha coroação.

Então, ele lembra que, no dia da última batalha do pai, Leirsa, assim como Soraya e Okethla, não puderam participar da mesma. A primeira, por estar prestes a dar à luz o neto mais novo de “Kukulkan”; a segunda, por estar cuidando de Leirnan e Imiktla, assim como da própria filha recém-nascida, além do filho caçula de Conan. Já a rainha Okethla de Tlapallan estava usando sua magia para defender a cidade que ainda governa ao lado do marido Goram-Singh – por Tlapallan estar com boa parte do exército ajudando a defender Amra-Mouhana.

Amalric pensa se seu pai estaria vivo naquele momento, se não fossem as responsabilidades circunstanciais das duas guerreiras brancas e da maga morena... Mas no instante seguinte, ele sorri, ao avistar uma bela ruiva caminhando em sua direção, com um menino de dois anos nos braços e o cabelo preso numa enorme trança flamejante. Então, antes que Leirsa possa ouvi-los, a pequena – e precoce – Imiktla, neta de Conan e Sigurd, pergunta ao tio:

- Será que, depois de abrirem mão da divindade, minhas tias vão ficar velhas e morrer?

- Vão, mas vai demorar o mesmo tempo que as pessoas normais. Leirsa vai envelhecer comigo, e Soraya também vai, junto com o guarda que casou com ela. – responde o filho mayapano de Conan.

Então, a ex-deusa ruiva se aproxima de Amalric, e eles se beijam apaixonadamente, enquanto mandam as crianças voltarem ao palácio real de Amra-Mouhana.


Nos séculos seguintes, porém, a ausência de Soraya e da sua filha – atual princesa de Mayapan –, faria as geleiras do norte avançarem ainda mais para o sul, empurrando os pictos da Tribo Sem Nome em direção à civilização fundada por Conan, e causando a derrocada final da mesma, sob os machados de pedra de um dos povos mais antigos da humanidade.
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