O Olho da Morte




(por L. Sprague de Camp e Lin Carter)


Publicada pela primeira vez em Conan the Wanderer, novembro, 1982; copyright © 1968 de L. Sprague de Camp., Ace Books, NY.



1) As Mandíbulas da Armadilha

 

O sol do meio-dia ardia sob a abóbada incendiada do céu. As areias desertas e secas de Shan-e-Sorkh, o Deserto Vermelho, queimavam debaixo da impiedosa fogueira do sol, como se estivessem em uma gigantesca fornalha. Nada se movia no ar parado. Não havia movimento sequer entre os pequenos e espinhosos arbustos que se erguiam sobre as baixas colinas, cobertas de pedregulhos, e que pareciam formar uma parede nos limites do deserto.

Tampouco se moviam os soldados agachados atrás dos morros, observando a trilha.

Nesse lugar, algum tipo de conflito primordial entre as forças naturais tinha aberto uma fenda através das rochas escarpadas. Milhares de anos de erosão tinham alargado a fenda, mas ela ainda era uma passagem estreita entre as encostas íngremes — o local perfeito para uma emboscada. Os soldados da tropa turaniana tinham ficado escondidos sobre as colinas durante toda a tórrida manhã. Enfrentando o terrível calor em suas túnicas de malha protetora de aço, eles agora apoiavam o corpo sobre as pernas e os joelhos doloridos. Amaldiçoando sua sorte, o capitão da tropa, o emir Boghra Khan, permanecera o tempo todo da insuportável vigília ao lado dos seus soldados. Sua garganta estava tão seca como o couro curtido ao sol. Seu corpo cozinhava dentro da malha protetora de aço. Naquela terra maldita de morte e sol ardente, não havia meio de um homem transpirar confortavelmente. O ar ressecado do deserto bebia sedento cada gota de umidade, deixando as pessoas tão secas como a língua murcha de uma múmia estígia.

O emir piscou e esfregou os olhos, forçando a vista contra a intensa claridade, para ver de novo a pequenina luz que piscava. Uma sentinela avançada, escondida entre as dunas de areia vermelha, tinha feito o sol refletir em um pequeno espelho para mandar um sinal ao chefe, que se encontrava nas colinas.

Ao longe já se podia ver uma nuvem de poeira. Um sorriso se abriu entre as barbas negras do corpulento nobre turaniano, que chegou a esquecer o desconforto que sentia. Sem dúvida o informante traidor tinha merecido o suborno com o qual se vendera!

Logo depois Boghra Khan já conseguia ver a longa fila de guerreiros zuagires, cobertos com longas khalats brancas, montando seus esbeltos garanhões do deserto. Quando o bando de saqueadores do deserto emergia da nuvem de poeira levantada pelos cascos de seus próprios cavalos, o lorde turaniano já conseguia discernir os rostos magros e escuros de suas futuras vítimas, emoldurados por seus protetores de cabeça — tão limpo era o ar do deserto e tão brilhante o sol. Um arrepio de satisfação tomou conta de suas veias, como o vinho vermelho de Aghrapur encontrado nas adegas particulares do jovem rei Yezdigerd.

Durante muitos anos essa quadrilha de bandidos tinha pilhado e saqueado inúmeras aldeias, entrepostos comerciais e paradas de caravanas ao longo das fronteiras de Turan. A princípio o bando tinha agido sob o comando do perverso e traiçoeiro Olgerd Vladislav. Depois, desde mais ou menos um ano antes, comandado por seu sucessor, Conan. Finalmente os espiões turanianos, infiltrados em aldeias cujos habitantes simpatizavam com os bandidos, tinham conseguido encontrar um membro corrupto daquele bando — um tal de Vardanes, que não era zuagir, mas zamoriano. Vardanes tinha sido irmão de sangue de Olgerd, que Conan afastara do comando, e tinha uma enorme sede de vingança contra o estranho que usurpara a chefia do bando.

Boghra esfregava a barba, pensativo. O traidor zamoriano era um vilão sorridente, dono de espalhafatosa gargalhada, bastante simpático para os turanianos. Pequeno, magro, de corpo flexível e elegante, Vardanes era um jovem bonito e descuidado, companheiro alegre das bebedeiras e um lutador diabólico, mas de coração tão frio e indigno de confiança como uma víbora.

Agora os zuagires passavam pelo desfiladeiro. E lá, na frente de uma das colunas dos flancos, vinha Vardanes, sobre uma saltitante égua branca. Boghra Khan ergueu um dos braços, avisando seus homens para ficarem preparados. Queria que o maior número possível de zuagires entrasse no passo, antes de fechar a armadilha sobre eles. Somente Vardanes deveria sair dali com vida. No momento em que ele ficou além das paredes de pedra, Boghra baixou rapidamente o braço, como se estivesse cortando o ar.

— Matem os cães! — gritou ele, levantando-se.

Uma nuvem de flechas assobiou pelo ar, atravessando o ar iluminado pelo sol como uma chuva mortífera. Em uma questão de segundos, os zuagires estavam no mais completo tumulto, um bando de homens que gritavam e cavalos que saltavam e disparavam para todos os lados. As flechas continuaram caindo em verdadeiras nuvens que varriam sobre eles. Os bandidos caíam, agarrados às hastes com penas que brotavam nos seus corpos como se fosse por magia. Os cavalos relinchavam assustados, feridos pelas flechas afiadas que lhes atingiam o corpo empoeirado.

A poeira ergueu-se em uma nuvem sufocante, escurecendo a parte inferior do passo. Tornou-se tão espessa que Boghra Khan ordenou aos arqueiros que fizessem uma pausa no ataque, para não desperdiçarem flechas no meio da poeira, que os impedia de fazer pontaria. E aquela momentânea preocupação com a economia acabou sendo sua desgraça. Porque, no meio do clamor desesperado dos bandidos, ergueu-se um grito profundo, que se sobrepôs ao caos.

— Subam pelas encostas e revidem o ataque!

Era a voz de Conan. Um instante depois, a gigantesca figura do próprio cimério avançava pela íngreme encosta, montando um enorme e fogoso garanhão. Qualquer um acharia que apenas um tolo ou um louco seria capaz de avançar para cima, numa íngreme colina coberta de areia e pedras soltas, indo de frente contra o poderoso inimigo. Mas Conan não era tolo nem louco. É fato que se deixara dominar por um feroz desejo de vingança mas, por trás de seu rosto austero e queimado pelo sol, e dos seus olhos ardentes, como duas labaredas azuis encimadas por sobrancelhas negras, estava em ação a aguçada perspicácia de um guerreiro experimentado. Ele sabia, melhor do que ninguém que, muitas vezes, a única resposta possível em uma emboscada era uma atitude inesperada.

Atônitos, os guerreiros turanianos afrouxaram os arcos, limitando-se a olhar estarrecidos. Agarrando-se e subindo com dificuldade pelas íngremes encostas das laterais do passo, escapando da nuvem de poeira que cobria o desfiladeiro, vinha todo o bando agitado dos zuagires, gritando, a pé e montados, direto contra o inimigo. Num instante os bandidos do deserto — mais numerosos do que o emir imaginara — avançavam violentamente pelo topo da colina, de cimitarras em punho, amaldiçoando e soltando os seus estridentes gritos de guerra.

À frente deles destacava-se a gigantesca figura de Conan. As flechas tinham rasgado sua khalat branca, deixando à mostra a malha negra que protegia todo o seu tronco, forte como o de um leão. Sua cabeleira selvagem e mal aparada escapava por baixo do capacete de aço, como uma bandeira esfarrapada. Uma flecha perdida tinha arrancado o enfeite de seu capacete. Em seu garanhão de olhos selvagens, ele atacou os inimigos como um demônio saído de um mito. Não estava armado com uma cimitarra semelhante às dos povos do deserto, mas com uma enorme espada ocidental de lâmina bastante larga — sua arma favorita entre todas as que carregava e sabia manejar com tanta perícia. Em seus punhos marcados pelas cicatrizes agitava-se essa pesada lâmina de aço tão brilhante como um espelho, abrindo um caminho vermelho por entre os turanianos. Ela subia e descia, derramando gotículas encarnadas pelo ar do deserto. A cada golpe a espada rasgava armaduras, carne e ossos, arrebentando um crânio aqui, arrancando um membro ali, lançando ao chão suas vítimas inertes, mutiladas e ensanguentadas, com as costelas afundadas para dentro. Ao final de apenas meia-hora, tudo estava terminado. Nenhum turaniano conseguiu sobreviver à matança, exceto alguns que fugiram logo no começo do combate — e seu líder. Com seu manto rasgado e o rosto ensanguentado, o emir, mancando e todo desarrumado, seguia à frente de Conan que, sentado em seu arquejante garanhão, limpava o sangue da lâmina da espada com a capa de um dos mortos.

Conan observava o derrotado lorde com uma expressão de desprezo, combinada com um olhar de humor sarcástico.

— Então, Boghra, nós nos encontramos de novo! — ele resmungou.

O emir piscou os olhos irritado, mal acreditando no seu destino.

— Maldito! — praguejou ele.

Conan riu. Dez anos antes, como um jovem e itinerante vagabundo, o cimério tinha servido junto ao corpo de mercenários de Turan. Tinha deixado as tropas do rei Yildiz com uma certa pressa, por causa de um probleminha com a amante de um dos oficiais — de fato, partira com tamanha pressa que deixara de pagar uma dívida de jogo que havia contraído com o mesmo emir que agora estava ali, boquiaberto diante dele. Na época, como jovem descendente de um lar nobre, Boghra Khan tinha sido companheiro de Conan em muitas noitadas divertidas, indo das mesas de jogo para as bebedeiras e as casas de prostituição. Agora, bem mais velho, o mesmo Boghra olhava boquiaberto, derrotado na batalha por um velho camarada cujo nome ele jamais conseguira vincular à fama do terrível líder dos guerreiros do deserto.

Conan dirigiu-lhe um olhar de reprovação.

— Você estava esperando por nós aqui, não estava? — ele rugiu.

O emir encolheu-se. Não pretendia dar informação alguma ao líder dos bandidos, mesmo tratando-se de um dos seus antigos companheiros de bebedeiras. Mas já tinha ouvido contar muitas e horripilantes histórias sobre os métodos sanguinários dos zuagires para arrancar confissões dos seusprisioneiros. Gordo e mole por ter passado muitos anos em uma vida principesca, o oficial turaniano temia não poder manter silêncio debaixo daquele tipo de pressão.

Mas, para sua surpresa, sua colaboração não era necessária. Conan tinha visto que Vardanes, que pedira para ficar em posição avançada na cavalgada daquela manhã, tinha disparado com o cavalo para fora do desfiladeiro alguns momentos antes do ataque dos turanianos.

— Quanto foi que pagou a Vardanes? — perguntou Conan de repente.

— Duzentas moedas de prata... — resmungou o turaniano. Mas silenciou de repente, surpreso diante de sua própria indiscrição. 

Conan riu.

— Um suborno principesco, não? Aquele velhaco sorridente... Como todo zamoriano, tem a traição plantada no fundo do seu podre e negro coração! Ele jamais me perdoou por ter tomado o comando de Olgerd! — Conan fez silêncio, lançando um olhar de zombaria na direção da cabeça baixa do emir. E sorriu, com um ar de compaixão, quando disse: — Não se martirize, Boghra. Afinal, você não contou seus segredos militares, mas eu é que o fiz revelar a informação. Pode voltar a cavalo para Aghrapur com sua honra de soldado intacta.

Boghra ergueu a cabeça, ainda mais surpreso. E perguntou:

— Você vai me deixar viver?

Conan acenou com a cabeça.

— E por que não? Ainda estou lhe devendo um saco de ouro por aquela velha aposta. Acho que podemos trocar sua vida pelo ouro Mas, da próxima vez, cuidado ao montar armadilhas para lobos. Você pode acabar pegando um tigre!

 


2) A Terra dos Fantasmas

 

Depois de dois dias de cavalgada pelas areias vermelhas de Shan-e-Sorkh , os saqueadores do deserto ainda não haviam conseguido alcançar o traidor. Sedento de vontade de ver o sangue de Vardanes, Conan insistia para que seus homens continuassem cavalgando. O cruel código do deserto exigia a Morte das Cinco Estacas para o homem que traíra seus companheiros, e Conan estava determinado a fazer com que o zamoriano pagasse por seu crime.

Ao final da tarde do segundo dia, montaram acampamento ao abrigo de um morro de arenito, que se erguia no meio das areias cor de ferrugem como um pedaço da torre de alguma ruína primitiva. O rosto duro de Conan, quase negro por causa da inclemência do sol, estampava todo o cansaço que ele sentia. O cavalo arquejava exausto, babando pela boca cheia de espuma, quando ele colocou a sacola d'água no seu focinho. Atrás dele, os homens esticavam as pernas exaustas e os braços doloridos. Deram água aos animais e acenderam uma fogueira para manter afastados os cães selvagens do deserto. Conan ouviu o barulho das cordas quando os homens tiraram dos alforjes as barracas e os utensílios de cozinha.

A areia fez barulho quando uma sandália afundou nela, atrás de Conan. Ele voltou-se para ver o rosto cicatrizado e barbado de um dos seus ajudantes de ordens. Era Gomer, um shemita de olhos negros e nariz em forma de gancho, cujos cabelos escorriam pelas dobras do capacete como argolas negro-azuladas.

— O que houve? — perguntou Conan, escovando o cavalo fatigado.

O shemita encolheu os ombros e disse:

— Ele continua indo diretamente para o sudoeste. O maldito traidor deve ser feito de ferro!

Conan deu uma gargalhada.

— Sua égua pode ser de ferro, mas Vardanes não. É de carne e osso, como você vai ver quando eu o amarrar nas estacas e arrancar sua barrigada para os abutres comerem!

Os olhos tristes de Gomer espelhavam um certo medo.

— Conan, não acha melhor desistirmos da perseguição? A cada dia afundamos mais e mais nesta terra de areia e sol, onde só víboras e escorpiões conseguem viver. Por todos os dragões, a menos que voltemos agora mesmo, nós todos acabaremos com os ossos espalhados pela areia para sempre!

— Nada disso, — resmungou o cimério. — Se alguém vai deixar os ossos espalhados pela areia, esse alguém é aquele maldito zamoriano. Não tenha medo, Gomer. Nós ainda o alcançaremos. Talvez amanhã mesmo. Ele não vai conseguir continuar cavalgando para sempre.

— Nem nós! — protestou Gomer. E fez silêncio ao sentir o olhar penetrante e inquisitivo de Conan.

— Mas não é só isso que o está preocupando, não é Gomer? — indagou Conan. Vamos homem, desembuche logo!

O robusto shemita encolheu os ombros.

— Bem, não. É que eu... os homens temem que... — sua voz quase desapareceu

— Vamos logo! Fale ou arranco a resposta de você a tapa!

— E que... bem, estamos em Makan-e-Mordan! — explodiu Gomer.

— Eu sei. Já ouvi falar deste “Antro dos Fantasmas”. Mas, e daí? Vai me dizer que está com medo das histórias contadas por mulheres velhas? 

Gomer parecia infeliz.

— Não são apenas histórias, Conan. Você não é zuagir e não entende. Não conhece esta terra e suas ameaças como nós, que vivemos há tanto tempo no deserto. Durante milênios, esta terra tem sido amaldiçoada e assombrada, e a cada hora que cavalgamos mais nos afundamos neste lugar maldito. Os homens têm medo de lhe dizer, mas estão apavorados e aterrorizados.

— Por causa de uma superstição infantil? — rosnou Conan. — Eu sei que eles estão tremendo de medo das lendas sobre fantasmas e demônios. Também já ouvi as histórias que contam a respeito deste lugar, Gomer. Mas são apenas historinhas para assustar crianças, e não guerreiros como nós! Diga aos seus companheiros que abram bem os olhos. Minha ira é mais forte do que todos os fantasmas que já morreram!

— Mas, Conan...

O cimério interrompeu com uma voz áspera.

— Chega desse medo infantil, shemita! Eu jurei por Crom e por Mitra que farei correr o sangue daquele traidor zamoriano, ainda que me arrisque a morrer por isso! E se tiver de derramar um pouco de sangue zuagir pelo caminho, pouco me importa. Agora, pare de choramingar e venha tomar uma garrafa comigo. Minha garganta já estava tão seca como este maldito deserto, e essa conversa chata só fez piorar as coisas.

Com um toque nos ombros de Gomer, Conan afastou-se na direção da fogueira, onde os homens tiravam das sacolas grandes pedaços de carne defumada, figos e tâmaras secos, queijo de leite de cabra e sacolas de couro cheias de vinho.

Mas o shemita não acompanhou o cimério de imediato. Ficou parado ali por algum tempo, olhando para o chefe que vinha acompanhando havia quase dois anos, desde que o bando encontrara Conan crucificado perto das muralhas de Khauran. Conan tinha sido capitão da guarda real que servia a rainha Taramis, de Khauran, até que o trono fora usurpado pela bruxa Salomé, ajudada por Constantius, o Falcão, líder das Companhias Livres.

Quando Conan se inteirara dos planos dos usurpadores e decidira permanecer ao lado de Taramis, que fora derrotada, Constantius mandara que o crucificassem do lado de fora das muralhas da cidade. Por sorte, Olgerd Vladislav, chefe dos bandidos zuagires que agiam na região, tinha passado por ali e decidido libertar Conan de sua cruz, dizendo que, se ele sobrevivesse aos ferimentos, poderia juntar-se ao bando. Conan não apenas sobrevivera, mas provara ser um líder nato, acabando por tomar de Olgerd a chefia do bando, que continuava comandando.

Mas sua liderança não passaria da noite de hoje. Gomer, de Akkharia, suspirou profundamente. Nos últimos dois dias, Conan cavalgara diante deles mergulhado nos seus sombrios desejos de vingança. Não conseguia entender até que ponto ia a paixão no coração dos zuagires. Gomer sabia que, apesar do respeito que tinham por Conan, seus temores supersticiosos os haviam levado à beira do motim e da revolta assassina. Eram capazes de seguir o cimério até às ardentes portas do inferno... mas não dariam mais um passo no Antro dos Fantasmas.

O shemita idolatrava seu chefe. Mas, sabendo que nenhuma advertência ou ameaça afastaria o cimério do caminho da vingança, só conseguia pensar em um modo de salyar Conan dos punhais dos seus homens. De um bolso em sua capa branca ele retirou um pequeno frasco onde havia um pozinho verde. Escondendo o frasco na palma da mão, reuniu-se a Conan junto ao fogo, para tomar com ele uma garrafa de vinho.

 

 

3) A Morte Invisível

 

Quando Conan acordou, o sol já estava alto no céu. As ondas de calor tremiam sobre as areias estéreis. O ar estava quente, parado e seco, como se o céu fosse uma tijela invertida, ardendo em brasa.

Conan cambaleou sobre os joelhos e apertou as sobrancelhas que latejavam. A cabeça doía tanto como se tivesse sido atacada a pauladas.

Ergueu-se indeciso e ficou parado, oscilando de um lado para o outro. Com a vista embaçada, forçando os olhos contra a intensa claridade, ele olhou ao redor. Estava sozinho, naquela maldita terra seca.

Resmungou uma maldição contra os supersticiosos zuagires. Todo o bando havia desfeito o acampamento e desaparecido, levando os apetrechos, os cavalos e as provisões. Ao seu lado havia duas sacolas de pele de cabra, cheias d'água. Seus companheiros nada mais haviam deixado, além das sacolas d'água, sua malha de aço e a capa, assim como sua pesada espada.

Conan tornou a cair de joelhos e puxou o cordão de uma das sacolas d'água. Erguendo o recipiente com o líquido morno sobre a cabeça, lavou da boca o gosto ruim que sentia e bebeu um pouco, tornando a fechar a sacola antes de saciar por completo a tremenda sede que o consumia. Embora tivesse vontade de derramar toda a água sobre a cabeça que latejava, sua razão falou mais alto. Se ele se perdesse naquela vastidão deserta, cada gota seria necessária para garantir sua sobrevivência.

Apesar da dor de cabeça e de ainda estar confuso, ele começava a perceber o que tinha acontecido. Seus companheiros zuagires tinham mais medo daquele lugar do que ele fora capaz de imaginar, apesar das advertências de Gomer. Ele cometera um erro muito sério — talvez até fatal: tinha subestimado o poder da superstição sobre aqueles guerreiros do deserto, e confiado demais no seu poder de controlá-los e dominá-los. Com um gemido surdo, Conan amaldiçoou seu próprio orgulho, sua arrogância e teimosia. Se não mudasse de atitude, acabaria encontrando o caminho da morte.

E talvez o seu dia tivesse chegado. Lenta e dolorosamente, ele procurou examinar melhor a sua situação. Suas chances não pareciam ser boas. Tinha água suficiente para um par de dias, se fizesse bastante economia. Talvez até três, se corresse o risco de enlouquecer, limitando ainda mais o consumo. Não tinha comida e nem montaria, o que significava que teria de tentar sair dali andando.

Pois bem, ele ia caminhar. Mas, para onde? A resposta mais óbvia era: para o lugar de onde tinha vindo. No entanto, havia vários argumentos contrários a isso. O mais eloquente de todos referia-se à distância. Com o bando ele havia cavalgado dois dias inteiros, depois de terem deixado o último bebedouro que encontraram. Um homem a pé conseguiria viajar, no máximo, à metade da velocidade de um cavalo. Portanto, como seu suprimento de água estava estimado em dois dias, se ele voltasse pelo mesmo caminho teria de caminhar dois dias inteiros sem água nenhuma...

Conan esfregou o queixo, pensativo, tentando esquecer a cabeça que latejava de dor e procurando raciocinar com clareza. Voltar pelo caminho de onde viera não era uma boa idéia, pois ele sabia que não encontraria água antes de caminhar durante quatro dias.

Ele olhou para a frente, onde a trilha do fugitivo Vardanes se estendia em linha reta para o horizonte.

Talvez pudesse continuar seguindo a pista do zamoriano. Embora a trilha levasse a um território desconhecido, ele tinha a seu favor o próprio fato de tratar-se de um lugar desconhecido. Talvez houvesse um oásis logo depois das primeiras dunas. Era muito difícil chegar a uma conclusão sensata naquelas circunstâncias, mas Conan decidiu seguir aquele que lhe parecia o melhor caminho. Vestindo a capa branca sobre a malha protetora de aço, colocou a espada sobre o ombro e caminhou pela trilha de Vardanes, com as duas sacolas de água nas costas.

O sol permanecia dependurado no céu, que mais parecia uma fornalha metálica. Ardia como um olho em brasa na cabeça de um colossal ciclope, fixo sobre a pequenina e lenta figura que marchava penosamente pela superfície quente das areias vermelhas. Demorou uma eternidade para que o sol da tarde começasse a baixar pela vasta e vazia curva do céu, a caminho da morte na ardente pira funerária do ocidente. Então a noite anunciou-se através das asas sombrias projetadas sobre a abóbada celeste, e um rastro abençoado de frescor espalhou-se por sobre as dunas, em meio às longas sombras e sob os efeitos de uma brisa leve.

A essa altura os músculos das pernas de Conan já haviam ultrapassado os umbrais da dor. A fadiga tinha-se encarregado de amortecê-los e o cimério praticamente tombava para a frente, sobre membros que mais pareciam colunas de pedra animadas por algum tipo de feitiçaria. Sua grande cabeça ia curvada sobre o peito musculoso. Ele caminhava devagar, de modo quase mecânico, precisando descansar, mas movido pela certeza de que, no frescor da noite, ele conseguiria percorrer uma distância bem maior, com menos dor e sofrimento.

Sua garganta estava cheia de poeira. O rosto tinha sido coberto pelo pó vermelho, como uma máscara feita de areia do deserto. Tinha bebido uns bons goles uma hora antes, e só voltaria a beber quando a noite se tornasse tão escura a ponto de impedi-lo de continuar seguindo a trilha de Vardanes.

Naquela noite, os seus sonhos foram muitos e confusos, cheios de figuras típicas dos pesadelos, muitas delas com um único olho debaixo de sobrancelhas bestiais, que atacavam o seu corpo nu com correntes incandescentes.

Quando ele acordou, viu que o sol já ia alto no céu e que tinha outro dia quente pela frente. Levantar-se foi uma verdadeira agonia. Todos os músculos do corpo latejavam como se ele tivesse milhares de agulhas enfiadas na carne. Mas levantou-se para tomar um pequeno gole d'água e continuar sua jornada.

Logo depois ele perdia a noção do tempo. Mas a incansável máquina de sua determinação o empurrava para a frente, passo após passo cambaleante e indeciso. Sua mente vagava pelos caminhos desconhecidos do delírio. Apesar disso, ele ainda tinha claras na mente três idéias fixas: seguir a trilha deixada pelo cavalo de Vardanes, economizar o máximo possível de água e permanecer de pé. Se caísse uma única vez, sabia que não conseguiria levantar-se de novo. E, se tombasse debaixo daquele sol abrasador, seus ossos acabariam secando para permanecer naquela vastidão avermelhada durante anos e anos a fio.

 

 

4) A Rainha Imortal

 

Vardanes de Zamora parou no cume de uma das colinas e voltou-se para olhar uma coisa tão estranha que o deixou boquiaberto. Durante cinco dias, desde que a emboscada contra os zuagires tinha-se voltado contra os turanianos, ele cavalgara como louco, jamais se arriscando a parar mais do que uma hora ou duas para descansar e permitir que sua égua recuperasse o fôlego. Estava tomado de um terror tão grande que já nem se sentia mais homem. E isso o levava a continuar fugindo.

Ele sabia muito bem como poderia ser a vingança dos bandidos do deserto. Sua imaginação estava cheia de cenas horripilantes, mostrando o que os inflexíveis vingadores poderiam fazer com seu corpo se conseguissem deitar as mãos sobre ele.

Assim, quando vira fracassar a emboscada, disparara a montaria e galopara direto para o deserto. Ele sabia que o demônio chamado Conan arrancaria o nome do traidor dos lábios de Boghra Khan e viria urrando na sua trilha, com o seu bando de zuagires sangüinários. E não abandonaria facilmente a perseguição contra o traidor.

Sua única chance de escapar estava na fuga pela vastidão de Shan-e-Sorkh, onde seu rastro seria quase impossível de seguir. Embora Vardanes fosse um zamoriano criado na cidade, homem de cultura e sofisticação, a sorte o havia lançado no meio dos bandidos do deserto. E ele os conhecia muito bem. Sabia do temor que sentiam em relação ao Deserto Vermelho, e de que pensavam existir ali todos os tipos de monstros e demônios jamais imaginados. Mas não sabia e nem lhe interessava saber por que os bandidos do deserto temiam tanto o Deserto Vermelho. O importante era que seu medo os impediria de segui-lo para dentro do mortífero deserto.

Mas o bando não tinha desistido da perseguição. Sua vantagem era tão pequena que, dia após dia, ele conseguia ver as nuvens de poeira levantadas pelos cavaleiros zuagires que vinham na sua pista. Vardanes apressava-se o máximo que podia, comendo e bebendo sem descer do cavalo, abusando da montaria até levar a égua à beira da exaustão total, na tentativa de aumentar sua vantagem sobre os perseguidores.

Depois de cinco dias, ele não sabia se o bando permanecia no seu encalço. E logo isso nem iria importar mais. Ele já não tinha mais comida nem água para si mesmo ou para a égua, e só continuava rugindo na esperança de encontrar alguma fonte, naquela vastidão sem fim.

O animal que o levava, coberto por uma espessa camada de poeira e suor, cambaleava para a frente como se fosse uma criatura sem vida, impulsionada pela vontade de algum feiticeiro. E estava bem perto da morte. Nada menos do que sete vezes, naquele dia, a égua caíra pelo caminho, e apenas o chicote de Vardanes a tinha feito levantar e continuar andando. Como ela já não conseguia suportar o peso do traidor, ele andava na frente, puxando a égua pelas rédeas.

O Deserto Vermelho tinha cobrado um enorme tributo do próprio Vardanes. Ele, que pouco tempo antes tinha sido um jovem bonito e sorridente, como um deus, não passava agora de uma figura magra, esquelética, queimada pelo sol. Os olhos vermelhos estavam no fundo do rosto fino e pegajoso. Através dos lábios rachados e secos, ele repetia preces mecânicas a Ishtar, a Set, a Mitra e a uma série de outras divindades. Quando ele e sua trémula montaria conseguiram chegar ao topo de outra duna, Vardanes olhou para baixo e viu um vale verdejante, cheio de palmeiras e tamareiras.

No centro desse fértil vale havia uma pequena cidade cercada por uma muralha de pedras. Cúpulas salientes e torres de vigia erguiam-se sobre um paredão de estuque, onde se podia ver uma enorme porta de madeira, cujas ferragens de bronze polido refletiam a luz intensa do sol.

Uma cidade no meio daquela vastidão escaldante? Um fértil vale cheio de árvores verdes e frescas, nascendo da grama macia e cercadas de límpidas lagoas, no meio daquela vastidão desolada? Impossível!

Vardanes estremeceu, fechou os olhos e lambeu os lábios rachados. Devia ser uma miragem, ou uma fantasia criada por sua mente desordenada! No entanto, veio-lhe à mente um fragmento de conhecimentos quase esquecidos, adquiridos nos seus anos de estudo durante a juventude, muito tempo atrás. Ele se lembrou de um trecho de uma lenda chamada Akhlat, a Amaldiçoada.

Procurou lembrar-se de toda a lenda. Tinha lido a respeito no antigo livro estígio, que seu tutor shemita mantinha trancado em um baú de sândalo. Ainda na sua juventude, Vardanes tinha sido abençoado ou amaldiçoado com a avidez, a curiosidade e a agilidade das mãos. Numa noite escura ele conseguira arrombar o cadeado do baú e tinha lido com temor e repugnância pelas assustadoras páginas daquela obscura coletânea de necromancia primitiva. Manuscrito por mãos trêmulas, sobre páginas de pergaminho amarelado, o texto descrevia estranhos rituais e cerimônias. Havia uma infinidade de hieróglifos indecifráveis, usados em antigos reinos de feitiçaria e maldade, como Acheron e Lemúria, os quais tinham florescido e desaparecido no começo dos tempos.

Entre as páginas cheias de símbolos encontravam-se fragmentos de algum tipo de liturgia obscura, destinada a convocar demônios imortais dos reinos das trevas, além das estrelas, de dentro do caos que os magos primitivos diziam predominar do outro lado das fronteiras do cosmos. Uma dessas liturgias continha misteriosas referências à “amaldiçoada e assombrada Akhlat no Deserto Vermelho, onde poderosos feiticeiros do passado convocavam para a esfera terrestre um Demônio do Além, para seu interminável sofrimento... Akhlat, onde o Imortal reina com mão de terror até os dias de hoje...

Condenada, amaldiçoada Akhlat, que os próprios deuses rejeitaram, transformando todo o território ao seu redor em uma vastidão abrasadora...”

Vardanes permanecia sentado na areia, à frente da égua ofegante, quando os guerreiros de expressões severas o agarraram e fizeram descer das colinas que circundavam a cidade, para o vale jardinado de tamareiras e lagoas de águas límpidas, para as portas de Akhlat, a Amaldiçoada.

 

 

5) A Mão de Zillah

 

Conan levantou-se devagar, mas dessa vez foi diferente. Antes, o seu despertar tinha sido doloroso, era difícil abrir os olhos pegajosos para olhar pela claridade intensa do sol abrasador, erguendo-se devagar para cambalear para a frente, sobre as areias escaldantes.

Desta vez ele acordou com facilidade, com uma sensação alegre de satisfação e conforto. Travesseiros de seda davam apoio à sua cabeça. Toldos espessos com franjas dependuradas impediam o sol de continuar queimando seu corpo, que estava limpo e nu, exceto por uma tanga de linho branco.

Com um salto ele acordou de uma vez, como um animal cuja sobrevivência nas selvas depende dessa habilidade. Olhou ao redor, mal acreditando no que via. Seu primeiro pensamento foi que a morte o havia finalmente levado, e seu espírito tinha sido transportado para além das nuvens de algum tipo de paraíso pós-morte.

Ao lado do sofá de seda onde estava havia uma jarra de prata, cheia de água límpida e fresca.

Instantes depois, Conan levantava o rosto molhado de dentro da jarra sabendo que, fosse qual fosse o paraíso em que se encontrava, era um lugar real e físico. Ele bebera bastante, embora a condição em que se encontravam sua garganta e sua boca indicasse que ele não sofria mais os efeitos da ardente sede que enfrentara em sua jornada pelo deserto. Talvez tivesse sido encontrado pelos integrantes de alguma caravana, que o teriam trazido para aquelas barracas, para ser curado e socorrido. Examinando seu próprio corpo Conan viu que havia sido banhado e limpo da poeira do deserto, e que alguém passara uma pomada medicinal em seu tronco e membros. Fossem quem fossem os seus salvadores, tinham-no alimentado e cuidado muito bem dele, enquanto dormia e delirava a caminho da recuperação.

Ele olhou em volta, por toda a barraca. Sua espada estava sobre um grande baú de madeira de ébano. Caminhou em silêncio na direção da arma, quase como um grande gato selvagem... mas parou de repente, ao ouvir o tilintar de uma armadura, logo atrás de si.

No entanto, aquele som musical não vinha da armadura de um guerreiro, mas de uma garota magra, de grandes olhos de gazela, que acabara de entrar na barraca e o olhava curiosa para ele. Seus cabelos negros e brilhantes caíam livres até à cintura, e pequenos sinos de prata estavam amarrados às pontas. Desses sinos viera o barulho que Conan tinha ouvido.

O cimério examinou a garota com um olhar rápido: era jovem, pouco mais do que uma chança, delgada e muito bonita, com um corpo pálido que reluzia de modo atraente, através das vestes transparentes. Havia jóias brilhando em suas mãos delicadas e muito brancas. Pela faixa dourada que trazia na testa e a expressão dos seus olhos grandes e escuros, Conan adivinhou que devia ser de uma raça semelhante aos shemitas.

— Óhhh! — gritou ela. — Você ainda está fraco demais para ficar de pé! Deve descansar mais para recuperar toda a sua força.

O idioma que ela falava era um dialeto shemita, cheio de formas arcaicas mas muito próximo do shemita que Conan conhecia. Portanto, ele entendeu tudo o que ela disse.

— Nada disso, mocinha. Já estou recuperado, — respondeu ele, na mesma língua. — Foi você quem cuidou de mim aqui? Quanto tempo faz que me encontraram?

— Não, estranho senhor. Foi meu pai. Sou Zillah, filha de Enosh, um lorde de Akhlat, a Amaldiçoada. Encontramos o seu corpo no meio das areias eternas do Deserto, há três dias — respondeu ela, com os olhos quase escondidos atrás dos longos cílios negros.

O único pensamento de Conan foi para a bela visão que tinha diante dos olhos. Fazia semanas que não via mulher alguma, e ele perdeu um bom tempo estudando os contornos arredondados daquele corpo delgado, mal coberto pelos véus de seda transparente. O rosto dela ficou corado de um momento para o outro.

— Então foram as suas lindas mãos que cuidaram de mim, Zillah? — perguntou ele. — Meus melhores agradecimentos a você e ao seu pai por sua misericórdia. Pode estar certa de que cheguei bem perto da morte. Como foi que me encontraram?

Conan esforçou-se e não conseguiu lembrar seja ouvira falar de uma cidade chamada Akhlat, a Amaldiçoada, embora achasse que conhecia todas as cidades dos desertos meridionais, pela fama ou por tê-las de fato visitado.

— Não foi por acaso, eu garanto. Nós viemos ao deserto à sua procura, — disse Zillah. Conan franziu as sobrancelhas, e seus nervos se retesaram ao pressentir perigo. Algo no súbito endurecimento de seu rosto severo e impassível dizia à garota que aquele era um homem dominado por violentas e volúveis paixões animais, uma pessoa perigosa, diferente dos gentis e delicados cavalheiros da cidade, que ela havia conhecido.

— Não queremos lhe fazer mal — insistiu ela, defensivamente. — Por favor, siga-me e meu pai lhe dará todas as explicações.

Por um instante Conan ficou parado, tenso, tentando adivinhar se Vardanes tinha mandado aquela gente atrás dele. A prata com que ele se vendera aos turanianos sem dúvida era suficiente para comprar as almas de meia centena de shemitas.

Mas seus nervos acabaram relaxando, quando Conan dominou o ardente desejo que nascia dentro de seu peito. Ele apanhou a espada e apoiou a bainha no ombro.

— Então, leve-me a esse tal de Enosh, garota, — disse ele calmamente. — Eu quero ouvir o que ele tem para me contar.

A jovem saiu na frente dele. Conan ergueu os ombros nus e a acompanhou.

 

 

6) A Coisa do Além

 

Enosh estava examinando com cuidado um velho e amarelado pergaminho, sentado em uma cadeira de madeira negra, quando Zillah chegou, trazendo Conan à sua presença. Aquela parte da barraca estava enfeitada com panos roxos. Espessos tapetes abafavam o ruído de seus passos. Um espelho negro, de uma forma bastante estranha, repousava sobre um pedestal espiral, formado de serpentes de bronze polido. As chamas de lanternas fantasmagóricas tremiam naquele lugar escuro.

Enosh levantou-se e cumprimentou Conan, usando de um palavreado bastante educado. Era um homem alto, de idade avançada, magro, mas de corpo ereto. Tinha a cabeça coberta por um turbante de linho branco, e estampava no rosto a idade e as rugas da sabedoria. Seus olhos escuros tinham um brilho de tristeza primitiva.

Pediu ao convidado que se sentasse e ordenou que Zillah lhes servisse vinho. Depois de todas as formalidades, Conan perguntou abruptamente:

— Como foi que conseguiu me encontrar, senhor?

Enosh olhou para o espelho negro e respondeu:

— Embora eu não seja um mago, meu filho, posso me valer de certos meios um tanto sobrenaturais.

— Como estavam a minha procura sem me conhecerem?

Enosh ergueu a mão magra, de veias ressaltadas, procurando acalmar o suspeito guerreiro.

— Paciência, meu jovem amigo, e explicarei tudo, — disse ele, com uma voz baixa e profunda. Estendendo a mão para um pequeno barril que havia ao seu lado, depositou ali o pergaminho que segurava e aceitou uma taça de prata com vinho. Quando os dois terminaram de beber, o velho começou a contar: — Muito tempo atras um astuto feiticeiro desta terra de Akhlat planejou um golpe contra a antiga dinastia que tinha governado este lugar desde o desaparecimento da Atlântida. Usando de muita esperteza, ele fez o povo acreditar que o monarca, um homem fraco e cheio de vaidade, era seu inimigo. O povo rebelou-se e derrubou o vaidoso rei. Mostrando-se como sacerdote e profeta dos Deuses Desconhecidos, o feiticeiro dizia-se inspirado pelas divindades. Declarou que um dos deuses logo desceria à terra para reinar em pessoa sobre Akhlat, a Sagrada, como a cidade era então conhecida.

Conan resmungou:

— Parece que vocês, de Akhlat, são tão ingênuos como todas as nações que eu conheço.

O idoso sorriu e disse:

— É muito fácil acreditar naquilo que pensamos ser a verdade. Mas o plano arquitetado por aquele feiticeiro negro era mais terrível do que qualquer pessoa poderia imaginar. Através de profanos rituais ele invocou para este plano da existência uma mulher-demônio do além, para servir como deusa para o povo. Conservando o seu poder de feiticeiro sobre esse ser, ele apresentou-se como intérprete dos seus divinos desejos. Tomado de surpresa, o povo de Akhlat logo se viu dominado por uma tirania muito pior do que aquela exercida pela antiga dinastia, que havia sido derrubada do trono.

Conan mostrou um sorriso maldoso. E disse:

— Muitas vezes eu vi que as revoluções em geral produzem governos bem piores do que aqueles contra os quais se levantam.

— Talvez. De qualquer forma, aqui foi assim. E, com o passar do tempo, as coisas foram ficando ainda piores, porque o feiticeiro acabou perdendo o controle sobre a criatura demoníaca que havia invocado do além. O espírito do mal o destruiu e passou a governar sozinho este lugar. E ainda o está governando... - concluiu o velhinho.

Conan retrucou:

— Quer dizer que a criatura é imortal? Há quanto tempo foi que isso tudo aconteceu?

— Passou mais tempo do que a soma de todos os grãos de areia desta vastidão, — disse Enosh. — E a deusa continua reinando suprema sobre a infeliz Akhlat. O segredo dos seus poderes é tal que ela consegue sugar a força vital das demais criaturas. Tudo o que vemos ao nosso redor era uma terra verdejante e cheia de vida, com palmeiras e tamareiras ao longo dos rios e das colinas, cuja relva alta sustentava enormes manadas. Sua sede pela vida alheia tornou a terra seca e inóspita, exceto pelo vale onde se encontra a cidade de Akhlat. Ela decidiu manter esta área na sua condição original porque, sem ter nada vivo por perto para poder sugar e explorar, ela não conseguiria manter-se neste plano da existência.

— Em nome de Crom! — resmungou Conan, terminando sua taça de vinho.

Enosh continuou:

— Há vários séculos esta terra foi transformada no deserto estéril que você está vendo. Nossos jovens são usados para saciar a lúgubre sede da deusa, assim como os animais de nossos rebanhos. Ela se alimenta deles sem cessar. A cada dia escolhe uma nova vítima, e a cada dia é uma pessoa ou um animal a menos que temos. Quando ela ataca, a vítima pode permanecer viva por alguns dias, ou até por mais de uma semana. Os mais fortes e corajosos chegam a resistir durante trinta dias antes que ela consiga exaurir toda a sua reserva de vida e atacar a próxima vítima.

Conan acariciou o cabo de sua espada.

— Em nome de Crom e de Mitra! Por que vocês ainda não acabaram com essa coisa?

O velho balançou a cabeça.

— Ela é invulnerável, impossível de matar. Sua carne é composta de matéria que atrai e mantém colada a si, por sua indômita vontade. Uma flecha ou uma espada talvez conseguisse ferir essa matéria, mas ela não demoraria mais de um segundo para reparar o ferimento. E a força vital que ela suga de outras pessoas, transformando-as em cascos vazios, lhe dá uma terrível força interior que permite reformar sua matéria exterior em uma firação de segundo.

— Então queimem essa maldita coisa! — grunhiu Conan. — Ateiem fogo ao palácio com ela dentro, ou então cortem-na em pedacinhos e ponham numa fogueira para queimar!

— Não. Ela usa como escudo os seus poderes negros de magia demoníaca. Sua arma transmite um tipo de paralisia sobre tudo em que fixa os olhos. Nada menos do que cem guerreiros foram uma vez mandados para dentro do seu Templo Negro, determinados a acabar com sua repugnante tirania. E nada restou deles a não ser um grupo de zumbis, os quais acabaram se transformando em um banquete humano para o insaciável monstro.

Conan mostrava-se irritado e nervoso.

— Acho inacreditável que vocês continuem vivendo nesta terra maldita! — resmungou o cimério. — Como é que essa horripilante criatura ainda não sugou a vida de todos os seres humanos deste vale desde que começou seu reinado de terror? E por que vocês ainda não juntaram suas coisas para fugir de uma vez deste lugar demoníaco?

— De fato, restam muito poucos de nós. Ela vai nos consumindo, e acabando com os nossos rebanhos com maior rapidez do que seria possível para o crescimento natural manter a vida neste lugar. Durante muito tempo a mulher-demônio satisfez os seus desejos sugando a existência dos vegetais que cresciam por toda parte, e não atacava as pessoas. Quando a terra tornou-se árida e sem vida, ela passou a se alimentar dos rebanhos e dos nossos escravos, chegando finalmente a atacar os próprios súditos deste reino. Em breve estaremos todos mortos, e Akhlat será apenas uma cidade fantasma. Não podemos abandonar estas terras, pois a força demoníaca da deusa nos mantém confinados dentro de um círculo, para além do qual não podemos escapar.

Conan balançou a cabeça, e a longa cabeleira esfregou sobre os ombros bronzeados.

— É uma história muito triste que você me conta, velho homem. Mas por que a está repetindo com tantos detalhes?

— Por causa de uma antiga profecia, — explicou Enosh calmamente, apanhando o velho e gasto pergaminho que colocara sobre o barril.

— Que profecia?

Enosh desenrolou parte do pergaminho e apontou para algumas linhas de uma escrita tão antiga que Conan não conseguia ler, embora tivesse bons conhecimentos do idioma shemita de sua própria época.

— A profecia de que, no final dos tempos, quando nosso fim estiver próximo, os Deuses Desconhecidos, de quem os nossos ancestrais se afastaram para adorar a muIher-demônio, abrandarão sua ira para nos mandar um libertador, que derrubará a deusa e destruirá o seu poder maldito. Você, Conan da Ciméria, é esse libertador...



7) O Salão dos Mortos-Vivos


Durante vários dias e noites, Vardanes esteve confinado numa cela úmida do calabouço localizado na parte inferior do Templo Negro de Akhlat. Ele gritava, implorava e chorava, amaldiçoava e orava, mas os guardas, de olhos parados, expressões frias e capacetes de bronze, não lhe davam atenção, exceto para fornecer-lhe comida e água para beber. Não respondiam suas perguntas e tampouco aceitavam suas ofertas de suborno, o que o deixara pasmado. Como zamoriano típico, Vardanes não conseguia imaginar que existissem homens desinteressados pela riqueza. Mas aqueles sujeitos estranhos, que falavam um dialeto muito antigo e usavam armaduras ultrapassadas, eram tão pouco ambiciosos, em relação à prata que ele ganhara dos turanianos como pagamento por sua traição, que nem ao menos tinham tentado roubar as sacolas cheias de dinheiro que ele havia deixado num canto da cela.

Mas tinham cuidado muito bem dele, banhando seu corpo magro e tratando de seus ferimentos com pomadas e bandagens. E a alimentação que serviam era suntuosa, com aves assadas, deliciosas frutas e carnes variadas. Até um excelente vinho lhe era dado para beber. Tendo conhecido outras masmorras no seu tempo, Vardanes considerava aquela a mais extraordinária de todas. Às vezes ficava imaginando se não o estariam engordando para algum sacrifício...

Então, um dia, os guardas vieram e o levaram de sua cela. Ele pensou que por fim haviam decidido levá-lo a comparecer perante um magistrado para responder a alguma acusação absurda. Sentiu-se confiante. Jamais conhecera um magistrado cuja misericórdia não pudesse ser comprada com a prata. E ele dispunha de prata suficiente nos gordos alforjes que carregava!

Mas, ao invés de ser levado ao magistrado ou juiz, Vardanes foi obrigado a passar por um corredor escuro e cheio de curvas até chegar a uma enorme porta de bronze coberto de bolor esverdeado, que mais parecia a porta do próprio inferno. O imenso portal tinha três cadeados e era reforçado com barras de ferro, suficientemente fortes para suportar o ataque de um exército. Com as mãos nervosas e expressões de tensão no rosto, os guardas tiraram as trancas da grande porta e empurraram Vardanes para dentro.

Quando a porta se fechou às suas costas, Vardanes descobriu que estava em um magnífico salão de mármore polido. Todo o aposento estava mergulhado numa escuridão avermelhada, coberto de poeira. Por toda parte havia amostras de deterioração bastante antiga, com objetos que pareciam há muito abandonados. Ele andou pelo salão, cheio de curiosidade.

Seria aquele lugar uma sala do trono, ou o transepto de algum templo colossal? Era difícil dizer. A coisa mais peculiar a respeito do vasto e sombrio salão, além do abandono em que parecia ter sido deixado muito tempo antes, era o estatuário que havia no piso, em grupos separados. Uma série enorme de complicadas perguntas tomou conta do cérebro confuso de Vardanes.

O primeiro mistério referia-se à substância de que tinham sido feitas as estátuas. Enquanto o salão tinha sido construído do mais liso mármore, as figuras eram de um tipo de pedra porosa, sem brilho e sem vida, que ele não conseguia identificar. Fosse qual fosse o material, nada tinha de atraente. Parecia cinza de madeira morta, embora fosse dura como pedra.

O segundo mistério dizia respeito à incrível arte do escultor desconhecido, cujas mãos dadivosas tinham produzido aquelas maravilhas artísticas. Eram muito semelhantes a pessoas, e mostravam uma inacreditável perfeição de detalhes: cada dobra das vestes parecia tecido verdadeiro; era possível distinguir cada fio de cabelo das figuras. Essa estonteante fidelidade estendia-se até à postura de cada estátua. Mas nenhum agrupamento heróico nem majestade monumental era visível naquelas imagens esculpidas em material de uma tonalidade cinzenta sem brilho, quase como o gesso. Estavam todas paradas, em poses humanas, às dezenas e às centenas. Estavam espalhadas por toda parte, sem qualquer ordem aparente. Haviam sido entalhadas para representar guerreiros e nobres, jovens rapazes e senhoras, velhos cavalheiros e mulheres senis, crianças sadias e até bebes de colo.

A única característica mais perturbadora, comum a todas aquelas figuras, era a expressão de insuportável terror que cada uma delas tinha no rosto.

Não demorou para Vardanes ouvir um leve ruído nas profundezas daquele palácio escuro. Era como o som de muitas vozes, mas tão fraco e distante que ele não conseguia entender as palavras. Era como um diapasão sobrenatural, soprado por aquela floresta de estátuas. Quando Vardanes se aproximou, conseguiu distinguir os grupos de sons que faziam parte do todo: eram soluços lentos, de cortar o coração, gemidos baixos e agonizantes, preces balbuciadas indistintamente, gargalhadas exageradas, monótonas e repetidas maldições. Os sons pareciam sair de meia centena de gargantas, mas o zamoriano não conseguia ver de onde vinham. Embora procurasse por toda parte, nada havia naquele lugar a não ser ele mesmo e milhares de estátuas.

O suor escorreu-lhe pela testa e desceu por seu rosto magro. O medo tomou conta de seu peito. Ele desejou com todas as forças de seu incrédulo coração que estivesse a milhares de léguas de distância daquele maldito templo, onde as vozes de seres invisíveis gemiam, soluçavam, murmuravam e riam horrorosamente.

Foi então que ele viu o trono dourado. Estava bem no meio do salão, e ficava acima das cabeças das estátuas. Os olhos de Vardanes encheram-se de cobiça pelo ouro. Ele abriu caminho pela floresta de figuras duras como pedras para chegar ao trono.

Havia alguma coisa estendida naquele rico trono. Talvez fosse a múmia enrugada de algum rei, morto muito tempo antes. As mãos enrugadas estavam cruzadas sobre o peito afundado. O corpo fino estava todo coberto por uma espécie de mortalha empoeirada, da garganta aos tornozelos. Sobre o rosto havia uma fina máscara de ouro forjado, moldando a expressão de uma mulher de beleza sobrenatural. Uma repentina onda de cobiça acelerou a respiração já ofegante de Vardanes. Ele esqueceu-se de seu medo quando viu, na testa daquela máscara de ouro, uma enorme safira negra, brilhando como um terceiro olho. Era uma pedra de beleza estonteante, digna de um príncipe.

Aos pés do trono, Vardanes mal conseguia controlar a enorme cobiça que sentia pela máscara de ouro. Os olhos tinham sido entalhados como se estivessem fechados, em um sono profundo. Doce e maravilhosa era a boca de lábios cheios daquele lindo rosto de ouro. A enorme safira negra parecia lançar faíscas brilhantes quando ele estendeu sua mão para agarrá-la.

Com os dedos trêmulos, o zamoriano puxou a máscara para si. Debaixo dela havia um rosto moreno e murcho. As faces tinham afundado e a pele era dura, seca como o couro. Vardanes sentiu um calafrio diante da maldosa expressão daquele rosto, que parecia a própria cara da morte.

Então, a múmia abriu os olhos para ele.

Com um grito ele cambaleou para trás, deixando a máscara cair sobre o piso de mármore polido. Os olhos cadavéricos daquela caveira fixaram-se nos dele. E a Coisa abriu seu terceiro olho...

 

 

8) A Face da Górgone


Conan abriu caminho pelo salão das estátuas cinzentas, com os pés descalços, espreitando pelas passagens cobertas de poeira como um grande gato selvagem. A luz fraca refletia na lâmina afiada da enorme espada que ele carregava no punho forte. Seus olhos viravam rápido de um lado para o outro, e os pêlos de sua nuca estavam arrepiados. Aquele lugar tinha o fedor da morte.

O cheiro do medo pairava no ar imóvel.

Como ele tinha permitido que o velho Enosh o convencesse a fazer uma loucura daquelas? Ele não era nenhum redentor, não podia ser um libertador predestinado, nem um santo mandado pelos deuses para salvar Akhlat da maldição eterna da mulher-demônio. Seu único propósito era a vingança.

Mas o velho sábio havia contado sua história com todos os detalhes, e sua eloquência tinha levado Conan a partir para a perigosa missão. Enosh havia destacado dois fatos que tinham servido para convencer até o incrédulo bárbaro. Um deles era que, depois de ter entrado naquela terra, Conan também se havia transformado em prisioneiro da magia negra e não poderia partir enquanto a deusa não tivesse sido liquidada. O outro era que o traidor zamoríano tinha sido aprisionado no calabouço que havia debaixo do Templo Negro da deusa, e que logo seria levado à mesma morte que, se não fosse evitada, acabaria destruindo todos eles.

Assim, Conan entrara por uma série de secretas passagens subterrâneas que Enosh lhe mostrara. Tinha chegado ali por meio de uma porta escondida na parede daquele vasto e escuro salão, pois Enosh sabia quando Vardanes estava destinado a ser levado perante a deusa.

Assim como o zamoriano, Conan ficara maravilhado diante do realismo das estátuas cinzentas. Mas, ao contrário de Vardanes, ele sabia a resposta para aquele enigma. O cimério desviou o olhar das expressões de horror que havia nos rostos duros como pedras, em todas aquelas figuras.

Ele também ouviu as lamentações e o choro. Quando se aproximou do centro do enorme salão, cujo teto era sustentado por grandes colunas, ouviu com maior clareza as vozes que soluçavam. Víu o trono dourado e a múmia ressecada que havia sobre ele, e rastejou silenciosamente na direção da reluzente poltrona.

Quando se aproximou, uma das estátuas falou com ele. O susto quase o fez perder o controle. Sua pele arrepiou-se e o suor lhe correu da testa.

Então ele viu a fonte daqueles gritos, e seu coração encheu-se de revolta, porque as pessoas que estavam ao redor do trono não estavam mortas. Eram como pedras

até o pescoço, mas as cabeças ainda tinham vida. Os olhos tristes viravam de um lado para o outro, no mais completo desespero, e dos lábios secos saíam preces implorando que ele enterrasse a pesada espada nos cérebros vivos de todos aqueles seres parcialmente petrificados.

Nesse momento Conan ouviu um grito, na voz conhecida de Vardanes. Teria a mulher-demônio acabado com seu inimigo antes que ele pudesse saciar sua sede de vingança? O cimérío deu um salto e colocou-se ao lado do trono.

Ali, os seus olhos depararam com uma terrível visão. Vardanes estava em pé diante do trono, com os olhos arregalados e os lábios falando sem controle. A atenção de Conan foi atraída pelo barulho de pedra esfregando contra pedra. Ele olhou para as pernas de Vardanes. No ponto em que os pés do zamoriano tocavam o chão, uma palidez cinzenta ia tomando conta deles. A carne quente ia secando diante dos olhos de Conan. A maré cinzenta já chegara aos joelhos de Vardanes. Enquanto Conan observava, a parte de cima das pernas começava a tornar-se dura e branca como pedra. Vardanes tentava andar, mas não conseguia. Sua voz transformou-se em um grito estridente, enquanto seus olhos se fixavam em Conan, com a expressão apavorada de um animal preso numa armadilha.

A coisa sentada no trono emitia uma gargalhada baixa, que mais parecia um cacarejo. Enquanto Conan observava, a carne morta e ressecada sobre os braços esqueléticos e a garganta enrugada ia inchando è a pele tornava-se lisa. Até a cor mudava, do marrom escuro da morte para os tons róseos da vida intensa. A cada sugada de energia vital que a Górgone puxava do corpo de Vardanes, mais o seu próprio corpo adquiria vida e aparência saudável.

— Crom e Mitra! — gritou Conan.

Com todos os átomos de sua mente concentrados no zamoriano já meio-petrificado, a Górgone não deu atenção a Conan. Agora todo o seu corpo se enchia de vida. Ela florescia, tornava-se exuberante. As curvas macias dos quadris e das coxas esticaram a mortalha sem brilho. Seus seios de mulher incharam, puxando o pano fino. Ela estendeu os braços firmes e plenos de juventude. Sua boca corada e úmida abriu-se em mais uma onda de gargalhada, que agora era o riso musical de uma mulher muito atraente.

A onda de petrificação já chegara à cintura de Vardanes. Conan não sabia se ela iria permitir que Vardanes permanecesse semi-petrificado como os outros, que circundavam o trono, ou se lhe sugaria a essência vital até à morte. Afinal, o zamoriano era um homem ainda jovem e cheio de vida. Sua essência devia representar uma iguaria para a deusa vampira.

Quando a onda de petrificação alcançou o peito ofegante do zamoriano, ele soltou outro grito — o som mais horrível que Conan jamais ouvira sair de lábios humanos. A reação do cimério foi instintiva. Como uma pantera no ataque, ele saltou do lugar onde estava escondido, atrás do trono. A luz refletiu sobre a lâmina de sua espada quando ele a ergueu no ar. A cabeça de Vardanes levantou do seu tronco e caiu com um barulho surdo, sobre o piso de mármore.

Sacudido pelo impacto, o corpo tombou e caiu. Quando o corpo bateu no chão, Conan viu as pernas petrificadas racharem e quebrarem em pedaços. Os fragmentos espalharam-se, e o sangue escorreu pelas fendas na carne petrificada.

Assim morria Vardanes, o traidor. Nem o próprio Conan sabia dizer se o seu golpe tinha sido motivado pela sede de vingança, ou se fora resultado de um impulso de misericórdia, para pôr fim ao tormento de uma criatura indefesa.

Conan voltou-se para a mulher-demônio. Sem querer, ele instintivamente ergueu seus olhos para os dela.



9) O Terceiro Olho


O rosto dela era uma máscara de encanto inumano. Seus lábios macios e úmidos eram tão cheios e encarnados como fruta madura. Os cabelos negros e brilhantes tombavam sobre os ombros cor de pérola, desmanchando em ondas sedosas sobre os seios redondos e armados. Ela era a encarnação da própria beleza, exceto pela grande esfera negra que tinha entre as duas sobrancelhas.

O terceiro olho encontrou-se com o olhar de Conan e o prendeu de imediato. Essa esfera ovalada era maior do que qualquer órgão humano de visão. Não era dividida em pupila, íris e a parte branca, como os olhos humanos, mas era inteiramente negra. O olhar do cimério mergulhou ali, e ele se viu perdido em infinitos mares de escuridão. Sentiu-se arrebatado, e chegou a esquecer a espada que tinha na mão. O terceiro olho era tão negro como os mares privados de luz do espaço entre as estrelas.

Agora ele parecia estar à beira de um poço negro e sem fundo, dentro do qual acabou caindo. Para baixo, mais baixo, dentro da neblina negra ele caiu, num vasto e gelado abismo da mais profunda escuridão. Ele sabia que, se não afastasse imediatamente o olhar, acabaria ficando perdido para o mundo. Conan reuniu toda a sua força de vontade. As gotas de suor acumularam-se em suas sobrancelhas. Seus músculos contorciam-se como serpentes, debaixo de sua pele bronzeada. Seu peito forte subia e descia.

A Górgone deu uma gargalhada, um som baixo e melodioso, carregado de uma fria e cruel dose de zombaria. Conan sentiu o rosto arder, e o ódio tomou conta de seu peito.

Com uma explosão de decisão, ele afastou os olhos daquela grande esfera negra, e notou que estava olhando para o chão. Fraco e atordoado, ele cambaleou. Lutando para recuperar as forças e manter-se de pé, Conan examinou bem os seus pés. Graças a Crom eles ainda eram de carne e osso, e não de pedra fria! O longo instante em que ficara enfeitiçado pelo olhar da Górgone não passara de um breve momento, curto demais para que a onda de petrificação começasse a tomar conta de sua carne.

A Górgone tornou a gargalhar. Apesar de estar de cabeça baixa, Conan sentiu a força da vontade dela. Os músculos fortes de seu pescoço chegaram a inchar, no esforço sobre-humano que ele fazia para manter a cabeça baixa e o olhar afastado do terceiro olho da mulher-demônio.

Ele ainda olhava para o chão. Bem na sua frente, sobre o piso de mármore, estava a máscara de ouro com a enorme safira negra que representava o terceiro olho. De repente, Conan percebeu tudo.

Dessa vez, quando ele levantou o olhar, a enorme espada foi junto. A lâmina brilhante dividiu pelo meio o ar carregado de poeira e bateu com violência sobre o rosto cheio de zombaria, dividindo em duas metades o grande terceiro olho.

Ela não se moveu. Com os dois olhos normais, de uma beleza inacreditável, a mulher-demônio ficou olhando para o inflexível guerreiro, com a face branca e preta. Uma grande mudança tomou conta dela.

Do que restava do terceiro olho corria um líquido preto, que descia pelo rosto de perfeição inumana. Como lágrimas negras, as gotas espessas tombavam do órgão dilacerado.

Então ela começou a envelhecer. Enquanto o líquido escuro descia da esfera destruída, a essência da vida que a mulher-demônio havia sugado durante muito tempo também escorria do seu corpo. Sua pele foi escurecendo depressa e formando milhares de rugas. Dobras ressecadas formaram-se debaixo de seu queixo. Os olhos brilhantes transformaram-se em poças sem vida e desprovidas de brilho.

Os seios maravilhosos encolheram e caíram. Os membros bem torneados viraram pele e ossos. Durante um longo período de tempo a forma anã de uma mulher fraca e ressecada ocupou aquele trono. Então, a carne apodreceu em pedaços ressecados como papel, enquanto os ossos também deterioravam. O corpo desmontou, espalhando-se pelo piso em forma de milhares de fragmentos que, sob o olhar estarrecido de Conan, transformaram-se em poeira fina, sem cor nem brilho.

Um longo suspiro fez-se ouvir pelo salão. Houve um segundo de escuridão, como se a passagem de um par de asas gigantescas filtrasse a luz fraca. Então a mulher-demônio desapareceu e, com ela, o ar carregado daquela ameaça primitiva. O salão tornou-se apenas um velho e empoeirado aposento, destituído de qualquer terror sobrenatural.

As estátuas adormeceram para sempre, em sepulturas de pedra eterna. Com a passagem da Górgone para outra dimensão, todos os seus feitiços foram com ela, inclusive aqueles que mantinham os mortos-vivos ainda apegados a uma horrível condição de meia-vida. Conan afastou-se, deixando o trono vazio, com sua sujeira de pó e a estátua quebrada, sem cabeça, daquele que um dia fora um corajoso e alegre guerreiro zamoriano.

 

— Fique conosco, Conan! — implorou Zillah, com sua voz baixa e macia. — Temos muitos lugares de honra para um homem como você em Akhlat, agora que estamos livres da maldição.

Ele riu sem jeito, percebendo um tom mais pessoal na voz dela, além do desejo de uma boa cidadã em convocar um imigrante honrado para a causa da reconstrução cívica do seu reino. Diante do olhar quente e inquisitivo de Conan, ela ficou confusa e seu rostinho corou de vergonha.

Lorde Enosh acrescentou sua voz amiga aos pedidos da filha. A vitória de Conan sobre a mulher-demônio fizera com que o velhote adquirisse nova força e vigor. Agora tinha uma postura de orgulho, queixo erguido e firmeza no andar, além de uma voz muito mais segura do que antes. Aproveitou para oferecer riqueza, honras e posição social ao cimério, junto com um cargo de poder na cidade renascida. Enosh chegou a dar a entender que não seria contrário à idéia de ter Conan como seu genro.

Mas, sabendo que não se adaptaria muito facilmente à vida calma e respeitosa que eles pretendiam lhe dar, Conan recusou todas as ofertas. As frases educadas não nasciam prontas na boca de uma pessoa como ele, que passara tantos anos nos campos de batalha, em bebedeiras com os amigos e nas alegres casas de prostituição de muitas cidades. Mas, com a maior educação que lhe permitia sua natureza áspera e bárbara, ele agradeceu as propostas que lhe eram feitas.

— Não, meus amigos. Não são para Conan, da Ciméria, as tarefas da paz. Eu não demoraria a me cansar de tudo e, quando fico chateado, são poucas as coisas que me podem curar: ficar bêbado, arrumar briga, ou fugir com alguma garota. Que tipo de cidadão seria eu, numa cidade que agora procura a paz e a tranquilidade para recuperar seu poder e sua força?

— Então, para onde pretende ir, ó Conan, agora que as barreiras da magia estão desfeitas? — perguntou Enosh.

Conan encolheu os ombros, passou a mão pela cabeleira negra e deu uma risada.

— Por Crom, meu bom senhor, eu não sei! Para minha sorte, os servos da deusa alimentaram e deram de beber à montaria de Vardanes. Pelo que vejo, em Akhlat não há cavalos, mas apenas jumentos, e um sujeito grandão e desajeitado como eu não gostaria de sair como um bobo, montado num jumentinho mole e dorminhoco como esses, com os pés arrastando pela areia! Acho que vou cavalgar na direção sudeste, para alguma cidade onde eu nunca estive.

— Mas não precisa partir daqui como um mendigo! — protestou Enosh. — Nós lhe devemos tanto! Permita que lhe ofereçamos um pouco de ouro e prata como pagamento pelos favores que nos prestou.

Conan balançou a cabeça.

— Conserve os tesouros da cidade, meu sábio amigo. Akhlat não é uma rica metrópole, e vocês vão precisar de cada grama de ouro quando os mercadores das caravanas começarem a chegar de novo, vindo do Deserto Vermelho. Agora, que minhas sacolas de água estão cheias e tenho suficientes provisões, estou pronto para partir. Desta vez, minha viagem através de Shan-e-Sorkh será feita com bastante conforto.

Com um último e rápido adeus, ele saltou para a sela e galopou para fora do vale.

Os outros ficaram olhando, Enosh orgulhoso, mas Zillah com lágrimas caindo pelo rosto. Logo o cavaleiro desaparecia de vista.

Quando chegou ao topo das dunas, Conan parou a grande égua preta. Talvez fosse loucura de sua parte não ter aceito o pequeno tesouro que lhe tinham oferecido. Mas ainda havia muita prata nos alforjes de Vardanes, que ele tocou uma vez mais. Então, Conan sorriu. Por que brigar como um mercador sujo, por causa de um par de moedas a mais ou a menos? Um homem sente-se bem, de vez em quando, ao externar as suas virtudes. Até mesmo um cimério!



FIM




Fonte: Conan – Espada e Magia #4 (janeiro de 1996).


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