Presa e Caçador

 


PRESA E CAÇADOR

Ricardo R. Gallio

Copyright © 2022

Ricardo R. Gallio

Todos os direitos reservados. Fica proibida a reprodução da obra, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a expressa autorização do seu autor.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Capa: R.R. Baptista


I

Anderlac era um caçador desde criança. Amarus, seu pai, o ensinou como encontrar e matar qualquer tipo de animal. Inclusive o animal humano. Dessa forma persistia aquele povo selvagem.

A aldeia de Anderlac era próxima à divisa com a Britúnia; e a nação onde nasceu e cresceu, o Reino da Fronteira, ficava aos pés de uma cadeia de montanhas, rodeada por grandes pântanos e rios caudalosos, e com clima frio e nublado. A natureza não era favorável à agricultura, mas propiciava encontrar diversos tipos de animais, que forneciam carne, peles e até substâncias medicinais. A vida era farta para quem tinha as habilidades necessárias.

E, as tribos não matavam apenas para caçar e se alimentar. Por várias gerações a ameaça dos enormes macacos cinzentos exigiu a união do povo para evitar a destruição das aldeias pelos monstros vindos da floresta densa. Isso foi em um tempo passado, muito antes de Amarus. Mas o pai contava as lendas para o menino conhecer as tradições dos antepassados. Em sua infância Anderlac sonhava encontrar um desses monstros mitológicos, mas isso nunca aconteceu. Porém, se alguém pudesse matar um macaco cinzento, uma besta com a altura de mais de um homem e meio, além de bem mais forte e pesado, esse era Anderlac, ou assim ele pensava.

Mas, enquanto crescia, sempre esteve muito ocupado caçando por carne e peles. Seu povo não travava guerras e tinha boas relações com os vizinhos cimérios, nemédios e britunianos. Então, as energias do jovem caçador tinham outro alvo. Anderlac possuía a chama da competição dentro de si e usava todas as oportunidades para provar como era melhor em algo. Sempre apostando, sempre fazendo loucuras, sempre se esforçando ao máximo para ser o melhor entre todos ao seu redor.

Anderlac não tinha uma índole perversa, mas também não possuía um caráter ilibado. Era apenas um rapaz de moral dúbia em tempos cinzentos. A terra selvagem onde cresceu não permitia atos de piedade, nem fraqueza ou dúvida. Ao enfrentar feras como ursos, lobos e felinos gigantes, não havia tempo para ponderações. Era uma questão de matar ou morrer.

Feras reais e lendárias cercavam sua imaginação, mas desde cedo o menino aprendeu com seu pai: o animal mais perigoso era o homem, por sua inteligência e habilidades, mas principalmente por sua crueldadeUm homem poderia matar outro por cobiça, por ódio, por egoísmo ou qualquer outro motivo vulgar. O ser humano era o adversário mais difícil que um caçador poderia enfrentar. Amarus ensinou seu filho como seguir rastros sutis, como montar armadilhas eficientes e quando fosse necessário, como matar um homem com rapidez.

O pai também lhe orientou: caçar e matar um homem só se justificava em caso de ameaça à sua vida ou de sua família, ou para vingar uma injúria. Matar animais era uma prática para suprir necessidades. Matar pessoas tinha uma motivação diferente, pedindo por mais ponderação. Mas, no futuro essa habilidade traria muito reconhecimento para o então garoto.

Anderlac era filho único, e vivia em um pequeno povoado com seu pai e mãe, junto a mais algumas dezenas de famílias. Era uma aldeia de caçadores e nesse cenário, ele foi se destacando cada vez mais. Mesmo com tenra idade, tinha a sagacidade de capturar os animais mais arredios. Tinha boa visão e ótima pontaria com o arco e flecha, lhe permitindo alvejar aves em pleno voo. Era corajoso a ponto de enfrentar com uma lança, animais enormes, como o urso cinzento que vivia nas montanhas.

Com o tempo e a chegada da puberdade, adquiriu musculatura, até se tornar um dos homens mais fortes da vila. Era muito estimado pelos moradores, mas não se podia negar, também inspirava medo em alguns. Anderlac não se importava com nenhum dos dois sentimentos. Para os outros, caçar era uma habilidade necessária para sobreviver. Para ele, era um estilo de vida.

Nessa época o jovem caçador começou a mudar, não apenas fisicamente. Ele não possuía empatia, algo perceptível para sua família e outros mais próximos. Todos ao seu redor pareciam fracos e ineptos. Ninguém era tão bom quanto ele.

Seu pai sempre foi um homem humilde e até sábio, dentro dos padrões de uma sociedade sem nenhum tipo de instrução. Naquele lugar a inteligência era medida pela capacidade de ser bom em caçar, matar e prover a família. Por isso Amarus era um homem admirado, pois tinha todas essas qualidades, mas também era reflexivo e pensava nas coisas da vida, no comportamento humano e no certo e errado. Com o tempo, essas características o alçaram a líder da aldeia. Mas, mesmo aconselhando seu filho, Anderlac parecia ter se desvirtuado.

Amarus já tinha quarenta verões de vida e era considerado velho para Anderlac, com metade da idade. Na sua arrogância, o jovem pensava que poderia sobrepujar qualquer homem da vila, inclusive seu pai. Quando o patriarca repreendia o comportamento do filho, Anderlac o via como um homem no fim da vida, negando a velhice e sua posição de inferioridade frente ao mais novo e mais forte. Essa inimizade foi crescendo de forma insidiosa no leito da pequena família.

Anderlac tinha raiva, e começou a lutar com quem discordava dele, ou o confrontava. Em todas as vezes vencia as disputas. Seu comportamento começou a causar repúdio em toda a população. Mas, um dia as coisas mudaram e o caçador e a vila seguiram rumos distintos.
        — Filho, venha cá, precisamos conversar.

Anderlac sabia, o ar condescendente do pai indicava um sermão pela frente.
        — Soube da sua briga com Romulus. Posso saber o motivo?
        — Ele duvidou da minha pontaria. Disse que eu não podia acertar uma flecha em um peixe nadando no rio.
        — E a briga foi só por isso? Por um motivo tão fútil?
        — Quem é ele para duvidar de mim? Ele é forte, mas eu sou mais forte.
        — Filho, você quebrou o braço do homem. Como ele vai caçar? Como vai sustentar a família?
        — Ele deveria ter pensado nisso antes de me enfrentar.
        — Anderlac, já chega! Seu comportamento excedeu toda a boa vontade dos moradores da vila. E já passou dos limites do que eu poderia perdoar como pai…
        — Ah é, e agora? Vai me dar uma surra? Pode tentar!
        Nesse momento, ele assumiu uma postura defensiva e ergueu os punhos.
        — É isso mesmo? Meu filho quer lutar comigo?
        — Se quer me contrariar é isso que vai ter, velhote.
        A matriarca Lara, assistia tudo quieta. Porém, mesmo em uma sociedade dominada pelos homens não poderia deixar um filho se voltar contra o pai. Os elos da família eram muito importantes e aquela situação havia chegado a um extremo sombrio.
        — Filho, já basta. Não admito ver você falando assim com seu pai. Nem na minha frente e nem em lugar algum. Sempre lhe ensinamos a respeitar as pessoas. E exijo isso agora!

O jovem baixou os punhos. Não tinha mais respeito pelo pai, mas o mantinha pela mãe, e por ela nutria até mesmo admiração. Ela era forte e corajosa, mesmo sendo uma mulher, pensava ele.
        — Você tem uma chance de mudar. Vou lhe dar esse benefício. Peça desculpas a seu pai e a Romulus. E agora você vai caçar em dobro, para sustentar a família dele.

Por alguns instantes Anderlac baixou a cabeça e ponderou. Porém, seu temperamento era difícil de ser contido. Ele não suportaria pedir perdão, seria uma grande humilhação. A exigência da mãe, não poderia atender.
        — Eu não vou fazer nada disso.

Lara o fitou cheia de surpresa. Foi quando percebeu a chama ardendo nos olhos de seu filho e entendeu: ele não podia ser contido. Anderlac não iria se submeter a ninguém. Amarus permanecia sentado à mesa, em silêncio. Com muito pesar tomou uma decisão, drástica e definitiva como deveria ser, pois o bem de todos pendia na balança.
        — Filho, eu sinto muito em dizer isso, gostaria de não precisar, mas você não é mais bem-vindo nessa casa. Queria muito ver você construindo sua família e feliz, assim como sua mãe e eu. Mas um jovem com sua arrogância será um adulto ainda pior. Não vou permitir esse comportamento. É um insulto!

Anderlac permaneceu calado. Em seu íntimo já esperava por esse dia, quando os fracos não conseguiriam conviver com os fortes. Para ele nem valia a pena protestar. Aquela vida havia acabado. Precisava de desafios maiores, além de caçar animais para comer.
        
— Pois bem, assim será. Sairei dessa casa e também da vila. Vocês não podem me oferecer nada que eu não consiga conquistar sozinho.

Seu pai assumiu um olhar triste e sua mãe balançou a cabeça, decepcionada. Anderlac nem se dignou a encarar o pai. Olhou para sua mãe pela última vez e deu meia volta. Reuniu alguns pertences em seu aposento e saiu da casa em passos decididos. Lara e Amarus estavam vendo o filho pela última vez.

Minutos depois Anderlac deixava a vila montado em seu cavalo. Seus vizinhos olhavam a cena surpresos, mas também aliviados. O melhor caçador dali estava indo embora, assim como uma série de problemas, causados por ele.

II

Era tarde da noite na taverna Gamo Branco, norte da Britúnia, próximo à divisa com o Reino da Fronteira. O bar recebia, além dos bêbados usuais, um freguês que não estava ali apenas para beber. Próximo ao balcão, ele contava histórias para um grupo de ouvintes curiosos, e ao mesmo tempo desconfiados, sobre a veracidade das façanhas relatadas.
        — Então eu acertei uma flecha em um peixe no rio. Eu devia estar a uns vinte metros de distância e a água era escura.
        — Hahaha, de todas as suas histórias, essa é a mais incrível até agora. Mas, porque é impossível acreditar nela.
        — Você está me chamando de mentiroso?

Até aquele momento Anderlac contava sobre seus feitos alegremente, mas em um instante assumiu uma expressão de raiva. Ele continuava não admitindo ser confrontado. Principalmente quando duvidavam de sua habilidade de caçador. A risada havia partido de Oswin, um homem grande e forte como um touro, assim como Anderlac. Sua reação à pergunta do caçador foi uma cara fechada.

        — Se não quer ser chamado de mentiroso, não deveria inventar histórias.
        — Quando era adolescente matei um urso com as próprias mãos. Duvida disso também? Talvez eu possa te mostrar como fiz. Apesar de que um filhote de urso é maior do que você.
        — Olha aqui seu falastrão, já arrebentei a cabeça de muita gente por muito menos. Acho melhor você ir embora. É sua primeira e última chance.
        — E eu lhe dou a chance de se desculpar. Ou eu vou rachar a sua cabeça.

Os outros ouvintes se afastaram rapidamente da dupla, levando suas canecas. Nenhum deles queria se meter naquela encrenca. Oswin ergueu os punhos, pronto para surrar Anderlac. Mas, antes de pensar no primeiro golpe, foi atingido por um forte soco no meio do nariz. O sangue escorreu em profusão, empapando a barba de Oswin. Ele se limpou com o dorso da mão e agora, ainda mais enfurecido, partiu para cima do oponente. Anderlac desviou do soco e em seguida lhe acertou outro golpe duro, dessa vez nas costelas. O homem gemia se contorcendo. Quando se virou foi atingido novamente no rosto. Anderlac sentindo a vitória se aproximar, deixou o homem tentar lhe atingir. Anderlac esquivou-se de todos os golpes. Depois de um tempo, o adversário estava cansado e ofegante.
        — Chegou a hora de acabar com isso!

Sob os olhares atônitos dos presentes, Anderlac desferiu três golpes fortes, levando Oswin desacordado ao chão.
        — Alguém mais aqui duvida de minhas histórias? Vamos lá. Estou apenas me aquecendo.

Obviamente, ninguém respondeu à provocação e todos voltaram as atenções para suas bebidas. Todos menos um homem de capa, sentado em um canto do bar. Ele encarou Anderlac com firmeza. Seu olhar era sombrio e não parecia transparecer qualquer tipo de medo ou receio. Anderlac notou o homem e se dirigiu até ele.
        — Parece que você quer falar alguma coisa amigo. Pense bem antes de abrir a boca.

O homem permaneceu em silêncio, olhou para a mesa à sua frente e tomou um gole de cerveja. Anderlac ficou enfurecido por ter sido ignorado e tocou no ombro do outro a fim de lhe chamar a atenção. Porém, em um piscar de olhos o homem de capa segurou o pulso de Anderlac e o torceu com força e habilidade. O caçador soltou um gemido leve, mas permaneceu sem reação. Os bêbados nem mesmo olharam para a cena. Era o melhor a fazer.
        — Na verdade, se você tiver a gentileza de sentar à mesa comigo, tenho algo a lhe dizer. Será de seu interesse, eu garanto. Posso lhe soltar?

Anderlac concordou, afinal não parecia ter outra opção. Seu adversário sabia bem como conter alguém furioso. O homem de capa o libertou e com um gesto suave ofereceu uma cadeira. Os dois se encararam. Anderlac com uma fúria contida, pois nunca havia sido tratado daquela maneira, resolveu usar o mínimo de diplomacia que conhecia, para lidar com a situação. O homem misterioso o fitou com seus curiosos olhos azuis. Por fim, quebrou o silêncio.
        — Você é uma jóia bruta, eu diria. Muito potencial a ser explorado. Com o tempo e os recursos corretos.
        — Por Mitra, do que está falando? Quem é você?
        — Meu nome é Thudur e sou da guarda de elite do Rei Marham
 da Britúnia.

Anderlac assumiu outra expressão. Somente um homem treinado na arte da guerra poderia tê-lo subjugado tão facilmente. Porém, sem demonstrar admiração, lhe perguntou de forma brusca.
        — E o que quer de mim?
        — Bem, vi que você luta bem. É forte e obviamente conta boas histórias…
        — É tudo verdade!
        — Eu não duvido disso. Boas histórias são boas para manter o humor. Analisando seus movimentos, sua agilidade, tenho certeza de sua capacidade de fazer tudo o que disse.

Anderlac desmanchou as rugas da testa. Finalmente estava sendo respeitado, como merecia, segundo seu conceito.
        — Está desperdiçando seu potencial em brigas de bar. Encararia alguns desafios maiores?
        — Como assim?
        — Você é um caçador nato. Matou de pequenos a grandes animais. Alguns deles capazes de despedaçar um homem sem esforço. Porém, já caçou o mais perigoso dos animais?
        — Está falando de outro homem? Meu pai me ensinou como fazer isso.
        — Mas nunca o fez de verdade, não é?

Anderlac hesitou em responder, pois Thudur presumira corretamente. Mas não queria passar a impressão de ser fraco, por nunca ter matado um homem.
        — Não precisa responder, já sei a resposta. Vou direto ao assunto, pois não gosto de rodeios. Como eu disse, você tem muito potencial. Gostaria de trabalhar para o rei da Britúnia? Obviamente, você vai receber um treinamento adequado e um bom pagamento.

Anderlac vivia de sua caça, desde a saída do vilarejo. Andou muitos dias e noites sem poder dormir em uma cama, ou poder beber algo além de água dos rios. Só conseguiu umas poucas moedas, em uma pequena vila, quando vendeu algumas peles de animais que havia caçado. Porém, eram migalhas e mal pagavam duas ou três cervejas e nenhuma cama de hospedaria. Além do desejo egocêntrico de ser reconhecido, Anderlac também queria algo além da vida simples e monótona da vila onde nasceu. Ele aspirava grandes feitos e fazer parte do exército de um rei poderia lhe proporcionar isso. Ponderou por alguns instantes antes de responder.
        — Eu aceito. Mas o que vou fazer exatamente?
        — Ah, meu jovem, em breve você saberá. Em breve.

III

        Os meses passavam lentamente em Bertália, região central da Britúnia, onde Anderlac recebia seu treinamento, de homens nem um pouco gentis ou piedosos. Assim, as tarefas do cotidiano se tornavam ainda mais estafantes. O exército do Rei Marham não era considerado um dos melhores da região à toa. O treinamento recebido por seus soldados era extremamente pesado. Atividades físicas, como carregar muito peso em longas marchas, desenvolviam os músculos. Escalar paredes treinava a agilidade. Lutas aprimoravam técnicas de combate. E essas eram apenas algumas das partes do treinamento. O objetivo era formar soldados de elite.

Mas o que propiciava mais satisfação à Anderlac era o manuseio da espada. Em sua vila natal os habitantes estavam acostumados a usar apenas facas e punhais, para destrinchar a carne das caças, entre outras tarefas bem corriqueiras. O povo do Reino da Fronteira não era famoso por trabalhar os metais, apesar de possuir espadas rudimentares para necessidades extremas. Anderlac nunca havia tido uma espada de verdade em suas mãos. Uma espada feita para matar outros homens Porém, o caçador demonstrou para os instrutores, uma habilidade nata para se tornar um excelente espadachim.

Após dez meses de treinos extenuantes, Anderlac e um grupo de novatos, foram designados para sua primeira missão. A Britúnia era dividida em grandes porções de terra, controlada por senhores que deviam obediência ao Rei Marham. Mas esses lordes nem sempre concordavam com seus vizinhos e escaramuças entre eles eram comuns. Na teoria, toda a Britúnia vivia sob a lei da capital. Na prática, cada lorde tinha seu jeito de gerenciar suas terras, um dos motivos para os conflitos.

Portanto, volta e meia, o exército do rei precisava intervir e mostrar que só havia uma lei a ser seguida. O objetivo da missão era apenas demonstrar o poderio militar da capital e parar com os conflitos. Às vezes, era necessário travar batalha com alguns dos senhores mais teimosos, como dessa vez. Anderlac se envolveu em um confronto campal com um senhor de terras do sul, muito insistente em resolver uma disputa territorial com violência. Seus superiores viram como Anderlac lutou bem e isso lhe deu prestígio e uma nova patente.

Não havia se passado dois verões e Anderlac já havia subido de recruta a tenente, um feito impressionante, mas justo, devido às suas habilidades. Porém, algo lhe incomodava. O Rei Marham era arrogante, todavia moroso, segundo a visão de Anderlac. Os senhores de terras, mesmo com forças militares inferiores, estavam com frequência questionando a soberania do rei. Somente uma mão de ferro sobre esses senhores desleais poderia trazer estabilidade para o reino. O próprio rei preferia resolver apenas as questões quando surgiam, sem entrar em campanhas militares desgastantes. Era uma forma estratégica de pensar, algo além dos domínios de Anderlac.

A ascensão rápida do caçador fez sua adormecida arrogância voltar à tona. Como ele poderia ser comandado por um rei fraco e covarde? Anderlac começou a expor seus pensamentos para amigos próximos. Mas, os comentários se espalharam no boca a boca e se tornaram rumores. Logo, aos sussurros se dizia que oficiais estavam planejando um golpe para derrubar o rei e tomar o poder. Anderlac não havia pensado nisso. Porém, com os rumores crescendo, mais soldados e oficiais se tornaram simpáticos à ideia. Afinal, se o exército da capital era tão respeitado, porque apenas apartar briga de lordes menores?

Thudur, um dos homens de confiança do rei, ouviu os boatos e os fez chegar até Marham.
        — Majestade, esse suposto golpe pode ser apenas conversa fiada. Porém, o simples fato de cogitarem o assunto, pode causar uma má impressão no povo, e iniciar uma revolta.
 

        — Você concorda com esses boatos? Me acha fraco e covarde?
        — De forma alguma. Jamais duvidei de sua capacidade. Vossa majestade é inteligente e estrategista, eu bem sei. Mas, nem todos têm a perspicácia de entender essas qualidades. Nem tudo é resolvido com a espada.
        — Muito bem, comandante Thudur. De todos os meus militares, você é em quem eu mais confio. Vamos fazer o seguinte. Procure a fonte desses rumores e venha me informar. Não podemos calar a todos, por isso o mal deve ser cortado pela raiz e assim, essa insatisfação vai morrer aos poucos.
        — Sim, vossa majestade. Começarei a investigar agora mesmo. Com sua licença.
        Thudur era muito competente e, falando com as pessoas certas, logo chegou a fonte do problema. Possivelmente Anderlac era o estopim do falatório. Thudur o conhecia bem e sabia de seu egocentrismo. Por um tempo, Anderlac se sujeitou a autoridade de seus superiores, mas agora devido às suas conquistas, se via em posição de confrontar quem lhe acolheu. Após coletar mais provas contra Anderlac, Thudur levou a informação até o rei.
        — Bom trabalho, comandante! Sua eficiência é notável. É uma pena que Anderlac seja a causa desse incômodo. Não queria perder um guerreiro tão bravo. Mas, essa afronta não pode passar em branco.
        — Deseja que eu acabe com isso, vossa majestade?

Após alguns instantes refletindo, os quais Thudur esperou pacientemente, o rei enfim falou.
        — Volte amanhã e lhe direi como agir.
        Após a saída de Thudur, Marham levantou do trono e se dirigiu para um dos cantos do salão real. Afastando pesadas cortinas encontrou uma figura trajando um manto púrpura escuro, lhe cobrindo da cabeça aos pés, deixando muito pouco do rosto à vista. Era Aalia, a conselheira secreta do rei. Alguns a chamariam de bruxa, ou feiticeira da floresta. Nada disso a ofenderia. Era modesta e discreta, apesar do grande controle que possuía sobre as forças da natureza. Ela lia um pergaminho à luz de uma grossa vela. Lentamente, ergueu os olhos azuis e brilhantes, quando o rei interrompeu sua leitura.
        — Aalia, precisamos conversar. Devo enfrentar um problema, por hora pequeno, mas com potencial para se avolumar rapidamente.

A mulher misteriosa apenas encarou o rei com seus olhos profundos e luminosos, transbordando sabedoria. O rei nunca a vira sem estar quase completamente coberta pelo manto, mas pelo contorno de seu rosto denotava possuir grande beleza.
        — Deseja extirpar uma raiz podre, antes que cresça e gere frutos doentios?
        — Essa metáfora é apropriada. Mas a natureza dessa praga torna difícil sua extinção.
        — Minha presença se justifica. Estou aqui para resolver problemas difíceis.
        — Bom, você já deve ter ouvido minha conversa com Thudur, então não vou me demorar em explicações. Como podemos dar cabo do problema? Sem levantar suspeitas ou retaliações, é claro.

Aalia levantou-se e, sem dizer nada, rumou para uma porta discreta. Em silêncio, Marham a seguiu. Já estava acostumado aos modos enigmáticos da conselheira. Passando pela porta, a mulher pegou uma tocha e desceram uma longa escada. Chegaram a uma catacumba empoeirada e úmida. Caminharam por um longo corredor, até chegar à outra extremidade. Aalia retirou uma chave debaixo do seu manto e abriu uma pesada porta de madeira.

Diante deles, iluminou-se um belo jardim, repleto de flores coloridas e aromáticas e um gramado viçoso, banhado pelo sol. O único som era de uma fonte de água límpida e dos pássaros. Era o jardim secreto da bruxa, onde ela comungava com os espíritos da natureza e recebia poder e conhecimentos. O rei sabia de sua existência, pois autorizou sua construção, mas era a sua primeira visita. Ela nunca realizava seus rituais em frente ao rei, mas ele pressentiu que era um momento importante e incomum e ela provavelmente tinha algo a ganhar com essa decisão.

Aalia parou em um círculo de pedras no centro do jardim. As rochas eram decoradas com runas pintadas de azul e dourado. A mulher retirou seu manto e ficou nua. Seu longo cabelo era como uma espuma dourada lhe caindo até o meio das costas. Marham chegou mais perto, mas de repente a feiticeira se virou, revelando uma pequena adaga.
        — Preciso de uma gota do seu sangue.

O rei não reagiu. Dar o próprio sangue para um ritual de magia parecia imprudente. Apenas a encarou esperando maiores explicações.

— Vou contatar as deusas, e em sua imensa sabedoria, me indicarão como agir. Como parte interessada diretamente, seu sangue é necessário. Cabe a vossa majestade cooperar ou desistir.

O monarca teve o bom senso de ficar calado e esticar a mão para Aalia. Sua fama de bom estrategista se devia em grande parte aos conselhos daquela mulher, por isso lhe respeitava e confiava em suas decisões. Ela segurou com gentileza a mão do rei e com a adaga apenas tocou a ponta do seu polegar. A lâmina era extremamente afiada e rasgou a pele de forma eficiente, retirando apenas uma única gota de sangue.

Marham permaneceu estático no jardim. Observava com fascinação os movimentos e a beleza natural da conselheira. Um corpo curvilíneo com a pele levemente bronzeada, criando uma amálgama de perfeita harmonia entre seus cabelos e olhos. Qualquer homem do reino sentiria desejo por ela, mas obedeceu a suas palavras e permaneceu afastado e em silêncio. O ritual estava apenas começando.

IV

Aalia se dirigiu a um canto do jardim, onde havia um fogareiro e utensílios. Preparou uma infusão com diversas folhas diferentes e a gota de sangue. Colocou a bebida em uma tigela e foi até o rei. Bebeu um gole do chá fumegante e o ofereceu a Marham. Ele tomou com certa relutância, pois o odor exalado não era agradável. A mulher foi até o centro do círculo de pedras e se ajoelhou.

Bebeu mais chá, de forma lenta e reverente. Após alguns instantes, quando parecia meditar profundamente, iniciou um cântico em voz muito baixa, quase como um sussurro. As palavras, desconhecidas para o rei, se repetiam. Com o tempo, a voz da conselheira aumentou de volume, mas também adotou um tom terrível e grave.

Para surpresa do regente, as folhas caídas no chão se agitaram, mesmo sem vento. Um redemoinho se formou ao redor da mulher e seus cabelos esvoaçaram. Ela estava se erguendo, mas o movimento era antinatural, uma força invisível parecia a estar levantando pelos ombros.

O rei esfregou os olhos, em dúvidas sobre aquela visão. O chá havia lhe despertado os sentidos de forma extraordinária. As cores estavam mais fortes e contrastadas. O som e o silêncio soavam profundos e poderia jurar que sentia o minúsculo corte no dedo doer terrivelmente.

Então, ela começou a levitar, para espanto do regente. Agora estava ereta, com os braços estendidos olhando para o céu, com os pés longe do solo. Marham caiu sobre os joelhos, enquanto observava estupefato a cena à sua frente. Ele estava confuso e sua própria cabeça parecia rodopiar em um vendaval de aromas e cores. As folhas voavam com força e velocidade ao redor da feiticeira e seu cântico era fervoroso. Foi difícil para o rei, mas ele manteve o controle diante da cena. Tudo era muito surreal e ele não conseguia racionalizar sobre aquilo, então apenas aceitou.

Aalia cantava alto, sua voz era como uma súplica e o ruído das folhas farfalhando se misturava com as palavras. Tudo pode ter acontecido em instantes, ou durado horas, o rei não saberia dizer. De repente o vento cessou, ela lentamente voltou a sua posição original, como se fosse conduzida por uma enorme mão invisível e pousou no solo de forma suave, como as folhas ao seu redor.

O silêncio tomou conta do jardim. A mulher levantou, vestiu-se e com um gesto chamou o rei para perto do fogareiro. Ele levantou cambaleante. Sentaram-se em bancos de madeira e Aalia falou com sua voz suave.

— Minhas informantes relataram a presença de um famoso bárbaro cimério em uma vila a oeste. Tem fama de bandido e mercenário. É o homem perfeito para servir de isca. Majestade, coloque Anderlac atrás dele. Enviarei um emissário para pagar e orientar o bárbaro. Mandarei o cimério para o norte, próximo à fronteira, assim eles se enfrentarão bem longe de testemunhas.

— Você descobriu isso nesse ritual?

Sem responder, ela juntou um pouco de argila do chão. Com extrema habilidade e rapidez, moldou uma criatura similar a um homem, porém com proporções grotescas, com uma face terrível e enormes presas.

— Reconhece isso?
        — Não. É algum tipo de monstro?
        — É um macaco cinzento. Alguns pensam se tratar de um ser mitológico, outros acreditam na sua existência, porém, o julgam extinto. A civilização aos poucos foi os afugentando para florestas sombrias ao norte, mas nunca os extinguiu. A natureza é forte e persistente. O ritual foi para falar com a deusa, ela me mostrou e me ensinou como controlar um desses. A fera vai ser nossa salvaguarda. Vou explicar o que vossa majestade deverá dizer a seus militares de confiança. E depois, falarei algo apenas para o conhecimento de nós dois.

O Rei Marham balançou a cabeça afirmativamente e abriu um sorriso malicioso, enquanto fitava a miniatura do monstro.

V

O capitão Hoggart, o superior imediato de Anderlac, foi quem transmitiu as ordens do rei. A missão era caçar um bárbaro fugitivo da prisão de uma cidade distante a oeste de Bertália, algumas noites antes. Segundo Hoggart, o bandido era responsável por roubar uma taverna e várias mortes em uma briga de bêbados, e por isso precisava ser detido imediatamente. O rei queria uma resolução discreta para o problema. Não seria bom a população ficar alarmada com um assassino sanguinário rondando suas cidades, ainda mais um estrangeiro.

O melhor caçador do reino foi incumbido da missão. Anderlac não pôde escolher seus três companheiros. Um grupo pequeno chamaria menos a atenção, afirmou Hoggart ao designar os homens. Independente disso, Anderlac achava ser habilidoso o suficiente para dar conta do bárbaro sozinho, mas seria bom ter algumas testemunhas para a sua façanha.
        De acordo com as pistas, o criminoso, após fugir da prisão, se pôs em direção ao noroeste, rumo à tríplice divisa entre Nemédia e Reino da Fronteira. Uma cadeia de montanhas separava os reinos. Anderlac e seus comandados seguiram esse caminho, orientados pelos relatos dos camponeses, cavalgando rápido e parando muito pouco para descansar e alimentar-se. O fugitivo tinha várias noites de vantagem, mas Anderlac pretendia diminuir bem rápido essa diferença.

Em uma de suas breves paradas foi possível para os quatro trocarem algumas palavras. Para a surpresa de Anderlac, os três companheiros eram tão falastrões quanto ele. Orec, o mais velho, contou a primeira história, justamente sobre quem caçavam.
        — Uma vez, o lorde de Forte Ghori ofereceu um banquete em honra ao lorde de Khawarizm, seu visitante. Não lembro os nomes dos regentes, mas o bárbaro cimério que caçamos fazia parte da guarda pessoal da comitiva de Khawarizm. No meio do festim estavam todos muito bêbados. O bárbaro era um dos mais embriagados. Nessa hora, o senhor de Forte Ghori convocou uma luta entre os melhores homens de cada cidade, uma tradição em grandes festas. O lorde de Khawarizm não considerou isso uma prática civilizada e relutou em indicar alguém. Mas, o cimério prontamente se ofereceu. O lorde de Forte Ghori designou um brutamontes forte como um touro e mais alto do que o bárbaro, ele mesmo mais alto do que a maioria dos homens.

— Além disso, esse carniceiro não havia bebido nada. Era como se tivesse se mantido assim, só esperando a hora da luta. Como já conhecia a tradição, era o mais provável. O lorde de Forte Ghori adorava um massacre, por isso já devia ter planejado tudo e deixava o brutamontes de prontidão apenas para humilhar os homens dos outros reinos durante os banquetes.
        Todos ouviam o relato de Orec com atenção, até mesmo Anderlac, fingindo não estar muito interessado, mantendo os olhos na carne assando a sua frente.
        — Mas e então, o que aconteceu Orec?
        — O que aconteceu, Brunn? Uma luta terrível. O campeão de Khawarizm foi espancado de todas as formas. Seu lorde quase mandou parar a surra. Mas, o bárbaro parecia estar aguentando bem os golpes, apesar de já estar sangrando. Então, ele caiu de joelhos e o gigante lhe pegou pelos cabelos negros e se preparou para dar o golpe derradeiro.
        Anderlac acompanhava o relato pelo canto do olho. Em sua arrogância nunca iria admitir estar interessado nas façanhas de outro homem, senão dele mesmo. Afinal, a história obviamente não acabava com a morte do fugitivo.
        — Todos os presentes já haviam dado a luta por encerrada. O brutamonte provavelmente mataria o oponente com esse último golpe. Nesse instante o gigante foi surpreendido por um ataque firme em suas partes baixas. Ele soltou um uivo fininho, como a voz de um eunuco. Em seguida o cimério levantou e acertou apenas um golpe, eu disse um golpe, no queixo do oponente. O brutamontes caiu desacordado com a mandíbula quebrada. Depois disso, o bárbaro pegou um chifre de vinho e foi se juntar aos seus companheiros, sob os aplausos de todos.
        Todos riram do relato, menos Anderlac.
        — Não foi uma luta honrada. O bárbaro deu um golpe baixo para vencer.
        — Sim. Afinal, ele é um bárbaro.
        Os homens riram mais ainda. Anderlac permaneceu taciturno. Quando pararam novamente para descansar, na noite seguinte, outro homem contou mais um relato.
        — Essa história é quase inacreditável.
        — Nos conte Brunn.
        — Bom, eu ouvi esse relato de uns cães do deserto, zuagires saqueadores de caravanas. Eles disseram que encontraram o bárbaro crucificado no deserto.
        — Como é?
        — Isso mesmo. Ele tinha cometido algum crime, ou despertado a ira de alguém poderoso, não sei esses detalhes. Ele foi punido com a crucificação, só sei isso. Os cães o encontraram e ficaram surpresos por ele ainda estar vivo. Os abutres já estavam pairando por cima do cimério, só esperando a hora de lhe comer a carne. Olgerd Vladislav, chefe do bando, admirado com a resistência do infeliz, resolveu lhe ajudar.

Primeiro mandou derrubarem a cruz. Se o bárbaro sobrevivesse ao impacto, Olgerd iria mandar tirar os pregos. Por sorte, depois de ter cortada a sua base, a cruz caiu para trás e não o esmagou.

Novamente, Olgerd deu uma chance ao crucificado; se ele aguentasse a dor dos pregos sendo retirados, poderia se juntar ao bando. Assim foi feito e ele resistiu. Depois disso lhe deram um cavalo e ele montou sozinho. Sete meses depois se tornou líder dos cães zuagires, ao humilhar e expulsar Olgerd.
        Dessa vez ninguém riu. Estavam todos realmente impressionados, exceto Anderlac.
        — Vocês parecem admirar esse bárbaro. Essas histórias apenas mostram como ele é um selvagem sem honra nenhuma. Estamos o caçando por ter cometido crimes e fugido da prisão, esqueceram? Não aceito ouvir mais essas asneiras. Quando eu arrancar a cabeça dele e levar para o rei, quero ver as histórias que vão contar.
        Os homens se olharam e permaneceram em silêncio. No dia seguinte partiram antes do amanhecer. Segundo relatos ouvidos em uma vila, um bárbaro de cabelos negros havia passado por aquelas terras, indo para o norte. Era impossível não notar um homem daquele tamanho, muito fora do padrão dos camponeses da região, disseram. Anderlac não ficava impressionado com essas palavras, mas ao mesmo tempo algo em seu íntimo lhe dizia que não seria fácil matar o bárbaro. Em Anderlac apenas crescia a vontade de derrotar esse oponente. Seria a sua presa mais valiosa.
        — Estamos bem perto agora. O bárbaro viaja a pé. E mesmo com alguns dias de vantagem, nossos cavalos são rápidos. No máximo depois de amanhã o encontraremos.
        Os companheiros de Anderlac nada disseram. Pareciam bem tranquilos com a caçada, mesmo depois de contarem sobre as façanhas do fugitivo, algumas delas possivelmente fantasiosas ou exageradas. No dia seguinte, os quatro homens adentraram uma região montanhosa, o ponto de encontro entre a Britúnia, a Nemédia e o Reino da Fronteira, terra natal de Anderlac.

Pouco a pouco a paisagem foi mudando e os campos férteis se transformaram em uma floresta sombria e gelada. No horizonte era possível ver altas montanhas com seus picos cobertos de neve. Anderlac sentia-se de volta a uma casa que não lhe receberia de braços abertos. Uma terra dura, não muito diferente da Ciméria, pensava Anderlac.

VI

Ao cair do crepúsculo, os homens acamparam próximos a algumas rochas grandes, usando-as para se abrigar contra o vento gelado. Após sentarem em silêncio ao redor da fogueira, para se aquecerem e assarem o jantar, Anderlac resolveu falar.
        — Orec, vocês parecem conhecer bem esse bárbaro que procuramos. Qual é o nome dele?
        — O 
capitão Hoggart não lhe disse?
        — Deve ter dito, mas não prestei atenção. Fiquei mais atento à descrição física. Agora, prestes a lhe arrancar a cabeça, gostaria de saber seu nome. Pode ser apenas um capricho meu.
        — O nome dele é Conan.
        Nesse instante, rápido como uma pantera, um vulto saltou de trás das rochas. Era um bárbaro alto e musculoso, pele cor de bronze, com cabelos negros e olhos azuis faiscando na noite escura. Antes mesmo de qualquer reação, os homens viram sua espada refletindo a luz da fogueira.
        — Cansei de esperar vocês me encontrarem, cães. Vou dar cabo da minha missão de uma vez.
        Anderlac foi o mais rápido dos quatro e desembainhou sua espada. Porém, os outros homens não seguiram seu gesto. Eles recuaram e juntaram seus pertences.
        — Por Mitra, onde vão seus covardes? Venham cá e lutem!
        — Não. Agora nós voltamos e contamos para o rei sobre o sucesso de seu plano. Ele descobriu sua intenção de dar um golpe militar e bolou essa armadilha para o bárbaro o matar bem longe da capital. Nossa parte da missão está cumprida.
        — Malditos traidores! Vocês vão morrer primeiro.
        Anderlac saltou sobre a fogueira e atacou Orec, lhe atingindo com a espada em um golpe transversal no peito, o matando imediatamente. Mesmo assim Anderlac fez questão de decapitar o velho soldado. Os outros homens se preparavam para montar os cavalos.

Conan apenas assistia a contenta, esperando sua hora de agir. Quando foi procurado por um emissário, lhe foi feita uma oferta generosa, ir até o norte e encontrar e matar um tal Anderlac. Conan pensava que o enfrentaria sozinho, mas quando localizou seu alvo e o viu acompanhado, sentiu o veneno da traição por trás do plano. O confronto seria inevitável e Conan já estava cansado de perambular naquele fim de mundo. Analisou, um velho, um pirralho e dois homens com quase a sua altura e idade. Decidiu enfrentar o bando, mesmo em desvantagem, os pegando de surpresa. O cimério anunciou sua chegada, apenas para lhes dar a chance de desembainhar as espadas, o que pareceu mais honesto. Mas, agora ele também havia sido surpreendido com a traição dos homens de Anderlac. Essa constatação deixou todos os sentidos selvagens de Conan em estado de alerta para o que mais de inusitado poderia acontecer.

Por um momento Anderlac ficou em dúvida se atacava seus antigos companheiros ou enfrentava o bárbaro. Esse instante de hesitação foi o suficiente para o panorama da batalha iminente se alterar de forma drástica. Um urro bestial emanou da floresta próxima e antes de sequer imaginar a origem de tão medonho som, o horror saltou do meio das árvores e com três pulos rápidos se colocou em frente aos homens montados.

Era um gigantesco macaco cinzento, com quase o dobro da altura de Conan e com braços musculosos, tão grossos quanto o tronco de Anderlac. Suas garras negras e poderosas poderiam estripar qualquer um ali com apenas um golpe. A face era simiesca e sua enorme boca exibia terríveis presas amareladas se projetando afiadas como adagas. Porém, seu olhar não era totalmente selvagem. Pelo contrário, parecia demonstrar um lampejo de vívida maldade e astúcia, característica só encontrada em seres humanos.

Para os guerreiros presentes, aquela aberração gigante de pelos grossos e cinzentos descendia de um mal antigo e abissal, anterior à civilização e seus piores pesadelos, ainda viva apenas pelo desejo de sangue e morte. Aquele ser, antes conhecido apenas em lendas, deveria estar muito mais ao norte, nas regiões de neve eterna, e não tão ao sul. Mesmo para os mais supersticiosos, a presença do monstro não tinha uma explicação lógica.

Muito longe dali, Aalia sorria, sozinha em seu aposento, olhando o desenrolar da batalha em um globo lustroso. Através de sua magia, enxergava o que a fogueira do acampamento iluminava.

VII

        Os homens continuavam paralisados e a fera não demorou para atacar quem estivesse mais próximo. Brunn já havia montado, mas o cavalo se assustou com o monstro e derrubou o homem. Rápido como uma flecha, o macaco golpeou o pescoço da montaria, o dilacerando com suas garras negras. Enquanto o animal morria se debatendo, Brunn conseguiu empunhar sua espada. Se tivesse tentado fugir a pé, seu destino poderia ser melhor, pois tão logo se pôs em guarda, foi golpeado duas vezes. O primeiro ataque lhe aniquilou o braço da espada, causando uma fratura exposta e deixando um toco de braço pendurado pela pele. Um grito de dor retumbou pela noite, mas logo foi calado pelo golpe que lhe separou a cabeça do corpo. Durante o frenesi de sangue, o jovem soldado conseguiu fugir a cavalo e rapidamente desapareceu na escuridão.

O macaco então voltou sua atenção para Conan e Anderlac, ambos em posição de ataque, esperando o próximo movimento da fera, a essa altura com as garras pingando sangue e os olhos flamejando de ódio. A grande besta firmou os calcanhares no chão, projetou para cima seu corpo enorme e com os braços erguidos rugiu de forma horripilante. Mesmo para aqueles homens calejados pelas batalhas de toda uma vida, a cena assustadora fez o sangue gelar em suas veias. Em seguida a fera se agachou e batendo com seus punhos no solo, fez tremer o chão.

Anderlac agarrou um pedaço de madeira do fogo e improvisou uma tocha, projetando-a como um escudo contra o animal. Conan estava ao seu lado e fez uma proposta.
        — Temos negócios a tratar, mas no momento precisamos sobreviver. Trégua por enquanto?
        — De acordo. Por enquanto.

Sem mais palavras os homens se puseram a fazer o que sempre fizeram em suas vidas, lutaram. Anderlac jogou a tocha na face do monstro, o distraindo momentaneamente, aproveitando para desferir um golpe de espada, mas apenas raspou o alvo. Conan se colocou no lado oposto ao horror peludo, assim quando um atacasse daria a retaguarda para o ataque do outro. Mas, eles não eram tão rápidos a ponto de aproveitar essa estratégia.

A besta se defendia e golpeava com extrema rapidez. Anderlac e Conan colidiam suas espadas contra as garras do macaco, apenas para descobrir que elas eram resistentes como o aço. O animal não possuía técnica de luta, mas era muito mais veloz e forte do que ambos.

A batalha se tornou um turbilhão de membros e espadas se debatendo. Nenhum deles obtinha vantagem. O terror ancestral se desviava e contra-atacava sem ser atingido. Os homens resistiam bravamente, mesmo parecendo um esforço em vão. O cansaço chegaria logo e os faria sucumbir.
        Anderlac se assustou com o inimigo a princípio, mas agora havia se dado conta de que estava enfrentando o ser mitológico que povoou sua imaginação na infância, o qual ele sempre quis matar. Havia chegado o momento de conquistar esse troféu, pensava ele. Porém, seu egocentrismo e autoconfiança exagerada acabaram por lhe distrair e por um instante o monstro quase o acertou de forma fatal com as garras afiadas.

Anderlac desviou no momento derradeiro, mas as unhas gigantes rasgaram a cota de malha, chegando até a arranhar profundamente suas costas. Foi o suficiente para jogá-lo ao chão e nesse instante o caçador sentiu a morte avizinhar. Enquanto o macaco se aproximava para abater Anderlac, Conan aproveitou a distração e saltou sobre as costas do animal. O bárbaro também estava sedento por sangue.

Rápido como uma pantera esfomeada, Conan firmou suas pernas no dorso do macaco, e com a mão esquerda agarrou com um aperto de ferro o pelo da fera, enquanto com a direita estocava o flanco do monstro com uma adaga. A arma de lâmina curta tinha um desempenho melhor a pouca distância. Mas, diferente do esperado por Conan, o pesadelo não sucumbiu e os ferimentos o deixaram ainda mais enfurecido.

O confronto era um redemoinho de golpes, com Conan tentando apunhalar de forma definitiva o animal, enquanto o macaco tentava agarrar o cimério para trazê-lo ao alcance de suas presas mortais. A destreza e agilidade de Conan eram formidáveis, mas a gigantesca força do monstro em breve iria prevalecer. As garras do gigante hirsuto rasgaram o colete de couro do cimério, assim como a pele e a carne por debaixo. Ambos sangravam em profusão, mas o bárbaro não mostrava sinais de que iria desistir. Calado, a não ser por alguns grunhidos, Conan afundava seu punhal no torso e ombros da fera.

Anderlac não estava mortalmente ferido e conseguiu se erguer para assistir os momentos finais da luta, quando Conan finalmente atingiu o monstro no pescoço, afundando a adaga até o cabo em uma artéria. O sangue jorrou da ferida como uma cascata carmesim e a fera se debateu jogando seu carrasco ao chão. O macaco cinzento gigante urrou de dor, e o som reverberou na floresta escura. Então, caiu encharcado de sangue e foi o fim da criatura, mas não do conflito.

VIII

        Anderlac ainda se recuperava do golpe sofrido e apenas testemunhou o fim da luta, sem ajudar. Constatou que teria morrido se não fosse o cimério, e essa verdade não despertou nenhum sentimento de gratidão, e sim de raiva por ter sido ajudado por sua presa.
        — Com a morte da fera, nossa trégua se encerra, não é?
        — Não tenho nada contra você, homem. Você está ferido e foi traído por seu rei. Se eu soubesse que estavam me usando nesse jogo sujo, não teria aceitado o serviço. Esqueça isso e eu também esquecerei. Pelas suas feições e sotaque você deve ser do Reino da Fronteira. Você está perto de casa. Vá embora. Quebrarei meu contrato e deixarei essa história toda de lado. Essa fera não devia estar nessa região, isso deve ser obra de feitiçaria. Provavelmente, alguém com esse poder mandou o monstro para nos matar e acabar com todos os vestígios do ocorrido. Esse era o plano. No fim, todos foram traídos. Por Crom, malditos sejam os reis e sua civilização podre, com seus planos traiçoeiros e feiticeiras furtivas.
        — Como é? Acha que não posso derrotar você? Que preciso de sua clemência? Vou matar você, voltar para a Bertália levando sua cabeça e a jogarei aos pés de Marham, antes de exterminar com a vida do maldito.
        Dito isso, Anderlac soltou um brado animalesco e, erguendo sua espada, foi de encontro ao bárbaro. Conan se defendeu e contra-atacou com fúria. Anderlac aparou a investida. Os dois trocaram golpes rápidos, mas nenhum levava vantagem. O clangor das espadas ecoava pelo ar gelado da noite. A escuridão era total e apenas a fogueira emanava uma leve luminosidade. Mesmo assim, os olhos aguçados do caçador e do bárbaro permitiam a luta continuar, apesar do breu os envolvendo.

Anderlac era bem treinado e tinha experiência, mas o bárbaro desferia cada golpe como se fosse o seu último. A ferocidade de Conan era inigualável; o cimério não parecia um homem, e sim um felino selvagem com sede de sangue. Sua fama não era exagerada. Porém, Anderlac não era um adversário desprezível.

Conan desferiu um golpe visando a cabeça de Anderlac, mas este se abaixou e, com uma rasteira, derrubou o bárbaro. Mesmo caído, Conan não estava indefeso. Ele agarrou uma madeira incandescente da fogueira e jogou contra Anderlac, o forçando a se defender. Foi o tempo necessário para Conan levantar e continuar na batalha.

As espadas faiscavam nas trevas e nenhum dos dois parecia perto da vitória. A fogueira estava quase extinta e Anderlac demonstrou os primeiros sinais de cansaço. Apesar de ser um militar de elite, seus ferimentos estavam cobrando o preço. Anderlac estava abalado por perceber, pela primeira vez em sua vida, a derrota se aproximando. Mas, esse mesmo pensamento o motivava a vencer o bárbaro. Defendeu-se, de novo, de um golpe fatal e estocou, visando atingir o abdômen de Conan.

O cimério se mostrou mais rápido e desviando para o lado, o acertou com uma forte cotovelada na nuca, levando Anderlac ao chão. Conan apontou a espada para o rosto de seu adversário.
        — Vou lhe dar mais uma chance. Fomos envolvidos em uma grande traição. Nem você e nem eu devemos nada a ninguém. Vá embora homem, vamos esquecer tudo isso!
        — Maldito é o rei! E maldito é você, Conan!

Rolando para o lado, Anderlac saiu da mira da espada e com rapidez impressionante para um homem ferido e cansado, se ergueu para lutar novamente. Com toda sua raiva, Anderlac partiu para cima do bárbaro decidido a dar cabo de sua vida de uma vez por todas. A presa se mostrou muito mais feroz do que ele imaginava, mas agora não tinha mais nada a perder.

Com dois movimentos rápidos Conan se desviou da espada de seu oponente e, em seguida, ficou em posição de ataque. Porém, Anderlac mal havia se virado para enfrentar o bárbaro, quando foi atingido com um só golpe no pescoço, lhe separando a cabeça do corpo. Era o fim do caçador. A caça venceu.

Muito mais ao sul, Aalia se afastou do globo, onde assistia à batalha final através do reflexo das chamas evanescentes da fogueira. O resultado não foi o esperado, mas ela ficou satisfeita com a morte de Anderlac, e impressionada com a força e destreza do cimério. Agora ela só podia torcer para Conan não voltar a Bertália e expor a falha de seu plano. Mas, isso era uma questão para outro momento.

        Na fronteira norte, Conan observou a carnificina ao seu redor e praguejou contra os donos do poder e seus jogos sujos de intrigas e traições.

— E eles se dizem civilizados. Por Crom! Na Ciméria não apunhalamos irmãos pelas costas e enfrentamos nossas rixas de frente, no fio da espada. Malditos canalhas covardes, feiticeiros ardilosos.

Por fim, não havia mais o que fazer, a não ser improvisar bandagens para os ferimentos e depois partir dali. Ainda tinha algumas moedas de ouro e várias de prata. Poderia voltar para o sul e pagar um quarto em uma taverna, onde poderia se recuperar nos braços de uma bela mulher, bebendo e comendo. Precisava esquecer por um tempo a civilização e suas manipulações sórdidas.  

FIM

POSFÁCIO

Robert Erwin Howard foi um escritor ímpar. De vida curta e carreira prolífica, ele nos deixou uma série de contos e principalmente de personagens memoráveis. Um deles, com certeza um dos mais famosos, é Conan. O bárbaro cimério foi um fenômeno de popularidade na época em que seus contos foram publicados, na década de 1930. Mas, o que impressiona é sua proeminência até hoje na cultura popular.

Cresci lendo as histórias em quadrinhos escritas por Roy Thomas e desenhadas por John Buscema, e elas se fixaram em minha memória como tatuagens na pele. Mais velho tive contato com os contos originais de Howard, e a paixão pelo cimério aumentou. A prosa ágil do escritor estadunidense, o mundo fantasioso e rico que criou e suas situações inventivas tornam os contos de Conan dignos de serem lidos e relidos inúmeras vezes. E foi durante essas leituras que resolvi prestar uma homenagem a Howard, mesmo ciente de minhas limitações na escrita. Assim surgiu essa novela, onde não tentei emular o estilo inigualável de Howard, apenas tinha como objetivo manter o mesmo clima e ser fiel ao mundo da Era Hiboriana.

A primeira versão dessa história era bem diferente e possuía algumas incongruências quanto à cronologia da vida do cimério. Apresentei meu conto para um dos maiores conhecedores da obra de Howard no Brasil, Fernando Neeser, que gentilmente apontou esses problemas na história. Por isso, devo um imenso agradecimento a ele.

Não existe uma cronologia oficial de Conan, estipulada pelo seu criador. Porém, alguns autores esboçaram linhas cronológicas, das quais fiz uso aqui. No presente conto, alguns eventos de Uma bruxa nascerá são citados como já lendários, então, é presumível que esse conto se passe pelo menos dois anos depois da crucificação de Conan. Após os eventos do conto Uma bruxa nascerá, Conan vive outras aventuras no conto O demônio de ferro. Logo depois acontece o confronto com Anderlac e meses após, Conan enfrenta Os profetas do círculo negro. O relato contado por Orec se refere à história em quadrinhos Conan - O Indomável de Roy Thomas e John Buscema, publicada no Brasil em abril de 1992. Essa HQ me marcou muito na época e já a li dezenas de vezes. Não resisti em colocar uma pequena passagem dela em minha história.

Por fim, espero que você se divirta lendo, como eu me diverti escrevendo. Perdi a conta de quantas revisões e reescritas realizei. Mas, cada vez que voltava a essa história, me sentia dentro da Era Hiboriana e nada me dava mais prazer. Quem sabe um dia eu volte a esse mundo, o que me diz?

AGRADECIMENTOS

Algumas pessoas ajudaram imensamente para que essa novela chegasse até você. Pelas orientações, revisões, apontamentos e sugestões, meus sinceros agradecimentos a: Fernando Neeser, Miguel Mendes e Rodrigo Martins.

Compartilhar