O prisioneiro audaz - Um conto de Conan



Marco Antônio Correa Collares


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I
Asgalun da Pedra Antiga e da Pedra Rara
Filha da fronteira Oeste 
Próxima ao Mar Profundo
Onde outrora foi uma grandiosa princesa
É hoje herdeira do submundo

Cântico de Rinaldo sobre Asgalun de Shem

            O jovem Aradegi esperou no pórtico de Asgalun pela volta da estranha comitiva. Desobedecendo a seus progenitores, ele escapou logo após o desjejum matinal, ao primeiro raiar da aurora, se esgueirando para longe dos olhos do pai e se arrastando pelos becos sujos semi-abandonados que nos tempos de outrora receberam renomados mercadores. 

Aradegi e Asgalun tinham pelo menos uma coisa em comum. Ambos pareciam meras sombras de algo aparentemente incoerente. O rapaz, apesar de muito jovem, parecia um adulto de meia idade com cabelos desgrenhados e pele ressecada ao sol por conta do extenuante trabalho na oficina do pai, vestindo comumente uma capa surrada por cima da túnica. A cidade, apesar de suas colunas imponentes de pedra maciça, seus altos minaretes sinuosos, castelos rígidos, zigurates, afrescos pelas sólidas paredes e altares exuberantes de cobre, obsidiana e marfim parecia muito mais uma ruína abandonada do que a pretensa capital do oeste do reino de Shem.

“Vale a pena a surra que irei levar do pai”, pensou Aradegi. Não tinha como mudar seu ímpeto e curiosidade. Isso porque ele tinha sido conquistado pela visão dos membros da comitiva de mercenários, principalmente a bela guerreira loira vinda do norte, Alexia. Além disso, o rapaz estava curioso com a difícil demanda do grupo. 

Ele ficou sabendo, como quase todos na cidade, que o rei Salmanaser II iria pagar uma quantia vultosa para qualquer caçador de recompensas que capturasse um guerreiro famoso, um homem que havia liderado os nômades zuagires em outros tempos. Aradegi tinha como personalidade a latente curiosidade de sua raça, mas os acontecimentos em torno da caça ao homem não saíam de sua cabeça desde que vislumbrou a comitiva. Seria a oportunidade de ver a queda do bárbaro conhecido pela alcunha de Amra.

Nas frequentadas tavernas e esquinas sinuosas da cidade, muitos homens comentavam sobre a pretensão do rei no episódio. Fazia tempos que a realeza de Asgalun pretendia uma união com os senhores das cidades-estado do leste, principalmente com a poderosa Shushan. A boca pequena dizia que Salmanaser II pretendia iniciar negociações com seus irmãos nobiliários mediante um prêmio: o prisioneiro famoso ainda vivo, um homem deveras procurado pelas constantes pilhagens bem-sucedidas no leste.

O certo é que Aradegi esperou por todo o dia para ter notícias da caçada, em uma espera um tanto nervosa e angustiante. Ao cair da noite, finalmente a comitiva retornou, quase como uma procissão macabra de assassinos e rufiões. Ao saírem à caça, eles contabilizavam em torno de vinte homens de armas arrogantes e bem equipados com ferro e aço. No retorno, eram apenas oito, dois dos quais bastante feridos e com ares de empáfia visualmente combalidos.

Lá estava o líder mercenário, o nemédio Marcius a cavalo, munido de placas de aço sobre o peito largo e um elmo imponente dourado com um penacho vermelho por cima. Ao lado dele, o brutal kushita-poititiano, Raxorianus, vergando sua longa lança negra, próxima à cor da pele grossa moreno-escura, no entorno de um conjunto hermético de músculos sólidos. Logo atrás se encontrava um dos filhos mais conhecidos de Asgalun, o guerreiro Harlan, com sua barba negra azulada, cabelos longos presos na nuca e sua cimitarra famosa, “corta cabeças”

Do lado oposto a eles, apenas Alexia. O jovem Aradegi não conseguia desviar os olhos de sua figura desde que a garota chegou à cidade junto à comitiva. Ele nunca vira mulher tão formosa e selvagem ao mesmo tempo, ainda mais em se tratando de uma criatura civilizada vinda do pequeno reino hiboriano da Britúnia, localizado mais a nordeste do continente. 

Diziam os mais velhos, aliás, que a mistura de diversas raças fazia das britunianas as mulheres mais exóticas e lindas do continente, com curvas voluptuosas e rostos aquilinos, olhos levemente puxados verdes ou azulados, pele morena e cabelos loiros como novelos divinos de seda. 

De um lado desta mistura exótica, a raça dos antigos pastores zhemris, do pequeno reino de Zamora, com indivíduos de coloração mais escura e olhos negros misteriosos e penetrantes; do outro, a hiboriana, raça hegemônica do oeste continental, com indivíduos com cabelos claros e olhos cinzentos, pele clara e altura elevada.

Certamente que Aradegi não sabia nada das outras mulheres daquela raça híbrida, mas tinha certeza que Alexia era exatamente assim, ainda que ela vergasse uma couraça de malha de anéis de aço de proteção, tendo como outras características seu ar estoico, gestos imponentes e uma bela espada cravejada de jóias esmeraldinas no punho. 

Sem dúvida nenhuma que Alexia era a figura mais exuberante entre os guerreiros ali, e o rapaz não duvidava que ela venceria quase todos em combate, desde que de forma honrada e sem subterfúgios. Por um momento, a beleza e a grandeza de espírito da mulher reteve o olhar do jovem, até que ele finalmente vislumbrou Amra.

Cercado pelos mercenários estava o bárbaro, na carroça, preso a grilhões pelos pulsos em um poste de madeira ao centro. Apesar dos ferimentos pelo corpo, o homem estava acordado, vislumbrando a multidão em volta com olhar selvagem de pantera, como se aquele azul cristalino dos olhos fosse a imensidão do ermo em meio a um céu límpido de gerações de bárbaros ensandecidos em suas vagas de ferro e fogo.

Amra, à exceção da ilharga protegida por panos, estava nu, com ferimentos que incomodariam a maior parte dos homens civilizados. Seus músculos eram uma massa contraída definida e riscada que externava o quanto as melhores estátuas de mármore de deuses eram meros reflexos de divindades. A pele bronzeada dava uma conotação ainda mais selvagem, ilustrando cicatrizes grossas no tronco poderoso e no rosto felino. Acima da fronte marcada e da testa larga, uma juba negra completava a imponente figura, como a de uma besta imemorial pronta para o bote final sobre suas presas.

Era nítido o quanto sua figura roubou o olhar de todos em Asgalun. Ninguém dizia qualquer palavra; apenas olhava-se com estupefação diante daquela figura central semi-divina, cercada pelos mortais mercenários. Ficava evidente também que, a exceção de Alexia, os outros guerreiros se mantinham afastados da carroça do bárbaro, como se tivessem um temor inconsciente em suas almas.

(Ilustrador: Domênico Gay)

Foi exatamente esse o sentimento de Aradegi quando a comitiva passou por ele, parado numa esquina, rosto boquiaberto como um espectador do destino de deuses estrangeiros. Seguindo os caçadores e sua presa pelas ruas de pedra fosca da cidade, o jovem logo se viu diante do muro da casa que servia de abrigo para os integrantes da comitiva.

Os mercenários foram descendo de suas montarias na entrada da residência, cercados pelos curiosos que se mantinham por perto, sem quaisquer preocupações em esconder suas latentes curiosidades. Marcius, sem se preocupar com a população em volta, foi o primeiro a descer da montaria, na iminência de adentrar o portão que dava para o jardim em frente à casa, seguido por seus companheiros mercenários mais próximos, Roxarianus e Harlan, que também desceram das montarias com seus pertences, armas e provisões.
           
- Vamos rápido, seus abutres. Algum de vocês envie uma mensagem ao rei e diga que capturamos o bárbaro – falou o nemédio Március, líder do grupo, de modo geral, deixando entender que algum dos presentes deveria obedecer de pronto às suas ordens um tanto displicentes.
           
- Não há necessidade, meu caro. Eu irei pessoalmente avisar vossa alteza do êxito de sua jornada - Ao lado do muro da casa, parado em pé próximo do pórtico de entrada, uma figura esguia, com traços de hiena respondeu subitamente, surpreendendo a todos e saindo das sombras logo depois que parte do grupo de mercenários adentrou o jardim. Ele era um shemita do leste, comumente chamado de Muhalahin, o Esguio, sendo o principal homem de confiança do rei local.
           
- Ah, é você conselheiro. Escondido da vista como um rato – respondeu Alexia, descendo também de seu alazão de forma abrupta e igualmente adentrando no pórtico de entrada, com uma altivez incomum para uma mulher brituniana, pelo menos de acordo com o senso comum.
           
- Bem, eu estava aguardando suas chegadas a mando de meu senhor. Vou até ele imediatamente e pela manhã retorno com a remuneração prometida e com as ordens a serem obedecidas – respondeu Muhalahin em um cochicho, olhos fixos na moça e um estranho sorriso malicioso nos lábios.
           
- Que seja – respondeu Marcius –, até lá, o homem chamado Amra estará sob nossa autoridade.
           
- Pelo que vejo, ele foi uma caça insossa, visto o baixo número de sobreviventes – indagou Muhalahin novamente, com ar de ironia.
           
- Fomos mais do que suficientes, hiena do deserto – interpelou o kushita Haxorianus, irritado pelo comentário sobre seus bravos companheiros mortos em batalha.
           
- Isso era esperado, emissário. O bárbaro é conhecido por sua valentia e aptidão no manejo da espada. Ele eliminou doze dos nossos antes de ser subjugado por nossas habilidades superiores - A resposta de Marcius foi aparentemente dirigida ao shemita, mas seu olhar se fixou no homem chamado Amra, numa auto-afirmação desconcertante. O bárbaro sorriu levemente de volta, sem desviar o olhar.
           
- Habilidades superiores. Sei. Eu servindo de isca e o kushita, ao lado de uns dez arqueiros shemitas usando venenos de lótus nas flechas e lanças, para subjugar um homem já ferido. Mesmo assim, esse mesmo homem eliminou sozinho quase todos no grupo antes de cair em torpor – ironizou Alexia, sorriso voltado para Marcius, sem qualquer subterfúgio.

- Que seja. Volte ao seu rei, Muhalahin e informe do sucesso da caçada. Amanhã esperamos nossa recompensa – essa foi a resposta de Marcius para o emissário, adentrando a casa rapidamente, enquanto os demais mercenários levaram o prisioneiro, do átrio central até o interior de uma tenda, no pátio de modo a abrigar sua presa.

Aradegi conseguiu entrar pelo muro do lado esquerdo da casa, escondendo-se sob alguns ramos de ervas nativas a oeste do pátio central. O bárbaro Amra foi levado até a tal tenda próxima do abrigo dos demais mercenários da comitiva. Lá, cercado por diversos e temerosos escravos da casa, ele foi colocado em outro poste de madeira, com os braços para trás do corpo, presos pelos pulsos, de modo a não ter mobilidade. O jovem shemita esperou o cair da noite, até que os feridos da comitiva e seus companheiros se retiraram para seus descansos.

A única luminosidade do ambiente vinha de um dos quartos principais da moradia de alvenaria, onde se abrigava Marcius e seu principal séquito de guerreiros. Lá, Aradegi podia ouvir vozes, sendo a de Alexia aquela que mais lhe chamava a atenção, por motivos óbvios.
           
- Não sei o que pretendes Marcius, mas pela manhã dividiremos os espólios da empreitada de forma igual, como combinado – dizia a garota, bebendo o líquido de uma taça de vinho sobre a mesa. 

Sentado em uma pequena cadeira atrás da mesa e com os pés sobre a mesma, Marcius igualmente bebericava do vinho viscoso de uma taça prateada, sendo ladeado pelos outros dois companheiros, o kushita Raxorianus, escorado à parede ao lado da porta, e o shemita Harlan, próximo ao fogo da lareira, num canto, olhando as chamas como se fossem o reflexo dos inóspitos desertos do leste turaniano.
           
- Sem dúvida que a parte dos mortos não será dividida de forma igual. Existem custos que não devem e não podem ser preteridos – sussurrou Marcius
           
- Não tenho nada a ver com isso. O combinado foi a divisão igual entre os sobreviventes e, pelo que sei, as cem coroas serão poucas para todos – Alexia respondeu em tom impositivo, logo após sorver o resto da taça em um único gole. Ela limpou a boca com a manga do antebraço e terminou dizendo:

- A menos que os valores combinados com o rei sejam outros e você esteja diminuindo as cifras para tirar algum proveito disso.

- Cuidado, mulher, não pense que o fato de eu ter lhe oferecido minha cama e uma aliança próspera entre nós dois irá me fazer aceitar palavras insolentes de tua parte – respondeu Marcius, de forma arrogante, levantando-se.

- Como já disse ontem nemédio, sua cama e sua aliança não me interessam; apenas a divisão dos espólios pela captura do bárbaro. Guarde sua raiva para seus dois cães. Está para nascer homem ou mulher que me levem a temer a dizer aquilo que penso – Alexia se retirou do quarto, deixando um atônito líder mercenário indignado. O kushita e o shemita, seus dois companheiros restantes mal continham sorrisos irônicos nos lábios, e até certa admiração pela coragem e honestidade da guerreira. Marcius, após a saída de Alexia, tagarelou em tom ameno:

- Amanhã iremos reter parte do butim pelo bárbaro e dividir com essa cadela apenas um quarto do montante total. Depois, meus caros, uma nova empreitada nos aguarda.


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II

O homem conhecido como Amra tinha sede. O nome em questão fora adotado pelo cimério Conan em épocas de pirataria pelos mares do oeste da costa negra até Kush, sendo comum que ele ainda fosse chamado desta forma na parte oeste do continente, incluindo Shem. Amarrado junto ao poste no interior de uma tenda, Conan praguejou por sua captura e observou atentamente o local com seus sentidos lupinos.
(Ilustrador: Fábio Ochoa)


O cimério estivera em fuga constante durante muitos dias antes da captura, ainda que ele não conseguisse precisar com exatidão a passagem do tempo em meio à sua fuga pelo ermo. Preso pelos pulsos a grilhões junto ao poste no interior da cabana, Conan desistira de escapar por ora, visto que tinha perdido certa quantidade de sangue em razão de alguns ferimentos contraídos, além do fato de que precisava planejar seus próximos passos. De certa forma, a escuridão na tenda e o silêncio total do lado de fora eram reconfortantes para sua mente febril, apesar da situação.

Suas lembranças e divagações o levaram de volta ao início da fuga, nos arredores da cidade de Shushan, muitos dias atrás, quando tropas do exército turaniano, aliados dos senhores shemitas locais rastrearam sua trilha logo após ele entrar em contato com dois ex-colegas zuagires em um promontório próximo ao Vale de Ebla. 

Como era de se esperar, os turanianos o atacaram impiedosamente e ele teve que abrir caminho pela espada, em uma fuga frenética pelo ermo dos desertos do leste. O cimério decidiu se abrigar no oeste do reino, onde as tropas turanianas, mal vistas pelos senhores da região, dificilmente continuariam tal perseguição. Ledo engano.

De certa forma, seu caminho em fuga foi marcado a ferro e sangue, algo que para o bárbaro era um modo de vida. Primeiramente ele foi cercado nas cordilheiras arenosas e fragmentadas entre Zamboula e Ebla, quando o cimério abateu quatro arqueiros que interrompiam seu caminho pelo Estreito de Hormuz. 

Meia tarde depois do primeiro embate, uma nova batalha sangrenta ocorreu entre Conan e alguns soldados das tropas turanianas, quando parte dos perseguidores o cercaram entre as margens do rio Prat-Firat, obrigando o cimério a lutar ferozmente contra sete adversários munidos de cimitarras e iatagãs. Na luta encarniçada que se seguiu, o cimério obteve dois ferimentos superficiais, um no antebraço e outro no tronco, matando seus adversários a golpes encolerizados e escapando por pouco a cavalo antes da chegada de reforços.

Seguindo seu caminho pelo ermo, o bárbaro ficou uma noite abrigado em uma caverna do Planalto Arilano, tratando dos ferimentos pelo corpo. Logo cedo, antes do primeiro raiar da aurora seguinte, ele meio que virou a partida, pelo menos por um breve instante, nos paredões arenosos de Uruk-Sah. Foi a vez dele emboscar seus perseguidores, usando de sua agilidade felina para saltar sobre seus oponentes logo abaixo, decepando dois turanianos sem hesitar. Mais tropas vinham em seu encalço e Conan decidiu fugir novamente, sendo alvejado por uma flecha no ombro esquerdo.

A perseguição durou ininterruptamente por mais um dia e Conan conseguiu enganar uma parte de seus perseguidores na pequena vila de Jendet-Nasr, logo escapando a galope pelas planícies da região de Pelisthia. Conan aproveitou mais um breve momento de sossego no ermo, talvez por uma tarde inteira, para tratar do ferimento da flecha, conseguindo enganar novamente seus captores nos arredores do Oásis das Feras, comumente usado por nômades da região.

Quando seus implacáveis perseguidores turanianos encontraram novamente seu rastro, Conan saiu a galope em direção ao oeste, em uma perseguição que durou das primeiras horas do dia seguinte até o meio da tarde. Infelizmente, outra parte da tropa turaniana ficou sabendo de sua possível direção e se adiantou até a região do planalto que circundava o Prat-Firat, localizado um dia após a fronteira entre leste e oeste de Shem. 

Na referida região, Conan foi emboscado por mais quinze inimigos ainda antes do cair da noite, abrindo caminho a ferros e matando mais da metade deles, recebendo mais ferimentos pelo corpo, um no lado esquerdo do tronco, outros dois nos antebraços, além de um corte transversal nas costas, não tão profundo como pensara a primeira vista. Isso, claro, sem deixar de rachar o crânio da maioria de seus perseguidores.

Após essa nova empreitada sangrenta, seguiu-se mais uma fuga desesperada pelos ermos, algo que durou a noite toda seguinte e varando a madrugada enevoada do outono do oeste continental, até que o cimério conseguiu novamente despistar seus perseguidores. 

Já no oeste, ao passar pela cidade de Asgalun, Conan conseguiu uma boa vantagem, e ali descansou e tratou de seus ferimentos por todo o dia seguinte, aproveitando as instalações de uma taverna local chamada Fagulhas de Fogo. Ali, ele ficou sabendo de um prêmio por sua cabeça entre os senhores da cidade. O mais estranho de tudo é que ele tinha observado de longe o líder dos mercenários ali acampados, seus caçadores no final, ao lado das mesmas tropas turanianas que haviam lhe perseguido desde a cidade shemita de Shushan. 

Após se retirar do núcleo urbano a pleno galope, ainda antes do cair da noite, Conan parou a beira de um dos muitos afluentes do Khorotas, que deságua no Mar do Oeste. Não demorou muito para o bárbaro perceber que seus perseguidores turanianos se retiraram para o leste, e então ele decidiu acampar para continuar o tratamento improvisado de seus ferimentos ainda abertos pelo titânico corpo de bronze.

Instantes depois, ele foi surpreendido enquanto descansava da longa perseguição a que fora submetido. Uma bela mulher loira de couraça de anéis de placas tinha aparecido diante dele a cavalo, pedindo abrigo e um lugar para pernoitar. Seu nome era Alexia e Conan estranhou o fato de ser uma guerreira de origem brituniana, visto que apesar de se lembrar desse reino na juventude, ele não tinha lembranças de guerreiras armaduradas oriundas desta raça em suas jornadas pelos reinos hiborianos civilizados. 

Mesmo ferido, seu instinto o avisou das incoerências dos argumentos sem sentido da garota, mas quando decidiu questioná-la sobre os mesmos, ele se viu cercado pelos companheiros mercenários dela, fossem eles arqueiros e lanceiros. Foi um dos raros momentos em que Conan praguejou consigo mesmo e contra Crom, divindade que ele jamais pedira auxílio, exatamente pela sabedoria entre os cimérios de que isso seria completamente estúpido e inútil.

Conan abriu passagem a ferros novamente e sua espada cortou nervos e músculos com uma rapidez incomum para um homem com tantos ferimentos ainda abertos. O descampado onde foi decidida sua sorte se viu tomado por corpos mutilados e por valentes guerreiros munidos de redes e espadas de aço, alguns a cavalo rodeando uma fera aparentemente enjaulada.

Cercado e sangrando cada vez mais devido ao conjunto de ferimentos acumulados no corpo, quase em estado de cólera bestial a estraçalhar quem se aproximava, Conan logo veio a tombar, não por qualquer ataque de espadas e sabres inimigos, mas pelo veneno de lótus contido em suas pontas de flechas e lanças.

- Malditos civilizados e seus subterfúgios – praguejou sozinho na tenda, enquanto ansiava pela jarra com água a frente, sem conseguir sequer segurá-la para sorver o precioso líquido. Por um breve instante, o cimério ouviu um ruído na escuridão e seus sentidos bárbaros o alertaram para alguma presença escondida. Como não tinha nada a perder, Conan decidiu inquirir quem ali estivesse.

- Quem quer que seja, podes sair de trás destes entulhos. Sei que estás aí.

O jovem Aradegi saiu de um canto de trás de algumas caixas com provisões, um tanto temeroso diante daquela fera poderosa, ainda que ferida e aprisionada. Era como se o magnetismo de Conan o forçasse a parlamentar com o guerreiro. De certa forma, o rapaz tinha sido atraído pela figura de alguém que ele apenas imaginava existir em contos sobre heróis e semi-deuses.

- Peço perdão, Amra. Eu achei que passaria despercebido – falou o jovem, depois de hesitar por alguns instantes. Conan sempre se surpreendia com a força do nome Amra, e normalmente ele não fez questão de dizer seu verdadeiro nome para aqueles que lhe chamavam daquela forma. Ele gostava de tal designação.

- Isso é difícil para um bárbaro. Normalmente percebemos o que acontece em nossa volta. Bom, pelo menos eu achava que funcionava assim – ironizou o cimério, visto que tinha sido capturado em um raro momento de confusão em sua percepção de ave de rapina.

- Sou Aradegi – respondeu o jovem, diante do olhar inquiridor de Conan.

- Sei. É escravo desses cães mercenários?

- Não, sou apenas um curioso invasor da casa. Vim aqui para ver a garota e também o que fariam com o prisioneiro.

- Ah, a brituniana. Bem, certamente que é um bom motivo para entrar de forma sorrateira em uma morada cheia de homens de arcos e espadas. Apesar de ser tolice fazer isso sem quaisquer armas em mãos. – As palavras de Conan mal contiveram a ironia em seu olhar e expressão.

- Verdade – respondeu o constrangido rapaz. – Mesmo assim entrei e me esgueirei pela casa. Até pude ouvir a conversa dos seus captores no quarto principal. Fiquei debaixo da janela do líder até que Alexia se retirou, irritada pela discussão com os outros mercenários.

- Discussão? Sobre o quê? – perguntou o cimério.

- Pelo que entendi, ela desconfia do líder mercenário e do valor do butim por sua captura – respondeu o jovem, como se conhecesse um segredo imemorial de reis ou magos poderosos.

- Ora, isso pode ser proveitoso para a minha situação. Se me fizeres algo eu posso te pagar quando me livrar dessa corja que me capturou. O que achas?

- Não sei. Sou péssimo com uma espada.

- Decida logo. Caso não queiras, pelo menos me alcance aquele jarro de água em frente. – Conan  mal escondeu a impaciência com a indecisão de Aradegi. Em silêncio, o jovem refletiu e chegou à conclusão de que esperava a fuga do bárbaro, apesar de não entender os motivos. Logo, ele se viu levando a jarra até o cimério, ajudando-o a beber do pouco que continha ali. Por fim, veio a pergunta:

- O que posso fazer, afinal?

- Bom, poderias me conseguir as chaves destes grilhões, mas como morrerias se tentasse, melhor encontrar sua musa guerreira e trazê-la até aqui para falar comigo.

- Ela vai querer vir? – perguntou o jovem, com ar incrédulo diante da certeza aparente do cimério.

- Ora, diga que é do interesse dela. Que talvez ela tenha a ganhar mais comigo do que com homens pouco confiáveis. Vamos ver como ela responde a isso.

Como uma sombra esguia, Aradegi se retirou da tenda de Conan, sem ser visto no meio das sombras. Temeroso, o jovem shemita se dirigiu novamente até a casa central da propriedade, torcendo para encontrar Alexia em algum dos quartos do primeiro andar. Definitivamente, pensou consigo mesmo, ele levaria uma bela surra do pai quando, e se, chegasse em casa.

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III

As noites de Asgalun são conhecidas pelo silêncio e pela escuridão que encobre os prédios e as ruas bruxuleantes da cidade, muito em razão da neblina constante que desce pelos vales no entorno ao rio Prat-Virat, um dos muitos afluentes do Khorothas, que deságua no Mar do Oeste. Na casa de alvenaria dos captores do homem conhecido como Amra, uma figura feminina subiu soturnamente as escadas até o segundo andar, onde se encontrava o quarto do nemédio Marcius.

Alexia, claro, tinha tirado a barulhenta armadura de placas, vestindo agora uma túnica leve que mal encobria as curvas do corpo escultural. As coxas grossas e o quadril largo eram encimados por uma cintura estreita, formando com os seios médios uma forma quase perfeita do ser feminino. 

Certamente que Alexia era cobiçada por muitos homens, incluindo príncipes, nobres e magistrados, mas ela tinha escolhido vencer na vida pela espada e não por qualquer casamento arranjado, tão comum entre as jovens de sua cultura. Ela jurou, ainda muito cedo, que jamais seria uma mera consorte ou esposa de algum nobre rechonchudo e inútil de um palacete de fronteira.

Se fosse para seguir os costumes britunianos à risca, provavelmente ela acabaria aprisionada em uma sala com tapeçarias rústicas a tecer para o marido e para sua prole por toda uma vida, algo usual entre as mulheres daquela raça, muitas vezes tidas como perfeitas para se casar ou flertar, como se fossem meros objetos passivos da lascívia masculina. O que, aliás, levava a perseguições constantes da parte dos mercadores de escravos zamorianos e soldados turanianos, deixando um vazio extremo nas famílias britunianas que perdiam suas filhas para o comércio de cativos.

Ao entrar no quarto do líder mercenário, Aléxia ouviu sua respiração forte em meio ao torpor do sono e ficou em completo silêncio na escuridão, tateando o lugar para encontrar as pistas que viera buscar. Na escrivaninha que Marcius comumente utilizava, para escrever bilhetes e cartas com informações ou avisos, ela encontrou muitos papéis revirados e bagunçados. Sem ao menos ver exatamente do que se tratavam, em razão da escuridão total ali presente, ela levou um punhado daqueles papéis ao corredor.

Entrando em outro cômodo qualquer, depois de averiguar que estava vazio, Alexia fechou a porta de madeira a acendeu uma tocha, sentando em um pequeno divã de madeira com panos rústicos por cima, colocados ali para o descanso dos convivas. Ela procurou e leu várias anotações do líder mercenário e fez tal percurso ao quarto e à escrivaninha de Marcius mais quatro vezes, até que por fim, encontrou as provas que viera buscar. Realmente, o dia seguinte seria muito perigoso e a garota ficou eufórica diante de tal possibilidade.

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IV

A comitiva contava agora com mais pessoas do que no dia anterior, quando adentrou na cidade com seu prisioneiro imponente. Além dos mercenários sobreviventes, estavam o Rei Salmanaser II, o emissário Mahalahin, além de oito integrantes da tropa de elite do séquito real.

Conan vestia uma túnica e um manto de proteção para o deserto e estava agora montado a cavalo, ainda que com os pulsos bem amarrados atrás do torso. Pelo menos, isso era o que afirmara Alexia, que havia se colocado como responsável por levar o bárbaro até sua montaria.

Além dos viajantes, havia uma carroça com provisões, mais barracas e tendas para o conforto da comitiva. O responsável por levar o rei de Asgalun até o leste, de modo a que fosse arquitetado o acordo com os senhores de Shushan, era o capitão Tiglates, conhecido por suas táticas precisas, discernimento singular, habilidade com a espada e retidão nas palavras.

Podia se dizer que Salmanaser II, Tiglates ou mesmo Mahalahin representavam seus respectivos estereótipos, funções sociais e posições. O monarca era um jovem pomposo com uma barba rala enegrecida no queixo redondo, estando um pouco acima do peso e ricamente tapado com tecidos finos de seda azulada, encimados por um manto branco com detalhes prateados e púrpuras.

O capitão da guarda, por sua vez, era um homem alto, com feições rústicas, olhos negros honestos, nariz adunco e barba encaracolada negro-azulada, vestindo mantos simples amarronzados por cima de uma armadura de couro batido simples com o brasão da monarquia local, uma lua nova sob nuvens sombreadas.

Já Mahalahin, comumente chamado de “O Esguio” era um típico conselheiro de corte, com traços finos, túnicas alaranjadas macias e esvoaçantes, jóias espalhafatosas e um chapéu de feltro tipicamente shemita, cortado em forma de cone e acoplado na cabeça raspada. Uma ponta de barba pontiaguda fina pendia do queixo proeminente, tendo ele um sorriso de pura lascívia e ironia que jamais esconderia qualquer ensejo de maledicência. 

Era comentado na corte, aliás, o quanto ele era iniciado nas artes da feitiçaria, com magias de mimetismo e de controle ou confusão da mente, além da enorme influência política que exercia junto ao rei Salmanaser II, talvez perdendo apenas para Tiglates nesse quesito. Certa vez, um dos primos do rei ousou questionar a presença do conselheiro junto ao monarca e o fato de que seria ele quem realmente dirigia os negócios de Estado da cidade. 

Repentinamente, na mesma noite em que tais acusações contra o Esguio foram levantadas, o acusador começou a ter espasmos alucinatórios, falando em fim de todas as coisas e de um novo cataclismo destruidor de proporções ainda maiores do que os anteriores. Nunca mais se viu ou ouviu falar do sujeito na cidade, o que foi motivo de grandes suspeitas veiculadas de boca em boca, chegando comumente aos ouvidos do capitão Tiglates.

Marcius tinha dividido os espólios recebidos pela captura do bárbaro logo na primeira hora da manhã, ainda que a quantia fosse menor do que a prometida por ele, o que confirmou para Alexia aquilo que Conan tinha lhe dito na madrugada, logo após o jovem Aradegi ter levado a moça à presença do cimério. O jovem shemita, aliás, estava escondido na carroça, debaixo de mantos que serviam de proteção para as provisões da comitiva.

Quando conversou com o cimério, conhecido como Amra na tenda, Alexia se impressionou ainda mais com sua figura, algo que já havia acontecido no momento em que se conheceram à beira do afluente do Khorothas. Não era apenas a força primal bárbara de Amra que deslumbrava a guerreira brituniana, nem mesmo sua resistência sobrenatural diante de seus ferimentos pelo torso poderosos e pelos braços altivos.

O que realmente a impressionava era a forma reta e honesta de cada palavra proferida pelo cimério. Em outros termos, Alexia via no bárbaro mais honestidade e retidão de caráter do que na maioria dos homens civilizados que conhecera ao longo de sua jornada, muitos deles sedentos por poder e ávidos por prazeres imediatos, abusivos e ilimitados.

Conan olhava para Alexia como qualquer homem o fazia, com desejo, mas ao mesmo tempo ele a olhava nos olhos, sem quaisquer subterfúgios nas palavras proferidas, vendo nela a valentia e a habilidade guerreira que tanto a garota tinha lutado para serem reconhecidas. Ele a respeitava como uma igual na arte da esgrima e isso era, para Alexia, a certeza absoluta de que valia a pena ajudar tal homem contra seus atuais companheiros.

E isso, principalmente após ela encontrar documentos e cartas com ordens dos senhores do leste para o nemédio Marcius. Evidências a desvelar que ele deveria se aliar às forças estrangeiras turanianas que perambulavam pelo reino shemita, configurando uma traição ao senhor de Asgalun, o empregador da comitiva de mercenários da qual Aléxia fazia parte. Além, disso claro, havia o fato de Marcius não dividir o butim de forma equânime entre os sobreviventes do grupo, tal como prometido por ele.

A comitiva se retirou da cidade sob os olhares desconfiados dos súditos do rei Salmanaser II, muitos dos quais igualmente impressionados e estupefatos com a coragem de seu monarca em viajar para o leste com tão poucas defesas. Era quase um consenso entre o povo miúdo que a tentativa do rei de conseguir um acordo no leste era apenas uma visão inocente e idealizada de um jovem inexperiente, algo que provavelmente jamais vingaria.

- Ouvi falar de suas aventuras, Amra. Se metade do que me disseram for realmente verdade, devo ressaltar que o respeito, apesar de agora seres nosso prisioneiro – falou Salmanaser, logo que seu cavalo ficou ao lado do de Conan, igualmente ladeado por Alexia.

- Bem, de minha parte eu trocaria seu respeito por uma faca e uma espada. A primeira para cortar essas cordas que me prendem, e a segunda para cortar as cabeças de todos os meus captores – respondeu Conan, com a seriedade de quem não fazia bravatas aos ventos.

- Há. Muito bom bárbaro. Você é exatamente como dizem ser os homens do norte da Aquilônia, sejam eles vanires ou aesires – respondeu o monarca, de forma espalhafatosa.

Conan, aliás, sentia dificuldades em diferenciar os homens civilizados, mesmo conhecendo toda a variedade de suas raças, culturas e nações. Isso porque, o cimério achava que eles se vestiam de forma semelhante, normalmente com tecidos finos, roupas coloridas demais para seu gosto, jóias caras e brilhantes nos dedos e nos pescoços, além do cheiro de mirra e incenso forte que emanava de seus corpos franzinos ou gordos, algo para disfarçar o fedor de suas corruptíveis ambições.

- Cimério. Sou do norte, mas não sou nem vanir e nem aesir – respondeu Conan, de forma soturna e direta, sem rodeios.

- Entendo. E Amra é como te chamam em sua terra – sussurrou o rei, não como uma pergunta, mas como uma confirmação para si mesmo.

- Não. É só um nome que tenho nessa região mais próxima ao Mar do Oeste – respondeu Conan, lacônico. – Claro que devias estar mais preocupado com outras coisas. Como por exemplo, o fato de tropas turanianas estarem transitando por Shem, com o apoio dos monarcas do leste, fora o fato de seu mercenário chefe contratado ser um provável aliado dessas tropas.

- Ora, mas que coincidência tal relato, cimério, visto que a comitiva de Marcius, antes de eu me unir a ela veio de Turan – aproveitou Alexia para complementar a fala do cimério, de modo a fomentar desconfianças no capitão Tiglates e no próprio Salmanasar.

Diante dessas palavras de Conan e de Alexia, o senhor de Asgalun apresentou uma leve dúvida e até preocupação na face, enquanto Marcius se aproximou a cavalo, ao lado do emissário real com fisionomia de hiena, Mahalahin. Alexia não conseguiu conter uma risada irônica alta, meio que confirmando a plausibilidade das suspeitas ali proferidas pelo cimério e por ela mesma. Bem, ela sabia que tinha as provas daquela traição e esperava o momento certo para mostrá-las.

- Cale-se bárbaro. Não coloque bobagens na cabeça dos outros para escapar do cativeiro – Március se adiantou em sobressalto, demonstrando certo descontrole ante palavras tão perigosas em torno de um possível complô contra o rei Salmanaser.

- Tenho certeza que suas palavras não passam de invenções, cimério, mesmo com as divagações da mercenária. Os senhores shemitas têm muito com o que se preocupar diante dos avanços de Koth ou da Stygia para colocar lobos turanianos defendendo suas cidades-estado – respondeu abruptamente Salmanaser II. – Além do mais, meu emissário pessoal garantiu essa empreitada após parlamentar com o rei Yin-Allal, de Shushan. Você será uma amostra de minha generosidade para que possamos estabelecer uma união em benefício de Shem – ele concluiu, mais para se auto-convencer do que ao cimério.

- Então, me diga. Como fui ferido por soldados turanianos na vinda para Asgalun? Mais ainda. Como explicas que seu emissário convenceu seu rei e senhor a ir até a cidade de um adversário da nobreza shemita, ao invés de marcar um encontro em algum lugar neutro, como é de costume em situações dessa envergadura? E por fim, me explique. De quem foi a ideia estúpida de uma comitiva real com tão poucos guerreiros?

Conan definitivamente não gostava das artimanhas dos homens civilizados e sabia que a melhor forma de escapar do cativeiro e de solucionar seus problemas imediatos estaria, como de costume, no manejo da espada e de suas habilidades inatas de guerreiro. Mesmo assim, ele plantou uma pequena chama de dúvida na mente do senhor de Asgalun. 

A intenção de Conan, no entanto, era plantar, ou melhor, aumentar a desconfiança em Tiglates, visto que o oficial tinha como objetivo proteger a vida do rei Salmanaser a todo custo. Isso significava defender seu senhor e livrá-lo de quaisquer possíveis ameaças, independentemente de onde viessem. Até porque, o capitão já estava desconfiado com a decisão do rei e de seu emissário em dispor de tão poucos guerreiros na viagem, algo considerado por ele como uma estupidez tal e qual Amra expôs em suas sábias palavras.

Próximo a um oásis, em meio a algumas árvores nativas, o grupo estacionou e começou a organizar seu acampamento ainda antes do final da tarde. Era o último recanto seguro do oeste antes de adentrarem nos desertos orientais de Shem, o ermo que levaria à grande Imperial Shushan, e onde imperava o desconhecido e tantos possíveis perigos. 

Caravanas de mercadores costumavam usar o local como paradouro, para dar de beber aos cavalos, estocar água e descansar antes de se deslocarem para as luxuosas cidades-estado shemitas, levando e trazendo artigos variados do porte de vinho, mirra, jóias, seda, carne seca, roupas, artigos variados de vidro, entre outros tantos. 

A comitiva organizou a tenda real e Salmanaser II recebeu visitas e vivas de seus muitos súditos que passavam pelo local. Marcius estava mais afastado, parlamentando com Mahalahin, quase que em um cochicho suspeito, aumentando as suspeitas da parte de Alexia e, principalmente, do capitão Tiglates. Conan, por sua vez, se mantinha amarrado pelos pulsos, alocado próximo à carroça de suprimentos, com uma calma incomum para alguém em situação de cativeiro, ainda mais em se tratando de quem era: um bárbaro, e de onde viera, da distante Ciméria.

Em algum momento antes da chegada da noite rubra, Alexia conversou com Tiglates e Conan pôde vislumbrar de longe o capitão concordando com a cabeça diante das palavras da garota, ainda que ela não tenha passado às mãos do capitão shemita as provas contra Marcius nesse momento. A semente da discórdia já estava plantada e tinha um solo compatível para prosperar, apesar da ação a seguir ser deveras perigosa.

Logo após tal encontro, Aléxia se dirigiu à tenda do rei. Antes de entrar, ela não deixou de olhar rapidamente para Conan, como em um pedido de aprovação para o que deveria ser feito. O plano, finalmente seria colocado em prática. Em alguns instantes depois, o Rei Salmanaser era sumariamente retirado bruscamente da tenda real, com a guerreira brituniana atrás dele, segurando uma adaga afiada em seu pescoço. 

Os soldados de elite do rei se aproximaram rapidamente, desembainhando suas respectivas cimitarras, enquanto Tiglates formava, propositalmente, um cerco em volta da brituniana, que agora tinha Salmanaser como refém. Marcius, por sua vez, mais Raxoranius e Harlan igualmente se eriçaram diante da batalha iminente, ainda que o primeiro tenha focado em Conan de modo a não perdê-lo de vista.

Tarde demais. Conan estava livre – “provavelmente sempre esteve”, pensou o líder mercenário. Além disso, o jovem Aradegi apareceu de seu esconderijo improvisado na carroça e rapidamente jogou uma espada aos pés do cimério, o que igualmente surpreendeu a todos. O plano estava em movimento e os dados foram lançados.

- Traição – gritou Marcius, abruptamente, sacando sua espada e se dirigindo a Conan. O cimério calmamente se aproximou, enquanto os guardas se deslocavam diante de sua passagem.

- Não de minha parte, que nunca jurei fidelidade ou efetuei qualquer acordo com o senhor de Asgalun – respondeu Conan, apontando para sua esquerda, onde mais ao longe, Mahalahin montava em seu cavalo, pronto para alguma ação evasiva 

- Aliás, acho que um traidor está logo ali, pronto para fugir a galope – as palavras do cimério criaram uma aura de desespero irracional em Malahalin, que partiu abruptamente, muito em razão do olhar de suspeitas de Tiglates em sua direção. Alguns guardas shemitas, talvez orientados previamente pelo capitão, até tentaram impedir o avanço do emissário, mas o olhar hipnótico do Esguio fez com que os mesmos ficassem em situação de letargia. De certo mesmo, é que a fuga confirmava uma culpa que podia ser, quem sabe, facilmente questionada.

- O que significa isso? – gritou Salmanaser, completamente confuso diante da situação inesperada.

- Olhe e escute bem. – foi a resposta de Alexia, apertando a faca junto ao pescoço do rei, tirando um filete de sangue.

- Vocês três, peguem os cavalos e capturem Mahalahin. Quero saber por que esse arremedo de feiticeiro foge como um bisão vislumbrando uma pantera – falou Tiglates, apontando para três de seus soldados de elite mais próximos, que prontamente montaram em seus esguios alazões e saíram em perseguição ao emissário fugitivo.

- Eu posso explicar tudo, capitão. Mas antes disso, se me permitir, vou mandar para o inferno um outro traidor – foi a resposta de Conan, se colocando à frente de Marcius, ambos cercados pelos guardas shemitas. 

Roxarianus e Harlan fizeram movimentos de ataque e Alexia, de pronto, os dissuadiu a não se intrometerem na contenda entre Marcius e Conan, prometendo cortar a garganta do rei caso isso acontecesse. O capitão apenas olhou rispidamente para ambos, sacando sua espada e já deixando claro que deveriam obedecer as ordens da guerreira. Suas suspeitas contra o bando de Március o fazia apenas averiguar onde as ações de todos ali iriam levá-los.

- Então você estava solto desde ontem e armou este ardil com Alexia. E ainda me chama de traidor, cão bárbaro! – gritou Marcius, espada em punho e em posição de ataque.

- No final, tudo será esclarecido para os shemitas, mercenário. Tu não estarás aqui para ouvir.

Foi a resposta de Conan, muito racional em tal situação extrema e também em posição de combate, em parte com o musculoso corpo titânico contraído tal e qual um felino de grande porte diante da presa. A presença do cimério com uma espada em punho era mais do que suficiente para causar temor nos soldados shemitas ali presentes. Alexia sorriu levemente diante da cena e teve a mais pura certeza de que o combate entre Conan e Marcius já estava decidido, mesmo antes do choque das espadas em sua dança frenética.

Marcius tinha a aparente vantagem da couraça peitoral, logo avançando e sendo bloqueado por Conan, um movimento seguido de mais outros dois idênticos, até que por fim, um ataque da esquerda para a direita da parte do mercenário passou no vazio, enquanto Conan recuava o tronco para não ser trespassado pela espada inimiga. 

No movimento logo em seguida, Conan, com uma habilidade quase sobrenatural desferiu um golpe de cima para baixo com sua lâmina, acertando em cheio o crânio do líder mercenário, partindo-o como uma abóbora podre bolorenta. Antes mesmo do corpo cair ao solo, Conan chutou o tronco do inimigo morto, jogando-o uns dois metros à frente, de modo a livrar sua espada para esperar mais algum ataque inimigo. 

Raxorianus e Harlan avançaram logo em seguida, desobedecendo às ordens de Tiglates. Este gritou para que seus homens não interferissem novamente e todos obedeceram de imediato, tal como filhos leais ao senhor. O cerco continuava.

O guerreiro kushita-poitiniano avançou com sua lança negra e Conan desviou seu próprio corpo, colocando-se habilmente nas costas do homem e usando a própria lança do atacante em um enforcamento, logo após largar a espada ao chão. O shemita, por sua vez, parou seu movimento de ataque quando percebeu que Alexia tinha deixado o rei e se interposto entre ele e Conan, espada em punho, sorriso nos lábios e uma felicidade latente por trocar golpes com o mercenário, talvez o mais habilidoso da companhia.

- Não interfira, mascote shemita. Tua luta é comigo – foram os dizeres da garota, olhos nos olhos do adversário, enquanto o capitão Tiglates socorria seu senhor.

Na luta entre Conan e Raxorianus, a força seria o divisor de águas, tanto para a vitória de um como para a derrota do outro. O cimério apertava o pescoço do kushita pelas costas com a lança, e este segurava a mesma, de modo a impedir seu próprio sufocamento. O mais vigoroso entre eles certamente venceria a disputa, a menos que  a lança se rompesse com a brutalidade inata dos titãs em luta. Raxorianus tentou empurrar o cimério com suas costas, mas Conan era um colosso imóvel, quase enraizado ao solo arenoso.

Quando menos esperado, Conan deu um passo para trás e jogou o kushita longe, em direção contrária com a força do impulso dele mesmo. Enquanto tal movimento acontecia, a lança se partiu ao meio, ficando suas duas partes quebradas em cada uma das mãos do cimério. O kushita se virou rapidamente, pegando a espada de Conan ao chão, mas antes que percebesse, o cimério o golpeou com uma das partes da lança quebrada no olho esquerdo do homem, jorrando sangue e miolos para os lados, enquanto a haste penetrava fundo na cabeça, matando-o irremediavelmente antes mesmo dele desfalecer ao solo.


(Ilustrador: Cayman Moreira)

Ao mesmo tempo em que tal contenda acontecia, Harlan se preparou em seu movimento de ataque, tencionando efetuar seu golpe padrão de corte transversal com sua “corta cabeças”, um golpe que usualmente encerrava qualquer disputa. Ele sorriu de forma exagerada, talvez pela adrenalina do combate, e Alexia aproveitou o momento para efetuar uma guarda clássica, segurando sua espada verticalmente em frente ao corpo.

- Uma pena que eu tenha que matá-la, linda Alexia – falou o shemita, aparentemente seguro de si, tal como a maioria dos homens diante das mulheres.

- Não sinto o mesmo, shemita – foi a única resposta de Alexia.

O homem avançou com uma rapidez surreal, convicto da vitória em um único golpe. Alexia fez o mesmo e ambos os combatentes passaram um pelo outro, com movimentos de ataque deveras semelhantes, ambos num ângulo de dentro para fora e nas direções dos respectivos pescoços inimigos. Alexia permaneceu em pé, enquanto Harlan desfaleceu em um jorro de sangue da jugular, sua cabeça voando do corpo tal como uma rolha retirada abruptamente da garrafa.

Num último momento, Conan avançou sobre os outros mercenários restantes, quase catatônicos diante do embate, pegando no mesmo movimento sua espada ao chão. Antes mesmo que eles pudessem reagir, o cimério acertou os dois primeiros, no torso e no ombro, respectivamente, enquanto os dois guerreiros mais atrás, já feridos desde a captura do cimério, largaram suas espadas com temor desconcertante, colocando as mãos para cima em clara rendição.

Logo adiante, três soldados shemitas voltavam de mãos vazias após tentar, em vão, capturar o arredio comissário Mahalahin. Ficava evidente que o nome Esguio não fora escolhido sem motivo. O rei Salmanaser, ao lado do capitão Tiglates, estava protegido pelos seus e eles ainda não acreditavam na cena que presenciaram. De certa forma, o senhor de Asgalun e seu principal oficial finalmente entenderam que as aventuras e habilidades guerreiras contadas sobre Amra eram eminentemente verídicas.

À sua frente, um bárbaro sorria para sua companheira guerreira, como se ambos fossem dois parceiros de uma matilha que havia acabado de abater um conjunto faminto de lobos adversários. Certamente que perguntas deveriam ser respondidas.


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V

Normalmente, é difícil ao homem comum compreender a complexidade das ações e de toda e rede de acontecimentos à sua volta, sejam estes simples ou complexos. Isso é ainda mais evidente em uma situação de guerra ou de conflitos entre grupos, cidades ou Nações. Se havia um homem que poderia compreender o desenrolar dos acontecimentos e fatos ali no pequeno e idílico oásis do leste de Shem, esse homem era o capitão Tiglates, conhecido por sua sagacidade nos quesitos da tática e da estratégia.

- Pelo que entendi, esses mercenários estavam nos levando para uma armadilha. Não é isso, Amra?

- Exato. Pelo menos foi o que depreendi dos acontecimentos dos últimos dias – respondeu Conan de forma breve e honesta.

- Explique.

- Fui perseguido por vários dias por uma tropa de turanianos do leste de Shem até Asgalun e, em algum momento da fuga, vislumbrei o tal Marcius falando com o líder da tropa – iniciou o cimério. – Quando fui capturado pelos mercenários e vi que eles iriam escoltar o rei de Asgalun até o leste, vinculei uma coisa com a outra. Não considero irreal, aliás, que os turanianos estejam esperando a comitiva em algum lugar apropriado.

- Ainda acho estranho que a mercenária tenha traído seus companheiros sem saber do plano urdido por seu líder, mesmo que a conversa que tive com ela antes do ocorrido me leve a crer na veracidade disso tudo – falou Tiglates, olhando para Alexia, ainda desconfiado.

- Como lhe disse antes, capitão, eu me juntei ao grupo na entrada da cidade e o fiz porque me foi prometido parte dos espólios pela captura de um fugitivo da realeza. Bem, pelo menos foi o que me disseram, antes de encontrar provas de que o nemédio estava trabalhando com forças turanianas pelo reino shemita, tal como pode ser visto nesses papéis que encontrei na escrivaninha de meu ex-líder – respondeu Alexia, entregando a Tiglates os papéis com as ordens dos reis do leste para Marcius, sem jamais desviar o olhar diante da inquirição desconfiada do capitão shemita. Tiglates, claro, pegou de pronto e olhou tais papéis com suspeitas, logo entendendo do que se tratavam.

- Esperem um pouco. Como sabem que Mahalahin estava nesta trama? – perguntou o rei Salmanaser, olhando para os lados, como se procurasse a figura do emissário suspeito.

- Ora, mesmo sem as provas nas mãos do capitão, bastaria juntar os fatos. Os turanianos me perseguem até o oeste e eu escapo ferido. Logo, descubro que existe um preço por minha captura em Asgalun, sem nem mesmo alguém na cidade saber que eu estaria pela região. Ao mesmo tempo, a realeza daqui contrata os tais mercenários para me capturar, e alguém tem a ideia estúpida de armar um encontro com os monarcas shemitas de Shushan, tendo, por coincidência, a mim aprisionado como prêmio, exatamente o homem que está sendo perseguido pelos aliados turanianos dos reis do leste – iniciou o bárbaro, olhando seriamente para o monarca. Logo, Conan apontou para o ermo do leste, terminando:

- Era preciso ter esse tal “alguém” junto ao rei de Asgalun, para que ele aceitasse a ideia de união com o leste mediante minha cabeça numa bandeja – terminou Conan, quase como um pai explicando o óbvio ao filho.

- Desculpe meu senhor, mas os documentos que peguei com a mercenária são explicativos das ordens de Marcius para levar a comitiva real a uma armadilha liderada por forças de Turan. Sabes muito bem, também, o quanto sempre desconfiei das ações do conselheiro Mahalahin, apesar de respeitar a vontade de seu pai quando o indicou para tal cargo – interpelou Tiglates, com a mão no ombro do jovem monarca.

- Certamente capitão. Entendo isso e acato sua palavra, ainda mais diante dessas provas em mãos. E faz certo sentido o relato do cimério. Mahalahin veio com tal ideia de união há algum tempo. Uns dois dias atrás, ele me disse que poderíamos capturar o bárbaro chamado Amra, visto que, segundo sua sabedoria arcana, o guerreiro estaria foragido pela região. Ele pode ter sido avisado pelos turanianos que lhe perseguiram, Amra – falou o senhor de Asgalun, como em um breve surto de epifania.

- E provavelmente o mercenário Marcius chegou à cidade, para efetuar uma parte do plano – terminou Tiglates, complementando o raciocínio do rei.

- Faz sentido. Ele levaria o rei Salmanaser e sua comitiva para uma emboscada, sendo que os senhores do leste teriam como prisioneiros, em um único movimento, o antigo líder dos zuagires e o rei de Asgalun – desta vez, foi Alexia quem completou o raciocínio.

- Eu aposto todas as coroas pagas para Marcius que uma tropa turaniana está a espreita em um paredão de pedra a uns dois ou três dias de viagem em direção a leste, um lugar em que eu mesmo utilizei para emboscar meus perseguidores. Melhor ainda, aposto minha espada que se trata do restolho da mesma tropa que sobrou de meus perseguidores e que agora espera pacientemente para capturar sua presa real, quando a comitiva de poucos guerreiros e de mercenários traidores passarem pelo vale de pedra – foi a vez de Conan explicar a todos o que certamente era uma verdade inquestionável.

- Quantos são, afinal, Amra? – perguntou o capitão.

- Provavelmente o dobro de suas tropas aqui. Livrei-me de muitos deles pelo caminho, mas sobraram o suficiente para tal empreitada. Tenho certeza que não ganharam reforços, visto que não daria tempo dos mesmos chegarem ao local da emboscada – foi a resposta de Conan.

- E o que fazemos agora? – perguntou o senhor de Asgalun, como se ele fosse um mero empregado, e não o responsável por tomar as decisões.

- Ora, se me conseguires o que pagarias a Marcius, posso me juntar a Tiglates e a seus homens. Vamos até o paredão, fingimos que estamos caindo na armadilha e matamos os cães antes mesmo que percebam que a caça é, na verdade, um lobo disfarçado de cordeiro – respondeu Conan, novamente com um breve sorriso nos lábios, transparecendo que nem estava ferido depois de todo o episódio.

- Eu ficaria feliz em me juntar a essa nova comitiva, se me permitirem – foi a vez de Alexia intervir, olhando para Conan como uma aliada de velhos tempos.

- Bem, dependendo do papel de Malahalin nessa trama toda, pode ser que ele avise os turanianos de que o ardil deles foi desmascarado, acabando com a surpresa de nossa própria artimanha – foi a resposta de Tiglates, diante do plano de enganar os turanianos em sua própria emboscada, como bom estrategista que era.

- Nesse caso, vamos ter apenas mais trabalho, mas com o mesmo final – sorriu Conan. – Eu conheço bem a região, e usei o paredão de pedra onde eles se encontram agora para emboscá-los e enviar alguns deles para o inferno. Se corrermos e utilizarmos alguns atalhos que conheço, chegaremos lá antes mesmo do tal emissário. Eles não irão nem saber o que os atingiu – finalizou Conan, seguro de si e satisfeito pela empreitada que teriam pela frente.

Aradegi não deixava de se impressionar com todos aqueles guerreiros ali confabulando. Em sua memória dos fatos daquele episódio e da própria conversa que ouviu no oásis shemita, ficou a plena certeza de que as narrativas nemédias e outras tantas de mesmo escopo não exageravam quando descreviam sobre valentes guerreiros imponentes que se colocavam à frente de tropas indestrutíveis. 

Ele se lembraria exemplarmente de todo o episódio, mesmo muitos anos depois de encerrados os fatos da aventura. Lembraria que foi designado pelo capitão Tiglates de ir junto até Asgalun, agora em companhia do rei Salmanaser, disfarçado na ocasião de mercador, o que era uma forma efetiva de não levantar quaisquer ameaças além das já existentes.

Claro que os fatos sobre o final da epopéia seriam dirimidos na mente do shemita apenas muito tempo depois do ocorrido, para que se tornassem claros e ao mesmo tempo grandiosos e épicos. Algo deveras usual nos relatos existentes sobre o poderoso bárbaro conhecido como Amra.

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VI

            O vale pedregoso de Uruk-Sah tinha o contorno perfeito para uma emboscada. A rocha bruta formava dois paredões de dez metros de altura de um lado e mais de doze metros de altura do outro, ambos contornando uma estreita passagem sinuosa. Essa passagem deveria ter uns cinco metros de espessura e era contornada por esses dois paredões quase que verticais, com sacadas naturais, cavernas e buracos múltiplos em suas paredes rochosas. 

O estreito seguia do oeste para o leste e tinha mais ou menos uns dois quilômetros de comprimento, obrigando muitas caravanas comerciais a fazerem a volta para não serem atacadas pelos ladrões e nômades do deserto que costumavam se esconder e se abrigar em suas múltiplas cavernas.

Na parte de trás do rochedo mais elevado, havia uma breve inclinação na própria formação rochosa, permitindo uma escalada relativamente fácil até mais da metade de sua altura. Se pela frente era quase impossível subir no paredão vertical, na parte de trás havia uma espécie de rota espiralada, como que uma escada natural na pedra crua que terminava exatamente na maior entrada de caverna ali existente.

Dali de cima, em uma das maiores sacadas em frente a uma grande caverna, o turaniano Branaric vislumbrava ansioso a longa planície de gramíneas esverdeadas que se abria a oeste de Shem, para além do paredão de pedra, um tanto impaciente pela longa espera da comitiva real de Asgalun.

Fazia alguns dias que ele e seus comandados tinham desistido da perseguição ao bárbaro Conan, conhecido no oeste do reino shemita pela alcunha de Amra. A desistência tinha sido ordenada por um dos muitos espiões do rei Yin-Allal, estando tal espião atuando há muito tempo nas cidades do oeste  a mando do senhor de Shushan.
           
Branaric sabia apenas que cumpriu seu dever em avisar seus superiores sobre a longa perseguição ao bárbaro até Asgalun. Ele recebera com certa insatisfação, no entanto, algumas ordens insossas vindas do leste. Para deixar imediatamente a cidade e a perseguição ao bárbaro, de modo a que os mercenários do homem conhecido como Marcius terminassem o serviço que ele e seus bravos soldados tinham exemplarmente iniciado. 

Ora, pensava Branaric, por mais de uma vez, ele e seus intrépidos turanianos emboscaram o ex-líder zuagir no ermo, ferindo-o, ainda que superficialmente, em muitas dessas ocasiões. Por conta disso, o turaniano não concordava com as ordens recebidas. 

Em sua opinião, suas tropas tinham perdido muitos soldados pelo fio afiado e sanguinário da espada selvagem de Conan, considerando o plano da emboscada ali uma tarefa deveras complexa para ter algum êxito, com muitas variantes possíveis que minavam sua eficácia. Não era do feitio dos turanianos, segundo sua própria perspectiva, de colocar a arte da guerra nas mãos de espiões ou pretensos feiticeiros, ainda mais nas de um sujeito conhecido pela alcunha de “Esguio”.
           
Em meio a seus esparsos devaneios, Branaric finalmente vislumbrou uma movimentação vinda da estrada de pedras que passava entre o vale. Ele estranhou que se tratava de apenas um cavaleiro a galope e não da comitiva real de Asgalun, com seus esparsos guerreiros mais o bando mercenário de Marcius, até então cúmplices da pequena conspiração contra o rei shemita do oeste. O turaniano não gostou nem um pouco, aliás, do fato de tratar-se de um único homem a cavalo, sendo possível que fosse o próprio Conan, talvez um dos guerreiros mais perigosos das terras continentais.

            Ao se aproximar dos dois paredões de pedra de arenito enegrecido, o cavaleiro gritou algo, mãos para cima em algum tipo de prece desesperada, parecendo tratar-se de um aliado pedindo abrigo. Logo, Branaric percebeu de quem se tratava e imediatamente ordenou a seus homens que, deixassem o Esguio passar de modo a  escalar o promontório, sem o receio de ter qualquer flecha perdida em direção ao coração.

            - Por Ishtar! – exclamou Muhalahin, após uma difícil subida pela rocha bruta, ofegante e com muita sede depois de dois dias de intensa correria.

            - Calma, homem. Beba um pouco de água e diga-me o que aconteceu. Onde está a comitiva de Asgalun?

            - Falhamos. O bárbaro escapou com a ajuda de uma contratada do bando de Marcius. Provavelmente estão todos mortos e eu só não estou entre os cadáveres por conta das minhas aptidões místicas – respondeu o emissário, rosto contorcido pelo cansaço e pelo pânico diante do vislumbre da cena de matança no oásis a oeste.

            - Não há como efetivarmos a emboscada então? – perguntou Branaric, com a certeza da resposta negativa da parte do outro, mais para confirmar suas suspeitas.

            - Provavelmente não. As tropas de Tiglates devem retornar a Asgalun, diferentemente de mim, que tive que abandonar meu disfarce. Quando vi aquele bárbaro solto, espada em punho e fazendo acusações sobre uma possível aliança de Marcius com vocês turanianos, tive a certeza de que tudo se foi pelos ares. Até porque, a mercenária que traiu Március parecia ter provas escritas em mãos. Malditos cães ardilosos. Já estava difícil enganar aquele porco do rei diante das constantes suspeitas de Tiglates. Agora todo o meu esforço junto a seu falecido pai se perdeu – divagou Malahalin, mais para si mesmo do que para seu interlocutor, deixando entendido para ele o seu papel na corte de Asgalun.

            - Bem. Quem se serve de artimanhas como você, está fadado a fracassar nesse mesmo terreno. De qualquer forma, não há tempo para questionamentos. Anoitece rápido nessas terras e devemos levantar acampamento e retornar a Shushan de modo a avisar que nossas presas escaparam.

O chefe turaniano começou a ordenar a seus homens na caverna a levantarem acampamento. Lentamente, os soldados foram saindo de suas posições de espera e descanso, arrumando pertences e organizando a viagem para o leste. Mahalahin serviu-se de água e sentou-se em um canto para algum tipo de meditação arcana. 

Branaric, por sua vez, foi até os vigias agachados fora da caverna, em uma parte superior da sacada em frente, de modo a ordenar que se eles se retirassem de suas respectivas posições. Tarde demais. Os dois homens estavam mortos, com perfurações de espadas nos torsos ensanguentados. 

Um grito logo foi ouvido do interior da caverna e Branaric correu imediatamente para averiguar do que se tratava. Ao chegar de volta à grande câmara, a cena que presenciou foi de pura surpresa e selvageria. Seus soldados estavam cercados por tropas de Asgalun, lideradas pelo cimério Conan, ao lado de uma mulher guerreira vergando uma imponente armadura de anéis de aço, tipicamente hiboriana.

O pensamento do chefe turaniano divagou rapidamente pela lógica daquilo tudo e logo ele entendeu que o grupo, liderado pelo bárbaro, tinha pegado algum tipo de atalho para chegar ainda antes do espião shemita, emboscando todos eles juntos, tanto as tropas turanianas como seu comparsa arredio. Conan e seus aliados haviam virado o jogo contra todos eles e utilizado de seu próprio veneno para surpreendê-los.

O turbilhão de espadas e lâminas varou o interior da caverna e o acampamento se transformou em uma chacina rubra, com soldados turanianos sendo pegos de surpresa pelos invasores shemitas munidos de afiadas cimitarras de lâminas curvas. O capitão da tropa, Tiglates, além de Conan e Alexia se destacava no encarniçado combate, decepando membros e varando corpos como se os defensores turanianos ali fossem meros cordeiros recém-nascidos em um matadouro.

Branaric socorreu um dos seus soldados caídos e logo se viu em frente ao próprio guerreiro cimério, com sua longa espada reta em punho. O turaniano não podia deixar a responsabilidade de tentar conter aquele a quem julgava ser o mais perigoso dos atacantes. 

Seu sabre avançou em direção ao bárbaro e trespassou o ar mais de uma vez até que ela foi bloqueada pela lâmina habilidosa de Conan. Ao olhar nos olhos de seu adversário, o turaniano vislumbrou uma chama primordial, como se o homem representasse alguma raça esquecida no tempo e no espaço, talvez pré-cataclísmica.

Diante da temerária figura de Conan com arma em riste, o pavor tomou conta do espírito de Branaric, mesmo ele acostumado a tantas lutas encarniçadas de vida e morte em sua longa carreira militar pelo império turaniano. Quanto mais ele temia a selvageria inata do cimério, mais ele recuava até a sacada em frente à boca da entrada da caverna.

Quando finalmente percebeu, era ele quem estava defendendo-se dos golpes poderosos do bárbaro, acuado como uma lebre em frente a um leopardo assassino. Não havia dúvidas quanto à força do barbarismo latente naqueles golpes direcionados a seu torso, sumariamente mortais a qualquer instante da contenda. 

Conan atacava com a selvageria ancestral de seres acostumados a eras inteiras de combates pelos ermos do oeste continental, seja contra poderosas raças simiescas lá existentes, seja contra os selvagens pictos, que desde o cataclismo, perambulavam em suas vagas tribais de selvageria, lanças de sílex, cobre e ódio. Conan percebeu o temor de sua presa e fez questão de externar ao turaniano em palavras:

- Sua vida acaba aqui, cão turaniano. Pode-se dizer que minha emboscada será finalizada esta noite.

O golpe foi rápido e Branaric mal percebeu quando a espada reta do cimério perfurou seu peito desprotegido, um movimento executado com precisão e bem antes dele mesmo tentar uma manobra de ataque. Em outros dois movimentos certeiros e rápidos, Conan retirou a espada do corpo do turaniano e logo trespassou a jugular do homem, que ainda recuou dois passos antes de ter sua vida ceifada bruscamente por aquele a quem um dia perseguiu pelos ermos dos desertos e das planícies de Shem.

(Ilustrador: Alexandre Xanditz)

Mahalahin mal teve tempo de vislumbrar a carnificina na grande câmara da caverna e saiu em correria desenfreada diante do ataque das tropas shemitas de Tiglates. Quando deu por si, estava em alguma outra câmara subterrânea esquecida, provavelmente lateral e após outra passagem semi-oculta.

Escorado em uma parede rochosa nas sombras da pequena gruta viscosa e úmida, o Esguio logo notou a silhueta de um homem aproximando-se com espada em riste. Ele logo reconheceu a sinistra figura do capitão shemita, Tiglates, que há muito tempo ansiava por desmascarar o conselheiro real de Asgalun, guiando-o ao inferno com sua ligeira e precisa cimitarra.

- Suas artimanhas acabam aqui, Mahalahin. Espero muito por esse momento e certamente que amanhã acordarei certo de que cumpri meu dever de protetor da coroa de Asgalun.

- Se afaste, capitão!! Você não pode me ferir! Não pode… Sua mente me pertence, sua sanidade se perderá no breu do futuro devastador que lhe revelarei… Se afaste, agora! Tema diante do destino sombrio das civilizações humanas!

O próprio temor inscrito no fundo da alma do emissário traidor o fez se valer novamente de seus poderes arcanos de mimetismo e de entorpecimento da mente alheia, quase como uma contração muscular, algo que ele já havia realizado com os guardas shemitas quando escapou do oásis dois dias atrás. Mahalahin olhou nos olhos de seu caçador, e tal ato levou o capitão shemita a sentir um forte espasmo, seguido de um esgar horripilante e de uma imagem quase fantasmagórica que se incrustou na mente dele como um parasita profano.

Tiglates vislumbrou um futuro macabro de vagas de bárbaros destruindo as civilizações hiborianas e não-hiborianas. Corpos de homens de pele e ossos expostos eram empilhados em gigantescas valas putrefatas, deixando um odor fétido da carne apodrecida a invadir seu ser, como se ele mesmo estivesse em uma daquelas valas coletivas, entre condenados, moribundos e mutilados. O desespero tomou conta de sua mente e de seu corpo, agora imobilizado e trêmulo diante da sinistra imagem implantada no espírito. 

Malahalin então se retirou correndo da câmara, acreditando em mais uma fuga bem sucedida. Não seria desta vez. À sua frente, Conan se interpôs pelo caminho, segurando sua espada ensanguentada. Seus olhos eram faíscas incandescentes de pura temeridade e objetividade, e Mahalahin acreditou, por um breve instante, que somente sua arte arcana poderia livrá-lo de ser trespassado pela lâmina ensanguentada do titã de bronze.

Ele tentou o mesmo artifício que usara em Tiglates. O de implantar aquela imagem distópica na mente de Conan. Um futuro de morte e selvageria instintiva e genuína, quase natural e profética. Ele chegou até mesmo a acreditar no êxito de sua ação por um pequeno instante, em que o cimério recuou e baixou de relance seu olhar assassino. Logo, o Esguio percebeu que o recuo do bárbaro fora proposital, com o intuito de desferir um golpe contra seu tronco.

Malahalin finalmente percebeu o fim de todas as suas artimanhas e manipulações pelo aço retilíneo daquele homem, sem sequer entender o que dera errado com sua magia mental. Ao cair aos pés do cimério, o shemita apenas lamentou pela própria vida ceifada, logo por um daqueles homens bárbaros que, segundo suas visões proféticas e distópicas, um dia iriam ditar o futuro das civilizações hiborianas e não-hiborianas.

Conan, após terminar com o emissário sorrateiro, se aproximou de Tiglates, ainda imobilizado, ajudando-o a se reerguer. Dirigindo-se até a câmara maior da entrada da caverna, ambos puderam vislumbrar a vitória final dos soldados shemitas sobre as abaladas e confusas forças turanianas. 

Alexia, claro, tinha sobrevivido ao lado de outros quatro soldados shemitas, e seu rosto alegre estampava o gosto por duelos de lutas de espadas. Tiglates sentou-se em um pedregulho e respirou fundo, lenta e pesarosamente. Por fim, após instantes de contemplação ao vazio, ele  finalmente falou ao cimério:

- Aquela hiena me fez ver algo que me abalou intensamente. Não conseguia mover meu corpo diante daquela imagem de morte de toda uma civilização, nossa civilização como um todo. Que afortunado tu és por aquele feiticeiro não fazer o mesmo contigo, cimério.

- Ora, ele fez. Mas eu sou um bárbaro. Para homens como eu, a barbárie triunfa sobre a civilização com seu esgar de dor e morte, sendo uma engrenagem impossível de ser detida depois que as vagas bárbaras iniciam suas marchas. Tal imagem seria impossível de conceber para um homem civilizado como tu, capitão, mas para um bárbaro como eu, bem, aquilo foi apenas a emanação do futuro de todas as raças que perambulam pelo mundo em sua breve jornada rumo ao final.

Conan sorriu após tais palavras pretensamente filosóficas e certamente que suas digressões fizeram todo o sentido para o capitão shemita, que presenciou no rosto do cimério e antes disso, no do próprio Mahalahin, uma verdade transcendental que muito se delineou em sua alma. Era o momento de todos voltarem para Asgalun. Melhor dizendo, pensou Tiglates, de voltarem para a proteção transitória e ilusória da civilização.

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VII

O jovem Aradegi ficou sabendo um tempo depois, que o homem chamado Amra, mais Alexia e as tropas do capitão Tiglates emboscaram exemplarmente os turanianos no, paredão de pedra conhecido como Uruk-Sah, dizimando o grupo sem qualquer piedade, em uma sinfonia de desespero, decapitações e morte.

Todos na cidade relataram na época que o bárbaro e a brituniana chegaram juntos com os sobreviventes do corpo de elite das tropas reais de Salmanaser, e que todos foram muito bem recebidos pela própria realeza local, com toda a dignidade da pompa civilizada. O homem chamado Amra, que tinha adentrado na cidade dois dias atrás como um verdadeiro animal amarrado, ferido e combalido, agora era o herói audaz que salvou o pescoço do rei do oeste de uma emboscada perpetrada pelos turanianos, aliados dos traidores shemitas das cidades-estado do leste. Farsa essa, que levaria a outras tantas disputas entre as cidades shemitas, não somente de caráter diplomático, mas igualmente, militar.

Após o ocorrido, o jovem Aradegi finalmente voltou para casa e por recomendação do próprio senhor de Asgalun, ele foi considerado aprendiz do novo emissário da corte, o que impediu a surra que levaria do pai por se ausentar de seus afazeres profissionais na oficina da família.

A lembrança mais premente que ficou na mente do jovem shemita, porém, foi exatamente a da última vez em que viu e ouviu os dois guerreiros que tanto lhe impressionaram na ocasião: Amra e Alexia. O bárbaro, conhecido por todos como Amra, disse que seu nome real era Conan. Ele, inclusive, pagou em moedas o prometido pela ajuda que Aradegi lhe dera na tenda e no oásis do oeste, onde seu destino foi decidido pelo manuseio da espada e pela astúcia. O jovem shemita, aliás, jamais esqueceu do diálogo entre o bárbaro e a brituniana logo pela manhã do dia seguinte, quando ambos saíam da cidade a cavalo para algum lugar desconhecido dos ermos do leste.

- Espero, Amra, que não me perguntes se quero compartilhar sua cama.

- Ora mulher, não podes esperar que eu não tente isso, mas também não irei implorar ou usar de bobagens civilizadas para te convencer. De qualquer forma, faço questão de dividirmos algum espólio no leste, onde existe muito ouro, boa comida e bebida e uma quantidade considerável de bons serviços para quem souber empunhar uma espada.

- Bem, nesses termos, bárbaro, acho que temos um bom acordo. E não vou mentir que não estou considerando seriamente em dividir contigo uma noite em algum oásis próximo com um belo luar ao horizonte.

- Certamente que isso seria mais do que adequado. Afinal, temos muitos dias e muitas noites de viagem até os ermos do leste de Shem e da distante Hirkânia.

Ilustrador – Rafael Barbosa

FIM



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