(por
Cayman Moreira)
Amanheceu e, através do deserto, seguiam os
dois guerreiros em galope na direção da região das pirâmides assombradas, cujo
relevo sombrio se pronunciava visualmente no horizonte. A região em si, tinha
um aspecto de desolação e exílio de tal forma, que sequer eram percebidas aves
de rapina como os abutres, no céu. E ambos tiveram o mesmo pensamento,
lembrando ao encher cantis extras incluindo entre os seus, os dos mercenários
mortos no poço do Khafiri, sobre a possibilidade de aquele oásis ser o último
em qualquer ponto das amplidões desérticas que haviam à frente, e estavam
tranqüilos, por essa prevenção.
Enquanto cavalgava, Conan observava o perfil e
a longa cabeleira vermelha da guerreira a seu lado, iluminada pelo sol e
ondulando ao vento. A elegância de amazona nata de Sonja sobre a montaria já
havia sido comentada até mesmo por generais de vários exércitos, e o cimério
sempre teve uma atração à parte por ela ao vê-la cavalgar. Sua masculinidade
sentia algo de magnético naquela fêmea que exalava sensualidade, fosse ao
brandir a espada, fosse sobre o lombo de um cavalo. E ele sempre imaginara como
seria se... mas neste instante, desviou depressa a vista, pois a hirkaniana
estava olhando para ele também, com um olhar maroto. O bárbaro fechou a cara.
CROM! Preciso me concentrar no terreno, senão
este animal é capaz de tropeçar e quebrar a pata! E pode ter certeza que ela me
deixará a pé!
À frente deles, a silhueta das pirâmides
recortava-se no azul do horizonte, com montanhas de rocha escura, à direita, no
plano visual dos dois cavaleiros. Ambos progrediam em silêncio, absorvidos em
suas próprias conjecturas acerca do destino que os aguardava, embora que esta
fosse apenas mais uma incursão a um botim, sob uma perspectiva resultante ainda
indefinida.
À medida que se aproximavam, um sentimento de
alerta era igual para Conan e Sonja. A cor enegrecida das pedras que compunham
as pirâmides conferia ao local um aspecto de abandono, desolação e temor, algo
típico de lugares preferivelmente esquecidos e que propositalmente não constam
em nenhum mapa oficial. As pirâmides eram quatro e aparentemente tinham quase a
mesma altura de cerca de 200 metros por mais de trezentos de base, à exceção da
pirâmide inconclusa de Dhakshur, de aspecto mais arruinado e de cume
incompleto. As pirâmides tinham quase a
mesma distância entre si, sendo que a de Dhakshur era um pouco mais distante
das outras e era diretamente em direção ela que Conan e Sonja cavalgavam,
orientados pelas informações que ambos dividiam agora. E ao se aproximarem
daquela arruinada construção, notaram que os cavalos trotavam agora,
demonstrando um certo incômodo. Os animais sacudiam as cabeças como se
farejassem algo inusitado no ar. Os dois guerreiros trocaram olhares
apreensivos diante disso e pararam, dizendo palavras tranqüilizadoras, mas isso
não parecia surtir efeito em suas montarias.
- O que será que estes cavalos estão vendo o
que nós não estamos enxergando? – disse Sonja, apeando rapidamente e
acariciando o pescoço e o focinho de seu cavalo.
- Melhor seria perguntar o que eles estão
adivinhando – falou Conan, descendo do seu cavalo e tentando, sem sucesso,
puxá-lo pelas rédeas, na direção de uma enorme abertura escura, que parecia ser
a entrada da pirâmide. Sonja, apesar de também não estar podendo conter o
animal, pensou que a atitude de Conan poderia piorar as coisas.
- Acho melhor nós não forçarmos os cavalos e
ficar um pouco distante daqui. Eles realmente estão estranhando este lugar.
Conan olhou para ela sombriamente e, em
seguida, para aquele sinistro amontoado de blocos maciços à frente deles e viu
que a ruiva estava certa. Ele mesmo não estava gostando dali, apesar de ter uma
vasta experiência anterior em devassar locais tidos como remotos e malditos.
Olhando em redor, ele viu a uma certa distância, na direção da pirâmide vizinha
a Dhakshur, alguns vestígios arruinados do que seriam estruturas de colunas
finas de alicerce, tombadas e de pé, construídas talvez com o intuito de
suportar uma enorme placa de pedra lapidada que agora jazia escorada de lado de
duas das estruturas cujo comprimento era desigual.
- Vamos levar os cavalos para lá – disse ele. –
Não é muito distante, e aquela placa de pedra parece ser grande o suficiente
até para deixá-los à sombra.
Os cavalos, puxados pelas rédeas, pareciam
aliviados e seguiram rapidamente seus donos, a fim de permanecerem à distância
daquele lugar sinistro. Conan e Sonja tiraram cada um, dois dos cantis extras
que traziam e encheram duas sacolas de couro grosso e impermeável – artefato
que muitos viajores possuíam, para viagens longas em estepes e regiões
desérticas –, aproveitando para dar de beber aos animais, que agora estavam
muito mais tranqüilos, amarrados sob uma relativa sombra da laje, cada um em um
dos pilares que a apoiavam. Depois, cruzaram os olhares e fitaram juntos à
soturna silhueta de Dhakshur, dirigindo-se para ela, com as mãos prontas nos
cabos das espadas.
Era impossível calcular os incontáveis milhares
de blocos de rocha negra e maciça que haviam sido postos ali e o porquê da
interrupção da construção, tão próxima da formação do cume. A formação
irregular no topo parecia ser um destrutivo resultado de um raio potentíssimo,
durante uma terrível tempestade. E tanto Conan como Sonja tiveram a mesma
impressão, embora bem pessoal, de que aquele monte de entulho em decomposição
era uma espécie de sepulcro que não fora feito para mortos comuns. Ou mesmo
humanos.
A entrada ficava acima de alguns degraus largos
e altos, feitos de rocha lapidada cuja superfície estava parcialmente coberta
pela areia do deserto. Era uma fenda cônica emoldurada por vários caracteres
hieroglíficos, gravados na pedra. A escuridão da entrada lembrava uma caverna
inóspita ou mesmo a boca aberta de uma criatura descomunal adormecida no fluir
das eras, mas com a possibilidade de despertar a qualquer tempo. Ambos subiram
os degraus calculando que uma pessoa de pouca estatura ou idosa faria o mesmo,
mas com alguma dificuldade, dada a altura das pedras, como se tivessem sido preparadas
para o uso de alguém com dimensões enormes, no corpo, e estacaram antes de
entrar.
- Então este é o túmulo da desgraçada princesa
Hamadhi – falou Conan. Sonja olhou para ele e para o portal negro, à sua
frente. E fez uma provocação, embora que em seu íntimo, estivesse envolta assim
como o bárbaro, em apreensão, curiosidade e temor do desconhecido.
- Bem, não vamos ficar aqui esperando que ela
mesma venha nos saudar, não é?
Ao ouvir isso, o bárbaro olhou para ela com
chispas nos olhos e soltou um pequeno resmungo, adentrando o lugar, enquanto a
guerreira sorria com um canto da boca, arqueando as sobrancelhas ruivas.
Ambos piscaram com força, para habituar a vista
à escuridão, mas após alguns passos, perceberam que isso não seria necessário.
À sua frente havia uma espécie de corredor largo não muito longo de cujo fundo
vinha uma espécie de lume amarelo-esverdeado espalhando fragmentos de brilho
nas pedras lisas das paredes laterais. Após caminharem com cautela e prontidão
alguns metros adiante, depararam-se com uma espécie de salão abobadado, com
algumas portas laterais nas paredes cobertas de imagens e hieróglifos antiqüíssimos,
que talvez conduzissem a outros compartimentos da pirâmide, e haviam também
alguns degraus ao fundo, tão grandes quanto os lá de fora, levando a um grande
patamar similar à área de um trono que não havia ali, ornado por quatro largas
colunas palmiformes e lisas, cujos capitéis sumiam no teto. E todo este
ambiente era iluminado por seis grandes archotes, cujas chamas tinham uma
estranha fosforescência que passava do amarelo para o verde pálido, embora com
intensidade. Um dos archotes estava ao fundo do patamar, entre as duas colunas,
encimando um grande pórtico central. Nas laterais, entre as outras colunas, era
possível ver duas entradas escuras, de onde vinha uma curiosa e quase
imaginária névoa de cor mista entre o vermelho e o violeta. Aquilo de certa
forma, chamou a atenção do cimério e da hirkaniana, momentaneamente. E então
desceram os três degraus iguais aos demais, que haviam à sua frente, seguindo
em direções opostas pisando no chão do salão, formado por um mosaico de enormes
lajes hexagonais, cuja cor quase que totalmente desbotada, outrora num
longínquo passado, deveria ter tido um aspecto azul escuro e violáceo. E começaram
a sentir um leve cheiro de algo repugnante e agridoce ali. Talvez fosse a
podridão estagnada dos séculos ou algo mais.
O bárbaro, com sua índole selvagem e rude,
mesmo assumindo e enfrentando todo risco possível em inúmeros saques e buscas a
tesouros ocultos durante uma vida inteira, sempre teve uma forte sensação
supersticiosa e de temeridade, em lugares como aquele, mas aquele lugar continha
uma atmosfera bem diferente de todos os outros onde ele estivera antes. Era
algo inexplicável e quase irreal, e ele não via a hora de encontrar o que
vieram procurar e sair dali o mais depressa possível, sem olhar para trás. Não
se tratava de temor covarde, mas de um alerta interior, resguardado pelo
instinto sobrevivência. Quanto a Sonja, esta já estivera em tantos ambientes
sombrios quanto ele e, mesmo com sua coragem inata e a experiência calejada,
sentia agora algo parecido, assim como o cimério. E também queria resolver logo
tudo e cair fora dali depressa.
E, em pontos separados do local, dois pares de olhos
ocultos na escuridão, os observavam com curiosidade malévola. Um deles nada
tinha de humano, com um tom na pupila igual ao da chama dos archotes, embora
tendo um ligeiro brilho vermelho com uma pupila negra e vertical, algo similar
ao olho de um gato ou de um réptil.
Ao mesmo tempo, Conan e Sonja dirigiram-se ao
patamar, galgando os enormes degraus. E entre as colunas centrais, Sonja tirou
o pedaço de tecido com a gravura, que estava preso ao seu cinto. Conan
aproximou-se e ambos examinaram a imagem, entreolhando-se. E ela apontou para o
pórtico à frente, começando a caminhar para ele.
- Espere! – disse o cimério, que havia ficado
parado. – Deixe-me ver isto de novo. Acho que você está se precipitando.
Sonja voltou-se e entregou o tecido a Conan, que
deu uma olhada mais apurada e apontou para um determinado ponto da imagem.
- Olhe aqui. Veja onde está marcado um dos
buracos.
Ela franziu a testa e seus olhos brilharam na
direção do chão à sua frente, no caminho calçado por grandes pedras de aspecto marmóreo.
E foi Conan que se adiantou para frente, segurando o tecido à guisa de
comparação com as pedras.
Os olhos do bárbaro perscrutavam o formato
delas, e ele constatou que tinham o mesmo formato octogonal, formando um imenso
mosaico que se espalhava por toda aquela área elevada e isso se percebia
através do brilho do grande archote aceso sobre o pórtico à frente deles. Mas
no tecido, a forma do buraco não era de todo irregular. Não tinha o formato das
pedras naquele chão e era algo parecido com um hexágono, no corte. O bárbaro
riu, quando localizou a pedra-chave justamente sob a bota direita de Sonja. A
ruiva estava agora exatamente sobre ela. Apesar de todas as pedras terem o
mesmo formato de octógono, ela era hexagonal, mas estava engastada dentro uma
borda ou moldura octogonal. Esta era a única diferença entre ela e as outras,
porque a cor era a mesma.
- Parece que você achou a chave do tesouro,
ruiva. Está sob esta sua bela perna... – disse ele, sorrindo para ela, enquanto
Sonja olhava para os próprios pés sem entender muito bem. E ele continuou:
- O formato dessas pedras engastadas umas nas
outras é igual, observe no chão. São cortadas de modo oitavado, menos esta – e
apontou para a pedra e em seguida, para o buraco no tecido – que é igualzinha a
este buraco sextavado.
Sonja abaixou-se e tocou a pedra sobre a qual
seu pé direito pisava e a tocou.
- Curioso, cimério... veja... ela foi mesmo
posta de forma irregular dentro de um encaixe similar as outras.
E assim dizendo, sacou o afiado sabre da bainha
presa à sua coxa e começou a forçar a pedra em sua borda engastada, na qual
havia uma pequena fenda rasa em toda sua cercadura, devido à diferença no
engaste. A pedra pareceu mover-se um pouco, com o esforço da mão da guerreira,
e Conan também percebeu isso, mas nada se abriu e nem mesmo fez algum barulho.
E atrás deles, um dos dois sinistros pares de
olhos que os vigiavam desde que ali entraram, estava agora mais próximo de
ambos, espreitando atrás de uma das enormes colunas. E era exatamente o par humano.
Enquanto isso, os dois guerreiros não
conseguiam levantar e retirar a pedra nem mesmo ajudando-se mutuamente. A pedra
sextavada movia-se um pouco de fato, mas era só isso. Até que Sonja ergueu-se
de pé e guardou o sabre, irritada.
- Eu bem que queria ter o peso de um elefante
agora, pra esmagar esta pedra maldita com uma só pisada!
E pisou com força, forçando o pé, ato que fez
com que a pedra fosse impulsionada para baixo, afundando um pouco e quase
desequilibrando a ruiva. O movimento provocou um som pétreo de laje sendo
arrastada, vindo da direção do pórtico à frente, com o archote sobre ele. Conan
e Sonja perceberam que o imenso portal havia sido aberto quase que totalmente,
e um lume nevoento de tonalidade avermelhada saía lá de dentro.
- Por mais que eu não entenda às vezes a
irritação das mulheres, admito que isso dá certo num golpe de sorte, em alguns
casos. – falou Conan, fitando Sonja, ironicamente, fazendo um meneio de cabeça
na direção do pórtico. – E não
precisou você virar um elefante pra conseguir. Ainda bem.
Ao ouvir a troça, a guerreira amarrou a cara,
com um brilho irritado nos olhos.
- E eu dispenso suas piadinhas, cimério! –
vociferou ela. O bárbaro riu.
Ele sempre tinha que ser engraçadinho com ela,
mesmo numa situação como aquela, desde que se conheceram. E ambos caminharam na
direção da passagem semi-aberta. Lá de dentro, a névoa de um vermelho tênue
avançava para fora lentamente, como se saísse para a liberdade após um longo
período de reclusão. Instintivamente, sacaram as espadas e pararam em frente à
entrada. Lá dentro, o brilho era mais compacto, embora algo frio, que impedia
de ver com clareza o que haveria à frente, como degraus, por exemplo. E havia
um fedor fortemente adocicado e acre, algo que os fez recuar um pouco. A ruiva
fez uma careta e pôs a mão enluvada na boca e no nariz. Conan também sentiu a
mesma repugnância, mas já havia passado inúmeras vezes por instantes como
aquele, em alguns saques.
- Se quiser, hirkaniana, pode esperar aqui
fora, enquanto eu entro e verifico se esta luz esquisita vem ou não dos Olhos
de Set...
- Não, cimério, nenhum fedor jamais me impediu
de pôr as mãos em um butim. Agradeço a sugestão.
O cimério foi à frente e, quando ambos estavam
além do pórtico, seus olhos divisaram um recinto quase tão largo quanto o salão
lá fora. A atmosfera avermelhada vinha do centro do ambiente, num ponto onde
havia um archote de chamas vermelho-alaranjadas, filtradas por um brilho
rubicundo, vindo de uma espécie de altar acima de quatro degraus largos na extremidade,
encobertos por aquela estranha névoa fina que se movia por todo aquele espaço,
arrastando-se como que levada por um sopro de vida. E o odor pestilento era
quase palpável, ali.
E estava claro para os dois guerreiros que
alguém, um grupo ou o que fosse, mantinha aquilo como estava há incalculáveis
eras. E que era possível haver um guardião ou mais de um, oculto naquele lugar
à espreita.
- Veja, Conan. Não havia isto lá fora. – Sonja
apontou com a espada para a frente, na área dos degraus que conduziam ao altar.
Eram vários fragmentos pálidos espalhados a esmo do piso ao último degrau, como
restos de algo que fora despejado ali através do tempo. Lixo ou mesmo resíduos
de um repasto. E ela abriu a boca ainda mais, apontando com mais firmeza para o
que havia no altar. A origem do brilho vermelho que se espalhava no ambiente.
- Está ali, cimério! Você adivinhou com sua
troça! Veja de onde vem toda essa vermelhidão!
Conan arregalou os olhos e um brilho azul-vulcânico
de curiosidade selvagem surgiu neles, ao ver o objeto sobre um pequeno pedestal
de pedra, no centro do altar. Algo que parecia uma cabeça humana ornada por uma
coroa faraônica, símbolo da realeza estígia. Mas era apenas uma suposição,
porque o brilho forte de vermelho no centro da figura impedia que ambos
tivessem certeza. E por isso eles desceram dois degraus que haviam à sua
frente, meio encobertos pela névoa e aproximaram-se do altar. A primeira
constatação foi do que eram feitos os fragmentos espalhados ali. E os dois
tiveram um ligeiro arrepio ao ver que estavam em meio a várias carcaças
humanas. Crânios, troncos, membros metidos em vestígios de vestes ou não, mas
todos com a mesma característica de terem sidos trucidados, partidos e
triturados como refeição de alguma criatura feroz e descomunal. E a ruiva
sentiu um calafrio de repugnância quando viu o que Conan apontou ao lado dela.
Não haviam apenas ossadas marcadas pelo tempo ali. Além de tudo, era possível
ver restos de cadáveres meio ressequidos pela decomposição, de onde talvez emanasse
aquele fedor nauseabundo. Coisas com aparência um tanto recente, nada de tão
antigo e alguns diminutos pareciam com crianças ou pessoas de minúscula
estatura, pela dimensão das partes cadavéricas espalhadas. Ambos se
entreolharam e tiveram o mesmo pensamento, de que aquele era um lugar nada bom
para se demorar. E voltaram-se para frente, fitando a figura no altar. O brilho
vermelho era fascinante e quase hipnótico e vinha de algo semelhante a uma
máscara mortuária que parecia esculpida em ouro e os Olhos de Set estavam nela.
Duas pedras de espécie desconhecida, similares ao rubi em formato de olhos,
engastadas em duas elipses de ouro e esmeralda, exatamente como o bárbaro tinha
ouvido falar e contara para a hirkaniana.
Os guerreiros ficaram paralisados diante da
magnitude das gemas. Era como estar diante de uma divindade jamais imaginada no
mundo hiboriano. Durante toda a vida de ambos, haviam se deparado com diversos
tipos de jóias, tesouros e relíquias em sua trajetória guerreira incomum, fosse
isso de resultado satisfatório ou não, mas podiam dizer que jamais haviam visto
nada igual. E foi o cimério, com seu instinto selvagem que saiu daquela
estagnação fascinada. Ele sentiu que a ruiva estava segurando seu pulso com
força, enquanto seus lindos olhos refletiam o brilho vermelho das pedras e
havia algo mais que despertara seu sentido de alerta. Ele segurou delicadamente
a mão dela, retirando-a de seu pulso e ela afastou-se bruscamente, embaraçada,
como que saída de um transe.
- Eu... nem percebi que... – começou ela.
- Esqueça, ruiva. Algo pior que este fedor
espalhado aqui está me cheirando muito mal. Vamos pegar este butim e cair fora
agora mesmo!
O bárbaro estava excitado como um lobo feroz
que pressente um perigo extremo na proximidade, e Sonja já conhecia aquele
olhar, devido aos vários momentos de perigo que dividiram antes. E aquela
excitação a contagiou de imediato, deixando-a em alerta, olhando ao redor com a
espada em riste.
Conan pôs sua espada na bainha, subiu no degrau
do altar e aproximou-se da máscara, tocando-a com cuidado. Era uma
perfeitíssima peça trabalhada em metal e toda folheada com o mais puro ouro, e
as jóias brilhavam como se tivessem vida própria. Os olhos do selvagem
refletiam uma forte emoção ao tocar em tão precioso objeto. Ao passar a ponta
dos dedos nas gemas, ele encantou-se com sua beleza, polidez e suavidade. Era
como se aquilo tivesse sido manufaturado há dias, e não há séculos e séculos.
Mas, ao tentar remover as gemas dos engastes, elas não saíam. Estavam fixas no
corpo da máscara. Retirou o objeto de seu encaixe no pedestal de pedra e
segurou-o diante de si, sorrindo cobiçosamente.
- Ruiva, teremos que levar a máscara com tudo.
As pedras estão muito bem encaixadas e...
- Conan! Não estamos sozinhos aqui!
O alerta da guerreira o fez voltar-se e encarar
o que ela via naquele momento.
Havia um vulto humano silhuetado na entrada por
onde passaram.
A figura moveu-se descendo os dois degraus e
caminhando devagar até o centro daquele recinto, quando suas formas puderam ser
percebidas com mais clareza. Era um homem de estatura acima da média, talvez
mais alto que Conan e com uma formidável estrutura física, vestindo uma mescla
de traje sacerdotal e guerreiro de um guardião dos templos estígios. E trazia
na mão direita uma temível lâmina estígia de combate. Seu rosto era fixado em
uma cabeça calva, que brilhava com a fosforescência avermelhada do local e
continha uma face comprida um tanto escura, vincada por linhas fundas, com uma
boca severa e um olhar cruel, marcado profundamente com uma pintura de Kohl,
tão comum entre a casta estígia. Quando falou, sua voz tinha um tom de comando,
peculiar aos nobres de sua terra.
- Deixe a máscara exatamente onde estava,
ladrão imundo.
Conan e Sonja conheciam bem o idioma estígio,
quando era falado daquela forma, sem a algaravia das tribos do deserto e alguns
populares de Luxur, e nem o tom gutural dos negros oprimidos e escravizados das
cidades da Stygia.
- E se eu disser que pretendo sair daqui com
ela, com ou sem a sua permissão?
Conan falou, apertando os olhos e pondo a mão
no cabo da espada. Sonja limitou-se a assumir uma posição de defesa e
prontidão, segurando a sua com ambas as mãos e fixando seus olhos no estígio.
- Vocês – começou ele, erguendo a lâmina – não
sairão daqui com a máscara, e tampouco sairão com suas vidas, ainda que ela
seja recolocada no pedestal, a exemplo de tantos outros que vieram profanar
este lugar consagrado ao pai Set!
- É você que despedaça e come quem entra aqui,
então, ou é a víbora que o pariu?
Foi a vez de Sonja falar entre dentes, com o
coração em ebulição e os músculos dos braços e das pernas retesados, prontos
para saltar num ataque letal. O estígio olhou para ela com um sorriso lúgubre,
mostrando dentes afiados e escuros, e deu uma breve gargalhada.
- Bem que eu devia mesmo matar logo sua
curiosidade, sua ladra rameira. Mas quero ter o prazer de fazer isso, depois
que preparar você e seu amigo insolente para a oferenda da Deusa que mora aqui.
Sossegue. Teremos tempo, ainda que eu tenha que aleijar bastante a ambos,
antes.
- Insolente é você, macaco estígio! Não está
enfrentando nenhum gatuno barato das redondezas, feito de estrume de camelo! –
bradou Conan, encolerizado. E num gesto, pôs a máscara no altar, ao lado de seu
pedestal e desceu os degraus, sacando a espada. – Se há em todo continente
hiboriano uma raça que me dá nojo total, é a sua, toda feita de reis porcos e
incestuosos, meretrizes empetecadas fantasiadas de rainhas, bruxos paridos de
chacais e cobras do deserto, e há ainda os alcoviteiros de catacumba, como
você!
Ao ouvir isso, a face do estígio passou por uma
mudança medonha, tornando-se uma máscara grotesca de fúria, cujos olhos
pintados brilhavam como os de uma serpente prestes a dar um bote. E ele
arreganhou os dentes negros e afiados como os de um canibal, num ricto bestial,
ao falar.
- Não o matarei com rapidez, seu animal bruto!
Vou deixá-lo agonizando com sua companheira, enquanto você verá do que um
sacerdote do pai Set é capaz, quando eu possuir a rameira e seviciá-la lentamente,
antes de entregá-los à Deusa guardiã deste templo.
- Eu o castrarei e arrancarei suas tripas antes
que ponha as mãos em mim, seu porco estígio! – avisou Sonja, furiosa com o que
ele destinara a ela, em sua referência. O estígio agachou-se um pouco e brandiu
sua lâmina para a frente e para ela, com um feio sorriso estampado na face
sombria.
Conan deu um passo à frente, segurando a espada
com as duas mãos, conforme o estilo que aprendera com um mestre de Khitai,
preparado para o combate.
- Pois venha, macaco estígio. Quero ver você
guinchando, varado pela minha espada.
E os três adversários começaram a girar
devagar, estudando-se e calculando as possibilidades de serem surpreendidos por
uma manobra infeliz, durante um golpe de ataque. Conan e Sonja estavam
cautelosos e não pensavam em subestimar a petulante coragem do estígio, que
parecia não se importar em saber se ambos eram ou não, os excepcionais
espadachins, que tantas vezes derrotaram sozinhos bandos inteiros de inimigos,
com sua perícia. A confiança pessoal que ele parecia ter em si, demonstrava o
alto grau de periculosidade que ele devia possuir. Os dois guerreiros trocaram
olhares numa fração de segundos e foi Sonja quem tomou a iniciativa, aplicando
um golpe de corte diagonal, que fez o estígio recuar com grande agilidade num
salto, indo para o lado de Conan, à direita, que fez uma manobra similar,
apenas para tentar acuá-lo. O estígio não saltou desta vez e rebateu, com sua
lâmina, o golpe da espada do cimério, que sentiu que estava diante de um
adversário com grande potência no punho. O som dos metais se entrechocando
ecoou naquela ala, e a névoa serpenteava e se dissolvia em todas as direções
com os movimentos da contenda. O estígio também fez um arco horizontal com sua
lâmina curva, fazendo os guerreiros saltarem para trás. Normalmente, este tipo
de arma era feito com bronze, mas a que o estígio brandia, era de puro aço,
como as espadas de Conan e Sonja. E a ruiva, com um pequeno malabarismo com a
lâmina, aplicou uma seqüência de golpes sobre o adversário, que rebateu boa
parte deles com sua arma e giros e saltos de enorme presteza. Conan avançou
mais uma vez, pressionando com uma seqüência de golpes fortes cujo impacto
arrancou faíscas azuis de ambas as lâminas. O estígio rebateu uma estocada de
Sonja e aplicou um chute lateral em seu flanco direito, o que fez a guerreira
retroceder, quase caindo com o impacto.
- Verme estígio! – gritou ela, furiosa. – Isso
serviu apenas pra me dar estímulo antes de tirar seu sangue imundo!
- Venha tirar, sua rameira barata! – Vociferou
ele, partindo contra ela com golpes em diagonal, mas não antes de olhar de
soslaio para Conan, que avançava para ele, agora. O cimério parecia estar mais
furioso, depois do que o odioso estígio disse com a ruiva, e concentrou toda
sua força muscular nos punhos para a aplicação de um golpe maciço.
- Acho que a brincadeira acaba agora, macaco
estígio! Vou rachar essa careca sebosa ao meio! – E saltou para frente com um
urro medonho, descendo a espada verticalmente contra o adversário. Este,
arregalando os olhos tentou rebater o golpe fulminante e quase conseguiu
totalmente, embora a força empregada pelo cimério tenha logrado um pouco de
êxito, cortando de leve a lateral esquerda da cabeça do homem, fazendo correr
um filete de sangue. Ambos ficaram por segundos pressionando as lâminas e
encarando-se, grunhindo como feras. O estígio era de fato um gigante de grande
força física e mais alto que o bárbaro e, neste átimo de tempo, a hirkaniana
avançou soltando um brado irado, para decidir o combate num golpe fatídico,
movimentando a espada com agilidade estonteante. O homem fez um esforço supremo
para empurrar Conan para trás, afastando-o por um passo e, ao voltar-se para
rebater a guerreira, sentiu uma dor cortante e profunda, na perna direita.
Ele soltou um grito de raiva e surpresa ao ver
que a rameira imunda havia enfiado a espada em sua coxa pela lateral,
atravessando músculos e talvez fraturando ossos. Ele via o sorriso furioso
dela, soltando faíscas ferozes dos olhos, na face emoldurada pelos longos
cabelos de fogo vermelho que pareciam filtrar a luz daquele ambiente tétrico.
- E agora, chacal imundo, vai seviciar quem?
Diga! – bradou ela.
A musculatura do braço da mulher estava tensa,
enquanto ela remexia a espada, causando um sofrimento maior no gigante estígio,
que ergueu a lâmina para golpear, mas parou, sentindo uma dor ainda maior no
flanco esquerdo, girando a cabeça naquela direção e vendo a espada de Conan
enfiada até a guarda do cabo dentro de si. O cimério rilhava os dentes como um
lobo enraivecido e quase ao mesmo tempo, ele e ela retiraram suas lâminas do
corpo do estígio que cambaleava com o rosto numa careta furiosa e convulsiva,
enquanto o sangue jorrava para fora do seu corpo e espalhava-se ao seu redor,
mesclando-se à estranha névoa dando a ela um tom rubro. Os guerreiros não lhe
deram tempo para o menor gesto de ação e golpearam-no de novo, com a espada de
Sonja cortando fora seu antebraço com a mão armada, e com Conan golpeando
ferozmente seu peito, partindo-lhe a clavícula esquerda descendo até quase o
umbigo. O estígio caiu com um urro de dor, e gesticulava com a mão esquerda em
forma de garra crispada, tartamudeando enquanto uma golfada de sangue saía de
sua boca, manchando sua dentadura repugnante. Conan e Sonja afastaram-se dele
com rapidez, pois o sangue brotava em profusão e ambos não queriam ser tocados
por ele, além dos respingos grossos que tinham em seus corpos e o cheiro
ferruginoso que agora se misturava ao odor saturado que estava impregnado ali.
E num esforço tremendo, a voz gutural do
estígio em agonia se fez ouvir. Não parecia um lamento, mas algo semelhante a
um apelo, um chamado.
- Nerebet... Ahlmar'at...
Alankhabut!... Nerebet... Shebaki... Alankhabut! NEREBET! ALANKHABUT!
Conan conhecia aquelas palavras, e seu instinto
selvagem não gostou de ouvir aquilo. E Sonja lembrava agora da noite anterior
no Khafiri, quando o cimério contara sobre elas. Ela olhou para o estígio que
parou de gritar, e ficou imóvel, com os olhos abertos fitando o vazio além do
vale da morte mais negra, onde a corte infernal do pai Set devia tê-lo recebido
agora.
Reinou um pouco de silêncio e os dois estavam
parados, olhando para o cadáver quando Conan ergueu o braço com a espada
ensangüentada na direção do altar.
- Vamos pegar o butim e dar o fora daqui –
falou. – O estígio era perigoso, mas não tanto quanto pensava que era.
- E se tivesse sido apenas contra um de nós,
Conan? Será que ele teria melhor chance?
O cimério sorriu e respondeu com o semblante
sombrio.
- Depende do tamanho da motivação que ele tinha
pra guardar o que um de nós, sem vacilar, viria buscar, você não acha?
Ela nada disse, limitando-se a encará-lo com um
sorriso no canto da boca e deu um passo até o morto, rasgando com a espada um
pedaço do tecido de suas vestes e com ele, limpou a lâmina, colocando-a na
bainha e estendendo o trapo para Conan, que recebeu e fez o mesmo com a sua.
- Jamais deixaria a minha espada suja com
sangue estígio por muito tempo – disse o cimério – Tem o mesmo fedor do covil
de uma víbora venenosa.
E então, um som estranho espalhou-se ali. Como
o prenúncio distante de um chiado similar a um guincho agudo. Os dois
guerreiros se entreolharam e a intuição da ruiva deixou seus sentidos em alerta
total, desembainhando a espada mais uma vez. Conan fez mesmo, mais instigado
pelo olhar excitado da hirkaniana, que pelo som. Ele já ouvira algo assim uma
vez.
E então, Sonja olhou para cima, abrindo a boca
e arregalando os olhos. O cimério fez o mesmo, paralisado pelo que havia numa
enorme abertura circular na parede, acima dos capitéis das colossais colunas,
quase se encostando ao teto. A coisa que parecia estar presa na parede após uma
escalada, soltou um guincho apavorante e ensurdecedor, bem maior que o som que
eles escutaram antes. Conan imaginou que aquilo era o resultado do chamado do
guardião estígio. E se fosse, deve ter escutado os gritos do moribundo além dos
portais dos sete infernos, porque era uma figura que não era parte deste mundo.
O cimério já havia enfrentado um monstro
aracnídeo semelhante por três vezes – na selva kushita, numa torre em Zamora e no templo maldito de Omm –, mas nada se comparava àquilo acima dele e da
ruiva. A coisa, que estava encarapitada ao lado da abertura na parede encostada
ao teto, tinha a aparência de uma aranha gigantesca e mais alguma coisa... Era
como se a criatura tivesse engolido metade de um corpo humano que guinchava
horrivelmente e gesticulava com os braços para eles; e ambos estavam com os
nervos petrificados de horror, mesmo acostumados a visões de diversas criaturas
apavorantes no mundo hiboriano.
E então a coisa saltou na direção deles,
guinchando. Os guerreiros também saltaram em direções opostas, movidos por um
velho instinto de sobrevivência nas batalhas, que os tirou da paralisia
momentânea que os prendia, brandindo as espadas. Conan lembrou que havia visto
aquela aberração há um ano, em um lugar distante da Nemédia, num vislumbre do
futuro através da magia. A visão de terror que Kharfar, o eremita, lhe havia
apresentado assumia agora a condição de pesadelo vivo. O monstro era uma
mistura fora das leis naturais além do próprio caráter híbrido, do corpo de uma
colossal aranha negra com uma mulher a partir da cintura. Uma mulher com um
grande dimensionamento, proporcional à sua metade aracnídea, que fazia crer
que, caso estivesse sobre pernas normais, teria cerca de dois metros de altura.
A pele da criatura tinha um tom cinza arroxeado num corpo de estrutura forte,
com um tórax ornado por seios cujos mamilos bicudos, lembravam duas pontas de
setas enegrecidas que pareciam pulsar a cada movimento da aberração. Os braços
terminavam em mãos crispadas semelhantes a garras providas de enormes unhas
negras. E o rosto da besta era ainda mais abominável, com olhos de brilho
infernal, semelhante a brasas vivas, acentuadas por olheiras negras, encimadas
por sobrancelhas de tom azeviche, assim como a enorme cabeleira desgrenhada que
lhe cobria o crânio. O nariz aquilino de narinas dilatadas, tinha abaixo uma
boca bestial de lábios negros contendo dentes afiados com grandes caninos
superiores e inferiores, em cujo meio vibrava uma língua de cor violácea.
Conan e Sonja jamais haviam enfrentado uma
monstruosidade daquelas em suas andanças pelo mundo hiboriano, e pareciam
esperar um do outro forças para superar o medo e a perspectiva de uma morte
repugnante, gerados pela mulher-aranha à sua frente. A besta se movia com uma
agilidade aracnídea letal, prestes a um ataque fulminante, dando pequenos
saltos na direção de cada um dos guerreiros que a cercavam, vez por outra,
gesticulando com as garras crispadas, como num jogo preliminar, com aqueles
seres fracos, prontos para o abate e o repasto.
“E este foi o destino desgraçado da princesa
Hamadhi!”, – pensou Conan,
chocado com uma realidade que ele tinha esperança de não passar de mais uma
lenda para assustar saqueadores e caçadores de tesouros.
O cimério e a ruiva moviam as espadas com
floreios ameaçadores a cada arremedo de investida dela, tentando demonstrar que
não seriam uma presa fácil como tantas outras oferendas que o guardião estígio
trouxera. Os guinchos que a criatura soltava, pareciam às vezes, palavras de
uma língua desconhecida numa voz repelente e esganiçada. E ela estranhamente,
parecia mais tentada a atacar Sonja primeiro, mas a hirkaniana aplicava golpes
diagonais cruzados a cada movimento brusco do monstro em sua direção. Conan
percebeu isso e, num desses movimentos, deu um salto em direção ao flanco
direito dela com um urro e aplicando um tremendo golpe com a espada, na parte
anterior de uma pata. Para espanto do cimério, foi como golpear o tronco de um
carvalho centenário. A espada quase se partiu.
- Mãe de Mitra! – bradou o bárbaro, cerrando os
dentes entre a apreensão e a fúria frustrada.
Mas o monstro sentiu aquele pequeno impacto e voltou-se
contra ele, soltando um guincho que mais parecia uma promessa articulada de
retaliação imediata. E com um salto, caiu sobre ele, que foi ao chão num
escorrego, enquanto a mulher-aranha se agachava estendendo suas garras aduncas
para cravar em seu pescoço. Em meio ao desespero da situação, o bárbaro sentiu
um hálito nauseabundo emitido pela besta em mais um guincho, enquanto ele
tentou afastá-la de si com um golpe da espada. E desta vez, a lâmina surtiu
algum efeito, ainda que fosse um arranhão esbranquiçado acima dos seios dela.
Com isso, o monstro pareceu retroceder, guinchando com um salto para trás, e,
para a surpresa de Conan, não foi seu ato defensivo que causou aquilo, mas uma
ação por parte da guerreira da Hirkânia, que veio em seu auxílio, tentando
perfurar uma parte inferior da enorme seção traseira corpo da criatura que lhe
pareceu mais fina. O golpe de Sonja causou algum impacto desconfortante, porque
a besta virou-se para ela subitamente, torcendo o tronco para observar onde a
ruiva a havia atingido. De fato, um filete com uma secreção grossa e negra
estava saindo dali, e a ruiva deu dois passos para trás, floreando a espada.
Então, esta coisa pode sangrar de algum modo. E
de alguma forma, pode morrer!
O monstro arreganhou as presas e soltou um
grito estridente de fúria, acompanhado de um bafo pestilento, fazendo a ruiva
contorcer a face numa careta de nojo. E então, avançou sobre Sonja, que não
teve tempo de golpear com a espada, deixando-a cair quando a criatura segurou
seus braços à altura dos ombros com suas garras e erguendo-a do chão, enquanto
a hirkaniana aplicava uma violenta joelhada visando atingir o abdome da
criatura, sem sucesso. Indefesa e segura pelas garras frias do monstro
machucando ferozmente seus braços, Sonja experimentou um extremo horror como
nunca havia experimentado em sua vida, encarando de perto aquela máscara
hedionda que era a face da mulher-aranha, com aqueles olhos de fogo, que
pareciam duas portas gêmeas da entrada do mais profundo dos infernos, e aquela
boca horrenda de fedor nauseabundo.
Ao mesmo tempo, o cimério havia se erguido do
chão e avançou contra a besta, procurando enfiar a espada na altura das
costelas do monstro pela lateral, gritando furiosamente.
- Largue-a, sua vadia fedorenta! E experimente
ser varada pela minha espada!
E pôs toda sua força nos músculos retesados do
braço, empurrando a espada no corpo da besta, que soltou um berro com o
impacto. A espada não chegou a perfurar totalmente aquela carne que parecia ter
a mesma compleição dura do corpo de uma enorme serpente, mas a ponta abriu um
ferimento igual ao que Sonja havia causado, com uma secreção grossa e
escurecida saindo por ele. Conan tentou perfurar novamente, aproximando-se
ainda mais do monstro, que largou a ruiva da garra esquerda, aplicando uma
pancada lateral com esta, na cabeça do cimério, que caiu longe. Neste momento,
pendurada com a mão direita livre, Sonja impulsionou o corpo, aplicando um
chute no corpo da criatura, acima de onde Conan a havia ferido e esmurrando seu
queixo no mesmo movimento. Foi como esmurrar uma palmeira. Mesmo enluvada, sua
mão doeu e o chute arrancou apenas um urro da mulher-aranha, que voltou a
segurá-la desta vez, pelo pescoço e a ruiva sentiu dor e asfixia, pela garra
monstruosa.
A mulher-aranha aproximou sua cabeça apavorante
do peito de Sonja lambendo-a acima dos seios com sua língua podre, soltando um
chiado. A guerreira quase gritou de aversão, ante aquele toque asqueroso. E
virou os olhos na direção onde o cimério havia caído, vendo que este se erguia
com dificuldade. Conan havia batido a cabeça e a espada havia caído em algum
lugar, no meio daquele chão coberto de névoa e restos mortais. Ele estava
zonzo, mas a ferocidade bárbara mesclada ao horror lhe dava ânimo para
recuperar-se e voltar à batalha. Ele ficou de pé com alguma dificuldade e
balançou a cabeça apertando os olhos para abri-los e ver o que a monstruosa
aberração fazia com sua companheira agora, escancarando a boca imunda e
preparando-se para cravar os dentes no peito da ruiva, arrebatada em suas
garras. Os olhos azuis do cimério arregalaram-se de desespero, confrontando-se
com os de Sonja, que apenas movia as pernas inutilmente; e a única coisa
próxima dele para qualquer uso, era um crânio quase inteiro. Conan apanhou a
caveira e a atirou com força na cabeça da besta. O crânio espatifou-se em sua
face no instante exato em que ela virava a cabeça instintivamente em sua
direção.
Com um guincho furioso, a aberração largou a
ruiva, deixando-a cair e esfregou furiosamente seus olhos pavorosos. O crânio
não a machucara nem pouco, mas fragmentos de osso interferiam em sua visão
agora. Então, Sonja aproveitou para apanhar sua espada e afastar-se daquela
coisa repelente que saltitava furiosa guinchando e esfregando os olhos. Conan,
por sua vez, sentiu algo duro sob a bota, na névoa rasteira e descobriu ser sua
própria espada. Apanhou-a e avançou contra o monstro. Desde o início dos
ataques da mulher-aranha, ele havia percebido que na região um pouco abaixo do
abdome da coisa, havia uma forma triangular negra, brilhante e pulsante, e foi
isso que o moveu para o ataque. Mas o monstro parou de esfregar os olhos e
ficou em alerta de novo e deu um salto para trás, movendo as garras
ameaçadoramente enquanto girava a cabeça guinchando para os dois guerreiros,
como se estivesse decidindo quem atacar primeiro para encerrar aquele jogo.
Sonja fez uma careta de dor, quando passou a mão enluvada no pescoço marcado
pelas garras dela e sentiu uma certa náusea, mas firmou os pés em base no chão
e ergueu a espada com as mãos em posição de combate. Conan também notou as
feridas em seu pescoço e seus olhos brilharam como os de um leão furioso, como
nos tempos em que o chamavam de Amra.
- Vai pagar pelo que me fez, sua vagabunda! –
gritou Sonja, que ainda sentia a estranha náusea tentando dominá-la. As feridas
no pescoço começavam a arder, mas a fúria da guerreira era ainda maior que a
dor.
O monstro virou-se inteiramente para ela e
avançou guinchando terrivelmente. E então um pensamento cruzou a mente do
cimério como um relâmpago e ele, num ímpeto, correu na direção da mulher-aranha
e saltou sobre ela com a agilidade de um felino, cavalgando-a, sobre a parte de
trás do seu corpo e agarrando o pescoço de pele quase marmórea daquele bicho
nojento. O monstro guinchou terrivelmente, tentando arrancar o cimério de suas
costas, enquanto ele forçava os músculos de aço de seu braço no pescoço dela, e
apontava para a ruiva com a espada gritando:
- SONJA! RÁPIDO! A MANCHA ESCURA NA BARRIGA
DELA! USE A ESPADA!
Sonja sentia a náusea lhe dominar, assim como o
ardor no pescoço, mas percebeu o triângulo pulsante que Conan indicara e, num
impulso, correu para a frente, com a espada visando o alvo.
- Agora você me paga, rameira do inferno! –
gritou, enquanto avançava entre as duas patas frontais da besta, a qual
empinava como um cavalo enlouquecido ante a tenacidade das pernas poderosas do
bárbaro e seus braços. O cimério aproveitava para tentar cortar o pescoço da
criatura, mas a lâmina apenas feria, e não penetrava fundo na carne e então um
berro lancinante fez o bárbaro largar a besta. Sonja estava enfiando
furiosamente, a espada até o cabo, no triângulo pulsante da barriga do monstro.
Um líquido viscoso e negro, de odor pútrido, jorrou da ferida. Ali parecia ser
de fato, o ponto mais frágil daquela monstruosidade híbrida. Conan saltou de
cima dela e correu para Sonja, que retrocedera, deixando a espada cravada na
besta, que agora saltava feito louca em todas as direções guinchando e tentando
tirar a lâmina de dentro de si com suas garras, ferindo-se ainda mais, na área
ferida. E quando conseguiu, atirou na direção dos guerreiros a espada que quase
atingiu Conan na cabeça, porque ele desviou-se a tempo. O líquido viscoso
começou a sair ainda mais grosso de dentro dela, que crispava as garras
berrando de dor, emitindo sons que mais uma vez pareciam palavras desconexas
numa língua desconhecida. O horror ancestral daquela pirâmide amaldiçoada não
era tão imortal assim.
E quando Conan aproximou-se de Sonja, percebeu
que ela não estava bem. As marcas no pescoço da ruiva tinham uma cor violácea e
estavam inchadas. A guerreira olhou para ele com um brilho estranho nos olhos,
e parecia cambalear um pouco. Enquanto isso, a besta hedionda à frente de ambos
continuava berrando e movimentava-se como se tencionasse fazer um ataque final,
mesmo ferida como estava, porque a estocada que Sonja lhe aplicou parecia ter
causado um grande estrago, e aquela espécie de sangue negro e podre do monstro
estava saindo ainda mais agora, e espalhando-se no chão. E, sem a espada, mesmo
vacilante devido à náusea, Sonja sacou um dos sabres que carregava presos à
lateral das coxas. O monstro baixou a cabeça olhando para o próprio ventre
arruinado pela violenta lesão e encarou os guerreiros arreganhando as presas,
armando-se com as garras e as patas aracnídeas, agachando-se um pouco, pronta
para cair sobre ambos de forma definitiva. Sonja segurou o punhal apontando
para ela e vociferou entre dentes:
- Quer mais? Pois venha, sua rameira imunda,
que eu quero mesmo acabar o que comecei, ainda que morra por isso!
Conan segurou a espada, pronto para o combate,
e mais uma vez durante anos, ficou impressionado com a coragem e o espírito
indômito daquela mulher que tanto o fascinava, muito mais que todas as mulheres
guerreiras que ele conhecera, incluindo a destemida Valéria e a inesquecível
Bêlit, que teve uma passagem marcante em sua vida. Neste momento, a
mulher-aranha emitiu um guincho ainda mais apavorante que todos os que havia
soltado, crispando as garras e balançando violentamente a cabeça, sacudindo a
desgrenhada cabeleira negra.
Mas um outro som espalhou-se no ambiente.
- HAMADHI! ALANKHABUT! KEKETH! ADAHBA BEYDHA,
AHKRAJA MEM HUNAH!
Uma voz gutural ecoou, como que saída das
profundezas daquela pirâmide maldita e isso fez com que o monstro virasse na
direção daquele som, com uma das garras sobre o ferimento. Conan e Sonja, que
cambaleava levemente, fizeram o mesmo. E no mesmo portal por onde vieram, assim
como o guardião que mataram, havia uma silhueta de um outro ser cujos grandes
contornos não eram exatamente humanos. A mulher-aranha deu um salto na direção
da figura guinchando e o ser moveu-se, ou melhor, arrastou-se em direção a ela.
Aquela criatura recém-chegada tinha cabeça, tronco, braços, mas não parecia ter
pernas e sim uma imensa extensão atrás de si... como uma cobra gigantesca. E
movia-se como uma imensa serpente estígia, símbolo daquela terra, com o enorme
pescoço sempre elevado e a cabeça dilatada.
- Pelas barbas de Crom! Agora apareceu este
outro...! – disse o cimério, sentindo um arrepio na nuca e ainda com a espada
em guarda. Ele sabia que criatura era aquela e até podia imaginar que nome ela
tinha.
Os dois seres aproximaram-se e ficaram frente a
frente. A Mulher-Aranha segurava a ferida, e parecia não ter intenção de atacar
o vulto reptiliano que a fitava agora. E então, ele moveu a cabeça para o lado
e dirigiu o olhar para os dois guerreiros. E Conan pôde observar melhor sua
aparência. Tinha um corpo grande, um pouco maior que a besta à sua frente e
proporcionalmente musculoso da cintura para cima, com um amplo tórax. Tinha uma
pele de tonalidade lisa com partes que lembravam escamas, com uma cor amarelo
esverdeada que ao mover-se, captava reflexos levemente avermelhados, talvez da
estranha luminosidade da névoa rasteira que havia ali. Apesar da maioria esmagadora
de ser povo (bem como dos homens-serpente) ter involuído desde o Grande
Cataclismo, sua cabeça tinha traços humanos com uma expressividade algo singela
nos traços finos da boca de lábios levemente rugosos, do nariz e as maçãs do
rosto. Os olhos eram a única coisa que havia de sinistro naquela face. Eram os
olhos de uma enorme serpente, com um fino traço sugerindo uma sobrancelha acima
e o topo do crânio tinha uma protuberância óssea sob a pele, semelhante a uma
pequena onda se erguendo, ao invés de cabelos, que se estendia descendo pelas
laterais da face sem orelhas, terminando em duas pequenas fendas que pareciam
ser seus canais auditivos. E aqueles olhos não chegavam a ser assustadores como
os da Mulher-Aranha, mas pareciam querer paralisar, dominar e o cimério sentiu
isso. A criatura recém-chegada afastou-se da Mulher-Aranha, que soltou um breve
grunhido e aproximou-se mais dos guerreiros, arrastando-se como uma anaconda
cercando a presa, com sua metade ofídia do corpo coberta de manchas simétricas
similar a um mosaico, ziguezagueando em seus quase 18 metros de comprimento.
Conan firmou a espada na direção daquele grande filho de uma entidade que
existiu no mundo milênios antes da era hiboriana, mas o ser não atacou.
Limitou-se a ficar diante do cimério a uma certa distância a apontou para o
lado com uma mão em forma de garra membranosa entre os dedos, na direção de
Sonja, que estava abaixando-se no chão, com uma expressão de agonia na face,
enquanto tocava o pescoço.
- Conan... eu... – A voz dela estava fraca e
ela deitou-se com rosto em convulsão. O cimério avançou para ela e ainda
apontando a espada para o ser, agachou-se, tocando sua face com a outra mão.
Ele jamais esperou sentir uma aflição por outra mulher, parecida com a que
sentiu uma vez, por Bêlit, a Rainha da Costa Negra que quase sentiu no corpo o
fio da espada de Sonja num encontro entre as duas. Bêlit se fora daquele mundo,
mas a hirkaniana, não. E agora ela estava ferida, mas não poderia sucumbir. Ele
não iria permitir que tal coisa acontecesse. Não poderia ser.
NÃO ALI, NAQUELE COVIL DE HORRORES DO PASSADO.
Os olhos dela brilhavam com uma súplica e sua
voz era quase um murmúrio, agora. Ela estendeu uma mão tocando o rosto dele,
que a encarava com uma aflição selvagem, dividindo a atenção entre ela e o
monstruoso ser, que avançou mais um pouco, em sua direção.
- Para trás, filho da Echidnah! Sei sobre
vocês! Não será fácil me pegar!
A menção daquele nome trouxe um brilho a mais
nos olhos da criatura. ECHIDNAH. Aquele nome era referente à Mãe-Serpente, que
gerou toda uma raça no passado mais remoto da terra, a era dos homens-serpente
que caminharam junto com os grandes sáurios e perpetuaram-se evolutivamente,
milhões de anos após, entre reinos que existiram e sumiram com cataclismos
diversos. Conan já tinha ouvido falar naquela parte pavorosa da história, tanto
em sua juventude na Ciméria, quanto nas aventuras guiadas por sua espada em
várias partes daquele mundo.
- Não estou aqui... para lhe machucar...
saqueador... – disse a
criatura, com sua voz gutural sibilante, como se saísse da profundeza de uma
cripta. A boca deixava entrever presas agudas, enquanto ele falava na língua Estígia
antiga, mas de modo compreensível, para o bárbaro e uma língua bifurcada saía
entre seus lábios, enquanto ele pronunciava as palavras.
Conan lembrou de uma das partes da história que
contara para Sonja. Na verdade, já tinha pensado sobre quem, ou o quê, estava
diante dele agora. Neste momento, a Mulher-Aranha soltou um guincho terrível e
saltitou na direção do Bárbaro, que ficou de pé segurando a espada na direção
dela.
- Venha, sua praga asquerosa! Vou aumentar este
buraco em você!
A criatura-serpente estendeu uma das mãos
membranosas para ela, impostando a voz tonitruante, o que fez o monstro
retroceder.
- HAMADHI! ‘IILAH,
ALWARAH, TAEAT!
- Príncipe Keniamun... –
murmurou o bárbaro.
Ao ouvir isso, o ser
virou-se para Conan, abaixando-se e aproximando sua face dele. O cimério sentiu
que nada lhe aconteceria e baixou a espada.
- Há muitas eras...
ninguém me chama assim... saqueador. Conhece minha história... então. – A
voz do ser tinha algo de pesaroso na inflexão das palavras, agora e ele
voltou-se bruscamente para a Mulher-Aranha, estendendo uma das mãos para o
ferimento dela. A criatura estremeceu com aquele toque, soltando um grunhido,
mas não o impediu, quando ele pressionou a mão sobre o ferimento, que quase
imediatamente, parou de expelir aquele líquido grosseiro. Logo, ele disse algo
que só aquele horror ancestral compreendeu, porque ela olhou para Conan e
Sonja, agora desfalecida, soltou um de seus guinchos infernais e virou-se sobre
as patas, saltando para a parede, escalando-a e sumindo na enorme abertura
acima. Conan imaginou que ele deve ter dito que iria estar com ela depois, pelo
que pôde entender remotamente naquele dialeto antigo que o ser usava para falar
com a desgraçada princesa.
O Homem-Serpente olhou para
Conan e apontou para Sonja. O cimério voltou sua atenção para a guerreira
estirada no chão, cuja névoa vermelha a cobria parcialmente agora e pôs a
espada na bainha, abaixando-se para carregar a mulher nos braços e sentiu que
ela estava mortalmente fria, embora ainda mostrasse sinal de vida, respirando
fracamente. Ele olhou profundamente dentro dos olhos do ser que um dia foi um
ser humano chamado Keniamun, dizendo:
- Não quero mais nada daqui,
nem os malditos Olhos de Set. Apenas ir embora com ela. Sei que se quisesse
matar-me, já o teria tentado.
A língua bifurcada sibilou
na boca da criatura e ele inclinou um pouco a cabeça antes de falar estendendo
os braços.
- Posso curar o ferimento
dela... ainda há tempo... foi o veneno de Hamadhi... e ele não é tão fatal nas
garras. Mas, se partir agora... ela morrerá...
O bárbaro hesitou, rilhando os dentes, mas
lembrou-se do que o ser havia feito há pouco e, mesmo hesitante, entregou o
corpo da guerreira para as mãos do príncipe reptiliano. O ser aproximou o corpo
de Sonja de seu peito escamoso e liso, e Conan arregalou seus olhos selvagens
quando ele inclinou a cabeça e abriu a boca contendo aquelas presas de víbora
venenosa e passou a língua no pescoço dela de um lado e de outro, enquanto a
guerreira estremecia convulsivamente com aqueles toques. Pouco depois ele
estendeu os braços devolvendo-a para o cimério, que percebeu que ela já não
estava fria como antes. Conan encarou-o, sentindo a força hipnótica daqueles
olhos inumanos, que não representavam perigo por alguma razão, e falou:
- Vejo que ainda carrega a nobreza no sangue,
Príncipe Keniamun. Mas por que está fazendo isso? Viemos aqui como saqueadores,
invadindo o templo de vocês e eu admito isso.
A criatura aproximou-se de Conan, inclinando-se
para frente, com os olhos de brilho misto entre o verde e o alaranjado. E falou
com um tom mais brando na voz poderosa.
- Sabe o que há de valor naquelas jóias,
saqueador?... Nada. Elas apenas... servem para criar um veneno e uma fome pior
que a de Hamadhi... eu e a princesa fomos amaldiçoados, não pelo destino, mas
por pessoas que trazem em si esse veneno e a mesma fome. Eu não tive escolha,
mas a pobre Hamadhi, sim. E por isso ela carrega este peso pela eternidade... e
você fez duas coisas pela sua vida... e da mulher.
Conan nada disse, mas imaginou o que poderia
ter feito para ser poupado de um destino pavoroso, ainda que não se entregasse
sem luta, antes.
- Vocês mataram o guardião de Hamadhi, que
sempre me odiou... sem nenhuma razão aparente... talvez por eu ter conservado
uma consciência após passar por uma trágica mudança na carne... e não aceitar
as atrocidades dele para alimentar sua... “deusa”. E você ainda abriu mão de
seu saque por esta mulher... eu teria feito o mesmo, por minha princesa... há
tempos imemoriais... Portanto, vá embora e nunca mais volte aqui...
O bárbaro fitou a criatura em silêncio e sentiu
um pouco de compaixão por ele, talvez por ter tido grandes momentos de
melancolia pelo que viu e sentiu parecido em sua vida nômade, desde que deixou
a Ciméria. E então caminhou carregando a ruiva nos braços, sentindo que ela estava
apenas desfalecida agora, mas respirando normalmente. Quando ia subindo os
degraus para a saída, a voz do Homem-Serpente se fez ouvir, novamente.
- Espere, saqueador!
Conan voltou-se com seu instinto selvagem em
alerta, para ver que o ser tinha um braço estendido em sua direção segurando
algo. A criatura deslizou até ele e o objeto que tinha na mão era a espada de
Sonja, que a Mulher-Aranha havia tirado de seu corpo e arremessado em ambos, na
refrega. Sem nada dizer, estendeu sua enorme mão, depositando a lâmina na
bainha da guerreira nos braços do bárbaro. Um último olhar foi trocado por ele
e o cimério, que ficou mais seguro ao dar-lhe as costas e partir dali de vez.
Lá fora, degraus atravessavam o salão de entrada da pirâmide e seguiam pelo
corredor curto em cuja saída final havia uma luz mais leve do dia agora. Lá
fora, o sol ainda brilhava sob o evento do início da tarde. Conan sentiu que a
mulher se mexeu em seus braços e parou de caminhar quando ela balbuciou algo.
Ele olhou para ela, que fazia uma careta devido à luz solar e o brilho do céu e
percebeu que as marcas em seu pescoço haviam diminuído consideravelmente,
mostrando-se como hematomas sarados.
- Conan... deixe-me ficar de pé... acho que
posso caminhar... – disse ela, e o cimério hesitou por um instante, mas a pôs
de pé, amparando-a pelos ombros com seu braço musculoso. Ela passou a mão
enluvada no pescoço, mas não pareceu sentir dor. E olhou para o cimério com uma
expressão atônita.
- Eu lembro de ter ficado tonta, e minhas
pernas amoleceram – disse ela. – E então eu senti a cabeça girar e girar... e
vi você, prestes a atacar aquela coisa horrível com corpo de aranha e uma
criatura meio homem, meio serpente; e tudo isso deve ter sido um pesadelo
alucinatório, devido à náusea e a dor que queimava no meu pescoço. Mas, o que
houve realmente? Eu já não sinto a dor, embora me sinta fatigada, ainda. Como
me tirou de lá? O que houve com aquela aberração?
O bárbaro sorriu de leve e ela lhe dirigiu um
olhar ainda mais confuso. E ele resumiu o que acontecera, deixando de lado
apenas o detalhe das jóias, quando ela perdeu os sentidos. A guerreira não
duvidou de nada, mas pensava na sorte de ambos em estarem vivos e em qual tipo
de Deus gostava deles a ponto de salvá-los assim. Teria sido o tal Crom de
Conan? O cimério parecia adivinhar seus pensamentos e sorria abertamente para
ela, agora, de braços cruzados.
- E eu confesso que estou feliz por você estar
aqui, de pé, na minha frente. Afinal, a vida seria sem graça, sem eu ter a quem
importunar na viagem para sair deste lugar maldito.
Sonja torceu o nariz para ele numa careta e
tirou a espada da bainha, conferindo que a lâmina estava suja com a secreção
imunda que saiu do corpo da Mulher-Aranha e apanhou um punhado de areia
esfregando nela até deixá-la quase totalmente limpa. Pôs na bainha e percebeu
que havia perdido o sabre com o qual ameaçou o monstro ao ficar sem a espada. E
lembrou das jóias.
- Conan, e os Olhos de Set? Ficaram lá?
- Eu pensei que você estava morta, quando vi as
marcas no seu pescoço e tive que fazer uma escolha, como poucas vezes fiz na
vida diante de um butim – ele disse isso, olhando fundo nos olhos dela. – E não
me arrependo disso. Porque houve uma vez em que não tive escolha e nem tempo de
fazer nada.
Ela aproximou-se dele fitando seus olhos azuis
que perseguiam no horizonte além daquele lugar, um vestígio do seu passado na
Costa Negra com uma mulher que não pôde ser dele para sempre. Mas isso já fora
superado e não passava de uma lembrança que não doía mais, apesar de ser triste.
E saiu de seu pensamento, quando sentiu que a mão da ruiva estava sobre seu
peito e ela o encarava de um modo diferente, como nunca havia feito.
- Deixou o butim por mim? Poderia ter tentado
fugir de lá com ele a qualquer custo, já que eu estava praticamente liquidada.
- Era o que você faria, garota?
Ela não respondeu. Limitou-se a olhar para a
expressão séria dele, com aquele brilho selvagem nos olhos que ela conhecia tão
bem, e aproximou-se mais, quase colando seu corpo ao dele e deslizando a mão de
seu peito para seu rosto marcado por pequenas cicatrizes esbranquiçadas
adquiridas pela vida guerreira. O bárbaro descruzou os braços e pôs as mãos
musculosas na cintura dela, sentindo o coração bater forte, como tantas vezes
em que a desejara. E então, ela puxou seu rosto subitamente, envolvendo seu
pescoço taurino com seus braços, colando sua boca na dele, forçando a língua
através de seus lábios. Nem ela mesma se compreendia e aquele ato que também
desnorteou o cimério, que correspondeu ao beijo quente da hirkaniana
abraçando-a calorosamente. Ele jamais esperava que aquilo acontecesse assim,
tão inusitadamente. Não sem ter que cruzar sua espada com ela e vencer, como já
havia sido dito pela guerreira, referindo-se a qualquer homem que quisesse possuí-la.
E aquele foi um momento breve, mas que valeu por anos de expectativa, desde que
ele a vira ela primeira vez e dividiu com ela tantas aventuras no passado.
E tão repentinamente como aconteceu, ela se
afastou dele dando um passo atrás, como se despertasse de um sonho agitado com
a mente confusa. O bárbaro não disse nada e tampouco tentou aproximar-se dela,
que movia as mãos como se procurasse algo para se apoiar ou tatear, em seu
conflito introspectivo. Pela primeira vez, cedera a um impulso que já sentira
algumas vezes, mas que sempre retrocedera com seu rijo autocontrole que tanto
garantira sua vida em vários momentos. Evitava olhar para ele, que a encarava
taciturnamente, presa a um misto de orgulho e embaraço. E o cimério virou-se e
começou a caminhar em direção ao local onde os cavalos haviam ficado. Ela ficou
observando-o afastar-se por alguns segundos e o seguiu, sem saber o que dizer
ou fazer agora.
- Conan! Espere!
Ele já havia chegado ao seu cavalo e
preparava-se para abrir uma das sacolas de água e dar um pouco para o animal,
antes de montá-lo quando ouviu o chamado dela. Ela apressou o passo,
aproximando-se dele e tocando seu braço com cautela, sem levantar a vista.
- Não quero que pense que eu... que eu fiz isso
por gratidão, somente... ou...
- Eu não pensei nada do que você presumiu,
ruiva. Apenas espero que você veja agora que, mesmo eu desprezando a metade dos
costumes civilizados, jamais forçaria uma mulher para possuí-la. Mesmo sentindo
algo por ela. Não sou tão selvagem assim.
E dizendo isso, ele começou a dar de beber para
sua montaria. Ela afastou-se dele em silêncio e fez o mesmo com seu cavalo.
Quando terminaram, montaram e se prepararam para partir. Ela olhava para ele,
que observava a vastidão à frente, para além das pirâmides, na direção do oásis
onde haviam se encontrado antes de tudo. Conan sentiu seus olhos o perscrutando
e virou a cabeça para ela, com um meio sorriso nos lábios.
- Sabe de uma coisa? – falou. – Acho que não
perdemos grande coisa vindo aqui. Eu fiquei satisfeito com o que ganhei e você
recebeu uma nova chance de aprender mais sobre si mesma. Posso dizer que até
gostei demais de perder o butim. Foi uma boa troca.
E soltou uma gargalhada. Porque quem o
conhecia, sabia que ele sempre fora assim, sujeito a enormes crises de alegria
e não menores de melancolia. Um coração selvagem e livre. Sonja por sua vez,
sentiu-se secretamente aliviada por ele não estar totalmente mudado em relação
a ela. Mas sentia agora algo que jamais sentira por nenhum outro homem, mesmo
porque nunca houve nenhum em sua vida. Uma coisa que mexia com o orgulho
feminino desde a aurora dos tempos: o tenebroso sentimento da rejeição, por ele
não haver insistido após o beijo. Mas afinal, por que ela sentia aquilo? Seria
assim com outro homem? Mas se havia outro como Conan da Ciméria, ela não
conhecia ainda, para tirar essa dúvida atroz, e começou a ficar furiosa com
tudo aquilo, principalmente por tirar seu próprio véu e mostrar-se para ele.
- Vamos embora, ruiva! – chamou Conan,
começando a galopar. – Temos que voltar para o Khafiri e alimentar estes
animais, e depois procurar alguma caravana de algum mercador gordo com bolsas
cheias de moedas de ouro para alugar nossas espadas!
- E nada de butim com princesas e príncipes, da
próxima vez! – gritou ela. E o bárbaro gargalhou sacudindo a cabeleira negra e
saindo na frente.
Ela empinou sua montaria e o acompanhou
emparelhando com ele mais à frente. E, embora ele parecesse não se importar
muito com o que houve, algo havia mudado sim, entre eles de alguma forma, mas
ela não sentia mais a mesma tensão de antes, sempre que reencontrava o bárbaro.
Sentia-se mais leve e com algo mais dentro de si, mas preferia não pensar nisso
agora. E por fim, sempre haveria mercadores gordos, trabalho para mercenários
com uma boa espada e butins para caçar e disputar, no mundo hiboriano.
FIM