Reencontros no Japão


(por Fernando Neeser de Aragão)

Inspirado numa idéia de Károly Mazak.



Prólogo – Salvador, setembro de 2010:

“Rato de rua, aborígine do lodo,
Fuça gelada, couraça de sabão.
Quase risonho, profanador de tumba,
Sobrevivente à chacina e à lei do cão!
Saqueador da metrópole, tenaz roedor
De toda a esperança, estuporador da ilusão...”.
(Chico Buarque, em “Ode aos Ratos” / 2001).


Foi há sete anos... Mas as lembranças ainda insistem em me atormentar, ricocheteando em minha mente como um seixo jogado contra um lago sem fim... Foi há sete anos, mas eu me lembro... lembro-me bem do cheiro de cordite, dos estrondos de tiros e da chuva de estilhaços sobre minha cabeça. Eu estava entrincheirado atrás de um velho muro abandonado e em ruínas, próximo ao Conjunto Coroado – um dos lugares mais agitados do bairro soteropolitano de São Marcos –, junto a um grupo de policiais ao qual me aliara, enfrentando resolutamente uma gangue de traficantes, que tentava invadir o local para onde eu e minha namorada Lílian havíamos acabado de nos mudar. Metros adiante, os bandidos também se abrigavam atrás de outro muro arruinado. Minha amada Lílian da Conceição de Jesus havia me implorado para que eu me abrigasse e protegesse com ela em casa, mas meu ódio por aquela gente, que se aproveitava da miséria alheia para lucrar com isso, sempre fora maior que qualquer medo do perigo – ainda mais, depois que meu irmão mais novo morrera de overdose de crack, anos atrás.

Súbito, acendeu-se o tiroteio, que se prolongou, crescendo em violência a cada minuto que passava. Um dos policiais caiu morto. Outro caiu ferido e mais outro, rareando a escassa e pequena fila de atiradores do lado de cá. Uma bala feriu o oficial no braço; já sem poder usar arma de cano longo, ele empunhou sua pistola. A hemorragia lhe dava tonturas e ele sentia a cabeça mal-firmada.

Eu estava pensando num meio de tirar os caros aliados daquele inferno, mas não podíamos chamar a SAMU para aquele antro, pois os médicos automaticamente se recusariam a vir para cá. Então, temerariamente, minha amada Lílian, acompanhada por um velho amigo japonês, apareceu atrás de mim, implorando desesperadamente aos gritos para que eu saísse dali. No instante seguinte, uma bala lhe acertou fatalmente o coração. Com uma nuvem vermelha de dor e ódio em meus olhos, vi o sorriso perverso do líder da gangue, já pronto para balear o velho oriental. Mas, louco de ódio, disparei como um possesso contra o chefe da quadrilha, esvaziando minha pistola na cabeça daquele desgraçado, até não lhe sobrar um miolo – nem osso da calota craniana – para contar história. Sem seu líder, a gangue se dispersou, fugindo aos gritos, atarantados. Os policiais feridos foram socorridos a tempo, mas me envolvi em um longo e estressante processo penal, atormentado sobretudo pela perda trágica de minha amada. Ao fim e ao cabo, fui absolvido por legítima defesa, mas a dor e a angústia se enraizaram em mim, como ervas daninhas, sugando minhas energias, e me empurraram para o abismo sem fim da depressão.


1) Japão, novembro de 2017:

“Sofro, sim; todo mundo sofre...
O rico, o pobre, quem tem azar, quem tem sorte”.
(André Abujamra, em “O Mar” / 2017).

Meu nome é Arthur Mendes da Silva. Durante os sete anos que se seguiram à morte de minha querida Lílian, trabalhei como leão-de-chácara na periferia de Salvador, além de – sempre que o dinheiro permitia, é claro – traçar algumas das prostitutas da casa de suíngue onde eu trabalhava; às vezes, até reunindo amigos e colegas, para fazermos orgias de bukkake (*) com as negras e japas daquele bordel – ou então, com a mulherada dos bordéis da Ladeira da Montanha, quando a grana ficava curta (o que não durou muito, pois aquela zona de baixo meretrício foi desativada uns cinco anos depois que fiquei viúvo). Minha habilidade como lutador de krav-magá – a qual me era bastante útil para meu cargo – fazia de mim um profissional bastante elogiado, tanto por meu patrão quanto pelos freqüentadores, funcionários e profissionais do meu trabalho – além de manter qualquer meliante à distância.

* * *

Eu estava bebendo num dos botecos da Avenida Carlos Gomes, à noite, quando vi um dos freqüentadores daquele antro bolinar as nádegas de Inês Rodrigues – prostituta que trabalhara na Montanha, e agora fazia programa na casa de suíngue onde eu era leão-de-chácara. Era uma bela afro-descendente, dotada de nádegas tão enormes e lindas quanto as da atriz pornô La Gurl – cujos glúteos faziam os de Kim Kardashian parecer pequenos e magros. Mas ela não estava mais em seu expediente.

- Tira a mão daí, seu xibungo! – explodiu Inês.

- Ah, qual é, minha mulata cadeiruda? – respondeu outro cara sorrindo. – Vem sentar e tomar uma com a gente... – e passou a mão entre as coxas grossas da jovem, apalpando-lhe, por cima da calça justa e calcinha, a vulva carnuda.

A resposta de Inês foi um tapa na cara daquele segundo homem. O dono do bar, com um brilho de medo nos olhos, se escondeu de fininho para não “sobrar”, ao mesmo tempo em que eu me levantei, de punhos cerrados.

- Deixem a moça em paz! – exclamei, com o ódio ardendo de forma latente em mim. – Ela só faz se pagarem, e seu expediente já acabou.

- “Moça”? – riu um dos caras. – Esse rabão gordo dela já deve tar mais rodado que o da tua mãe, mané!

Meu ódio explodiu de vez, e acertei um soco no lado esquerdo do rosto daquele que insultara minha genitora, lhe quebrando e deslocando o maxilar. Ele tombou apenas inconsciente, mas ia passar vários meses sem falar direito nem mastigar sozinho. O outro, sorrindo perversamente para mim, apontou sua arma para Inês, a qual, ao invés de ter fugido, ficou paralisada de medo e encostada à parede (nunca vou entender as mulheres...). E, antes que eu pudesse fazer alguma coisa, um tiro ecoou naquele recinto.

A bala foi certeira e mortal, e o mau elemento desabou como um boi abatido, os miolos lhe escorrendo da têmpora. Incrédulo, olhei para a porta do boteco e vi uma bela mestiça, de aparência quase japonesa – exceto pelos belos cabelos crespos, herdados da mãe –, segurando a pistola com a qual matara o quase-assassino de Inês.

- Riria? – exclamei, dizendo-lhe o nome.

- Quem mais? – ela sorriu, falando Português com forte sotaque japonês. – E onde mais eu lhe acharia, senão num desses antros do Centro, para onde você tanto gosta de ir após seu expediente na periferia? – ela acrescentou, em tom de deboche, mas ao mesmo tempo aliviada por ter salvado a vida de uma das minhas ocasionais parceiras sexuais.

- Por que se arriscou em vir para cá, salvar minha vida?

- Depois conversaremos melhor sobre isto – respondeu a japa. – Sigam-me! – ela acrescentou, gesticulando para mim e para Inês. Entramos num carro de placa fria, o qual Riria Kyono havia dirigido até o boteco, e deixamos a bela prostituta Inês em sua casa. A noite de face-sitting (**) e sexo anal, que eu teria com Inês, ia ter que esperar.

- Meu pai está morrendo de um câncer sem cura, mas quer lhe agradecer por você ter salvado a vida dele há sete anos, em São Marcos – explicou-me finalmente Riria Kyono, filha do velho Shingeaki, enquanto dirigia para cada vez mais longe do centro da cidade. – E ele faz questão de se despedir pessoalmente.

Chegando até um jato particular, no limite de município de Salvador – felizmente, o boteco onde acontecera a briga não tinha câmera do lado de dentro, nem do de fora, de modo que (graças a isso e à chuva torrencial que caía desde antes da contenda no bar) não fomos vistos nem perseguidos –, Riria me levou num vôo até Tóquio, com uma breve escala numa praia deserta do Iraque. De Tóquio, pegamos um trem-bala com destino à prefeitura de Kumamoto. Lá, na terra dos samurais e das gueixas – e também do bukkake (bem como de minhas atrizes pornôs preferidas, como Kaori) –, onde a tecnologia de ponta convive com as tradições, conheci Márcia Kyono, a linda e esguia irmã brasileira de Riria e excelente lutadora de kung-fu, do rosto e sorriso largos, e me apaixonei por ela à primeira vista. Seus traços brasileiros e afro-descendentes predominavam sobre os nipônicos, de modo que, para a maioria dos meus conterrâneos, ela se passaria facilmente por uma típica mestiça de sua Salvador natal.

Graças ao trabalho de sua filha no Brasil – e a uma herança que Shingeaki ganhara em 2013 de um então recém-falecido tio deste –, ele pôde voltar a morar no Japão, com um padrão de vida bem mais elevado e acompanhado por Márcia. Esta última aproveitou o primeiro encontro comigo, e me convidou para conhecer a culinária japonesa.

Enquanto jantávamos sushi, sukiyaki e yakisoba num dos melhores restaurantes da cidade, aproveitei para perguntar a Márcia se a alta tecnologia japonesa não poderia ter encontrado a cura para o pâncreas do pai dela. Entre lágrimas, a bela oriental me respondeu que não, pois quando o tumor fora descoberto em 2015, o velho Shingeaki já estava além de qualquer ajuda, e a única coisa que poderíamos fazer era rezar por um milagre. Então, após consolar Márcia, resolvi visitar o meu amigo desenganado.



- Sei que vives como um ronin, caro amigo Arthur... – disse-me o velho Shingeaki Kyono em seu leito, num dos melhores hospitais de Kumamoto. E, pela sua voz muito debilitada, vi que ele já estava em fase terminal. – Sei que vives como um samurai sem dono, e que tua vida perdeu quase todo o sentido após a morte de sua Lílian... Por isso, eu te chamei aqui, não apenas para agradecer, mas para dar um sentido à sua existência.

- E qual seria? – perguntei intrigado.

- Forças sinistras se aliaram à Yakuza (***) e estão conspirando contra minhas duas filhas, Arthur... – respondeu-me o velho Shingeaki. – Por favor, proteja-as...

- Protegê-las de que, exatamente, amigo? – comecei a perguntar, mas uma golfada de sangue encerrou as palavras e a vida do meu velho amigo. Choramos juntos, eu, suas filhas e seus amigos, antes, durante e após o funeral do velho senhor Kyono.


2) “Hoje sou uma Deusa solitária...
Desperto paixões profanas e platônicas...
Vivo na imaginação e nos sonhos de pobres mortais
Que sonham me consumar em amor ardente”
(Autor desconhecido).

Dias depois, eu e Márcia passeávamos à noite pela periferia de Kumamoto, a fim de espairecermos e não pensarmos na tragédia recente.

- Seu pai me disse que eu sou um ronin; um samurai sem mestre – comentei com Márcia, quebrando o silêncio noturno. – Ele me disse que meu destino era proteger você e sua irmã, e que isto me daria uma razão para viver.

Márcia parou e sorriu para mim:

- Acaso eu e minha irmã parecemos precisar de proteção?

Sorri de volta:

- Acho que não, mas...

- E eu acho que há muitas outras razões para viver, além da de “proteger” a mim ou a Riria – ela interrompeu, ficando nas pontas dos pés e encostando seu decote (o qual, embora apertado, mal conseguia segurar o tamanho e peso de seu busto magnífico) em meu peito.

Então, numa súbita explosão de desejo, eu e Márcia nos abraçamos e trocamos um beijo longo, quente e molhado.

De repente, um som furtivo me chamou a atenção. Naquele momento, gritei um aviso agudo e áspero, mas era tarde demais. Sob o súbito golpe maldoso da figura que se ergueu dos arbustos, Márcia caiu de joelhos. Num instante, eu era o centro de um ataque em redemoinho: figuras escuras pareciam se materializar da terra, para saltar em minha direção.

Mas, no primeiro instante de ataque, os desconhecidos agressores viram que não experimentavam trabalho fácil. Com um rosnado de fúria de batalha, entrei em ação rápida e mortífera. Enfrentei o primeiro agressor com um golpe esmagador do braço direito, que o fez cair se contorcendo, lancei para longe outro que havia subido em meus ombros e, girando com velocidade felina apesar de meu peso, enfrentei o ataque de uma forma sinistra que saltou para dentro com um tremeluzir de aço frio.

Senti um gume afiado cortar ao longo de meu braço erguido, e logo minha mão direita se espatifou contra o maxilar do agressor e o outro foi lançado para trás, para cair num amontoado grotesco a três metros de distância. Outro deles caiu como um tronco de árvore sob o impacto do meu punho esquerdo em sua têmpora.

Naquele momento, uma pistola estalou e alguém gritou e praguejou. Márcia estava ajoelhada, disparando. Como fantasmas, os bandidos desconhecidos desapareceram na noite, deixando para trás apenas a forma amarrotada do último homem a quem eu havia golpeado.

Ela ficou ao meu lado num instante.

- Ferida? – perguntei.

- Não, apenas um pouco atordoada, graças ao meu chapéu grosso. Mas você está sangrando!

- Nada de mais – impacientemente pus o braço atrás de mim. – Só um arranhão. Vamos ver o sujeito que fez isso. Ainda está de fora.

Márcia se curvou sobre o inimigo caído e, então, com uma exclamação aguda, arrancou uma tira grossa da manga de sua camisa e rapidamente a amarrou na perna do homem, acima do joelho.

- Torniquete – ela explicou apressadamente. – O miserável está sangrando até a morte; pode morrer de qualquer forma. Caiu sobre sua própria faca, e aquela grande artéria atrás do joelho está aparentemente cortada. Meu Deus, ele perdeu muito sangue!

Carranqueando, eu me curvava sobre o homem inconsciente.

- Esse sujeito é chinês – ela disse subitamente. – Olhe para sua faca, se seu rosto não for evidência suficiente! E tem mais: ele é Chen Ling, procurado tanto na Birmânia quanto na Tailândia por vários crimes, e hoje membro da Yakuza! Já vi este patife antes! O que você está fazendo aqui?

O chinês estava totalmente consciente agora, embora a cor branca ao redor de seus lábios mostrasse que ele estava num mau caminho. Seus olhos malignos brilharam de reconhecimento ao verem Márcia, mas ele não disse nada.

- Fale! – rosnou Márcia. – Ou lhe deixaremos aqui para morrer.

Os olhos firmes do oriental hesitaram, e ele apontou, com a mão trêmula, para uma construção distante.

- Não – disse a jovem calma e subitamente –, você não vai morrer; você viverá para expiar seus crimes com uma bala na nuca.

Os olhos do chinês tremularam.

- Você vai me balear? – ele falou pela primeira vez; sua voz era muito fraca, quase um sussurro.

Então ele se mexeu, e sua ação foi inesperada e aterradora.  Com um puxão violento e feroz, ele se livrou dos braços de Márcia que o agarravam, girou sobre seu lado e arrancou o torniquete da perna. Uma incrível explosão de sangue aconteceu; o corpo de Chen Ling estremeceu uma vez e logo jazeu flácido, mas os olhos mortos miravam para cima com um triunfo aparentemente maligno.

- Meu Deus! – Márcia Kyono sussurrou trêmula.

- O que faremos com o cadáver? – perguntei, tocando o morto com meu pé, com indiferença, como se ele fosse uma cobra morta.

- Temos que deixá-lo aqui – Márcia decidiu. – Não podemos escondê-lo, na expectativa de um novo ataque sobre nós a qualquer momento. Acho melhor irmos ao local que esse presunto indicou.

Então fomos correndo até a construção apontada pelo falecido Chen Ling, onde, logo no primeiro, sombrio e quase escuro salão, com decoração de estilo egípcio em contraste com sua fachada moderna e iluminado apenas por um castiçal de sete velas, encontramos Ashley Summers, a oncologista egípcia que acompanhara o velho Shingeaki Kyono durante sua doença. Ela só trabalhava à noite, trocando de turno com uma colega japonesa; e, mesmo durante a noite, usava óculos escuros.

A Dra. Summers estava à frente de um grupo de vampiros hediondos e de mafiosos da Yakuza. Aqueles mortos-vivos, que se misturavam com os bandidos, tinham olhos gelados capazes de perfurar a alma; irradiavam um frio selvagem, mesmo de longe, e exalavam um cheiro de barro bolorento e lixo de cripta, a ponto de seus próprios aliados da máfia passarem a mão discreta e esporadicamente nos próprios narizes. Sem dúvida, aqueles seres hediondos eram as “forças sinistras” das quais o velho Shingeaki me falara em seu leito de morte. Vimos que, sem óculos e ao luar, os olhos graúdos daquela oncologista branca e alta tinham uma cor negra e brilhante, e que sua bela boca, ao se abrir, mostrava assustadores caninos afiados.

- Ashley! – Márcia exclamou horrorizada.

Ela gargalhou e, com um olhar de ódio dirigido a mim, tirou o guarda-pó, ficando vestida apenas com um par de sandálias e uma saia curta de veludo, e jogou para trás suas brilhantes madeixas negras, esticando sensualmente os braços cor de marfim:

- Ashley Summers nunca existiu, tolos mortais! Eu sou Akivasha, filha de Tuthamon, o primeiro Rei da Stygia! Sou a mulher que nunca morreu, que nunca envelheceu! Quarenta e cinco mil anos atrás, eu morri para viver para sempre! E agora vingar-me-ei daquele que me rejeitou, e eliminarei qualquer pessoa que se interpor em meu caminho! – exclamou a vampira, antes de bradar uma breve ordem, enviando seus homens e criaturas contra nós.

Então, nos preparamos para a luta. Os homens da Yakuza e os mortos-vivos avançaram em nossa direção, como abutres caindo sobre suas presas. Após matar alguns membros da Yakuza com as balas que lhe restaram, Márcia desembainhou a katana – espada samurai – que trazia presa ao quadril esquerdo. No primeiro golpe de katana, ela decepou a cabeça de um dos vampiros; no seguinte, quebrou o pescoço de outro com o cabo da arma; e, com mais dois, abriu a genitália de um meliante e lhe perfurou mortalmente entre o pescoço e o queixo. E, embora os canalhas da Yakuza – que haviam sido contratados pela vampira – portassem armas de fogo, nenhum deles era páreo para nossa agilidade – pois, embora o corpo humano não seja tão ou mais rápido que uma bala, ele pode ser mais rápido do que o dedo que aperta o gatilho.

Saltei acima das costas de um daqueles membros da antiga e mais perigosa organização criminosa japonesa, lhe abri a nuca e coluna vertebral até a lombar, com uma espada que Márcia me dera – uma danzan (espada japonesa samurai, feita para separar membros dos corpos) – e, no golpe seguinte, eu lhe decepei a cabeça num último jato de sangue. Embora Márcia houvesse me dito que aquele tipo de espada deveria ser manejado com ambas as mãos, eu conseguia manusear a danzan facilmente com apenas uma – e uma estranha sensação de familiaridade se apossou de mim, no momento em que comecei a brandir aquela arma branca. Tanto meus giros e estocadas, quanto os da linda Márcia, eram rápidos demais para que os mafiosos tivessem sequer tempo de atirar, ou os vampiros de nos morder.

Num instante em que um bandido e um vampiro a derrubaram, eu a salvei, cravando meu sabre no pescoço do mafioso e quebrando o pescoço da criatura com um chute. Em meio ao calor daquela luta, enquanto decepávamos cabeças e membros, e abríamos ventres, crânios, testas, olhos e jugulares, eu me lembrei de um conterrâneo meu, de nome Olavo, o qual havia, em 2008, detonado criaturas iguais àquelas, no Centro de Salvador. Seria aquela mulher, de nome Akivasha – ao invés da tal “Lilitu”, de quem Olavo falara há nove anos nos jornais –, a verdadeira líder daqueles seres hediondos que assolaram a Praça da Sé naquela época? Mas, no calor da batalha, não havia muito tempo para análises nem reflexão.

Logo depois, Márcia desembainhou uma adaga ninja para deter o ataque de um dos meliantes, enquanto ela passava a katana à altura do pescoço de uma das criaturas, decepando-lhe a cabeça. No momento seguinte, a filha de Shingeaki me lançou outra adaga, a qual eu agarrei em pleno ar, ajudando-a a se livrar da grande quantidade de rivais que nos atacava. Enquanto Márcia esfaqueava como uma possessa um dos bandidos da Yakuza, eu lhe dava cobertura, cortando ao meio outro mafioso, do crânio até a genitália, decepando a cabeça de mais um vampiro e estrangulando outra criatura da noite até lhe quebrar o pescoço, para em seguida decepar a mão armada e abrir a garganta de outro meliante.

Decapitei outro dos vampiros, mas um dos mafiosos atingiu minha nuca com uma coronhada. Quando o bandido ia me balear, cravei minha danzan em seu olho direito antes que ele pudesse atirar, perfurando-lhe o globo e a órbita ocular, e o cérebro sob eles. Logo tirei minha espada do crânio do meliante que eu matara e a cravei no coração de outro bandido da Yakuza.

Mais um daqueles meliantes tentou me balear, mas, antes que ele apertasse o gatilho, atirei minha adaga certeira, vazando-lhe o olho direito. Com minha danzan, eu lhe abreviei a dor, ao partir o crânio do mafioso até o pescoço. Antes que eu pudesse puxar minha lâmina e reaver minha adaga, mais um daqueles cães da Yakuza – um dos poucos a usar arma branca – se aproveitou do fato de eu estar temporariamente desarmado, para tentar me decapitar com um giro de sua katana. Esquivando-me, eu lhe acertei um murro no queixo, quebrando-lhe o mesmo; e, em seguida, com uma chave de braço, eu lhe quebrei o pescoço musculoso.

Enquanto isso, Márcia cortava outro mafioso ao meio, na altura da cintura, numa explosão sangrenta de vísceras sobre o chão, para em seguida decepar a calota craniana de outro meliante japonês, naquele mesmo giro de arma branca. Após alguns minutos de luta, a lâmina de minha adaga se quebrou dentro da cabeça de um dos mafiosos da Yakuza, e pouco depois, a de Márcia ficou presa no pescoço de um dos vampiros cuja coluna ela partira. Em seguida, ao se esquivar do tiro de um dos bandidos, antes que o mesmo fosse disparado, Márcia arrebentou-lhe o queixo com um chute, antes de lhe abrir a garganta com sua katana.

De repente, de uma bruma que Akivasha invocou naquela sala ao pronunciar nomes impronunciáveis, saíram três criaturas de pesadelo, ainda mais assustadoras que os vampiros. Pareciam cães, mas tinham aparência e agilidade infernais. Eu e Márcia ficamos de prontidão, eu segurando a danzan pela primeira vez com ambas as mãos. O primeiro passou tão rápido por mim, que só tive tempo de gritar de dor quando ele me arranhou as costas. O segundo investiu até Márcia, que o estripou num giro sangrento do pescoço à genitália. O que me arranhara tentou me atacar, e lhe decepei a cauda cheia de pontas semelhantes a chifres, para, no instante seguinte, perfurar seu crânio com a ponta de minha danzan, quando a criatura estava no meio de um salto.

Antes que eu pudesse soltar minha lâmina, o terceiro me derrubou e estava sobre mim. Tentei estrangulá-lo sem sucesso e, no desespero, lhe esmurrei inutilmente a face com meu punho direito. Então, no instante seguinte, ele desabou para o lado, com a cabeça decepada num jato de sangue pela katana de Márcia, que, após me ajudar, retornou ao combate.

Então, peguei minha danzan de volta, e avistei a maldita vampira que comandava aquelas criaturas e aqueles mafiosos. O olhar dela se fixou no meu, e seus negros olhos brilhantes ficaram ainda mais brilhantes, enquanto ela sorria. Percebi que aquela miserável tentava me hipnotizar, pois, ao ver que eu continuava investindo, seu sorriso se transformou em medo.

Mas, sem que eu percebesse, Akivasha me tocou o ombro com a mão e comecei a sucumbir à sua hipnose. Tive que desviar meu olhar para baixo e, enquanto lutava desesperadamente para me libertar de seu controle, eu lhe decepei as duas pernas num giro sangrento, logo abaixo de seu quadril; e, em seguida, com outro giro de minha espada, fiz a cabeça daquela mulher maligna voar num jato de sangue, seu rosto uma máscara petrificada numa expressão de medo e horror, em uma mulher que tanto causara medo e horror a inúmeras pessoas, durante eras. Uma hedionda sombra escura fluiu do corpo despedaçado de Akivasha, e sussurrou através da sala, como um vento fantasmagórico; e, de alguma forma, eu soube que, finalmente, a Escuridão que se apossara há muitos milênios da ex-princesa a havia abandonado, e que a maldita vampira stígia estava definitivamente morta.

Mas o último dos vampiros daquela maldita morta-viva se aproveitou de minha distração e me imobilizou por trás. Ele estava prestes a cravar seus caninos fétidos em meu pescoço, quando a irmã de Márcia Kyono apareceu subitamente naquele recinto e me salvou, abrindo o pescoço da criatura por trás com uma katana, de modo a lhe cortar a coluna cervical. Súbito, desmaiei do extremo esforço físico e mental que aquela luta exigira.


3) “O meu coração, cheio de paixão,
Grita teu nome onde quer que eu vá!
Sonho com você, choro por você,
Porque eu nasci pra viver com você!”
(Joelma, em “Cumbia do Amor” / 2001).

Durante o desmaio, vi um jovem musculoso e com quase dois metros de altura, comandando um navio longo, de laterais baixas e com um convés elevado se estendendo da popa à proa. O jovem homem era bem-barbeado, e as várias cicatrizes em seu rosto moreno e sombrio davam, às suas já impressionantes feições, um aspecto verdadeiramente sinistro. Sua testa baixa e larga era encimada por uma negra cabeleira em corte reto, que contrastava fortemente com seus olhos azuis. Então, percebi um parentesco – não; uma unidade! – com aquele pirata pré-gaélico de eras passadas, em armadura de cota-de-malha negra e acompanhado por uma linda guerreira branca e seminua.

Em seguida, me vi nos corredores subterrâneos de uma sombria cidade pré-egípcia, em busca de uma jóia rubra para recuperar meu trono, quando me deparei com ninguém menos que a tal Akivasha, querendo sugar meu sangue. Desvencilhei-me da vampira e fugi do recinto, onde ela dormia em seu ataúde quando queria descansar. Também vi templos antigos, onde tambores murmuravam e estranhas figuras em mantos de penas de papagaios se moviam através da fumaça de fogos sacrificais.

Vi a mim mesmo, muitos milênios depois, com aparência um pouco mais diferente – menos alto, menos musculoso e com cabelos bem mais curtos que na lembrança anterior –, me esgueirando em busca de uma jovem tão dalcasiana quanto eu, mas de pele branca e olhos cinzentos, a qual fora raptada por piratas dinamarqueses e seria forçada a se casar com o líder deles – um canalha de barba ruiva e cabelos e bigodes loiros, chamado Thorfel. Incapaz de ajudá-la, eu a vinguei em terrível e sangrenta batalha, depois que a moça esfaqueou o próprio coração para não se casar com o líder viking; e a chegada providencial de estranhos selvagens de pele escura me ajudou a matar todos os dinamarqueses daquela enorme casa, antes que eu matasse e decapitasse o infame Thorfel, para vingar a jovem raptada, cujo nome era Moira. Também tive a ajuda de uma estranha estátua, de dura e resistente madeira escura, a qual me guiara até aquele local para o qual eu havia navegado.

Depois de alguns séculos, vi uma larga sala quadrada, escavada na rocha sólida. Uma portada com arco se abria em cada parede, e a oposta à qual eu havia entrado era fechada com uma pesada porta, corroída e desgastada pela decadência. Contra a parede à nossa esquerda, havia uma imagem de pedra, mais alta que um homem; uma escultura grotesca, ao mesmo tempo humana e bestial. Um altar de pedra se erguia diante dela, sua superfície sulcada e obscuramente manchada. Alguma coisa no peito do ídolo capturava o luar num lampejo gelado. Algo parecido com o colar de um gigante, feito de placas unidas de ouro batido, cada uma tão larga quanto a palma da mão de um homem e incrustada com jóias de corte curioso. Arranquei aquele colar do ídolo e o reparti com um infame capitão inglês, de nome John Wentyard, não por consideração àquele canalha, mas à sua esposa e filha, as quais não tinham culpa das atrocidades que aquele carniceiro fizera aos meus conterrâneos em Galway.

Em seguida, eu me vi novamente como um pirata, dessa vez no início do século 19, conversando e bebendo com outra pirata, a qual havia acabado de perder o navio e a tripulação. Apesar de já termos tomado algumas canecas de cerveja, eu e a bela mulher continuávamos sóbrios e já estávamos flertando durante nossa conversa.

- Como é? – a beldade me perguntou repentinamente. – Quer me levar em seu navio, ou quer que eu lhe acompanhe?

Sorri, e minha alma inquieta e aventureira se agitou dentro de mim.

- Do jeito que você quiser, também quero. Se estiver disposta a me acompanhar, então vamos! – respondi sem pestanejar e trocamos um beijo ardente e feroz, numa explosão repentina de paixão. E aquele cheiro de suor que ela exalava, cheiro de guerreira, me deixava ainda mais excitado.

Ela só fez pegar alguns pertences que deixara na estalagem, e navegamos juntos – eu e aquela linda rainha dos bucaneiros e dos mares, com a qual vivi um grande amor, pilhando novamente as águas azuis!

Mais de cem anos depois, eu me vi como um homem amargurado, por ter tido que deixar Eleanor Bland – a quem eu amava, apesar de meu amor por ela ter sido platônico – ficar com Richard Brent, por quem aquela linda loira de olhos cinzentos era apaixonada e a quem ela amava de verdade. Contudo, anos depois numa pequena cidade escocesa, eu passeava a cavalo, quando parei na porta de uma casa e vi uma jovem mulher saindo da porta, cheirando a banho recém-tomado, o cabelo negro e comprido, solto, e usando um lindo vestido. Seus olhos negros e o nariz levemente aquilino indicavam que aquela linda mulher, de nome Mary, não era de descendência totalmente celta. Pasmo e extasiado, eu mal conseguia pronunciar o nome simples, porém belo, da linda escocesa e, num instante, já estávamos sentados juntos, num banco de madeira na varanda do lado de fora daquela casa, onde ficamos a conversar longamente. Após aquele encontro, já estávamos de amor aceso e a noite que se seguiu foi de doces sonhos, como há muito eu não tinha. No dia seguinte, à mesma hora, retornei à casa da linda mulher de olhos negros. Ela sorriu novamente para mim, usando um novo vestido, ainda mais belo que o do dia anterior, o cabelo repartido à direita, formando uma linda trança enfeitiçante, e com uma linda flor presa ao outro lado de sua cabeleira. Saímos a passear de mãos dadas, nos entreolhamos demoradamente e súbito trocamos um abraço apertado e apaixonado, nossas respirações em ofegos intermitentes de emoção; e ela, tão apaixonada quanto eu, fechou os olhos e pressionou seus belos lábios cheios contra os meus, trocando comigo um beijo feroz e excitante!

Descobri então que fui reencarnação de Conan da Ciméria – apelidado de Amra pelos corsários negros, amante da falecida (e por mim vingada) pirata Bêlit, e mais tarde Rei da Aquilônia, conhecendo Akivasha pela primeira vez nos subterrâneos de Khemi, durante meu quarto ano de reinado –; do guerreiro gaélico Conan dos Salteadores, que enfrentou os Filhos da Noite na Caverna de Dagon, no litoral da antiga Inglaterra; de Cormac Mac Art, um proscrito da época do Rei Arthur; e também fui o taciturno e melancólico guerreiro proscrito Turlogh, do clã dos O’Brien, que enfrentara dinamarqueses em Dublin, matara Thorfel para vingar Moira e lutara contra muçulmanos na costa noroeste da África, ao lado do saxão Athelstane e do espanhol Don Roderigo; além de também ter sido o fora-da-lei gaélico-normando Cormac FitzGeoffrey, durante uma das Cruzadas. Também fui, dentre outros, o pirata irlandês Terence Vulmea, no século 17, e John O’Brien, no século 20!

Mumificada viva – de forma singular, sem remover nenhuma de suas partes vitais – após a invasão vanir à Stygia, Akivasha fora inadvertidamente ressuscitada milênios depois, na época dos faraós, e vagou escondida e disfarçada pela Terra, durante eras, até chegar, sabem os deuses como, ao Japão – e adquirir aqueles poderes hipnóticos, também sabem os deuses como, a ponto de controlar vampiros a longas distâncias. De qualquer forma, entendi o que a falecida vampira quis dizer com “se vingar daquele que a rejeitou”.

Então, descobri que Márcia Kyono, aquela linda filha de japonês com mulata – e bisneta de judeus por parte de mãe – era reencarnação de Bêlit, Jane Williams e Mwanawa, dentre outras a quem amei em encarnações posteriores. Ela realmente fez jus à sua frase, dita a mim há 35 milênios: “Eu sou sua, e nem todos os deuses e todas as suas eternidades serão capazes de nos separar!”. Acordei no leito do mesmo hospital onde Shingeaki Kyono fora internado meses antes, e o primeiro rosto que vi foi o de Márcia, ao lado da irmã Riria. Riria me contou como havia se esgueirado, seguindo a oncologista Ashley – da qual ela suspeitava desde a morte do pai –, até nos alcançar a tempo de salvar minha vida. Sorri, agradeci a Riria e declarei todo meu amor para Márcia; e esta, retribuindo minha declaração de amor, beijou ardentemente meus lábios.


4) “Que todas as dores sejam levadas pelo mar,
Que as lágrimas tristes virem pérolas”.
(André Abujamra, em “O Mar” / 2017).

Após eu receber alta do hospital e prestarmos os devidos esclarecimentos às autoridades locais – pelo fato das duas irmãs terem precisado incendiar a construção, no intuito de eliminarem quaisquer possibilidades dos vampiros não estarem mortos –, eu e minha linda Márcia Kyono fomos morar próximos a uma área verde no litoral sul do Japão, a qual – ao contrário da Avenida Paralela, em Salvador, devido a um metrô que deveria ter sido subterrâneo, mas não o foi – não havia sido, nem seria, desmatada. Sem contar que, naquela costa, não havia terremotos, como em Kumamoto.

Era meio-dia e eu havia terminado de tomar banho, ao som do maravilhoso sucesso “Vá Se Benzer”, de Preta Gil – o qual eu havia acabado de encontrar no You Tube –, e, enrolado em minha toalha, saí até a praia deserta ali perto, onde vi Márcia Kyono, meu grande amor de vidas passadas, tomando banho de mar. Ao me avistar, ela sorriu para mim, saiu do mar e veio correndo em minha direção toda nua, com seu lindo corpo moreno cheirando ao Oceano Pacífico, sua pele e pêlos pubianos com o brilho molhado da água do mar e os belíssimos e soltos seios longos, de aréolas grandes e escuras bem abaixo da cintura, balançando para todas as direções, enquanto ela corria. A gente se beijou e fez amor selvagemente ali mesmo, na praia, eu lhe sugando louca e sofregamente os delgados seios compridos enquanto ela gemia de êxtase de prazer. Pressentindo meu orgasmo, Márcia Kyono, logo após o próprio clímax, dirigiu meu pênis até seu lindo rosto mestiço, onde ejaculei abundantemente.

Excitado com a visão paradisíaca do rosto de minha amada manchado de sêmen, voltei a penetrá-la e tivemos um segundo êxtase prazeroso, ainda mais intenso que o primeiro – eu ejaculando abundantemente na boca de Márcia, e ela gargarejando e engolindo meu sêmen, e me beijando os testículos e a glande em agradecimento. Um novo amor em minha vida – na verdade, um reencontro com um antigo amor, de outras encarnações – deu novo sentido à minha existência. Após alguns anos morando juntos, oficializamos nossa união num casamento japonês e, durante as muitas décadas que se seguiram, vivemos juntos uma intensa paixão, onde o orgasmo era apenas o começo.

FIM



(*) – Bukkake: Orgia sexual, criada pela indústria pornô japonesa nos anos 80 (e bastante difundida mundialmente a partir dos anos 90), a qual consiste em vários homens ejacularem no rosto de uma única mulher (Nota do autor);

(**) – Face-sitting: Em Português, “sentar na cara”; é uma prática sexual, na qual um parceiro (em geral a mulher) se senta sobre o rosto do outro, de forma frontal ou inversa com relação ao mesmo, para permitir ou forçar o contato oral-genital ou oral-anal (N. do a.);

(***) – Yakuza: A maior organização criminosa do Japão (idem).




Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Károly Mazak, da Hungria; Deuce Richardson, dos EUA, e Osvaldo Magalhães de Oliveira, de Brasília – DF; e à minha amada esposa Edilene Brito da Cruz de Aragão.

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