(por Robert E. Howard)
1)
Sir Haldred
Taverel se sentou na cama, consciente apenas de um horror perplexo e
rastejante. Levantou as mãos até a cabeça, tentando organizar suas faculdades
dispersas, como um homem faz quando acordado subitamente de um sono profundo.
Ele havia
sonhado – ou era um sonho, aquele hediondo rosto amarelo que havia pairado
sobre ele? Sir Haldred estremeceu. A lembrança, daqueles ferozes olhos inumanos
e da frouxa boca bestial, era surpreendentemente vívida. Mas ele não sabia
dizer se a lembrança era a de um sonho, ou...
Começou unindo
os fragmentos de memória desordenada, enquanto seus olhos perambulavam ao redor
do grande salão, com suas mobílias caras e sombrias. Enquanto seus olhos
procuravam por movimentos furtivos entre as cortinas antigas, lembrou-se dos
eventos dos poucos últimos meses.
A morte de um
parente distante havia erguido o jovem lorde, da posição de nobre de uma
pequena região, cuja fortuna de família havia se deteriorado, para uma de
relativa afluência. Em uma breve semana, Sir Haldred se vira arrancado do
ambiente de sua meninice e a transição o deixara atordoado, após a novidade se
desgastar. Do agradável sul da Inglaterra, teve que vir a esta selvagem e
desolada Costa norte, para ser o único ocupante deste castelo velho e sombrio,
sobre o qual a tradição proclamava ser assombrado pelos fantasmas de crimes
passados.
Também não era
o único ocupante – havia Lo Kung, o único criado que aquele lugar ostentava,
ali deixado pelo dono anterior. Lo Kung, Sir Haldred refletia, era um acessório
adequando ao castelo, pois era magro, silencioso e fantasmagórico – embora o jovem
não conseguisse se livrar de uma sensação de familiaridade com o homem, a qual
não conseguia identificar... algo tantalizante nos ombros curvados, ou na suave
voz sibilante do oriental.
Mas Lo Kung o
assegurara que eles nunca haviam se visto antes; sustentara aquilo firmemente,
naquela sua maneira cortês e impessoal. Mas por que agira tão estranhamente no
dia em que Sir Haldred chegou? Abrira a porta em resposta ao sino, dera um
passo para trás e gesticulou para que o jovem homem entrasse; então parara
súbita e bruscamente, como se golpeado, ficando perfeitamente imóvel por um
instante. Seus olhos pareceram queimar Sir Haldred através dos pesados óculos
coloridos que os chineses sempre usavam, mas seu rosto imóvel, com sua estranha
barba fina e pontuda, não dera sinal.
O ombro de Sir
Haldred se contraiu sob seu fino pijama de seda, enquanto relembrava sua vida
na Propriedade Taverel – curta, mas longe de ser divertida. Ele havia tido
poucas visitas; havia passado a maior parte do seu tempo perambulando ao redor
do castelo velho e sombrio, tentando se acostumar ao silêncio, ao ar de
observadores invisíveis e à sensação de pegadas furtivas...
Súbito, ele se
ergueu da cama de um pulo, com uma exclamação de impaciência. Quer ele tenha
sonhado, quer tenha havido um homem em seu quarto há alguns minutos... um
homem? Talvez não um homem, mas alguma criatura com um hediondo rosto amarelo,
que não mais lembrava Lo Kung ou qualquer outro chinês que ele já tenha visto,
do que ela lembrava o próprio Sir Haldred. Imagine um macaco sem pêlos, com
pele cor de pergaminho... Sir Haldred atravessou correndo a sala e abriu a
porta, sentindo um pequeno tremor de apreensão quando a maçaneta cedeu aos seus
esforços. Ele havia deixado a porta trancada, ou havia pretendido deixar.
Desceu apressadamente
o corredor escurecido, fracamente iluminado pelo luar que conseguia se
infiltrar através de algumas das janelas cortinadas, e desceu as escadas, para
dentro da total escuridão do primeiro andar. Não havia som, mas sentiu raiva de
si mesmo ao se ver prendendo a respiração. Desejava ter uma arma; esta casa
antiga estava lhe dando nos nervos. Mas, naquela manhã, Lo Kung mencionara o
fato de que ele parecia pálido e lhe insistira para ir a Londres por alguns
dias. Lo Kung havia sido urgente em seu conselho, e agora Sir Haldred,
lembrando-se, achou tempo para se espantar diante da sensação que vibrara em
seu tom. Desejou ter seguido aquele conselho, enquanto tateava seu caminho ao
descer as escadas escurecidas. Ele não tinha lanterna, e a casa não ostentava
conexão com a usina elétrica da aldeia.
Agora ele
alcançara o pé das escadas, o qual adentrava o saguão inferior. Nenhum som na
casa – ele caiu pesadamente sobre algo que jazia estatelado próximo à base das
escadas.
Ergueu-se de
um pulo e acendeu um fósforo. Arregalou os olhos em horror desnorteado,
enquanto o fósforo queimava até seus dedos. Lo Kung jazia aos seus pés, e um
olhar bastou para mostrar que ele estava morto. O chinês havia sido
assustadoramente espancado, como se por algum animal enorme. Sir Haldred
acendeu outro fósforo e se curvou mais perto. Os óculos haviam sido arrancados,
e os olhos mortos encaravam arregalados. O fôlego do jovem se prendeu numa
rápida inspiração. Agarrou a fina barba pontuda; escorregou de sua mão. Por um
instante, encarou incrédulo; então, um som repentino o fez girar.
Lá no final do
salão, alguma coisa se movia; lá havia soado o caminhar furtivo de pés
descalços – humanos ou não. Sir Haldred agarrou um pesado atiçador e desceu o
salão a passos largos. O horrível drama, onde aquela casa escura e silenciosa
havia sido palco naquela noite, ainda não havia terminado.
No final do
salão, havia uma curiosa relíquia das andanças do dono anterior em terras
estranhas: um sombrio santuário pagão. Um pedestal alto e grotescamente
entalhado se erguia atrás de um altar baixo e manchado; o pedestal colocado
firmemente contra a parede final do salão. Neste pedestal se sentava um grande
ídolo, repugnante e horrível, uma assustadora caricatura de humanidade.
Aqui Sir
Haldred parou perplexo. Seu olhar estava fixo no ídolo. Súbito, seus olhos
brilharam de horror e descrença; então o atiçador lhe caiu da mão sem energia,
e um terrível e agudo grito de despedaçar o cérebro irrompeu dele, quebrando a
pavorosa quietude. Então o silêncio caiu novamente, como uma névoa negra,
quebrado apenas pela corrida nervosa de um rato que se esgueirou de seu esconderijo,
para ver o homem morto que jazia próximo aos degraus.
2) A Propriedade Assombrada
- Mas, minha
cara jovem, como posso lhe ajudar, se toda a Scotland Yard falhou?
A jovem com
quem ele falou retorceu as mãos brancas, sem saber o que fazer, e seus olhos
perambularam nervosamente ao redor da sala bizarramente mobiliada. Além dela,
havia quatro pessoas nesta sala – outra garota e um jovem homem, seu companheiro;
os outros dois se sentavam encarando-a, e foi para eles que ela havia acabado
de fazer seu apelo. Um destes homens era alto, de ombros largos, magro e
bronzeado, com penetrantes olhos cinzentos. O outro não era tão alto, porém era
mais pesado, um homem poderosamente constituído, cujo rosto escuro era tão
imóvel quando o de um índio.
- Você sabe,
minha cara – o homem mais alto dizia gentilmente –, que não sou realmente um
detetive. Estou ligado ao MI6(*) de um modo, é verdade. Mas meu
campo peculiar de diligência é no Oriente...
- Há um motivo
pelo qual fui até você – a garota interrompeu. – A principal razão é porque eu
não tinha nenhum outro lugar para ir, após a polícia abandonar o caso... então,
por causa das circunstâncias...
- Sir Haldred
Taverel significava muito para você, não?
- Estávamos
comprometidos a nos casarmos – sua voz se tornou um soluço seco. – Quando este
assunto terrível apareceu...
- Deixe-me
contar todos os detalhes, senhor – interrompeu o jovem ao seu lado. – Já leram
a nosso respeito, é claro, mas pode haver alguns pontos...
- Você sabe,
Sr. Gordon, que Haldred Taverel nasceu e foi criado em nossa freguesia;
crescemos juntos, e eu o conheço como a um irmão. Se tivesse sido outra pessoa,
eu talvez achasse que ele havia entrado num aperto e se matado, mas não ele! Se
entrasse, ele enfrentaria a dificuldade. É por isso que sei que há algo de
podre em algum lugar.
“Já pedi
informações pela vizinhança do castelo onde ele desapareceu, e descobri que ele
tem uma história longa e desagradável. Há cem anos, aquele ramo da família
Taverel tinha uma má sorte – nada igual aos nossos Taverels do sul do país.
Definharam gradualmente, e por fim o castelo ficou vazio. Sir Rupert Taverel, o
último da linhagem direta, viajou pelo mundo a maior parte de sua vida, mas,
poucos meses antes de morrer, decidiu restaurar a pompa ancestral. Entrou lá com
um servo, um chinês, e havia ficado apenas alguns meses lá, quando caiu de uma
janela do andar superior – ou foi jogado – e morreu instantaneamente. Houve
alguma conversa obscura sobre isso, mas nada que pudesse ser provado. Não havia
mais ninguém na casa naquela ocasião – o chinês provou que estava longe, na
taverna da aldeia. Parece bastante definitivo que Sir Rupert caiu da janela do
seu quarto, por estar bêbado ou caminhando durante o sono. Era um homem duro e
amargo, com um passado negro, e não deixou amigos nem testamento.
“Na ausência
de um testamento, a propriedade foi para Sir Haldred, um parente distante, mas
o próximo da linhagem. Ele foi para lá, pois esse era o costume – o herdeiro da
propriedade sempre viveu na Propriedade Taverel, até Sir Rupert, e ele
finalmente voltou.
“Então, numa
noite, aconteceu. Haldred Taverel e seu criado chinês, o mesmo que havia
trabalhado para Sir Rupert, desapareceram completamente, como se da face da
terra!”.
- Não houve
pista? – o rosto afiado e marrom de Gordon demonstrou interesse. – Nenhum sinal
que mostrasse se eles haviam sido assassinados, ou se fugiram vivos?
- Havia
manchas de sangue no chão próximo à escada, no saguão inferior... a evidência
de uma luta: um pesado atiçador jazia de um lado a outro do altar de um santuário
estranho, na outra extremidade do salão. Fora isso... nada!
“Lá no quarto
de Haldred, as roupas que ele presumivelmente usara no dia anterior estavam tão
cuidadosamente arrumadas quanto na hora em que ele as tirara para ir à cama.
Nenhum dos seus pertences desapareceu – nem mesmo seu relógio ou carteira. Se
fugiu, deve ter feito isso em suas roupas de dormir!
“A polícia
local falhou e a Scotland Yard mandou um homem, que não teve sucesso melhor.
Isso foi há quase um mês. A polícia havia desistido; revistaram o castelo do
porão ao sótão, e não encontraram nada”.
- A casa é
ocupada por alguém agora?
- Sim, um
sujeito chamado Hammerby apareceu... calmo, clerical, de aparência camarada,
com um tipo de nota fiscal de venda de Joseph Taverel. Joseph é o próximo da
linhagem e, por causa da morte... ou do desaparecimento... de Haldred, a
propriedade passou para ele. Mas Joseph não pode voltar à Inglaterra sem
levantar os olhos para uma forca, pois ele fugiu do país há alguns anos, após o
assassinato brutal de uma jovem com quem tinha um romance... caso muito
sórdido.
“A polícia,
naturalmente, ficou interessada, mas Hammerby jurou não saber onde Joseph
estava, e que nada sabia do crime. Hammerby é um inglês, mas viveu na América
durante quase vinte anos. Disse que tinha negócios com Joseph lá, embora
dissesse que o sujeito fosse na época conhecido por outro nome.
“Joseph lhe
roubou bastante dinheiro durante uma transação comercial e, quando estava para
encurralá-lo, Taverel lhe disse – e provou – ser um dos herdeiros de uma grande
propriedade na Inglaterra e, assim que soube do desaparecimento de seu primo,
transferiu seus direitos na propriedade Taverel para Hammerby. Ou seja, se for
provado que Haldred morreu. Hammerby tinha uma carta assinada por Joseph, na
qual afirmava que Hammerby o representava e deveria ter inteira
responsabilidade pela propriedade, até ser totalmente provado que Haldred
estivesse vivo. Se ele tivesse chance de estar vivo, é claro que Hammerby
estaria fora. Se morto, a propriedade iria para Hammerby como pagamento de suas
dívidas. Hammerby estava se arriscando muito, mas, de alguma forma, Joseph
parecia bastante certo de que Haldred estava morto.
“Bastante
irregular, mas é claro que Joseph não poderia vir ele mesmo se encarregar
disso, com a sombra da forca pairando sobre ele. E a carta não era uma
falsificação; comparações com exemplos de caligrafia de Joseph mostraram que a
assinatura da carta de Hammerby é genuína. Como ninguém quis ter nada com a
casa, Hammerby teve permissão para entrar, o que ele fez. Ele está para ocupar
a casa, sem arrendar por enquanto. Se Haldred aparecer, Hammerby teve permissão
para acertar as contas do aluguel e sair. Se for provado que Haldred está
morto, a casa e o dinheiro vão para Hammerby. Muito irregular, mas coisas
estranhas têm acontecido”.
- E que tipo
de homem é esse Hammerby? – perguntou Gordon, curioso.
- Ah, um homem
afetado, de meia-idade e muito pedante. O tipo de inglês de classe média que
tem dinheiro, mas que venderia as sobrancelhas em troca de um título ou de qualquer
coisa próxima a isso. Você conhece o tipo: bom homem, porém seco e entediante.
- Oh, estamos
nos desviando do assunto principal – gritou a garota que falara primeiro. – Sr.
Gordon, você é um amigo de minha família há tanto tempo quanto posso me
lembrar. Você fará isto por mim, não fará? Apenas vá conosco até a Propriedade
Taverel e dê uma procurada! Por favor! Vou enlouquecer, se alguma coisa não for
feita!
- Esteja certa
de que irei, Marjory – disse Gordon gentilmente. – Ficarei feliz em lhe ajudar
em tudo que eu puder; embora eu receie não poder fazer nada. Se o caso frustrou
as melhores mentes da Scotland Yard, receio que você não precise ter esperança
de um homem que está acostumado a trabalhar em campo aberto. Mas agora vá; Costigan
e eu temos muito para nos prepararmos para a viagem.
Marjory Harper
silenciosamente estendeu as mãos para ele, lágrimas lhe aparecendo nos suaves
olhos cinzentos. Gordon lhe deu leve e gentil tapinha no ombro, e seu irmão e a
outra garota se levantando, ele os acompanhou até a porta. Costigan não fez
nenhum movimento para se levantar, e o garoto, Harry Harper, deu uma olhada
para trás, até a figura morena e sombria que se sentava enchendo o cachimbo com
tabaco.
- Sujeito
estranho, o seu amigo – ele murmurou em voz baixa para Gordon, quando
atravessou o vestíbulo.
Gordon
assentiu:
- Sujeito
silencioso e taciturno para aqueles que não o conhecem. Mas um amigo
maravilhoso. Baleado e traumatizado na guerra... deu para se drogar e passou
anos em Limehouse, no submundo. Levaria toda a noite para lhe contar esta
história, sobre como eu o ajudei a quebrar aquele hábito, e como ele me ajudou
a dissolver uma gangue de criminosos desesperados. Agora vá; Costigan e eu lhe
encontraremos naquela antiga loja do andar inferior, em duas horas. Dirigiremos
até a Propriedade Taverel, suponho.
John Gordon
voltou para dentro de seus aposentos e fechou a porta.
- Sorte
excepcionalmente podre – ele disse com uma leve careta. – Conheço Marjory
Harper e seu irmão, desde quando eu costumava brincar com eles no meu colo.
Ótimas crianças, e este tipo de negócio é uma vergonha. Não posso lhes
recusar... mas o que posso fazer? E esse trabalho de contrabando me tirando
todo o tempo.
Costigan deu
uma baforada de seu cachimbo, antes de responder:
- Como se não
tivéssemos feito muito naquele trabalho, Gordon.
- Eu sei – o
outro gritou, andando pela sala como um grande tigre. – É o caso mais
frustrante no qual trabalhei. Aqui, nós traçamos um círculo de contrabandistas
de ópio na China e por toda a Europa, apenas para ser trazido à baila aqui! Há
um escape em algum lugar, mas não consigo achar onde! É como perseguir um rato
até um gradil, vê-lo atravessar e depois não conseguir achar o buraco. Ora!
Vamos esquecer isso por alguns dias. Não sei para qual direção olhar...
Provavelmente terei sucesso em achar contrabandistas na costa norte, tanto
quanto estou tendo aqui em Londres. É enfurecedor! Saber que o material está
inundando o país através de alguma seteira, mas não conseguirmos descobrir a
seteira.
“O que acha do
desaparecimento de Sir Haldred Taverel?”, ele arrebatou subitamente em sua
companhia, com aquela súbita mudança de assunto que caracterizava as conversas
de John Gordon.
- Acho que
pegamos um ponto ruim e o levamos ao lixo – respondeu Costigan, deslizando
inconscientemente para o dialeto rústico do submundo. – Ou talvez o
olho-rasgado tenha dado um fim nele, e saiu de baixo.
- Então, onde
está o cadáver? O que foi do chinês?
- Não me
pergunte – a maneira indiferente de Costigan mascarava tudo, exceto seus olhos,
que começavam a brilhar com uma luz feroz.
3)
O Sr. Thomas
Hammerby piscava suavemente diante de suas visitas. O Sr. Hammerby era um homem
bastante corpulento, de estatura mediana, e pareceria apenas no início da
metade da vida, se não fosse por seus cachos brancos como neve, que lhe davam
um ar benevolente; uma aparência aumentada por um par de brilhantes olhos amigáveis,
que lampejavam por trás de seus óculos.
- Eu espero –
ele disse contritamente – que os amigos de Sir Haldred não me considerem um
intrometido; um intruso que tirou vantagem das circunstâncias para obter posse
da propriedade ancestral.
- De forma
alguma, Sr. Hammerby – assegurou-lhe Marjory Harper. – Viemos para fazer mais
uma investigação da propriedade, na esperança...
Sua voz
vacilou. O Sr. Hammerby curvou bondosamente a cabeça.
- Por favor,
não se sinta, de forma alguma, constrangida pela minha presença, e não hesite
em ir me ver, caso eu possa auxiliar. Não preciso te dizer como sinto por este
acontecimento lamentável, nem o quanto espero que Sir Haldred apareça em
segurança, mesmo que isso me signifique a perda da propriedade.
Gordon não
conduzia investigações à maneira popularmente concebida sobre detetives. Em
primeiro lugar, ele sabia que quaisquer possíveis indícios haviam sido descobertos
há muito tempo pela polícia normal. Em segundo, estava convencido em seu íntimo
de que, por alguma razão ou outra, Sir Haldred Taverel havia fugido
secretamente.
Olhou para as
leves manchas avermelhadas, no chão próximo ao pé da escada, e examinou o
estranho santuário na outra extremidade do salão. Isto ocupou sua atenção por
algum tempo.
- O que acha disso,
Costigan?
- Tibetano –
disse brevemente o homem taciturno. – Região montanhosa... adoradores do demônio,
não?
- Acho que sim
– Gordon assentiu. Estava com a atenção voltada para o ídolo obsceno que se
acocorava sobre o negro pedestal entalhado. Este ídolo tinha forma humana, mas
o rosto de um demônio simiesco. Era engenhosamente moldado de alguma antiga
pedra amarela, e tinha o tamanho de um homem grande. Duas pedras semi-preciosas
miravam malevolamente como olhos.
- Sacrifício
humano – murmurou Gordon, descendo rapidamente o olhar para as manchas antigas
sobre o altar baixo diante do pedestal.
- Indubitavelmente
– era Hammerby falando em sua forma pedante de professor, próximo do detetive.
– Acho que estás certo, senhor, em chamá-lo tibetano em sua origem... o
trabalho de algum povo obscuro das montanhas, eu diria, com base em meu estudo
de antropologia. Ele foi trazido da Índia pelo Capitão Hilton Taverel em 1849,
dizem os aldeões, e foi posto aqui desde então. Deve ter exigido uma vasta
quantidade de labuta e dinheiro para transportar tal coisa enorme tão longe.
Mas os Taverels nunca se importaram com gastos ou problemas, quando queriam
alguma coisa... ou assim eu ouço.
- Foi neste
altar que o atiçador foi encontrado – disse Harry. – E as impressões digitais
de Haldred estavam nele. Isso pouco significa, no entanto. Ele pode ter tido
oportunidade de colocá-lo no altar, e depois esquecê-lo um dia ou uma semana
antes de seu desaparecimento.
Gordon assentiu
concisamente; seu interesse parecia ter diminuído. Ele olhou seu relógio.
- Está ficando
tarde – ele disse. – É melhor voltarmos à aldeia.
- Eu ficaria
feliz se passassem a noite aqui – disse Hammerby.
Gordon
balançou a cabeça, antes que qualquer um dos outros pudesse falar:
- Obrigado.
Acho melhor voltar à estalagem. Não há nada que possamos fazer esta noite...
mas espere um momento. Acredito que Costigan e eu aceitaremos sua oferta,
afinal de contas.
Depois que
Harry, Marjory e Joan saíram, Gordon se dirigiu ao seu anfitrião:
- Você
conheceu esse Joseph Taverel; que tipo de homem ele era?
- Um patife,
senhor! – os olhos de Hammerby reluziram e seu rosto calmo ficou banhado de
ira. – Um patife de primeira linha! Um impostor e um trapaceiro em suas relações
comerciais, ele não hesitou em ludibriar e calotear aqueles que nele confiaram.
“Somente
ameaças de prisão o induziram a se resolver comigo. Na ocasião em que me dirigi
a ele, eu não tinha idéia de sua relação com qualquer título ou propriedade; eu
o conhecia apenas por John Walshire, contratante. Jurou que estava sem fundos,
o que era bastante provável, por causa de seus hábitos desperdiçadores e modos
perdulários, e ele próprio me sugeriu pegar a propriedade como instalação”.
- A dívida
deve ter sido considerável – comentou Gordon.
- Era, eu lhe
asseguro! – exclamou Hammerby.
- Não é muito
solitário lá fora?
- Ora, não
para um homem com meus gostos. Aqui eu tenho tempo disponível para estudo e
meditação, e além disso – ele se ruborizou e sorriu com um embaraço singelo –,
sempre quis morar num castelo! Fui criado numa choupana, não me envergonho em
dizer, e, na minha infância, eu sonhava freqüentemente com o dia em que, tendo
alcançado a prosperidade por meus próprios esforços, eu viveria num castelo tão
bom quanto qualquer um.
“Às vezes,
nossos sonhos de infância são as mais fortes de todas as ambições, Sr. Gordon;
a minha fora realizada, estou feliz em dizer, embora eu lamente profundamente
as circunstâncias pelas quais isso se sucedera.
“Então, quanto
à solidão, há a aldeia, caso eu sinta a necessidade de companheirismo humano, e
embora nenhum dos aldeões venha cá, não há nada que me impeça de ir lá. E aqui
há a Sra. Drake, minha governanta, e Hanson, meu homem de todos os trabalhos.
“Não, eu lhe
asseguro, Sr. Gordon; meus dias são cheios de trabalho e estudo, e mesmo que eu
seja desalojado daqui a algumas semanas, lembrar-me-ei do tempo passado aqui,
com o maior prazer.
“É uma pena
que Sir Haldred tenha tido que ir à aflição para que eu adquirisse este lugar!
Mas o mundo é desse jeito, quer queiramos ou não: nós ganhamos pelas perdas dos
outros”.
- Qual a
distância daqui até a costa? – perguntou Gordon abruptamente.
- Uns 800
metros. Você pode ouvir as ondas quebrando contra as rochas na maré alta.
- Vamos dar um
passeio até a praia, Costigan – Gordon se levantou. – Tenho uma tendência
peculiar de andar na bruma, e o trovejar destas costas setentrionais me atrai.
- Como queira,
senhor – disse Hammerby. – Deves me perdoar por não te acompanhar, mas nem o ar
frio da noite nem o esforço físico são bons para alguém da minha condição.
Mandarei Hanson guiá-lo, se quiseres.
- Ah, não
precisa disso. É um caminho reto até os penhascos, não? Nós conseguiremos sem
problema. E não precisa esperar por nós, porque talvez fiquemos algum tempo.
Nenhum dos
homens falou, antes que a massa negra da Propriedade Taverel ficasse totalmente
na bruma atrás deles. Caminharam a passos largos e imperturbavelmente através
da densa névoa úmida, seus cachimbos brilhando em uníssono com seus passos. Bem
adiante, ouviram o fraco bramir do mar. Por todo o redor deles, as urzes
estavam estéreis e desoladas até onde conseguiam ver na bruma.
- Joseph
Taverel devia estar devendo uma grande quantidade de dinheiro ao nosso amigo
Hammerby – refletiu Gordon.
Costigan riu:
- Também acho.
Toda a propriedade levada numa dívida? Bah! Hammerby pressionou Taverel e o
sacudiu por seu maço inteiro, se você me perguntar.
- Quer dizer
que ele o chantageou... ameaçou prendê-lo? Faz sentido; não acredito que
Taverel propôs transferir a propriedade por escritura para Hammerby... creio
que foi idéia de Hammerby. Ele sempre quis uma propriedade na Inglaterra; nós vimos
onde ele poderia conseguir uma por, pelo menos, metade do valor. Ele tem
vergonha de admitir que pressionou Taverel... ah, eu não tenho nenhuma simpatia
por aquele assassino. Ele provavelmente ficou feliz em trocar seu direito de
primogenitura por sua liberdade.
- Que idéia é
essa de ficar na Propriedade esta noite? – perguntou Costigan abruptamente.
- Ah, não é
nenhuma idéia em particular. Não há nenhum lugar para se sediar no trabalho,
neste caso... se você puder chamar isso de um caso. Terei de fazer o meu melhor
por causa de Marjory, mas não consigo ver nenhuma maneira. Sinto pena da
garota, do fundo do meu coração, e mais porque não consigo deixar de acreditar
que Sir Haldred deve ter tido razão para fugir.
- Os aldeões
dizem que ele foi arrebatado pelos fantasmas dos há muito mortos Taverels.
- Tolice... lá
está a praia.
Selvagens,
desolados e ásperos, erguiam-se os penhascos, ao pé dos quais as águas
cinzentas se lançavam sem parar. O monótono ermo cinza se estendia diante deles
até desaparecer na bruma; e os homens, tomados por um sentimento de solidão e
futilidade do esforço humano, ficaram em silêncio. Então Gordon começou a
falar:
- Veja! O que
é aquilo?
Através da
névoa piscava e tremeluzia uma luz fraca, lá longe no mar.
- Veja! O
tremeluzir é muito regular para ser por acaso! Estão sinalizando alguém na
praia!
- Um sujeito
na aldeia me contou que um navio de aparência estrangeira avançou e recuou
durante um par de dias – murmurou Costigan. – Disse ter calculado que ele tinha
um passageiro para desembarcar aqui, e estava aguardando um tempo favorável
para ancorar. Péssimo lugar ao longo desta costa, para um navio desembarcar.
Ótimo para ser arremessado nas rochas.
Gordon girou
com uma súbita intuição e olhou de volta o caminho por onde vieram. Na bruma
densa, o contorno da Propriedade só podia ser visto vagamente, mas da torre
mais alta do castelo, um pequeno ponto de luz começou a piscar.
- Há algo
aqui! – desse Gordon abruptamente. – Foi bom termos decidido ficar! Aqui, vamos
voltar à Propriedade! Talvez possamos ver quem está sinalizando!
Correram em
silêncio, a bruma ficando mais densa.
- Por Júpiter
– disse repentinamente Gordon, enquanto passavam roçando por um agrupamento de
arbustos raquíticos. – Eu me pergunto...
Naquele
momento, Costigan gritou um aviso agudo e áspero, mas era tarde demais. Sob o
súbito golpe maldoso da figura que se ergueu dos arbustos, Gordon caiu de joelhos.
Num instante, Costigan foi o centro de um ataque em redemoinho: figuras escuras
pareciam se materializar da terra, para saltar em sua direção.
Mas, no
primeiro instante de ataque, os desconhecidos agressores viram que não experimentavam
trabalho fácil. Com um rosnado de fúria de batalha, o poderoso americano entrou
em ação rápida e mortífera. Enfrentou o primeiro agressor com um golpe esmagador
do braço direito, que o fez cair se contorcendo, lançou para longe outro que
havia subido em seus ombros poderosos e, girando com velocidade felina apesar
de seu peso, enfrentou o ataque de uma forma sinistra que saltou para dentro
com um tremeluzir de aço frio.
Costigan
sentiu um gume afiado cortar ao longo de seu braço erguido, e logo sua mão
direita, dura como ferro, se espatifou contra o maxilar do agressor e o outro
foi lançado para trás, para cair num amontoado grotesco a três metros de
distância.
Naquele
momento, uma pistola estalou e alguém gritou e praguejou. Gordon estava
ajoelhado, disparando. Como fantasmas, os bandidos desconhecidos desapareceram
na bruma, deixando para trás apenas a forma amarrotada do último homem a quem
Costigan havia golpeado.
O americano
estava ao lado do amigo num instante.
- Ferido?
- Não, apenas
um tanto atordoado, graças a este chapéu grosso. Mas você está sangrando!
- Nada de mais
– Costigan impacientemente pôs o braço atrás de si. – Só um arranhão. Vamos ver
o sujeito que fez isso. Ainda está de fora.
Gordon se
curvou sobre o inimigo caído e, então, com uma exclamação aguda, arrancou uma
tira grossa de sua camisa e rapidamente a amarrou na perna do homem, acima do
joelho.
- Torniquete –
ele explicou apressadamente. – O miserável está sangrando até a morte; pode morrer
de qualquer forma. Caiu sobre sua própria faca, e aquela grande artéria atrás
do joelho está aparentemente cortada. Meu Deus, ele perdeu muito sangue!
Carranqueando,
Costigan se curvava sobre o homem inconsciente.
- Esse sujeito
é malaio! – ele disse subitamente. – Olhe para sua faca: uma kreese de lâmina curva, se seu rosto não
for evidência suficiente!
- Raios! –
Gordon exclamou quando o homem abriu seus olhos. – Malaio? Eu deveria
identificar! E tem mais: ele é Ali Massar, procurado tanto na Birmânia quanto
no Sião por vários crimes! Já vi este patife antes! O que está fazendo aqui?
O malaio
estava totalmente consciente agora, embora a cor branca ao redor de seus lábios
mostrasse que ele estava num mau caminho. Seus olhos malignos brilharam de
reconhecimento, mas ele não disse nada.
- Fale! –
rosnou Gordon. – Ou lhe deixaremos aqui para morrer.
Os firmes
olhos de serpente do oriental nunca hesitavam.
- Não – disse
o detetive calmamente –, você não vai morrer; você viverá para expiar seus
crimes na forca.
Os olhos do
malaio tremularam. Nenhum verdadeiro muçulmano consegue encarar a idéia de um
enforcamento sem titubear.
- Você vai me
enforcar? – ele falou pela primeira vez; sua voz era muito fraca, quase um
sussurro.
- Se me contar
o que está fazendo aqui, e o que significa este mistério, será mais fácil para
você.
Os olhos do
malaio meditaram longamente ao fraco luar que se infiltrava pela névoa. Então
ele se mexeu, e sua ação foi inesperada e aterradora. Com um puxão violento e feroz, ele se livrou
dos braços de Gordon que o agarravam, girou sobre seu lado e arrancou o
torniquete da perna. Uma incrível explosão de sangue aconteceu; o corpo de Ali
Massar estremeceu uma vez e logo jazeu flácido, mas os olhos mortos miravam
para cima com um triunfo aparentemente maligno.
- Meu Deus! –
John Gordon sussurrou trêmulo.
Costigan
assistia imóvel; sua vida sombria no submundo o endurecera mais que ao homem
comum, mais ainda que Gordon, que estava acostumado a cenas de violência.
- Mal parece
possível que um homem possa sangrar até a morte tão rápido, de uma facada na
perna – ele disse.
- Ele perderia
uma grande quantidade de sangue, antes que eu lhe amarrasse a perna – disse
Gordon. – Essa artéria é larga e se conecta diretamente com a grande aorta do
abdômen.
- O que
faremos com o cadáver? – perguntou Costigan, tocando o morto com o pé, tão
impessoalmente quanto se fosse uma cobra morta.
- Temos que
deixá-lo aqui – Gordon decidiu. – Parece uma insignificância de sangue frio,
mas não podemos carregá-lo através destes urzais, na expectativa de outro ataque
sobre nós a qualquer momento. Pegaremos uma carroça e voltaremos em busca do
corpo. Agora estamos com pressa. Ainda estão sinalizando de lá do castelo, está
vendo? Mas o navio não mostra luz.
Enquanto se
apressavam em direção à Propriedade, Gordon refletiu:
- Suponha que
aquele navio possa estar esperando para buscar alguém, ao invés de desembarcar.
E se houvesse alguém na Propriedade quieto, esperando por uma chance de escapar
sem ser visto? Alguém que estaria se escondendo lá há um mês ou mais!
- Você quer
dizer Sir Haldred? Acha que Sir Haldred está lá sinalizando?
- Não há como
saber.
Após o que
pareceu um tempo infinito, chegaram à porta da Propriedade Taverel e foram
recebidos por Hanson, o homem de todos os trabalhos – um homem atarracado, de
constituição pesada e com pesadas feições sem inteligência.
- Está ferido,
senhor; seu braço está ensangüentado!
- O Sr.
Costigan caiu e cortou o braço numa rocha afiada – Gordon interrompeu. –
Hanson, seu patrão está na cama?
- Sim, senhor.
- Muito bem.
Leve-nos até a torre mais alta desta construção.
- Muito bem,
senhor – o homem deu a volta e foi à frente sem questionar. Os detetives o
seguiram, subindo inumeráveis lances de escadas sinuosas e através de
corredores escuros, chegando finalmente à sala mais alta, na torre que se
erguia acima da ala oeste. Esta torre Gordon sabia ser aquela da qual a luz
sinalizadora havia piscado. Agora ela estava vazia de ocupantes humanos; uma
sala pequena e escassamente mobiliada, o pó e as teias de aranha dando suporte
à afirmação de Hanson de que ela nunca foi usada.
(*) – MI6: Agência britânica de inteligência, que abastece o
governo britânico com informações estrangeiras (Nota do Tradutor).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Fonte: Tales
of Weird Menace.
Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Károly Mazak, da
Hungria.