A Ilha dos Eons (fragmento)


(por Robert E. Howard)



1)

Não importa como cheguei a bordo do Vagabundo, que viajou do Taiti até o Baú de Davy Jones (*), com o próprio Diabo como tripulação. Éramos todos daquela ordem esfarrapada e arruinada, confrades da praia. Homens que haviam perdido a esperança e, com ela, o medo – a escória dos Mares do Sul, a ralé das praias; navegamos numa aventura louca, predestinados antes que nosso navio inútil saísse do porto. Não levávamos nenhuma carga, exceto sonhos mortos e memórias torturadoras; tínhamos poucas provisões, mas havia barris de rum empilhados no porão. Todos jogávamos dados e xingávamos uns aos outros, odiando uns aos outros como odiávamos o mundo; facas já haviam brilhado antes que o Taiti desaparecesse no horizonte, e antes que nosso louco cruzeiro chegasse a um cataclismo, mais de uma figura rígida caiu ao mar envolvida em lona.


Procurávamos aquele fogo-fátuo dos Mares do Sul, o tesouro escondido de pérolas de Lao-Tao. Bêbados, perdidos, dissolutos, manejando a bomba quebrada até nossas mãos calejadas ficarem esfoladas, cambaleamos através de mares sem nome, a longas léguas de distância das rotas de comércio. Durante muitos dias, navegamos a esmo, sem nunca avistarmos uma vela ou uma terra. Então, o furacão nos atingiu e, num turbilhão cego e enlouquecido de fúria esganiçada, ouvimos recifes trovejando na escuridão. Não nos importávamos mais. O beberrão que chamava a si mesmo de capitão estava muito bêbado. O resto abriu os barris de rum e, no meio de suas orgias, o destino nos atingiu. Minhas lembranças daquele cataclismo são vagas. Eu não estava bêbado, mas naquela loucura rodopiante, o cérebro se recusou a funcionar. Eu me lembro de quando o trovejar dos recifes se ergueu acima do rugido dos ventos e das ondas montanhosas; eu me lembro de quando o navio bateu com um estrondo que despedaçou sua quilha como se fosse vidro, e quebrou suas pranchas. Sei que fui rasgado e golpeado por ondas gigantescas; aquelas presas afiadas de baixios negros contundiram e rasgaram minha carne; que sofri as agonias de cem mortes, e que finalmente o sofrimento, a resistência e a loucura se transformaram em esquecimento.

Acordei e fiquei boquiaberto de espanto por ainda estar vivo. Estava amanhecendo, e a tempestade havia desaparecido. O mar traiçoeiro sorria calmamente diante de mim, eu estava deitado pela metade em água rasa, e a outra metade numa praia de areia macia. Esta praia jazia como uma tira estreita entre a beirada d’água e um penhasco alto e perpendicular. Olhando em direção ao mar, vi uma faixa larga de água rasa e calma, atrás da qual se erguiam, denteados e terríveis, os recifes nos quais o Vagabundo havia tido seu coração arrancado. Do navio, não havia sinal; pedaços de escotilhas e mastros quebrados se espalhavam pela praia; eu havia me agarrado a um desses durante a fúria da tempestade. Nenhum corpo havia sido arrastado à terra – espere! Não muito longe, vi uma forma deitada do mesmo modo que eu, com os membros se arrastando flacidamente na água calma que lhe cobria parcialmente.

Correndo até a figura, vi que era o gigante holandês, o qual havia sido um dos poucos marujos realmente competentes a bordo do Vagabundo. Ele jazia como um morto, seu curto e eriçado cabelo loiro coberto de sal, e sua pele clara rasgada e contundida em vários lugares. Mas distingui sinais de vida nele, e comecei a trabalhar sobre ele. Sob minhas mãos, ele voltou lentamente a si e olhou ao redor, boquiaberto de espanto.

- Vivo? – ele disse. – Maldição! E você também? Onde está o resto da tripulação, ianque?

- Zombando do cozido deles no Inferno – resmunguei. – Vamos... se você for capaz de caminhar, vamos achar um meio de subir estes penhascos.

Com uma risada, ele se ergueu, cambaleando um pouco em suas pernas.

- Sou sempre capaz – ele ribombou. – Vamos. Mas onde estamos?

- Como posso saber? – respondi. – Em alguma ilha pouco conhecida, eu suponho. Espero que alcancemos uma tribo de aborígines canibais.

- Não estamos em boa forma para enfrentá-los – ele murmurou.

Fiz um balanço de nossas posses. Logo estava terminado. A pouca roupa que usávamos havia sido arrancada de nós na tempestade. Cada um de nós vestia apenas um par de calças encharcadas, agora tão desfiadas e rasgadas que mais lembravam tangas. Minha longa faca de marujo ainda estava em sua bainha, e o holandês tinha sua pistola, a qual ele sempre usava numa bainha afivelada.

- Quantos cartuchos você tem? – perguntei.

- Seis em seus compartimentos – ele disse, procurando em seu bolso. – É tudo. Espere... Aqui está! Minha caixa de fósforos à prova de água.

- Ótimo – eu disse. – Provavelmente precisamos deles. Acho que os cartuchos estão ensopados demais para qualquer uso.

- Não, é munição à prova de água – ele respondeu –, mas vou tirá-los e secá-los, e à arma também. Água salgada não faz bem.

Então, enquanto ele o fazia, perambulamos lentamente ao longo dos penhascos, procurando um caminho para subir. Era aurora de outono, e conseguíamos enxergar claramente, mas nenhuma fenda ou caminho para o alto aparecia. Até onde podíamos ver em ambas as direções, eles se elevavam, curvando-se para os lados com a linha da praia. Tinham dezenas de metros de altura de rocha sólida e eram quase tão lisos quanto vidro. Nada maior que uma aranha conseguiria escalá-los. Erguendo-se perpendiculares por dezenas de metros, curvavam-se para fora no cume, apresentando uma superfície quase côncava e totalmente inescalável.

Então o holandês apontou subitamente para a base do penhasco, e vi lá o que parecia ser uma abertura natural. Era um buraco quase redondo, com mais de dois metros de diâmetro. Ali a praia se estreitava, de modo que a água se erguia quase até a boca da caverna; em maré cheia, devia ficar quase ou totalmente escondida.

O holandês se curvou cuidadosamente, para dentro da abertura escura e de aparência não-convidativa, e acendeu um de seus fósforos. Um grunhido de espanto lhe escapou, e eu o ecoei com uma exclamação surpresa. A caverna levava para cima, como um túnel inclinado, e uma série de degraus, escavados na rocha sólida, desaparecia ao subir para dentro da escuridão. O fósforo se apagou, e o holandês e eu recuamos e olhamos interrogativamente um para o outro.

- Ela sobe! – ele exclamou, com agitação evidente em seu tom de voz. – Aposto um dólar com você, que ela chega até o topo da ilha!

- É provável – eu disse –, mas o que significa isso? Quem a construiu? Como sabemos se não vamos chegar até uma fortaleza de selvagens, se subirmos estas escadas?

Ele sacudiu a cabeça:

- Homens não usam esses degraus há muito tempo. Vê o lodo marinho neles, e as algas-marinhas espalhadas densamente nos degraus mais baixos? Quem quer que os entalhou desapareceu há muito tempo, eu aposto. Em várias ilhas dos Mares do Sul, já vi coisas construídas por povos há muito esquecidos. Vamos.

Eu havia dito que éramos homens que haviam perdido tanto a esperança quanto o medo. Subimos aqueles escuros degraus escorregadios, sem sabermos nem nos importarmos muito com o que encontraríamos no final. Entramos e subimos, tateando nosso caminho na escuridão e batendo ferozmente nossas canelas, pois não queríamos desperdiçar fósforos. Durante alguma distância, tateamos para cima, subindo desajeitadamente naquela umidade dos andares inferiores, e em seguida chegamos a uma superfície plana que parecia o chão de outra caverna, ou a continuação do mesmo túnel.

Eu disse ao holandês para que acendesse outro fósforo, a fim de que não perdêssemos nosso caminho num labirinto de cavernas, ou caíssemos em algum abismo. A luz fraca nos mostrou que estávamos num túnel largo, o qual fora indubitavelmente entalhado por mãos humanas na rocha sólida dos penhascos; contemplamos as paredes retas e lisas e o alto teto arcado com a admiração causada pelos mistérios do passado. E o túnel parecia antigo, pois as paredes estavam enegrecidas como se por eras de tochas, e o chão estava esburacado, como por séculos de pés que ali pisaram. Continuamos tateando em silêncio e na escuridão, e em seguida o corredor se estreitou e nos deparamos com outro lance de escadas. Mostraram ser mais curtas que as outras, e nos deixaram em outro túnel, mais largo, do qual, como um fósforo mostrou, outros corredores levavam para fora dali por todos os lados – um verdadeiro labirinto. Seguimos o túnel principal e, durante algum tempo, seguimos apalpando na escuridão.

Foi nesta hora que um cheiro curioso e desagradável começou a se manifestar. A princípio, era tão vago e ilusório que mal se percebia, e o holandês riu de mim quando falei dele, atribuindo-o ao mofo das cavernas, possivelmente matéria vegetal em decomposição. Mas, enquanto avançávamos, o cheiro ficou mais perceptível.

O corredor agora começava a se curvar e serpentear, ao invés de seguir reto. Sentindo as paredes sinuosas no caminho, chegamos a entradas de outros corredores divergentes, e foi difícil nos mantermos no túnel principal. Comecei a temer que nos separássemos na escuridão e pedi ao holandês para que segurasse minha mão. Então, tateando ao longo da parede e mais próximos um do outro, foi mais fácil seguir os caminhos tortos do corredor sem nos perdermos dentro de outros túneis.

E agora, o cheiro que eu havia sentido antes ficara bem mais pronunciado. Era excessivo – repulsivo. Parecia carregado de estranha ameaça, como o cheiro de algum repugnante monstro reptiliano deitado de tocaia. Eu me vi estremecendo e olhando atrás de mim. A escuridão subitamente pareceu começar a se tornar uma coisa tangível e maligna, pronta para saltar sobre nossas costas.

O holandês parecia impassivelmente inconsciente de qualquer ameaça sinistra, e eu estava prestes a repetir meus medos para ele, quando um som levemente furtivo alcançou meu ouvido, aparentemente atrás de nós. Escutei, e os cabelos curtos atrás do meu pescoço se arrepiaram. O som era tão suave e leve, que quase parecia um truque da imaginação, mas o pânico tomou conta de mim e tive de lutar contra ele. Perdi meu interesse nos antigos corredores, que agora pareciam impregnados de perversidade oculta; tudo o que eu queria era sair à luz do dia.

Então, eu subitamente ouvi outra vez o mesmo som, um pouco mais claro. Parei, apreciando o impaciente holandês se silenciar, e escutei, aguçando meus ouvidos. Não fui desapontado – outra vez e mais alto, ouvi o som furtivo e maligno, como se Algo estivesse tentando caminhar silenciosamente. E, horrível e inexplicavelmente, não soava como algo que pisa. O medo soprou em mim como um vento frio; medo do Desconhecido, que pode trazer pânico até mesmo para um maldito e dissoluto cardador de praia. Era apenas um morcego, como o holandês sugeriu, ou era algum monstro misterioso nos seguindo, esperando por uma oportunidade de cair sobre nós?

Recuar do perigo é mais devastador para os nervos do que avançar sobre ele. Puxando minha faca longa, andei furtivamente para trás, pelo caminho por onde viemos. Mas não dera doze passos, quando fui tomado por tal inexplicável horror que logo abafei; e, me amaldiçoando por minha covardia, retomei meus passos, cabelo eriçado e a mão gelada do medo em minha espinha. Eu sabia, tanto quanto sei que vivo, que, em algum lugar na escuridão, escondia-se alguma coisa pavorosa, natural ou não-natural, esperando que eu caminhasse para dentro de suas mandíbulas.

- O que é isso? – reclamou impacientemente o holandês. – Por que toda essa perambulação para trás e para frente? Maldição! Agora sinto o cheiro, ianque! O que, em nome d...

- Silêncio! – sibilei. – Siga-me... silenciosa, mas rapidamente!

Enquanto descíamos furtivamente o corredor, ouvimos novamente aquele som suave e repelente; a Coisa havia parado quando nos voltamos sobre ela. Agora, ela estava nos seguindo novamente... estava se aproximando de nós. O holandês quis acender um fósforo, mas eu disse a ele para esperar. Tateando ao longo do caminho, minha mão tocou naquilo que eu procurava – a porta de um corredor filial. Puxando o holandês comigo, deslizei para dentro da abertura e nos encostamos contra as paredes, aguardando ofegantes. Era um risco desesperado a se correr, mas não era pior do que continuar pelo corredor negro, até o destino nos arrastar por trás.

O cheiro ficou mais forte, impregnando toda a atmosfera. Então nós o ouvimos. Os dedos do holandês afundaram em meu braço como garras de aço. Eu me senti brevemente nauseado. O som não se parecia com nada que eu já ouvira – nada são ou normal; mas era indubitavelmente Algo que se movia furtiva e cuidadosamente através da escuridão. Imagine dúzias de cobras grandes deslizando sobre um chão de rocha, arrastando ou empurrando um enorme volume, polpudo e instável – tal descrição escapa à imaginação. É impensável; mas descreve perfeitamente o ruído hediondo, deslizante, esponjoso e obsceno, feito pela Coisa em seu avanço. Ela rastejava ou deslizava corredor acima; por um momento, senti sua presença nauseante em frente à porta onde nos encolhíamos. Daria para estirarmos uma de nossas mãos e tocá-la no escuro. E nos agachamos congelados, nosso sangue frio de terror. Naquela escuridão total, não podíamos ver, mas tivemos uma impressão de tamanho gigantesco e ameaça não-natural. O odor repugnante nos dominou, e então a Coisa já havia passado, se sacudindo e deslizando, pela porta, e os sons de sua partida desapareceram no corredor negro. Evidentemente, ela nos seguira pelo som de nossos passos, e não pela visão ou cheiro, vez que no último caso, teria virado para o lado e nos seguido dentro da passagem filial.

Com suor frio saindo de nossos corpos, apressamos-nos ao longo do estreito corredor sinuoso, obcecados pelo medo de que uma curva da passagem pudesse nos lançar cegamente de volta ao túnel principal e às mandíbulas do monstro desconhecido. Havíamos há muito perdido todo o senso de direção, e vagávamos a esmo, não ousando acender uma luz, temendo atrair o monstro. Agora sei como os camundongos devem se sentir, quando caçados em suas tocas por uma serpente.

Então subitamente uma luz cinza cresceu à nossa frente e, acelerando nosso passo, nos apressamos temerariamente pelo corredor estreito e adentramos uma grande caverna circular. Paramos espantados. O lugar era imenso. As paredes desbotavam em obscuridade, e mal conseguíamos ver a parte mais alta do teto; pairava sobre nós como uma nuvem cinza. E ele, assim como os túneis, era o trabalho de homens. As paredes eram lisas e decoradas com pinturas desbotadas pelo vento, as quais não conseguíamos reconhecer naquela luz vaga. O chão também era liso, mas notamos, como nos túneis, que havia lodo incrustado nele, como se um enorme caracol, ou alguma outra criatura lodosa, tivesse rastejado por ele todo. A porta, pela qual havíamos entrado na grande sala, era arcada, e vimos outras portas, espaçadas a intervalos regulares. A fonte de luz nós não soubemos determinar, mas acreditamos que ela se infiltrava pelo teto de alguma forma. Se para dentro, significava que a câmara ficava próxima à superfície.

Caminhamos até o centro da caverna, e subitamente o holandês gritou e me agarrou o braço, ao mesmo tempo levantando seu revólver. Aguçamos nossos olhos na escuridão. Próxima à parede mais distante, avultava uma forma gigantesca. Com os nervos trêmulos, aguardamos tensos, mas a coisa não se moveu. Parecia inanimada. O holandês riu – uma risada meio histérica de alívio.

- O deus na pedra! É uma estátua, ianque; um ídolo!

Ele agora se aproximava sem medo. Era, de fato, uma estátua gigantesca; bem acima de nossas cabeças, ela se erguia, taciturna e meditativa – uma imagem sugestiva da aurora da criação, quando o homem sonhava monstruosamente e dava forma a deuses monstruosos. As pernas eram protuberantes e dobradas; uma grande mão estava meio estendida, agarrando algum tipo de símbolo, cuja natureza não conseguimos determinar; a outra mão estava abaixada, estirada em ângulo reto do grande torso, os dedos bem estirados e abertos num gesto de agarrar. O rosto era um estudo de arte bestial, com lábios soltos e moles se dobrando para trás e mostrando presas enormes e tortas; um nariz achatado, de narinas alargadas; uma testa baixa e inclinada, orelhas pregadas e uma cabeça curiosamente mal-formada. O conjunto dava uma impressão de deformidade e planejada anormalidade de formato, e não de obra inferior. A imagem era uma obra-prima pervertida.

Ficamos encarando, repugnados porém fascinados, e o holandês disse:

- Veja, o altar para os sacrifícios!

Diante do ídolo, havia uma grande e retangular pedra de basalto negro, polida e lisa como se por longos séculos de uso. Descendo um lado do topo plano, havia uma vala ou cocho largo e raso, mais manchado de escuro que o restante do altar. Eu me perguntei quantos infelizes, aos gritos, haviam se contorcido em vão naquela pedra maldita, enquanto seu sangue inundava aquele canal para saciar o monstro da caverna que meditava acima do altar. Mas agora, assim como o ídolo, aquela pedra sacrifical estava empoeirada como se por mil anos de desuso.

- Devemos estar próximos à superfície – murmurei, forçando meus olhos para cima em direção ao teto indistinto. – Deve haver alguma escadaria que suba para fora desta caverna. Vamos procurar por ela.

Afastamos-nos do ídolo e nos aproximamos da parede oposta. Perto dela, começamos a seguir sua curva, examinando-a atentamente em busca de degraus que guiassem para cima, e instintivamente evitando as aberturas grandes, negras e misteriosas que eram as portas de corredores que convergiam para a grande sala.

O holandês estava à minha frente; olhando de relance para cima, vi que ele passava descuidada e diretamente diante daquelas entradas negras. Algum instinto me levou a gritar um aviso – e, quando o fiz, uma coisa contorcida e serpentina saiu da escuridão e se enroscou no corpo do holandês. Seu grito assustado foi meio abafado, quando ele foi puxado para dentro da entrada como uma criança – como uma aranha tentando arrastar uma mosca para dentro de sua toca. Saltei para a frente, meu terror desvairado sufocando meu grito. O holandês agarrou a beirada da porta com ambas as mãos e, se firmando desesperadamente com todo o seu enorme vigor, ele resistiu à força que o arrastava para dentro das trevas.

Quando saltei para seu lado, vi que uma grande coisa acinzentada, semelhante a um tentáculo, estava enrolada nele; e, na escuridão do corredor, vislumbrei um vago volume elefantino e senti novamente aquele cheiro nojento e dominador. Golpeei selvagemente o tentáculo que ameaçava arrancar o holandês de seu ponto de apoio e, com um sibilo chicoteador, outros tentáculos saíram das trevas e me agarraram. Rasgaram a pele de meus membros e braços; meus ossos se curvaram em agonia sob a pressão. Fui atirado e arremessado de um lado a outro, como um rato nos rolos de um píton. Minha faca cortou fundo, meio decepando os rolos pegajosos que me amarravam, e um lodo grudento pingou dos cortes. Mas os cordões que apertavam não relaxaram, e os olhos arregalados do holandês brilharam de completo terror, quando o monstro ameaçou arrancá-lo de seu ponto de apoio e arrastá-lo de volta às trevas – e à sua condenação.

Então, com um berro desesperado e agonizado, o holandês tirou uma das mãos de seu ponto de apoio e, quase no mesmo movimento, puxou sua pistola e atirou às cegas na escuridão. Diante do lampejo e da explosão, senti o rolo chicotear para longe de mim e fui arremessado violentamente ao chão da caverna. Erguendo-me atordoado de um pulo, ouvi os esborrachantes sons nauseantes do monstro batendo em retirada.

O holandês me agarrou e lançou violentamente para o outro lado da caverna. Seu rosto estava azulado na luz cinza; ele cambaleava enquanto corria, e ofegava intensamente por ar.

- Rápido, rápido! – ele balbuciou. – Para cima do ídolo... para cima do ídolo, antes que aquilo volte!

Alcançamos a imagem e, enfiando nossas armas em nossos cintos, começamos a subir. Não foi tão difícil quanto se poderia achar; com o terror como incentivo, subimos facilmente aquele deus grotesco. Encarando um ao outro sobre os ombros volumosos, e agarrando a cabeça grotesca para nos apoiarmos, paramos para recuperar nosso fôlego.

- O que... o que era aquilo? – sussurrei.

Ele suspirou profundamente e, por um instante, teve ânsia de vômito.

- Não sei! Mais um pouco, e teria me levado para dentro... maldição! Estou quase asfixiado! Era enorme... enorme! É tudo o que sei!

- Um polvo? – arrisquei.

- Não sei! – ele repetiu. – Se era, nunca existiu tal polvo antes no mundo. Deve ser tão grande quanto um elefante! Ele voltará! Nos arrastará desta imagem. Minha bala não o feriu... apenas o assustou com o lampejo e o barulho.

- Ouça! – Ficamos congelados. De um corredor externo, ouvimos aqueles terríveis sons deslizantes.

- Está voltando! – sussurrei desvairadamente. O holandês olhou desesperadamente ao redor. Sobre os ombros do ídolo, estávamos perto do alto teto arcado e, quando ele olhou para cima, se sobressaltou repentinamente.

- Segure-me para que eu não caia! – ele disse abruptamente, e subiu na cabeça deformada do ídolo, se equilibrando precariamente. Eu me firmei, agarrei-lhe as pernas e o observei alcançar e bater de leve no teto de pedra aqui e ali. Então, firmou as mãos contra a pedra e empurrou poderosamente para cima. Para meu espanto, uma seção de uns 0,36 m2 cedeu e girou para cima, quase nos lançando para fora de nosso poleiro.

A luz inundou a caverna. O holandês agarrou a beirada da abertura e subiu engatinhando por ela; depois virou para se curvar e agarrar meus pulsos. Um som me fez virar a cabeça, em direção ao corredor no qual havíamos sido pegos, e o vislumbre me incitou a uma pressa convulsiva. Eu não conseguia distinguir qualquer detalhe do volume mastodôntico, que avultava ali como uma grande sombra negra, mas era escuro e maligno e, acima dele, avultava sombras semelhantes a tentáculos, e dele lampejavam duas grandes faíscas de fogo amarelo, como brasas de fogo dos pisos do Inferno.

O holandês viu aquilo também e, com um grito estrangulado e ofegante, ele tirou meus pés do chão, e com um impulso frenético, ergueu-me completamente através do alçapão e bateu a porta. Então deu um suspiro soluçante de alívio e olhou ao nosso redor.

Estávamos numa pequena sala esculpida na rocha. Não havia uma porta de saída dali, mas uma escadaria subia até um teto de pedra, através do qual a luz do dia se infiltrava, numa abertura tão minúscula que escapa a um olhar casual. Subimos as escadas e achamos um segundo alçapão no topo. O holandês pôs seus enormes ombros sob ele e empurrou para cima. Prendi meu fôlego, temendo que ele pudesse estar preso pelo lado superior, mas lentamente girou para o alto e para fora, e subimos para a luz do sol do início da manhã. Antes que olhássemos ao nosso redor, erguemos o pesado alçapão e o recolocamos no lugar. Não tinha dobradiças, mas simplesmente se encaixava na abertura. Então viramos e olhamos atentamente para nosso novo domínio.

Estávamos nas ruínas do que devia ter sido um templo. O chão tinha ladrilhos de mármore, rachados e quebrados em muitos lugares. O teto, se houve algum, havia há muito desmoronado. O tamanho daquele edifício deve ter sido considerável, a julgar pelo espaço ocupado pelas paredes desabadas, as quais tinham uns 3 a 4,5 metros em alguns lugares, mas estavam no nível do chão em outros. Líquen e musgo infestavam os escombros esmigalhados, e todo o efeito era de incrível antiguidade.

As ruínas nas quais estávamos ficavam no topo de uma colina pequena, porém íngreme, sem árvores, mas coberta por grama exuberante. Árvores de floresta, erguendo-se altas no ar e com pouca ou nenhuma vegetação rasteira, corriam próximas ao pé da colina, densas em todos os lados, exceto a leste, onde a vegetação era esparsa e irregular. Naquela direção podíamos ver, a algumas milhas de distância, a beirada dos penhascos e, depois deles, o mar.

Ao sul, erguendo-se acima das árvores à distância, havia uma baixa cordilheira de colinas, azuis, enevoadas e ilusórias.

Toda a ilha apresentava uma aparência ou efeito de ilusão. Nenhum pássaro chilreava entre as árvores, nenhuma criatura do chão ou das árvores corria pela grama ou esvoaçava entre os galhos. Nenhuma brisa agitava as folhas das árvores. O efeito geral era de uma incrível idade. Uma aura de antiguidade bolorenta pairava sobre tudo, imensuravelmente aumentada pelas ruínas.

Através de um consenso mudo e mútuo, descemos a colina e entramos na floresta. As árvores se erguiam a grandes alturas, mas pouca vegetação rasteira impedia nosso progresso. As próprias árvores nos eram estranhas; não reconheci uma só espécie, e o holandês jurou que árvores daquele tipo haviam sido extintas no resto do mundo há eras incalculáveis.

Achamos fruta, um tipo de manga, e, com certa dúvida, comemos até nos fartarmos. Mas era agradável ao paladar e refrescante. E, procurando por um rio, achamos uma fonte borbulhando no chão, no centro de um arvoredo.

Bebemos intensamente e o holandês, erguendo a cabeça, observou subitamente:

- Ianque, olhe para a fonte!

Olhei. O que eu imaginara ser o leito natural da fonte, era, na verdade, uma grande e rasa tigela de pedra embutida no chão. Através de um conjunto de pequenos buracos em seu fundo, a fonte borbulhava e, sobre sua beirada, estranhas linhas fracas estavam entalhadas. E notei que as árvores que cercavam a fonte cresciam num círculo perfeito – perfeito demais para ser conseguido pelo produto casual da Natureza.

- Topamos com os restos de uma antiga civilização – murmurei. – A questão é se algum dos descendentes humanos haviam sobrevivido.

- Ninguém além de nós nesta ilha – respondeu o holandês com convicção. – É a sensação de desolação e abandono das eras. Já senti isso nas ruínas toltecas, e em Luxor, Stonehenge e Zimbábue.

- Talvez – murmurei. – Às vezes, me parece que estamos sendo observados.

- Pelos fantasmas das antigas ruínas, talvez – respondeu o holandês, e caminhamos ao acaso através da vegetação rala, em direção aos penhascos a leste. Aqui e ali, nos deparávamos com outras ruínas, tão antigas e decadentes que não podíamos dizer nada sobre o estilo original de arquitetura.

Em seguida, o holandês deu voz a uma questão que também me ocorrera.

- Por que estamos ouvindo os rugidos dos recifes?

- Os penhascos se curvam para fora – sugeri –; talvez o barulho ecoe deles.

Foi a única explicação que pude oferecer. A ausência do rugido deve continuar um dos mistérios daquela ilha misteriosa. Sob os penhascos, o barulho era ensurdecedor na maré alta. Sobre a ilha, raramente um murmúrio alcançava nossos ouvidos.

Chegamos aos penhascos do leste, os quais, naquele lado, se erguiam mais alto que em outros lugares, apresentando um aspecto acidentado do lado da terra, considerando que em outros locais a terra corria no mesmo nível que a beirada dos penhascos. Nós os escalamos e olhamos sobre o mar. Como no lado oposto da ilha, onde havíamos sido lançados ao litoral, vimos uma praia estreita e arenosa, e depois dela, uma faixa de água calma, e depois desta última, os recifes desolados e denteados. Resolvemos que toda a ilha era rodeada assim.

- Nunca sairemos desta ilha – comecei a falar, abatido. – Nenhum navio conseguiria adentrar suficientemente a costa para nos tirar...

Parei abruptamente e ambos nos sobressaltamos nervosamente. De algum lugar próximo, como se levada pela brisa fraca que agitava nossos cabelos, veio uma melodia suave, baixa e indescritivelmente doce. Não havia melodia distinta como o mundo moderno conhece a palavra, mas era como se a mão de um mestre a tocasse e colocasse as fibras do som. Lânguida e sedutora, como se soprada pelas gaitas de Pã, mas percebi vagamente que, sob sua maravilha e beleza, corria uma nota menor, obscura e sinistra. Era hipnótica no efeito; o holandês ficou escutando, envolvido.

- A Lorelei – ele sussurrou. – A música das sereias! A canção que Ulisses ouviu!

A lembrança de uma antiga lenda soprou como um vento frio na minha alma. Era esta a ilha, entre cujos penhascos em eras antigas, criaturas semi-humanas de beleza enlouquecedora se escondiam, atraindo marinheiros para a destruição? Nós nos curvamos sobre a beirada, olhando para baixo, e gritamos ao ver figuras esguias e brancas, mal visíveis desde a curva das paredes do penhasco: formas esbeltas, nuas e delicadamente formadas. Nós rimos tristemente de alívio.

- Imagens – eu disse – entalhadas na rocha sólida dos penhascos e protegidas pelo cume elevado, tão bem preservadas quanto ficaram há mil anos. E veja!

Quando a brisa se ergueu novamente, ouvimos outra vez aquela música estranha, e um exame nos mostrou que sistemas de buracos haviam sido abertos na rocha sólida dos penhascos, os quais, quando o vento soprava através deles, despertavam aquelas melodias fantásticas. Por quê? Nem o holandês nem eu conseguimos arriscar um palpite.

O dia estava acabando. Decidimos voltar ao templo arruinado na colina e dormimos lá. Nenhum de nós falou do monstro nas cavernas sob ele. A luz do sol dissipava medos lúgubres e especulações sobrenaturais, e eu pelo menos havia quase decidido que aquela coisa era apenas um polvo, ou alguma criatura do tipo, crescida até um tamanho incomum e com horror incomum, dado pela escuridão e pelo mistério de seus arredores.

Já era noite quando nos jogamos sobre camas improvisadas de galhos e musgo, para dormirmos o sono de homens cansados. A lua havia se erguido, quando acordei para ver o holandês se sentar e olhar através da floresta silenciosa. Em seus olhos, havia algo da mesma expressão de quando ele ouvira a música dos Penhascos Cantantes.

- Ouça.

Agucei meus ouvidos para captar o marulho das ondas, sob os penhascos distantes; o murmúrio do vento noturno, o ranger de um galho contra outro e não ouvi nada. A quietude trancava a ilha num domínio sem fôlego.

- O silêncio – sussurrou o holandês. – O silêncio. Como se fôssemos os últimos homens da Terra.

Olhei para a floresta. Nenhuma brisa lhe agitava as profundezas. A lua não conseguia penetrá-la. Eu nada ouvia, nada via. Mas eu parecia sentir olhos assustadores nos mirando malevolamente desde a escuridão... aguardando... observando...

Uma brisa fraca agitou as folhas então; dos Penhascos Cantantes, sussurrou um vago sopro de melodia – doce, assustador e repulsivo. Estremeci.

Acordei outra vez naquela noite, com uma sensação de ameaça assombrosa, para olhar novamente para a floresta silenciosa, onde parecia que uma vaga sombra grotesca esvoaçava do pé da colina para dentro das profundezas mais escuras de sombras.


2)

O sol estava alto quando acordei, e o holandês não estava em nenhum lugar onde pudesse ser visto. Eu estava prestes a gritar por ele, quando a porta escondida no chão quebrado se levantou e ele apareceu, engatinhando desajeitadamente para fora.

- Onde você esteve? – perguntei.

- Na sala acima da grande caverna – ele respondeu, evitando meus olhos. – Eu queria... eu quis... bem, por Deus, eu quis ver se o ídolo ainda estava lá!

Fiquei boquiaberto de espanto diante dele:

- Ficou louco?

- Eu o vi nas árvores ao pé da colina, noite passada – ele respondeu sombriamente.

- E concluiu que deve ser o ídolo perambulando para passear ao ar livre – eu disse com grande sarcasmo. – Diabos, os besouros lhe pegaram, com certeza!

Ele riu alto, com pesado desdém, e caiu num silêncio taciturno. Conhecendo o terrível efeito que a solidão pode ter nas mentes dos homens, eu o envolvi persistentemente numa conversa. Ele respondeu aos meus comentários com grunhidos cautelosos, até eu tocar no assunto da civilização desaparecida.

- Eu não fui sempre um rato do mar – ele respondeu –, e já estudei e vi mais coisas do que você talvez imagine. Já ouviu falar no Professor Von Kaelmann? Fui seu guarda-costas e companheiro em muitas de suas expedições de pesquisa. Ele me ensinou muito sobre raças perdidas e culturas desaparecidas. E eu lhe digo que nunca vi nada como estas ruínas, e acredito que são mais velhas que os cretenses, que eram antigos quando meus ancestrais e os seus eram selvagens arianos.

Ele queria descer os penhascos e examinar as sereias entalhadas, mas me recusei a ajudá-lo, temendo que ele pudesse perder seu ponto de apoio e cair para sua morte, ou que uma saliência ou rocha pudesse ceder sob seu grande peso. Diante da minha recusa, ele ficou mal-humorado e foi vaguear sobre as antigas ruínas, cutucando entre elas com uma vara, examinando fragmentos de mármore e pedaços de alvenaria desmoronada, e às vezes parando para olhar em direção aos Penhascos Cantantes, com um ar distante em seus pequenos olhos cinzentos. Temendo que a solidão e o silêncio estivessem começando a lhe afetar a mente, eu tentava repetidas vezes puxar uma conversa com ele, e finalmente desisti enojado; e, irritado, adentrei mal-humorado e a passos largos a floresta.

Pensei na silhueta que pairou sobre as árvores na noite anterior, mas naquele silêncio total, parecia que nada podia viver ou ameaçar. Perambulei sem rumo por ali, colhendo e comendo frutas, e logo, sentindo cansaço, me deitei dentro de um denso arvoredo para tirar uma soneca.

Dormi muito mais do que eu havia esperado. Acordei repentinamente, e um calafrio de medo me penetrou na escuridão e no total silêncio. A noite havia caído; a floresta estava negra e silenciosa. Eu não conseguia sequer ver os troncos das árvores, nem estrelas brilhando entre os galhos. Levantei-me, e fiquei subitamente horrorizado ao me ver escutando tensamente! E percebi que algum som vago me acordara. Nenhum vento agitava as folhas, mas um sussurrar fraco e sinistro me arrepiou com terror inominável. Mas não houve mais som. Nem mesmo quando uma grande mão curva se fechou sobre mim com um aperto esmagador. Com um guincho, eu me lancei para trás, mas sem me livrar daquele aperto de torno; e outra mão me agarrou o pescoço, as garras me rasgando a pele quando tentei me desarraigar dela. Desvairado de terror, eu me lancei para lá e para cá, esforçando-me para romper aquele aperto medonho, e dando golpes trovejantes que se espatifavam contra um corpo peludo e malcheiroso, com efeito. Reconheci quem me atacava: o holandês, enlouquecido pela solidão!

Meu ombro estava sendo literalmente arrancado de meu corpo, e aquela outra mão invisível e com unhas de garra continuou tateando em busca de minha garganta, agarrando na escuridão como uma armadilha para lobos. Meus golpes, que teriam deixado homens fortes inconscientes, ricocheteavam de um corpo duro como rocha, ou metal, ou tão duro quanto alguns répteis. Meu terror desvairado me emprestara força sobre-humana, mas agora eu sentia aquela força diminuir e, quando fui derrubado, senti aqueles dedos inumanos na minha garganta novamente. Com um último esforço, puxei minha faca e golpeei, com a força do desespero. Senti a lâmina penetrar fundo – meu atacante se estremeceu convulsivamente –, e depois eu estava estatelado no chão e sozinho no arvoredo. Sem fazer mais barulho do que o vento na copa das árvores, meu inimigo gigante havia fugido.

Até eu morrer, lembrar-me-ei do horror daquela fuga através da floresta negra, onde o farfalhar de cada folha estava prenhe de pavorosa ameaça e horror que se moviam furtivamente às minhas costas com presas escravizadoras, enquanto eu tateava meu caminho através da escuridão sólida. Era total pesadelo, mas apenas meus próprios medos me dominavam, e finalmente cheguei ao pé da pequena colina onde ficava o templo em ruínas.

Lá eu, pelo menos, ficaria fora das sombras e no luar aberto. Subi correndo a inclinação e parei subitamente. Em nossa cama rude de musgo e galhos, se deitava o holandês, com um dos braços lhe protegendo os olhos dos raios da lua que lhe banhavam o grande corpo. Silenciosamente eu me movi furtivo para a frente, faca erguida, agachado nas pontas de meus pés. Agachei-me sobre ele, esperando que acordasse de seu sono fingido – para que morresse sob o golpe de minha faca.

Olhando para seus ombros enormes, peito cilíndrico e braços grandes, não me espantei que sua força, aumentada pelos poderes sobre-humanos induzidos pela insanidade, houvesse sido tão terrível. Então vi algo mais. Como muitos alemães e holandeses, ele era praticamente sem pêlos. A coisa, à qual eu enfrentara na floresta, era desagradavelmente peluda ao toque. Além disso, o holandês tinha carnes firmes, era musculoso e imensamente forte, mas sua carne não possuía a dureza inumana daquele antagonista terrível. E mais: havia sangue em minha faca, para mostrar que meu golpe cego havia acertado o alvo, mas, em nenhum lugar do corpo seminu do holandês, havia qualquer sinal de ferimento de faca. Dei um suspiro de sincero alívio e embainhei minha arma.

O holandês acordou, bocejou e se sentou.

- Ah, aí está você. Eu lhe procurei por toda parte, mas não lhe achei. Onde esteve?

Respondi desajeitadamente e me deitei na cama rude. O que me levou a manter silêncio sobre minha aventura é mais do que eu poderia dizer. Talvez fosse um instinto de evitar falar a respeito, até poder deduzir isso logicamente e formar alguma teoria sobre a natureza do atacante. Mas, provavelmente, foi porque uma dúvida pavorosa de minha própria sanidade estava à espreita no fundo de minha mente. Havia sido meramente um produto de minha distorcida imaginação o que eu enfrentara? Fora um pesadelo, do qual eu acabava de acordar? Havia sangue em minha faca, era verdade, mas eu não poderia ter ferido a mim mesmo – infligido, ao me debater em meu pesadelo, os ferimentos em meu pescoço e braços? Até mesmo esticado e torcido os ligamentos e músculos em meu ombro, o qual agora latejava dolorosamente e estava praticamente inútil? Qualquer que fosse a razão, nada falei ao holandês, mas resolvi em particular ficar o resto da noite montando guarda.

Confiei na dor do meu ombro torcido me manter acordado, mas ele me falhou. Apesar de mim mesmo, dormi.

Deve ter sido poucas horas antes do amanhecer que a Coisa veio.

O que quer que fosse, veio silenciosamente e agarrou o holandês antes que ele acordasse. Fui despertado pelo espatifar de corpos pesados acima de mim, agarrados num aperto mortal, e pelo berro do holandês. A lua havia se posto, e uma névoa que se arrastava do mar nos envolveu em suas pregas negras. Nas trevas, grandes garras rasgavam pele e carne de nossos corpos e membros, e braços poderosos nos lançaram ao redor como plumas. Na escuridão, nossos giros selvagens às vezes batiam um no outro, e freqüentemente erravam, mas batiam em nosso antagonista com freqüência e força suficientes para derrubar sem sentidos homens fortes. Poderiam ser muitos tapas da mão de uma menina. No primeiro espatifar de batalha, minha faca havia sido arrancada de minha mão e, embora eu tenha gritado uma vez para o holandês arriscar um tiro, ele não respondeu.

O giro de um braço gigante havia me arremessado semi-inconsciente ao chão, e o holandês estava caído, se contorcendo, gorgolejando sua vida para fora sob os dedos esmagadores do monstro, quando, sobre as asas de um vento que se erguia, veio sobre a floresta a doce música diabólica dos Penhascos Cantantes. Mal eles haviam quebrado o silêncio, o holandês foi lançado para o lado como um brinquedo quebrado e, na bruma que se erguia, vimos uma sombra monstruosa desaparecendo pela inclinação da colina.

Ofegando e sufocado, o holandês se ergueu cambaleante e se lançou até a porta escondida. Fui ajudá-lo e nós a erguemos, descemos cambaleando para dentro da sala da caverna e pusemos o alçapão no lugar. Como eu havia dito, ele não tinha dobradiças e não estava preso à soleira, mas simplesmente se encaixava no lugar, com uma maçaneta em cima e outra embaixo – meras alças entalhadas na rocha. Agachamos-nos no topo das escadas de pedra, escutando.

- Onde está sua pistola? – sibilei.

- Eu a deixo no chão, porque é desconfortável dormir com ela – ofegou. – Nunca tive uma chance de pegá-la. O que era aquela coisa?

Contei a ele o que eu deveria ter contado antes, da minha luta na floresta, e eu mal havia acabado de contar, quando ouvimos um tatear na porta acima de nós. Pegamos as maçanetas, firmando nossas pernas contra as paredes. E lentamente a porta se moveu para cima, erguendo nós dois.

Empurrando uma das mãos contra o teto de rocha para aumentar minha resistência, senti uma barra de metal enferrujado, fixa num rego fundo, seu uso me veio instantaneamente ao pensamento e arfei meu achado ao ofegante holandês. Pondo uma das mãos contra o teto para alavancar, ele empregou toda sua enorme força. Na escuridão, ouvi sua respiração chegando em pesadas arfadas. Sob nossos esforços combinados, a porta parou momentaneamente em seu curso para o alto, mas, embora nosso esforço quase estourasse as veias em nossas têmporas, não conseguimos arrastá-la para baixo por mais que um centímetro. Então, novamente, fracamente, ouvimos a brisa soprando a música dos Penhascos Cantantes e, acima de nós, sentimos claramente o agressor desconhecido estremecer e encolher, relaxando involuntariamente. E, com uma explosão de esforço de estourar o coração, puxamos violentamente a porta de volta ao lugar. Por um instante, a barra antiga, encrostada com a ferrugem das eras, resistiu aos meus esforços desvairados; depois, relutantemente, ela deslizou de volta para dentro do rego correspondente na porta. Ofegando e totalmente exaustos, desfalecemos.

E, acima de nós, a Coisa renovou suas tentativas. A grande barra de metal rangia e se dobrava, mas agüentava, e finalmente os sons cessaram, mas não ousamos sair, temendo que a Coisa estivesse à nossa espera. Assim, nos agachamos e ouvimos trêmulos, e o pensamento nas cavernas sob nós, onde se espreitava aquela assustadora coisa do mar, se adicionou ao nosso medo.

Finalmente a luz do início da manhã começou a se infiltrar através das fendas estreitas da porta oculta, e não ousamos sair à luz do dia. Minha faca jazia onde havia caído, e a pistola do holandês onde ele a havia deixado. Certamente, se nosso inimigo fosse humano, teria levado pelo menos a faca. Nós nos sentimos com um pouco mais de coragem, quando pegamos nossas armas de volta e, mantendo uma vigilância cautelosa, descemos até a fonte mais próxima para bebermos e nos banharmos. Precisávamos dos dois. Nossas vestes escassas estavam rasgadas em trapos, e estávamos totalmente contundidos e arranhados. Meu ombro esticado não fora nada ajudado pela batalha, e um profundo talho esfarrapado havia sido feito no couro cabeludo do holandês. Ambos éramos espetáculos repulsivos de poeira, sujeira incrustada e sangue coagulado.

- Diabo – murmurou o holandês. – Esta é a ilha do diabo. Está tudo errado. As marés, as correntezas, a ausência de vida animal... o silêncio.

- Foi algum tipo de selvagem – respondi impacientemente –; talvez um náufrago como nós, enlouquecido pela solidão.

- Bah! – ele pôs para fora o peito enorme e me olhou ferozmente. – Um metro e oitenta e três de altura e peso 108 kg – disse –; e é tudo músculo. Um selvagem não é capaz de me arremessar, como eu faria com uma garota de 16 anos... não, e nem um louco. E essa coisa também nos levantou facilmente do chão, quando seguramos a porta... eu, grande como sou, e você, que pesa facilmente uns 86 kg.

- Então, o que era aquilo? – perguntei impaciente.

Ele havia se curvado para beber – como se, em resposta, ele recuasse com um grito estrangulado –, apontando para uma marca estendida no marga macio.

- O ídolo! – ele sussurrou. – As mãos do ídolo da caverna!

E, com um estremecimento, vi e percebi que a marca parecia ter sido feita como se a mão agarradora e com garras do grande e obsceno ídolo de pedra tivesse pressionado a lama.


3)

Naquele dia, o Horror não veio até nós, nem achamos qualquer outro sinal que lhe mostrasse a existência. A floresta sombria estava silenciosa, e nenhuma forma babante se moveu furtivamente daquelas profundezas sombrias, às quais não ousávamos invadir. A maior parte do dia eu passei argumentando com o holandês, para convencê-lo a passar a noite na pequena caverna sob o templo – pois, de fato, não havia outro lugar que conhecêssemos que pudesse estar a salvo do demônio que nos espreitava.

- A sala se abre na caverna onde está o ídolo – ele disse, com uma luz estranha em seus pequenos olhos cinzentos.

- E daí? – exclamei. – Não há nada que nos indique que a Coisa saiba das cavernas... do contrário, por que ela nos atacou daquele lado na noite passada? O polvo não pode nos pegar por aquele caminho, mesmo se aquela coisa tivesse inteligência suficiente para tentar; ele nunca conseguiria enfiar seu volume através daquele alçapão.

- Mas o ídolo! – ele sussurrou, num tom que fez meu cabelo se arrepiar. – Talvez ele ganhe vida! Há lendas na China, sobre ídolos de pedra que se movem e respiram, quando nenhum homem está lá para ver, e saem dos pedestais para beberem sangue de homens...

- Cala a boca! – exclamei, na fúria que o medo traz. – Isso é bobagem! Pode fazer o que quiser... empoleirar-se numa árvore, até que o gorila, ou o que quer que seja, lhe puxe do galho principal para dentro de sua garganta. Mas vou dormir naquela sala!

O horror se movia furtivamente nos calcanhares na Noite. Ainda não havia escurecido, quando me retirei para dentro da pequena câmara subterrânea e o holandês, após um momento de hesitação, se moveu pesadamente atrás de mim. Fixamos na porta superior, situada na porta de baixo – a que se abria para dentro da caverna –, um pedaço de mármore quebrado, tão enorme que exigiu a força de nós dois para carregá-lo, e nos preparamos para dormir.

Nosso sono foi intermitente. Fomos assombrados por vagos pesadelos – cochilávamos, para acordar subitamente, a pele se arrepiando com medos sem nome. E naturalmente meu pensamento se voltava para a grande caverna logo abaixo de nós. Quais horrores ela escondera em séculos perdidos? Quais horrores ainda espreitavam lá? Com um arrepio gelado de medo, percebi que o pavoroso ídolo de pedra estava diretamente sob nós. De sua cabeça deformada, havíamos escalado para dentro da câmara quando saímos da caverna.

Existiria alguma coisa, além de loucura, nos medos do holandês? Aquele monstro de pedra, por alguma bruxaria medonha, impregnava sua existência de pedra com vida hedionda, e saía furtivamente para matar e devorar? Aquele pensamento era insanidade.

Mas ele cresceu até o suor brotar de minha testa, e eu parecia sentir a proximidade do demônio. Agora ele saía de seu poleiro e flexionava seus braços hediondos. Agora seus olhos assustadores miravam feroz e vorazmente em nossa direção, queimando minha consciência através de paredes de rocha sólida. Agora arremetia furtivamente contra a porta escondida...

Com um esforço enorme, eu me libertei das obsessões fantásticas, que foram induzidas por uma imaginação muito agitada – e então me congelei! Ouvi claramente um som assustador em suas potencialidades – o deslizar áspero de uma pedra pesada, como se a porta estivesse sendo empurrada para cima, e o fragmento quebrado de mármore deslizando da superfície inclinada.

O holandês havia acordado; eu o senti se sobressaltar e, quando eu lhe sussurrei ferozmente para acender um fósforo, eu o ouvi raspar contra o chão e vi o clarão. Erguendo o fósforo, ele se curvou para a frente e espiamos para baixo do poço escuro da escadaria. O fragmento de mármore havia caído para o lado, e a porta estava se erguendo!

O resto é delírio. O holandês soltou um grito agudo, e logo estávamos arrancando a porta superior na escuridão. Lembro-me da loucura perturbadora daquele momento pavoroso nas trevas. Eu me lembro de saltar para o alto ao luar, como uma alma penada pulando para fora do Inferno. Lembro-me de correr com os lábios espumando, e do meu coração trovejar contra minhas costelas. E os gritos agudos do holandês ecoavam em meus ouvidos:

- O ídolo! O ídolo andante! Eu vi seu rosto! É o ídolo!

Por quanto tempo corremos, e através de quais arvoredos medonhos e de quais clareiras zombeteiras fomos caçados, eu não sei. Só sei que a aurora estava rompendo, quando caímos quase sem sentidos e semi-mortos de exaustão na beirada dos Penhascos Cantantes.

Nenhuma forma de horror nos atacou desde a floresta. O sol que se erguia revelava apenas o gramado plácido e as folhas verdes entalhadas sem ondular contra o céu.

E, por consenso mútuo, sem falar uma palavra, nos levantamos e partimos para as colinas que se erguiam azuis através das árvores. Qual refúgio entre aquelas fortalezas nós esperávamos achar, não sei dizer. Pelo menos, sabíamos que esta parte da ilha era impossível para nós.

Não seguimos o litoral, mas fomos diretamente através da floresta. Seguimos cautelosamente, sabendo que o monstro desconhecido poderia muito bem pular sobre nós desde os galhos salientes, ou de entre os troncos gigantes das árvores espessas, mas, em nosso desespero, não nos importávamos. Que venha na luz do dia, onde pelo menos poderíamos ver que tipo de criatura procurava nossa destruição – estávamos prontos para nos virar encurralados e causar quanto estrago pudéssemos, antes de sermos despedaçados.

As grandes árvores sombrias espalhavam enormes galhos e, através das largas folhas escuras, pouca luz solar se infiltrava. No estranho gramado elástico, até mesmo os passos vigorosos do holandês eram silenciosos. Tudo tinha o efeito de ilusão. Eu me vi me perguntando se realmente ainda estávamos no mundo onde nascemos, ou se havíamos sido transportados, sem saber, para algum planeta alienígena.

Movíamos-nos em silêncio quase sobrenatural, quebrado apenas quando um de nós falava. Enquanto avançávamos, as árvores ficavam mais altas e densas, embora o solo continuasse livre de vegetação rasteira. Nós nos topamos com antigos arvoredos, onde as árvores se erguiam bem acima das outras, e estavam em círculos perfeitos ou formavam as linhas de enormes desenhos intricados, sobre os quais só podíamos imaginar. A vasta propriedade de algum rei desconhecido, o holandês sugeriu que a floresta havia sido outrora; minha própria imaginação evocou visões de ninfas e dríades, dançando entre arvoredos pagãos ao som das flautas de Pã.

A inclinação do chão ficou mais perceptível enquanto avançávamos, e logo chegamos ao primeiro de uma série de platôs largos e em forma de escadas, os quais indubitavelmente haviam sido terraços numa escala soberba, durante o reinado do povo desconhecido que havia construído as maravilhas daquela ilha. Esses terraços tinham, cada um, uns 1600 metros de largura e aparentemente se estendiam por toda a largura da ilha. Outrora, largos degraus de pedra haviam formado a frente de cada terraço, mas agora eles eram meras pilhas de pedra cobertas por líquen embolorado. As dos terraços também haviam sido erodidas, de modo a mostrarem inclinações irregulares, ao invés da aparência retilínea e bem delineada que devem ter apresentado antes.

Mas ainda eram planos, horizontais e gramados, e embora a floresta firmemente elevada houvesse erodido muitos dos antigos contornos das árvores, os largos planaltos, se estendendo à distância em curvas magníficas a cada direção, moldados pelos arvoredos ainda simétricos sobre eles, apresentavam uma aparência inspiradora, para dizer o mínimo. Aquilo deve ter sido uma paisagem da primordial Arcádia.

Em muitos dos arvoredos, encontramos mananciais, fontes ou córregos rasos, mas não havia ruínas sobre os terraços, exceto uma linha ocasional de colunas caídas, que pareciam ter sido outrora tipos de pavilhões ao ar livre.

À nossa frente, avultavam os contrafortes, mas antes que os alcançássemos, a noite caiu e paramos no último terraço, relutantes em prosseguir no escuro. Escalamos a árvore mais alta que pudemos encontrar, nos acomodamos nas forquilhas dos enormes galhos e dormimos profundamente o sono do cansaço. Nenhum demônio da escuridão saltou sobre nós naquela noite. Acordei uma vez. O silêncio interminável pairava sobre a ilha; os arvoredos pairavam obscuramente. As colinas além deles apontavam seus cumes ásperos para o céu, como monstros pré-históricos contra as estrelas. A fonte no arvoredo abaixo fluía silenciosamente e dormi outra vez, me perguntando sonolento quais seres estranhos foram lá beber em eras passadas.

O sol ainda não se levantara, quando retomamos nossa marcha, colhendo frutas enquanto andávamos. Havíamos atravessado o último terraço e estávamos escalando os contrafortes, quando o sol apareceu. Numa inclinação rochosa, paramos para olhar de volta sobre a terra que havíamos atravessado. Uma cena de beleza estranha surgiu diante de nossos olhos – os largos planaltos coroados por árvores, se erguendo majestosamente da escura floresta verde e, lá longe sobre colinas menores na outra extremidade da ilha, construções antigas, a distância lhes atenuando a decadência.

Os contrafortes eram, sobretudo, encostas íngremes, fáceis de escalar. Chegamos até traços de antigas estradas, quase apagadas, e pequenas pilhas de ruínas, ainda mais decaídas que aquelas que havíamos visto primeiro – possivelmente, por estarem mais expostas às chuvas erosivas. As colinas subiam gradualmente para alturas reais, onde ficavam mais íngremes. Eram bastante ásperas, e esparsamente arborizadas, exceto sobre pequenos planaltos, dos quais havia vários e sobre os quais cresciam moitas de árvores enormes. Procurando por um caminho menos acidentado, chegamos a uma estrada antiga, cujo calçamento estava rachado e desagregado e, em muitos lugares, totalmente desgastado, mas que subia suavemente através das colinas. E assim, nós a seguimos – a estrada mais antiga da terra, eu acredito, e eu me perguntava quais pés estranhos pisaram em seus caminhos largos, quando ela era uma estrada imperial. Acima de nós, nas colinas, vislumbrávamos, de tempos em tempos, o estranho brilho ofuscante que havíamos percebido anteriormente.

Subíamos cada vez mais entre as colinas, e finalmente a estrada subiu um penhasco num declive íngreme; e, saindo sobre o topo, paramos deslumbrados. O sol mergulhava no oceano ocidental. Estávamos sobre um planalto largo, evidentemente a aresta da cordilheira de colinas, vez que, em dois lados, a terra parecia descer dele e, nos outros dois lados, colinas se erguiam. E, no planalto, havia uma cidade. Ou assim nos parecia à nossa primeira e assombrada vista; mas, após a primeira e assustada visão, vimos que aquilo não era mais que um fantasma, a sombra de uma cidade, o fantasma da antiga civilização.

Cuidadosamente atravessamos a planície e adentramos as ruas silenciosas. Não havia qualquer sinal de que algum muro já houvesse cercado a cidade. As ruas eram pavimentadas e as casas eram feitas de pedra. Cada casa era construída num perfeito semicírculo, aberto na frente ou lado quadrado, o teto sustentado por grandes colunas. Atrás das colunas, havia um amplo pátio interno, alguns com teto; e, abertas nele, as estradas sem porta das câmaras largas. No centro exato da cidade, erguia-se uma estrutura colossal e, quando o sol bateu nela de forma ofuscante, percebemos que era a mesma que havíamos observado brilhar de longe. Na aparência, se assemelhava muito aos teocallis dos astecas, exceto que, por incrível que pareça, parecia ser inteiramente composta de metal, o qual tremeluzia brancamente e aparentemente intocado pelos anos de oxidação. Seu incrível volume se erguia a mais de 90 metros no ar, e o cintilar do sol poente sobre ela quase nos cegava.

Mas ela nos atraiu como um ímã e, quando nos aproximamos, vimos que todas as ruas convergiam até ela. E, quando chegamos perto dela, vimos que cada rua era flanqueada a cada lado por grandes colunas, as quais me lembravam os misteriosos Salões de Mitla, no México.

Tivemos uma sensação de extrema irrealidade, ao caminhar ao longo das ruas daquela cidade esquecida, com suas construções vazias e abandonadas a cada lado e, obscurecendo tudo, aquela pirâmide incrível e espantosamente bela.

Nós a alcançamos, protegendo nossos olhos de seu brilho e suspirando de alívio quando o sol se pôs e o brilho ofuscante se tornou suave e tremeluzente. Sentimos a superfície suave em nossas mãos. Era metal. Prata, o holandês jurou, mas não acreditei que fosse prata, embora seu brilho polido não sugerisse outra coisa. Não havia sinal de corrosão nela.

A estrutura parecia sólida; em nenhum lugar, achamos qualquer porta ou janela. E, exaustos de nossa longa escalada na colina, nos deitamos sobre o pináculo em forma de altar e caímos num sono, onde nem pensamentos de monstros vagando nem reflexões de que nós estávamos dormindo sobre a riqueza de mil reis, nos incomodou.

Acordamos por volta do amanhecer, e nos apressamos em descer antes que o sol nascente transformasse a escada serpenteante num caminho ofuscante. Eu me perguntei como as pessoas daquela cidade esquecida agüentavam o fulgor contínuo daquela pilha de brilho branco, e uma especulação um tanto desconfortável me adentrou a mente: uma especulação sobre se o povo daquela era perdida era exatamente humano, como o homem moderno conhece a humanidade.

Em todos os lugares, encontramos evidência de antiga grandeza: colunas entalhadas; decorações murais, cujos matizes desbotados faziam alusão à sua antiga beleza, e ornatos em relevo dourados e prateados, tudo se desagregando.

O holandês, encantado com o antigo esplendor do local, passaria a maior parte do dia explorando a cidade, mas senti uma impaciência crescente se erguendo em mim para investigar o resto da ilha, e descobrir o que havia nas inclinações meridionais das colinas. Assim, antes do meio-dia, comemos as mangas que havíamos trazido conosco, atravessamos o planalto e olhamos para um grande panorama de colinas e vales florestados, se inclinando gradualmente para o mar que tremeluzia azul e misterioso à luz do sol. Vimos a velha estrada serpenteando para baixo, sobre a colina e através de vales exuberantes, mas, como a ida foi bem menos íngreme do que havia sido no lado oposto da chapada, não seguimos as voltas da estrada, mas fomos por um caminho mais reto.

Por volta do meio da tarde, entramos num pequeno vale e, quando o atravessamos, uma curiosa sensação de familiaridade se moveu furtivamente sobre mim. Comecei a me perguntar onde e quando eu vira um vale tão similar, a ponto de despertar estas impressões, quando subitamente nos deparamos com a abertura de uma grande caverna. O holandês me olhou estranhamente, e senti minha pulsação acelerar, não em expectativa por algum perigo oculto, mas por causa de uma renovação da sensação inexplicável de familiaridade.

Sem dizer uma palavra, entramos cuidadosamente na caverna, armas preparadas, devagar, para que nossos olhos se acostumassem à luz fraca. O pó estava espesso no chão; nenhum pé, animal ou humano, havia atravessado ali durante séculos. Os olhos do holandês lampejavam estranhamente na suave escuridão. Seu sussurro veio fantasmagórico, como o de um vento perdido entre os galhos:

- Já estive aqui antes!

Eu estremeci; estranhos fantasmas sussurravam, no fundo de minha mente, segredos obscuros demais para que eu entendesse. Olhamos um para o outro, e então adentramos mais ainda a caverna, procurando não sabemos o quê, até que lá, na escuridão cinza, nós achamos e, nossos couros cabeludos se arrepiando com sensações monstruosas, nos curvamos sobre os ossos mofados que estavam na mesma posição em que estiveram por milhares de anos. Eram os esqueletos de dois homens, um deles de estatura enorme, o outro um verdadeiro gigante. Entre as costelas do primeiro, havia uma grande adaga de sílex e, encravada na coluna vertebral do gigante, uma rude espada de bronze.

Puxei a espada de seu local onde há muito descansara. O cabo de madeira havia se decomposto há muito, mas o peso da lâmina era verdadeiro para minha mão – o holandês e eu olhamos um para o outro na escuridão, a pele se arrepiando com visões que não conseguíamos (não ousávamos) expressar em palavras.

Apontei para o fundo da caverna, velado por sombras mais profundas.

- Tem algo, lá atrás no escuro... – sussurrei.

- Uma lança... – ele disse, com uma luz medonha em seus olhos dilatados.

- Uma lança de bronze, entalhada com três círculos sobrepostos – eu disse, como um homem em transe.

Lado a lado, fomos até o fundo da caverna – lá, na poeira, minha mão que tateava a encontrou: uma lâmina de bronze de uma lança – e, no lado, havia três círculos entalhados profundamente no metal. A ponta da lança escorregou de minha mão, para ficar no pó onde havia ficado por sabe Deus quantos milênios. Minha mente deu voltas, como alguém que fica sobre um vasto pináculo de profundezas indizíveis de espaço, abismos monstruosos sob si e os ventos cósmicos soprando em seu rosto. Uma sensação de Tempo esmagador se precipitou sobre mim, golfos gigantescos de eons, um enxame de inúmeras terras, eras e eventos fazendo uma onda nebulosa se erguer entre mim e uma visão que eu havia quase agarrado.

Lentamente recuei até a luz. O rosto do holandês brilhava fracamente na escuridão, e ele me seguiu. Fiquei na entrada da caverna e, quando ele saiu pesadamente do escuro, um estranho e involuntário grito feroz explodiu de meus lábios e minha mão se ergueu, foi para trás e então rapidamente para a frente, como se eu estivesse atirando uma lança, e o holandês súbita e involuntariamente se abaixou. Seu rosto ficou pálido.

- Pelo amor de Deus, vamos sair daqui! – exclamei, numa espécie de frenesi, e fugimos em pânico, sem afrouxar nosso passo até termos cruzado o cume do vale e ficarmos longe de sua vista. Por fim, o holandês falou, hesitante:

- Ianque... como... como você sabia que aquela lança estava lá?

- Cala a boca! – falei bruscamente. – Como você sabia?

Um encolher de seus ombros enormes foi sua única resposta. Meus próprios pensamentos estavam caóticos. Como aqueles ossos mofados chegaram àquela caverna, com sua sugestão de um barbarismo estranho, a esta ilha estranha? Qual feitiçaria profana se escondia ali, de modo que o rosto do holandês, quando saiu da caverna, havia sido alterado tão fantasticamente na fraca luz incerta, a ponto de assumir o aspecto de um inimigo vagamente lembrado? A ponto de, num ímpeto cego de fúria vermelha e irracional, eu ter gritado numa língua bárbara e desconhecida e ter pensado em lançar morte contra seu peito? Pois, naquele instante louco, parecia que eu segurava uma lança em minha mão. O vento soprava sobre o topo das colinas e agitava os galhos das árvores – levemente. Estremeci.

Como que por consenso mútuo, nos desviamos de nosso curso direto e logo chegamos à velha estrada, que serpenteava seu caminho plácido entre os vales. Por alguma razão indefinida, havíamos perdido – temporariamente, pelo menos – nosso desejo de explorar as colinas não-rastreadas. Uma sensação lúgubre, de segredos monstruosos adormecidos nelas, nos repeliu. A noite se aproximava. Saímos sobre um pequeno platô, totalmente livre de árvores e densamente gramado. Bebemos numa fonte que achamos lá, comemos algumas frutas que encontramos numa das poucas árvores e nos preparamos para dormir. Decidimos que seria loucura não montarmos guarda, e foi decidido que eu faria o papel de sentinela até a lua se erguer, quando eu acordaria o holandês.

Após escurecer e o holandês dormir na relva, sentei-me com minhas costas contra uma pequena árvore, olhando para as indistintas inclinações sombreadas. Não havia brisa e, como de costume, reinava o silêncio. Olhei em direção a uma moita de árvores espessas, a pouca distância, e decidi que a luz das estrelas brilhava no mármore branco das ruínas ali, e especulei ociosamente sobre o destino do povo misterioso que outrora havia habitado esta ilha misteriosa. Então me livrei de meus devaneios e acordei o holandês.

Eu parecia ter dormido apenas por um momento, quando o holandês me sacudiu.

- Lemúria – ele dizia. – Lemúria!

Pisquei os olhos:

- O quê? Meu turno de vigia? Já é meia-noite?

- Não, não é meia-noite, mas ouça, ianque! – Seus olhos pequenos cintilavam ao luar. – Há uma velha ruína ali... um palácio, eu acho... encontrei hieróglifos por todas as suas colunas. E ouça! Eu os leio à luz da lua!

- Bobagem – eu zombei. – Estão em que idioma? Alemão?

- Não, não! – ele gesticulou furiosamente. – Ouça: uma vez, passei uma temporada inteira com o Professor Von Kaelmann, numa pequena ilha do Pacífico, quando as chuvas vieram e não havia nada a fazer, exceto se sentar e ouvir a chuva nas folhas do teto da cabana. Então, Von Kaelmann me mostrou um estranho manuscrito copiado, assim ele disse, de hieróglifos entalhados numa coluna de uma ilha que ninguém havia explorado, a não ser ele mesmo. Ele resolvera o quebra-cabeça das figuras após anos de estudo, e foi ele que as ensinou para mim. Cada marca é um símbolo, e cada símbolo é uma palavra; o caráter da palavra é determinado por sua relação com o símbolo tônico. Demorei meses para aprender, mesmo com um professor como Von Kaelmann. E estes são os mesmos. Eu os achei curiosamente familiares, quando os vi nas ruínas do outro lado da ilha. Esta noite, os estudei de perto e comecei a reconhecê-los.

- E qual raça os usava? – perguntei.

- Já ouviu falar na Lemúria? Não? Mas você já ouviu falar na lenda da Atlântida. Bom, a Lemúria é do Pacífico e a Atlântida é do Atlântico. Von Kaelmann disse que eles eram mais antigos que os atlantes; que possuíam uma grande civilização, quando os atlantes ainda eram selvagens... ancestrais dos Cro-Magnons. Ele disse que os ídolos da Ilha da Páscoa foram construídos pelos lemurianos, após o continente afundar no mar... assim como a Atlântida afundou eras depois... os sobreviventes em outras ilhas e colônias, se existiam alguns, foram destruídos pelos selvagens dos arquipélagos.

- Acho que você está louco – eu disse, me levantando. – Mostre-me.

Eu o segui através do platô, até um templo em ruínas que brilhava fracamente ao luar na inclinação da colina. As colunas estavam cobertas por figuras profunda e claramente entalhadas que se salientavam vigorosamente na inundação de luz prateada.

- O templo do grande deus – o holandês traçava cada hieróglifo com um dedo espesso, soletrando lentamente e tentando dominar seu sotaque o melhor possível. – “Senhor do mar, do céu e do mundo, Xultha, que era, é e será vida eterna”. Não consigo compreender algumas palavras. Aqui tem um pouco mais: “Senhor da vida e da morte, receba este santuário e prospere o reinado de Nyulah, o filho do sol, rei de Mu, trombeta de Xulthar”.

“Algum rei construiu este templo para honrar algum deus”, disse o holandês desnecessariamente. “Ianque!”, ele me bateu de forma ressoante nas costas, em sua empolgação. “Percebe a descoberta que fizemos? A Pedra de Roseta não é nada diante disto! O que diria o velho Von Kaelmann? Royal Feller em todas as sociedades de pesquisa – é o mínimo que farão por nós!”.

Não consegui resistir ao toque sardônico:

- Como saberão a respeito disso?

- Maldição! – ele grunhiu. – É verdade; talvez fiquemos aqui para o resto da vida.

Ele voltou a examinar as colunas e disse:

- Por que todas estas ruínas estão aqui? Esta ilha foi, sem dúvida, a montanha mais alta da Lemúria. Por que as pessoas construiriam palácios e templos em topos de montanhas?

- Talvez o continente tenha submergido gradualmente, empurrando as pessoas cada vez mais alto entre as montanhas – sugeri.

- Talvez. De qualquer forma, vou ler as inscrições.

- Leia – grunhi. – Vou voltar a dormir. Acorde-me quando você ficar cansado. – Eu me joguei na relva próxima às colunas e logo adormeci; o holandês ainda meditava sobre os hieróglifos.

O sol estava alto quando acordei. O holandês estava deitado perto de mim, roncando tranqüilamente.

- Que tipo de vigília é esta? – exigi. – Por que não me acordou?

- Adormeci estudando as escrituras – ele bocejou. – E agora?

- Desceremos as encostas até a praia sul – respondi. – Poderíamos também explorar a ilha, enquanto estivermos nela.

A antiga estrada descia sobre a beirada do platô e serpenteava para baixo, entre vales sonhadores e inclinações verdejantes. A beleza estranha e a misteriosa amabilidade inumana do litoral adentraram nossas almas, nos encantando, enfeitiçando-nos com estranho silêncio.

- Lemúria – murmurou o holandês. – Lemúria. Dizem que Poseidôn caminhou aqui.

Estremeci involuntariamente, como se na expectativa de ver o grande volume obscuro do deus do mar, saindo do oceano azul, com a barba esvoaçando e brandindo o tridente. Os homens não crêem nos deuses de eras passadas, e as divindades de ontem se tornam os demônios de hoje.

E assim, chegamos a outro planalto elevado e vimos, diante de nós, um grande templo que se erguia. Não poderia ser nada, exceto um templo, o santuário de alguma desconhecida raça fantástica, com suas enormes colunas sem entalhes, olhando através e atrás das quais nós vimos que, ao invés de uma frente aberta como as outras ruínas, esta construção era cercada por uma parede, e a única entrada parecia ser um conjunto imponente de portas duplas no centro.

E, no meio do platô de gramado verde, se erguia um edifício gigantesco – não arruinado, como outros que havíamos visto, mas aparentemente tão bem preservado quanto no dia em que pessoas estranhas atravessaram seus portais. Assistíamos realmente sem fôlego, meio na expectativa de que alguma figura fantástica saísse.

- Você acha que existe gente ali, ianque? – o holandês perguntou nervosamente.

- Bobagem – zombei, embora, em meu pensamento secreto, eu não tivesse tanta certeza. – Os homens que construíram aquela coisa estão mortos há pelo menos 10 mil anos.

Descemos a inclinação íngreme, atravessamos a macia relva verde e ficamos diante da estrutura mastodôntica, que se erguia espantosamente acima de nós. Além das enormes colunas sem entalhes, que corriam por toda a largura da frente, vimos uma parede de aparente grande espessura, perfurada por uma entrada, na qual se encaixavam portas maciças de uma substância semelhante ao bronze. Algumas janelas, situadas a intervalos regulares, flanqueavam a entrada, mas eram mais altas do que um homem era capaz de alcançar.

Passamos entre as enormes colunas e testamos as portas. Estavam trancadas por dentro e havia pó não-pisado na soleira. A pedra do pórtico estava rachada em vários lugares, e o enorme templo – se assim o era – mostrou muito mais sinais de idade a curta distância, do que havíamos percebido de longe. As portas apresentavam uma superfície lisa, sem maçaneta ou tranca visível. Nós nos arremetemos contra elas sem efeito.

- Há algo estranho nas portas – disse o holandês, abandonando o esforço vão.

- Você está vendo coisas – respondi. – Essas portas são perfeitamente lisas.

- Olhe mais de perto – ele disse e, me curvando mais perto, vi que ele tinha razão. Linhas tênues apareciam, vagas e indistintas.

- Estranho eu não tê-las notado a princípio – observei. – Eu...

Parei abruptamente, e o holandês recuou com um grito estrangulado. Os entalhes estavam ficando mais claros aos nossos olhos. Como uma figura lançada sobre uma tela e bem delineada pela máquina de projeção, um desenho horrível nasceu da superfície inescrutável daquelas portas de mistério.

A coisa retratada era um esqueleto – de homem, talvez, mas de um homem como a terra não via há muitas eras sombrias. As várias anormalidades nos ossos articulados não eram, evidentemente, falhas do artista desconhecido, mas existentes no modelo medonho. As costelas eram muito espessas e pesadas; os ossos dos dedos das mãos, muito curvos; o queixo muito recuado, a testa muito baixa, e os ossos dos braços tão longos, que as mãos sem carne pendiam sob as protuberantes articulações dos joelhos, como se o monstro estivesse se curvando para a frente como um grande macaco. Mas, mesmo para um olho casual, leigo em anatomia, era evidente que o esqueleto não era o de um macaco. Acima da figura, havia, com uma luz bizarra e maligna, uma fila de hieróglifos.

O holandês grunhiu, enquanto as traduzia:

- “Entrem, tolos; seu destino está preparado!”.

- Bobagem – zombei diante de sua falta de confiança. – O homem que entalhou isso virou pó.

- Talvez – concordou o holandês –, mas talvez tenham deixado algo, como os incas fizeram, para matar quem quer que invadisse a terra.

- Bom – eu respondi –; duvido que isso funcione depois de todos esses séculos. Vamos ver...

Havíamos dado as costas para a porta enquanto discutíamos, e agora, quando virei de volta, parei bruscamente, meu dedo apontando para uma superfície em branco. A figura havia desaparecido!

- Deus! – o ofego do holandês veio num sussurro fantasmagórico. Eu cautelosamente estirei o braço e passei a mão sobre a superfície. Meus dedos não sentiram linhas nem entalhes – mas, quando eu o fiz, vi os primeiros vislumbres fracos da figura reaparecerem. Demos um passo para trás, quando a coisa surgiu – sim, esta é a palavra: parecia horrorosamente com um esqueleto flutuando através de fantasmas indizíveis de oceano azulado, aparecendo gradualmente e pairando na superfície.

Nervosamente, vencendo uma reviravolta medonha, corri minhas mãos novamente sobre a superfície, e neste momento, senti uma leve projeção ao redor do meio do anormalmente largo esterno da figura. Pressionei com força – em algum lugar, ouvi o ranger de antigas dobradiças e, com subtaneidade espantosa, as portas giraram para dentro. Recuamos instintivamente da escuridão que se abriu.

Olhamos temerosos para dentro, vislumbrando volumes gigantescos e formas titânicas na escuridão.

- Bom – eu disse, e não gostei do modo como minha voz ecoou na quietude da abertura –, vamos entrar e ver o que podemos achar.

- Lemúria! – o holandês sussurrou. – Eles puseram o esqueleto nas portas, para aparecer quando olhamos... talvez tenham posto uma maldição no templo, para dilacerar nossos ossos com garras! Poseidôn pôs suas mãos neles... eram seus filhos e evoluíram de profanas criaturas do mar... não de macacos, como o restante de nós. Seus deuses não eram nossos deuses e eles não eram humanos, como conhecemos a humanidade.

- Bobagem – retruquei, silenciando minhas próprias especulações sobrenaturais... uma olhadela naquela porta assombrada pelo demônio era suficiente para fazer qualquer homem duvidar de sua sanidade... – Se eu quiser entrar, espere aqui fora... e cuidado para que o esqueleto não saia da porta.

Rindo alto e furiosamente, ele me empurrou para o lado com um gesto pesadamente desdenhoso e se moveu pesadamente através da soleira. Eu o segui e, juntos, olhamos temerosamente ao nosso redor, mãos agarrando faca e pistola. Pilares gigantes sustentavam um teto de tal altura, que mal conseguíamos distinguir. Pairava alto sobre nós, como um indistinto e escuro céu da meia-noite. Entre fileiras de colunas titânicas, nós nos movíamos numa quietude dominadora, que parecia um silêncio à espera. Minha imaginação intensificada parecia ouvir o movimento de asas gigantescas – para sentir o caráter maligno das sombras flutuantes. Uma sensação de dimensões terríveis caiu sobre mim, de alturas vastas se erguendo de profundezas indizíveis. Eu me senti como um inseto rastejando sobre o chão do palácio de algum gigante. O mal se escondia ao nosso redor, acima de nós e sob nós.

Agora, enquanto avançávamos, as linhas de colunas se afastavam a ambos os lados, deixando um espaço mais claro. Nossos pés afundavam no pó intocado por eras incalculáveis. Agora degraus ciclópicos levavam cada vez mais para cima, até quase desaparecerem na escuridão, e sentimos mais do que vimos, uma obscura figura colossal escondida lá em cima nas sombras. Paramos involuntariamente, nossos corações batendo forte, mesmo sabendo que devia ser apenas outra imagem. Subimos os degraus e, quando ascendemos penosamente pelo que parecia ser um longo caminho, ficamos assombrados ao vê-los ainda se estendendo acima de nós, numa escadaria aparentemente interminável.

- Degraus para as estrelas – murmurou o holandês –; para as estrelas do Inferno.

Sim, eu me senti como se tivéssemos subido entre as estrelas, enquanto uma insinuação de vertigem me atravessava. Isto era monstruoso – impossível. Embora a construção tivesse parecido enorme do lado de fora, esta sensação de vastidão e altura era de pesadelo – não-natural. Seria isso minha própria alucinação?

- Isto é alto... alto! – sussurrou o holandês. – Mais alto que qualquer montanha. Como eu havia sonhado.

Estremeci. Quem não tivera, em pesadelos, a sensação de horrível altura não-terrestre? Em sonhos, já pendi como uma partícula num monstruoso céu flamejante e azul, e já rastejei como uma formiga ao longo das vigas dos tetos de castelos ciclópicos, que se erguiam como montanhas até as estrelas. Estávamos subindo os degraus cegos da morte? Eu me perguntei atordoado: será que perambulamos para fora de nosso próprio plano e galgamos para dentro de outra dimensão?

Enquanto eu pensava isto, chegamos a uma plataforma plana e ficamos lá atordoados, com a sensação de estarmos sobre um platô enorme com a escuridão estupenda de espaço cósmico sob nossos pés. Após o que pareceu um longo tempo, nossos olhos, meio acostumados ao escuro, perceberam vagamente a sombra enorme que se erguia sobre nós. Mas não conseguíamos ter a concepção real daquela coisa – só tivemos a impressão de um enorme monstro antropomórfico se erguendo ereto, um grande e sombreado membro ou tentáculo erguido. Quanto ao seu tamanho, não sei dizer. Não há padrão humano para julgá-la; não foi construída de acordo com os princípios sãos ou normais. Além disso, não sei dizer, exceto que, em relação àquilo, experimentei a mesma sensação de imensidão em harmonia com o restante daquele terrível templo.

Diante da coisa, se erguia o que talvez tenha sido um altar colossal, e tive um vislumbre de branco na superfície, o qual atiçou minha curiosidade. Com a ajuda do holandês, subi sobre o objeto, ajudei-o a subir e então voltei minha atenção para a coisa que me atraíra, e que parecia ser algum tipo de cilindro branco. Curvei-me e o agarrei; ele se aderia ao altar... eu o arranquei com força – e simultaneamente, percebi um vasto e terrível movimento no ar sobre mim, o holandês gritou e arremessou sua massa contra mim. Tombamos de ponta-cabeça do altar, quando o braço enorme do ídolo se espatifou contra ele. Se não fosse pela rapidez do holandês, o braço teria me esmagado como um martelo de alavanca esmagaria uma formiga. Os ecos daquela queda estrondearam como um trovão, através do enorme vazio, ecoando repetidamente de coluna em coluna, como trovoada nas montanhas, enquanto nos agachávamos trêmulos ao lado do altar, atordoados pelo tumulto – como dois insetos perdidos na cumeeira da terra. Percebi que eu ainda agarrava o cilindro, embora uma parte dele houvesse sido destruída pela arremetida daquele braço assassino, que por pouco não me acertara.

- Você salvou minha vida, holandês – eu disse rudemente. – Não esquecerei.

Ele estremeceu, como com uma náusea violenta:

- Vamos sair daqui.

Descemos correndo aqueles degraus estupendos, nos sentindo como se estivéssemos descendo a encosta de uma montanha. E, quando vimos a luz cinza da porta aberta atravessando aquela floresta primitiva de pilares rígidos, um pânico cego tomou conta de nós e corremos como homens saindo do Inferno; e os ecos de nossa fuga foram distorcidos entre as colunas, até soarem como se uma coisa saltadora e rangente galopasse atrás de nós, embora, olhando para trás, eu nada visse. Alcançamos a porta, nos lançamos através dela numa espécie de frenesi e, num medo irracional, a batemos e trancamos atrás de nós, e recuamos quando as dobradiças emitiram um guincho que soou como uma risada demoníaca.

Não olhamos para a porta; não desejávamos ver aquela imagem pavorosa aparecer de novo. Demos a volta – e paramos espantados. O sol não havia se erguido há muito tempo, quando havíamos entrado no templo. Agora estava se pondo, uma bola dourada contra o azul, no oceano ocidental. Havíamos perambulado durante um dia inteiro entre aqueles pilares labirínticos? Mais uma vez, um estranho pânico tomou conta de nós e fugimos descendo as encostas da colina, até as árvores e os vales apagarem a visão daquele templo misterioso – o qual parecia enorme por fora, mas, de alguma forma, não com a espantosa imensidão de dentro.


4)

Afundamos na relva, cansados, quando estava escurecendo, e encontrei o cilindro que eu havia tirado do altar. Perdido no templo, fiquei a ponto de arremessá-lo na escuridão com uma praga de fúria irracional, como a causa de nossos apuros, mas eu o havia finalmente enfiado no meu cinto. Agora eu o trazia e, na luz decrescente, descobrimos que aquilo era um tipo de pergaminho coberto por hieróglifos, e percebemos quando o tiramos. No entanto, estava muito escuro para ler, de modo que eu o pus de lado até a lua aparecer.

- Olhando o assunto na luz clara da razão lógica – eu disse –, o que você conclui de tudo isso, holandês?

- Falando da porta, primeiramente – ele disse reflexivo –, não sei o que dizer do fato dela não manter marcas, embora eu suponha que aquele povo antigo tivesse sua arte de fazer coisas que estão perdidas para o mundo de hoje. Quanto ao esqueleto, apareceu quando olhamos para ele e desapareceu quando paramos de olhar. Von Kaelmann sempre sustentou uma teoria fantástica: já viu uma tinta invisível, que só aparece quando você acende fogo perto dela? Sim. Von Kaelmann disse que ele acreditava ser possível desenhar figuras, de modo que, a um olhar de relance, a tela ficaria vazia, mas a figura apareceria quando você olhasse. Em outras palavras, o foco dos olhos atuaria exatamente como o calor sobre a tinta invisível, compreende?

- Pode ser – assenti. – Mas, e quanto às escadas e à ilusão de altura?

Ele abriu suas mãos enormes, num gesto de impotência:

- Não sei. Talvez aqueles povos antigos tivessem um dom de hipnotismo, que poderia se aderir a lugares e coisas, como uma runa ou uma maldição. Pode ter sido assim que aquilo caiu sobre nós; do contrário, por que a crença em maldições e encantamentos? Você sabe que o templo não era tão grande quanto parecia. Seria impossível. Com certeza.

A lua havia finalmente subido, inundando a terra com sua luz prateada, e o holandês se curvou sobre o pergaminho que crepitava em suas mãos enormes, forçando seus olhos para ler ao brilho suave. Eu me lembrarei daquela cena pelo resto de minha vida.

Anos deslizarão sobre pés silenciosos, e a morte me encontrará no anoitecer do Tempo, antes que eu me esqueça do bizarro esplendor frio do luar, prateando as colunas de mármore e os santuários arruinados que se erguiam ao nosso redor, o tremeluzir do oceano escuro através do silêncio, as árvores escuras e a voz do holandês se erguendo e caindo num incessante som uniforme, e panoramas estonteantes de eras perdidas percorreram nosso olhar.

Pois aquele pergaminho era a história de uma era desaparecida, um império caído no pó da ruína e da decadência. O holandês o leu alto, tropeçando através de frases não-familiares, embaralhando bizarramente seu Inglês. A história começou abruptamente, pois parte do pergaminho estava rasgada.

- “Então eu, Nayah da Cidade Brilhante, senhor da magia para Nyulah de Mu, alto-sacerdote de Xultha, fugi para as montanhas altas de Valla; Valla, que apóia as estrelas. Lá eu me abriguei e me revoltei contra os reis de Mu, que negaram Poseidôn e adoravam o Primeiro Deus, o sombrio e inominável Xultha, o Homem-macaco. Primeiro, em cavernas bem abaixo da terra, escavadas na pedra sólida do penhasco, nos curvamos diante da imagem de Xultha. Então, o conflito surgiu entre os reis de Mu, e Nyulah, o usurpador, se revoltou e apossou-se do verde trono de jade de Mu. As imagens de Xultha, ele construiu em lugares altos e derrubou as formas de Poseidôn que brande o tridente, o falso deus de Karath. No alto, entre os penhascos de Valla, o que ergue as estrelas, ele construiu sua cidade de prazer, Na-hor, a Cidade da Lua Crescente. Lá, ele construiu a pirâmide da Mulher-Lua, e lá ele construiu arvoredos na antiga ordem de Mu, que expressava o sol, a lua e as estrelas; e os planetas, que pendem móveis no firmamento, mas giram para sempre ao redor do sol. Lá, ele fundou academias de arte, ciência, magia e feitiçaria, e lá, eu, Nayah, alto-sacerdote do Deus Macaco, procurei por conhecimentos místicos e pelo conhecimento das eras passadas. O passado abriu seus livros para mim, e os elementos do fogo, da água, da terra e do ar deram seus segredos para mim.

“A sabedoria não me foi negada, nem o poder, nem o conhecimento. Cresci enormemente em cultura, e meus sacerdotes partiram para todas as terras do mundo – para a Valúsia e os Sete Impérios, as Ilhas dos Mares e a terra pagã da Atlântida. Eles levaram a palavra de Nayah, trombeta de Xultha, o Deus Macaco, e os santuários de Xultha se ergueram em muitas terras, exceto na antiga Valúsia, onde os homens se curvavam à Serpente, como na juventude da terra.

“Então Poseidôn se ergueu, sacudiu sua cabeleira e agitou os mares contra Mu. Os mares de cabeleiras brancas se ergueram contra a terra de Mu, e a terra foi rasgada em pedaços e afundou sob o trombetear dos cavalos de Poseidôn. As ondas brancas destruíram as 20 cidades, e o povo de Mu pereceu aos milhares e aos milhões. O reino escarlate de Mu deixou de existir, e os tubarões brancos nadaram através dos templos submersos e dos santuários desaparecidos. Exceto em Valla, os sustentadores das estrelas, que se erguiam acima dos oceanos verdes, como um conquistador se ergue acima dos mortos. Os anos se passaram. Dos penhascos de Valla, que agora eram as ilhas de Mu, saíram os remanescentes do povo de Xultha. Foram para sul, leste, oeste e norte. Abrigaram-se em ilhas, e encontraram novos e estranhos continentes erguidos das profundezas. Então, os selvagens vieram descendo do norte, e o povo pereceu e afundou diante deles. Mas, nos penhascos de Valla, floresceu Na-hor, cidade da lua e das estrelas. Aqui, o último do povo de Mu viveu em ócio e bem-estar. Aqui morou eu, Nayah, o feiticeiro, pois eu fiquei bêbado do elixir da vida, conhecido apenas por mim mesmo. Eras se passaram. Reis governaram e morreram. Novas terras se ergueram das profundezas e afundaram. A raça de Mu, filhos do mar verde, desapareceu como neve sobre os picos mais altos de Valla. Vivi sozinho – eu, Nayah. O alto-sacerdote de Xultha, divino e imortal. Os séculos se passaram. Nenhum homem viveu sobre a ilha de Mu, exceto Nayah – Nayah e o filho de Xultha, para quem concedi imortalidade, nos dias de grandeza de Mu: Ka-ha, o último dos filhos de Xultha.

“Então, os mares foram preenchidos por esquadras de guerra, e as canoas dos bárbaros assolaram as terras de leste a oeste, e de norte a sul. Os oceanos ficaram cheios de guerra e, sobre os penhascos acima das marés verdes, entalhei as formas de belas mulheres e, acima delas, buracos nas rochas, para que a música atraísse os selvagens homens do mar até sua condenação. Houve guerra no mar, e até uma canoa, com dois homens que lutavam um contra o outro, se espatifou nas ondas e ficou encalhada na praia. Os tubarões levaram todos, exceto dois, que abriram caminho à terra e fizeram um pacto um com o outro, pois estavam cansados da batalha. Então, no escuro, enquanto eles dormiam, o filho de Xultha se aproximou furtivamente e os matou”.

O holandês parou de súbito e me olhou furtivamente; eu também havia sentido o brilho lúgubre do reconhecimento e da lembrança se aproximar furtivamente de mim, à primeira menção daqueles dois homens da idade da pedra que haviam morrido há tanto tempo – mais uma vez, obscuramente, vieram as lembranças vertiginosas de golfos de tempo, oceanos e eras. O holandês continuou:

- “Os séculos continuaram passando. Mais uma vez, os mares rugiram para a canção de batalha, e botes de guerra colidiram na maré. Uma grande esquadra foi despedaçada na onda da praia, e dois homens foram lançados à terra”.

Arrepios gelados começaram a percorrer minha espinha de cima a baixo, e vi o holandês estremecer involuntariamente, olhando rapidamente para trás de si.

- “Eles fizeram as pazes como antes, e então, eu, observando secretamente, os reconheci como aqueles que haviam chegado antes. Eu os segui de longe e eles foram até o vale que fica sobre a inclinação sul de Valla. Lá, numa caverna, eles caíram no sono...”.

Eu estava me curvando para a frente, mal ouvindo. Mas uma vez, eu sabia, eu me lembrava! Golfos de tempo e espaço, oceanos de eras, mares de eons, mas eu me lembrava!

- “Lá, eu caí sobre eles e entrelacei um encanto de magia. Eu os enfeiticei. Acordaram e mataram um ao outro com espada e adaga, homem contra homem. Agora sei que isto é destino, pois eles virão novamente, e mais uma vez novamente, através das eras. Virão e morrerão, pois a maldição de Xultha está sobre eles e sobre sua tribo”.

Mais uma vez, o holandês me olhou de relance e, mais uma vez, os arrepios gelados desceram por minha espinha. Ele prosseguiu com a história:

- “A corrente do destino os amarra à ilha de Mu; eles, e somente eles, entre todos os homens da terra colocarão o pé sobre os penhascos de Valla. Pois o filho de Xultha se cansa das frutas”.

Uma exclamação sobressaltada irrompeu do holandês, e suor frio brotou de minha testa por um instante. O holandês continuou a história:

- “Então eu entrei nas cavernas secretas onde se ergue o ídolo de Xultha, sobre cujo santuário sacrifiquei o último filho da raça de Mu e tornei imortal o demônio do mar que se esconde aqui, para que ele possa se banquetear com os filhos dos homens e matar aqueles que se aventurarem perto da ilha de Mu.

“Todas as maravilhas que já fiz, eu agora escrevo em pergaminho e coloco no santuário do Deus Estranho, o Deus-que-é-desconhecido. Lá naquele templo, fiz uma grande magia, uma magia desconhecida aos filhos dos homens, e a morte se espreita lá para os filhos dos homens, pois a sabedoria que proferi não é para mortais. Sou Nayah! O mar se ergue esta noite e a voz de Poseidôn está no céu. Os corcéis de crinas brancas correm ao longo dos penhascos, e as vozes dos deuses de Mu rugem acima das ondas verdes. Sou Nayah e sou um deus! Sou maior que Valka, maior que Hotar, Zukala ou Poseidôn! Sou maior que Xultha, maior que o Deus Desconhecido! Nayah, deus dos mares”.

O holandês abaixou o pergaminho e expirou intensamente. A lua se avermelhava ao afundar no oceano ocidental, e a escuridão que precede a aurora estava se espalhando sobre as águas e a terra.

- Ianque, o que você acha?

- O velho garoto acabou enlouquecendo, eu acho – respondi.

- Sim, mas você ouviu. O elixir da vida! Ele ainda está vivo; está em algum lugar desta ilha! Foi ele que tentou nos matar!

Hesitei.

- Não... – um pensamento repentino me atacou. – Xultha... o ídolo na caverna... meu Deus, holandês, o filho de Xultha!

Ele me encarou boquiaberto.

- Sim, é isso – ele sussurrou. – O filho de Xultha! A imagem viva do deus-macaco!

- Então, a coisa é apenas algum tipo de macaco – eu disse. – O manuscrito diz claramente que Xultha era um Deus-Macaco, e o ídolo na caverna parecia um gorila...

Enquanto eu falava, percebi uma sensação arrepiante de dúvida – a coisa parecia tão horrivelmente humana.

- Macaco ou demônio – sussurrou o holandês –, esta é nossa sina; eras atrás... ele... nos matou...

- Cala a boca! – as palavras explodiram de meus lábios sem minha vontade consciente; foram instintivas; recuei de ouvir, em palavras, os pensamentos pavorosos que pairavam no fundo de minha mente. Eu havia me perguntado, ao discutir a possibilidade de reencarnação, por que um homem, se reencarnasse, não conseguia se lembrar de suas vidas; agora eu via que o passado era encoberto por escuridão e horror, em experiências que despedaçariam a mente e a alma de um homem, se ele pudesse trazer à tona todas as lembranças. A mente daria voltas e se esmigalharia diante dos séculos obscuros, os mares do Tempo...

Olhei para o leste, recém-empalidecido pela aurora e mal dedilhando a relva. O holandês, com olhos remelosos e injetados de sangue, reexaminou avidamente o manuscrito. Súbito ele exclamou, uma alta tensão de interesse evidente em sua voz; ela estava alta e forçada.

- Ianque, ianque... ouça... meu Deus, ianque! Ele... diz... ele diz que o elixir da vida está escondido em algum lugar da ilha...

Estremeci, minha mente tentando agarrar a importância terrível das palavras do holandês.

- Ianque! – ele guinchou. – O elixir! Nós o encontraremos... o beberemos... viveremos para sempre.

Um frêmito estranho me percorreu a espinha. Isto era, de alguma forma, quase uma blasfêmia.

- Estou indo dormir agora – repliquei e, me lançando na grama, no momento em que o sol se erguia sobre o mar, adormeci rapidamente.

Acordei ao final da manhã, e o holandês ainda estava debruçado sobre o manuscrito.

- Eu estava tentando encontrar alguma pista, sobre onde o elixir está escondido – ele disse, respondendo à minha pergunta. – Você sabe que há muitas palavras nos escritos que não consigo traduzir.

- Você fez melhor do que muitos estudantes conseguiriam fazer numa vida – eu disse. – Quem é você, afinal, holandês? Você não é um rato-do-mar comum.

Ele encolheu seus ombros gigantes, em sua particular maneira impotente.

- Sim, ianque, é tudo o que sou considerado. Um pouco colegial, um pouco estudioso, apenas um conhecedor superficial, só isso. Von Kaelmann me ensinou tudo o que sei que vale a pena.

Assenti, refletindo sobre a tendência dos homens em procurarem explicação de conhecimento em alta estirpe e passado romântico; sabendo que os verdadeiros gigantes vêm da raça de homens comuns, se esforçando para crescer com a força do desespero.

- Ouça – ele disse, dobrando o pergaminho. – Não consigo achar nada aqui. Vamos subir as colinas e procurar. Acredito que o elixir está escondido em algum lugar fora do caminho, onde as pessoas não pensariam em procurá-lo.

- E quanto à Coisa que estamos caçando? – perguntei.

- Parece que a tiramos do rastro – ele disse.

- A idéia fugiu dele – eu disse furiosamente. – Subimos até aqui para matá-lo, se pudéssemos achá-lo em local aberto. Ele, ou aquilo, passa a maior parte do tempo escondido naquelas cavernas dos penhascos do norte, apesar do polvo.

- Vamos subir as colinas – ele repetiu, e assim nós finalmente subimos as colinas, sem, no entanto, voltar sobre nossos mesmos passos. Lá nós passamos a tarde numa busca mais ou menos a esmo, encontrando apenas as ruínas de sempre, cuja regularidade estava se tornando monótona. O holandês leu alguns dos hieróglifos, e viu que eles eram sobretudo dedicações de templos a alguns dos vários deuses. A mitologia da antiga Mu, pelo que pudemos colher, parecia ter sido primeiramente centralizada na adoração de Poseidôn, depois Xultha, para ambos os quais um enxame de deuses menores era subordinado, tais como A Mulher-Lua e suas irmãs, as Donzelas das Estrelas; Zukala, o arranjador de almas; Valka, o deus da fertilidade e da vegetação, e Hotah, o deus da guerra.

O holandês disse, pelo que conheceu das teorias de Von Kaelmann, e pelo que colheu dos escritos nas colunas, que o culto a Poseidôn deve ter sido uma ordem mais alta que o de Xultha. Os sacerdotes de Poseidôn tinham um conhecimento profundo de sistemas solares, e do efeito da lua e marés, e seu culto era baseado em maré e planetária causa e efeito. A mudança para a adoração de Xultha foi um passo para trás, uma reversão para uma forma mais escura e primitiva de crença, ou senão uma religião adotada de alguma tribo mais sombria de pessoas ou credos.

Esta mudança havia, evidentemente, sido feita apenas pelo sacerdote Nayah, que achou que, evidentemente, tinha mais conhecimento de ciência natural do que os sacerdotes de Poseidôn; estava desejando usar, para seus próprios objetivos, um credo que ele sabia ser falso e sangrento. E nós achamos, o holandês e eu, que seu espírito maligno ainda estava à espreita sobre a ilha, se de fato não estivesse lá em verdadeira realidade.

Dormimos naquela noite, despreocupados sobre a relva, como era nosso costume; um vigiando enquanto o outro dormia e, enquanto eu dormia lá, uma visão estranha e vívida quebrou as brumas de meu sonho. Um penhasco rugia para dentro do ar e, em meu sonho, eu o reconhecia como um dos penhascos da ilha, embora eu não participasse de modo algum do sonho. As ondas saltavam e passavam correndo por este penhasco, e batiam alto contra ele, parecendo querer derrubá-lo entre eles. Lá em cima do pico mais alto do penhasco, se erguia uma figura estranha. Era um homem, mas um homem estranhamente diferente daqueles que conhecia quando estava acordado. Era bem alto e magro, com uma impressão de incrível idade. Estava lá, braços esqueléticos abanando selvagemente, barba branca soprada pelo vento; era noite, e os mares saltavam em fúria branca. E percebi, de alguma forma estranha, que a noite estava cheia de sons gigantescos, e rostos e formas monstruosos, para este homem. Todas as eras passadas berraram para ele nos ventos, e as ondas e aparências de deuses esquecidos rugiam para ele através da noite. Então, com um selvagem grito exaltado, que meu eu sonhador sentiu mas não pôde ouvir, ele lançou os braços para cima e saltou do penhasco, um braço brandindo por um instante as paredes do mar que corria; então, as ondas saltaram e bramiram onde ele afundou.

Acordei com suor frio em mim, para olhar para a calma serenidade das árvores imóveis e ruínas silenciosas. E o holandês roncando na grama, a poucos metros de distância. Uma bela forma de montar guarda, eu refleti, considerando nossas experiências passadas. Mas o homem está sempre propenso a relaxar sua guarda, quando o verdadeiro perigo parece ser removido. Não acordei o holandês, mas me sentei, ainda abalado pelo meu sonho, para fazer a vigia dele além da minha.






(*) – Baú de Davy Jones: Expressão usada para definir o fundo dos oceanos e mares (Nota do Tradutor).



Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte:  The Dark Man – The Journal of Robert E. Howard Studies.

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Károly Mazak, da Hungria.


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