Velas Vermelhas


(por Trescuinge)


Valéria da Irmandade Vermelha fechou sua luneta e virou-se para seu contramestre:

- Um ótimo e gordo navio mercante zíngaro. Vamos colidir nele e ver como está a colheita.

- Sim, mãe – a garota disse, sacudindo os abundantes cabelos negros de seus olhos azuis. Corania tinha apenas 16 anos, mas já era o membro mais alto da tripulação. Uma pirata amadurecida, sua espada era temida por todos os homens das Ilhas Barachas. – Você viu a linha de nevascas que vem do leste?

- Temos tempo, antes que elas cheguem.

Valéria atravessou o corrimão que separava o tombadilho do poço do navio, a pata de gato de marfim na extremidade de sua perna de pau batendo de leve no convés de teca.

- Aos seus postos, irmãos! – ela gritou. – Temos um ganso zíngaro para pegar.

Um brado de exaltação a respondeu, enquanto sua tripulação heterogênea de piratas endurecidos corria para se armar. A Feiticeira se erguia, o mar borrifando de um lado a outro do peito sobressalente de sua carranca esculpida em madeira. Com o vento em sua popa, eles se aproximaram rapidamente do navio zíngaro.

A gorda galé mercante nem sequer os viu, até ser tarde demais para escapar. Quando o navio baracho foi finalmente visto, seguiu-se um alvoroço de atividade frenética. Os zíngaros, ao invés de darem a volta para fugir, tomaram vários rumos diferentes, como se o capitão estivesse incerto sobre o melhor caminho para escapar. Os patifes da Irmandade Vermelha gritavam zombeteiramente e bradavam insultos em direção ao desconcertado mercador.

A indecisão aterrada do navio de carga significava que uma curta perseguição trouxe a Feiticeira para o lado do zíngaro. A capitã pirata julgou cuidadosamente a velocidade e posição dos dois navios.

- Abaixar! – Valéria ordenou aos homens nas adriças da vela principal.

A vela caiu até o convés e a esguia embarcação pirata, mas seu impulso e a vela da bujarrona carregaram a Feiticeira para junto de sua presa.

- Ganchos de abordagem! – Valéria gritou.

Piratas musculosos lançaram as fateixas e seus companheiros uivantes foram até as linhas, arrastando o navio mercante para mais perto do navio baracho. Já estavam contando sua pilhagem.

- Mãe, veja! – Corania agarrou Valéria pelo ombro e apontou para o convés do navio zíngaro. Os membros da tripulação da embarcação mercante não corriam mais sem direção e em pânico. Na verdade, estavam tirando seus robes para revelar túnicas azul-escuras e douradas.

- Navegantes zíngaros! – Valéria praguejou sulfurosamente. – Que o sangue de Crom queime seus olhos, é uma armadilha!

A flecha de uma balestra estilhou o parapeito entre suas mãos, seus camaradas que seguiam cantaram enquanto elas zuniam pelos ouvidos dela. As escotilhas no convés zíngaro foram lançadas violentamente para o lado, e uma investida de homens em azul-escuro se moveu violentamente de dentro do forte do navio mercante. O outro navio estava abarrotado com a melhor infantaria do mundo! Gritos de pânico saíram do poço da Feiticeira.

- Soltem aquelas linhas! – Valéria gritou para os piratas nos ganchos de abordagem, mas era tarde demais. Antes que os piratas pudessem reagir, uma onda de homens em azul-escuro havia se aglomerado de um lado a outro desde o falso navio mercante. O próprio grupo de barachos na prancha remoinhava confuso, enquanto os zíngaros ganhavam o convés da Feiticeira. Houve uma pausa momentânea, e logo a mera visão de seus inimigos tradicionais fez ambos os grupos soarem seus gritos de guerra e investirem com variados tipos de piques, lanças e espadas. De fato, eles se voltaram à sua ocupação de sempre, de matança e mutilação, com tal prazer que logo os outrora limpos conveses ficaram cobertos por sangue escorregadio e partes decepadas de corpos.

- Ktalor! – Corania gritou para um dos piratas mais experientes. – Fique nesta cana do leme.

A garota puxou sua espada e então, acenando com a cabeça para a mãe, correu para dentro da batalha. Valéria puxou sua própria lâmina e também se lançou para dentro da refrega.

Nos primeiros minutos, ficou evidente que os piratas controlavam os dois grandes conveses na proa e popa, enquanto os zíngaros mantinham o convés principal do poço. Este convés menor logo ficou abarrotado de uniformes azuis e dourados, que corriam em direção às passagens que guiavam até os baluartes barachos.

Lado a lado, Valéria e sua filha defendiam a base das escadas que davam acesso ao tombadilho. As duas mulheres lutavam com uma selvagem harmonia que lançava uma canção de morte através do navio. Corania se lançava ao combate com completo abandono, e novamente e novamente seus oponentes morriam quando ela se arremessava até eles, num borrão de aço afiado e membros que apunhalavam e emaranhavam. Sangue jorrava, aço cantava contra aço e os gritos embotados dos moribundos afogavam o vento. As duas mulheres continuavam lutando implacáveis, incansáveis e impiedosas; verdadeiras filhas da Irmandade Vermelha.

Por toda parte, havia um redemoinho de aço, enquanto a morte andava altivamente pelos conveses ensangüentados do navio pirata. Piratas e marinheiros matavam e morriam numa massa ofegante de humanidade. Atos imortais de coragem e humanidade passavam ignorados pelas memórias vacilantes dos combatentes. No entanto, despercebidos enquanto as duas tripulações lutavam e morriam, os céus escureceram e os ventos começaram a tentar rasgar os dois navios que travavam um combate tão letal.

Valéria sacudiu o cabelo caído sobre o rosto e olhou ao redor do céu. Seu peito arfava e seus membros tremiam devido ao esforço inumano.

- Aquelas nevascas vão nos atingir a qualquer minuto – ela ofegou. – Temos que cortar os ganchos de abordagem e tentarmos nos livrar da tempestade!

Corania assentiu em compreensão:

- Segure-os aqui. Vou cortar as linhas!

A garota saltou para a frente, abrindo seu caminho aos empurrões através da multidão de combatentes. Lâminas zíngaras giravam perversamente ao seu redor, mas ela se movia com a rapidez e a flexibilidade de uma pantera. Alcançou a primeira linha de faixetas e a cortou com um só golpe de sua lâmina. Então voltou a enfrentar a arremetida de inimigos que desceu sobre ela. Ela se livrou de duas espadas que lhe buscavam os órgãos vitais e enfiou sua lâmina num rosto rosnante, antes que o navio se erguesse quando o vento esfriou. As duas embarcações se afastaram uma da outra, e a moça foi capaz de correr até a última linha de ganchos.

Tarde demais, os zíngaros perceberam o que estava acontecendo, e assobios estridentes soaram desesperadamente para recuar, chamando os marinheiros de volta ao seu próprio navio. O último deles precisou mergulhar sobre o lado e nadar, enquanto o navio zíngaro era levado pelo vento que esfriava rapidamente.

Ofegantes e ensangüentados, os barachos olharam consternados ao redor. Seus conveses sacudidos pela tempestade estavam entupidos de mortos e moribundos. Furiosas nuvens negras haviam bloqueado o sol e uma luz esverdeada preenchia o céu. O vento guinchava através das adriças, e a Feiticeira era levada impotente através das ondas que rolavam. Relâmpagos atacavam a cada lado da embarcação que balançava selvagemente, e lençóis de chuva lavavam violentamente o sangue dos conveses. Todos os piratas esqueceram a batalha recente, quando se esforçaram desesperadamente para manter a Feiticeira sobre a água. Corania e Ktalor se esforçavam na cana do leme, tentando evitar que o navio fosse engolfado pelas ondas gigantes que se erguiam acima deles por todos os lados.

- Corania, corra à frente do vento! Carregaremos somente as velas suficientes para nos levar adiante – Valéria disse, antes de se voltar para a metade da embarcação. – Limpem o convés, irmãos; lancem esses corpos sobre a amurada! – Ela apontou para dois de seus homens: – Mão de Ferro, Cernoserke, lancem a âncora ao mar!

O navio zíngaro havia desaparecido, e seu mundo foi amarrado por ondas monstruosas e cortinas impenetráveis de chuva. Horas se passaram, enquanto a Feiticeira era golpeada pela tempestade. Lutaram ferozmente para ficar sobre a água. Os ventos estridentes deixaram suas velas em farrapos e as ondas implacáveis lhe espancavam o casco. O dia virou noite e então amanheceu novamente, antes que a tempestade começasse a diminuir. Os raios do novo sol revelaram um matadouro de navio. A pobre Feiticeira estava afundando rapidamente, mas quando uma série de vagas no mar o ergueu, eles avistaram uma pequena ilha se erguer do mar.

- Não há ilhas neste trecho do oceano – Valéria disse à sua filha. – Não gosto do aspecto daquele porto, mas acho que não temos escolha. Teremos de nadar até ele.

Ela foi à frente para cima da amurada, a tripulação restante seguindo-a cegamente. Alguns não sabiam nadar, mas se agarravam de forma otimista a pedaços desgarrados e flutuantes do navio que afundava.

Esforçando-se para nadar com sua perna de pau, a capitã pirata acenou para os deploráveis sobreviventes de sua tripulação.

- Vamos, cães-irmãos; são apenas três quilômetros. Pagarei uma rodada na primeira taverna para onde formos!

Eles saíram, formando uma linha irregular. Nadaram implacavelmente, cada um deles esperando pela rápida arremetida por baixo, que sinalizasse um ataque de tubarão. Valéria avançou penosamente, de espada na mão, seus músculos abdominais tremendo ao imaginar os lobos famintos do mar circulando nas profundezas sob ela.

No entanto, estavam bem perto da ilha, antes que ela sentisse um vagalhão na água, e algo atacasse de baixo para engolir um dos piratas. Os outros ouviram o ataque explosivo e viram a breve agitação, quando um baracho desapareceu sob a superfície. O homem atacado nem ao menos gritou.

Os piratas restantes apressaram o passo, desesperados para escapar do mar faminto. O próximo homem a ser atacado conseguiu soltar um grito desesperado, antes de desaparecer sob as ondas. O ataque fora repentino e incrivelmente rápido, mas um arrepio percorreu o coração de Valéria, quando reconheceu os tentáculos chicoteadores que envolviam o homem desafortunado e o arrastavam sob as ondas.

- O que é isso? – gritou Corania.

- Uma siba! – Valéria respondeu.

A siba era temida por todos que navegavam as ondas. Rápida, voraz e quase invisível – exatamente uma das criaturas capazes de consumir uma tripulação inteira em minutos. Os tentáculos contorcidos conseguiam arrancar um homem do convés de uma galé em alta velocidade, e o veneno da mordida de seu bico bem afiado despedaçava suas vítimas indefesas, antes que tais desafortunados fossem engolidos e completamente digeridos.

Destemida, Valéria reuniu sua coragem e apertou sua espada com mais força. Que venha este diabo das águas; Valéria da Irmandade Vermelha não será presa fácil! Ela calculou o ângulo do último ataque, o tempo transcorrido entre os dois ataques, e caiu para trás e nadou para o lado direito do frenético grupo de piratas que nadavam.

Outra vez, Valéria sentiu o mar se mover sob ela, e estocou cegamente com a espada. O aço afiado entrou, não na carne sólida de um animal terrestre, mas numa massa gelatinosa de músculos esponjosos. Sua espada atacou, e ela foi rapidamente arrastada através das ondas, a água lhe jorrando para dentro do nariz, enquanto seu rosto era forçado para cima dentro das ondas. Tentou desesperadamente enfiar a espada mais fundo nos órgãos vitais da criatura, mas esta mergulhou, livrando-se da mulher quando a lâmina lhe afundou mais ainda em seu elemento nativo.

Valéria nadou desesperadamente até a superfície, e logo avançava em direção à segurança da ilha próxima. Sua tripulação agora estava à sua frente, levantando uma espuma de água do mar enquanto corriam em direção à praia. Ela se agitava através da água, na expectativa do horrível abraço esponjoso da siba monstruosa a qualquer momento sob as ondas. Incrivelmente, a criatura não retomou seu ataque, enquanto a pirata lutava contra as ondas e, a cada respiração ofegante e braçadas vacilantes, aproximava-se do refúgio de terra seca.

No momento em que pôde ouvir as ondas se quebrando na praia, Valéria estava exausta. Felizmente, ela continuou se esforçando, até sentir uma onda levantá-la e derrubá-la sobre uma praia estranhamente dócil. Tentou deliberadamente rastejar para diante, mas onda após onda fluía para lhe martelar o corpo exausto. Então, ela sentiu mãos fortes nos ombros, e alguém a arrastando para a terra seca. Ofegando por ar, seus membros brancos tremendo de frio e exaustão, ela tentou gaguejar seu agradecimento, mas não tinha fôlego algum para falar.

Então, com incrível rapidez, a siba irrompeu do mar e se ergueu contorcendo sobre a praia atrás de Valéria. Os tentáculos procuradores da criatura chicotearam ao redor da cintura flexível da mulher, e começaram a arrastá-la de volta ao papo aberto e venenoso da criatura. Ela se debateu fracamente contra o abraço horrível do monstro, mas sabia que era o seu fim. Exausta, não conseguia reunir forças suficientes para enfrentar a besta.

Logo viu uma forma mais magra aparecer sobre ela. Ele abanava uma tocha flamejante no rosto sem forma da besta e empurrou o monstro, praia abaixo, para longe do corpo indefeso da mulher. Sem medo, o estranho saltou e enfiou o tição flamejante lá dentro do estômago da besta. Um grito profano e estridente encheu o ar, e o monstro a soltou antes de recuar para dentro das ondas. A capitã pirata despencou para trás e uma estranha escuridão se aproximava dela, enquanto tentava se focar na forma magra de seu salvador, e tudo que conseguia ver era sua barba desgrenhada e cinza, e um par de agudos olhos azuis.

Logo, seu salvador a estava erguendo e lhe arrastando o corpo exausto praia acima. Uma onda de alívio caiu sobre ela, quando a rebentação parou de lhe comichar o corpo. Então ela simplesmente ficou deitada onde as mãos estranhas a deixaram. Seus pensamentos se moviam tão lentamente quanto seus membros, e ela só conseguia encarar, de forma entorpecida, um par de formas que arrastavam sua tripulação restante para longe do mar e sobre o gramado, ao lado de uma fogueira resplandecente.

Finalmente ela sentiu um pouco de vida lhe voltar aos membros. Ergueu-se cambaleante e atravessou a praia, atraída como uma mariposa até as chamas. Um dos estranhos veio correndo e lhe pôs o braço ao redor do pescoço. Agradecida, Valéria se inclinou em seus ombros magros, porém fortes, enquanto cambaleava até a fogueira. Aliviada, ela viu um jovem alto ajudando Corania a subir até o gramado. Logo, ela e os outros barachos nada faziam, exceto se inebriar no calor do fogo, esfregando as mãos azuladas naquele calor até o tremor diminuir.

Finalmente Valéria se voltou para aqueles que a resgataram. O mais velho era pequeno, magro e forte, com cabelos grisalhos e uma barba que parecia nunca ter visto um pente. O outro era um homem alto e jovem, com um rosto agradável e inteligente. Ambos vestiam boas roupas, que estavam um pouco desgastadas.

- Nossos agradecimentos a vocês – ela disse com simplicidade. – Se não fosse por sua intervenção oportuna, não sei quantos de nós terminariam na barriga daquele monstro.

- Não foi nada – disse o mais velho, ruborizado. – E você é bonita demais para se tornar comida de siba!

- Você é tão cortês na fala quanto corajoso! – Valéria riu. – Mas quem é você?

- Sou Alcemides, um sábio da Nemédia, e este jovem é meu sobrinho Vergeras – ele disse. – Estávamos tentando alcançar o Grande Continente Ocidental, quando nosso navio foi atacado por uma besta marinha gigante, e fomos forçados a desembarcar nas praias desta estranha ilha.

- Nosso próprio navio afundou em algum lugar lá no mar, e estávamos todos exaustos pelo nado longo – respondeu Valéria. – Duvido que pudéssemos atravessar a rebentação com nossos próprios esforços, e muito menos nos defender contra aquele monstro.

Ela olhou curiosa ao redor:

- Mas que tipo de desembarcadouro é este? Não creio já ter visto algo igual.

- Esta ilha – disse Alcemides – é puramente o resultado das correntes oceânicas. Os movimentos normais das águas do mar são circulares, como um enorme redemoinho, e faz todo pedaço de destroços e carga de detritos no mar se juntarem aqui. Ao longo do tempo, este amontoado de todo o lixo oceânico se solidificou numa massa flutuante, suficientemente estável para sustentar a vida humana.

- Este parece ser um lugar sobrenatural. Mora gente aqui?

- Há uma aldeia, mas o povo é tão estranho quanto suas moradias, e temos hesitado em fazer contato com eles – disse o sábio.

- Bom, eu não acho que a Irmandade Vermelha precise temer um bando de náufragos – disse Valéria. – Vamos visitar esta aldeia e ver se podem nos ajudar a retomarmos nosso caminho.

As margens externas da ilha flutuante eram quase todas feitas de alga marinha solidificada por ossos de peixe. Esguichava e cedia levemente a cada passo. À medida que os piratas adentravam a ilha misteriosa, a superfície ficava mais firme sob seus pés e eles começaram a encontrar pedaços maiores de ruínas. Esqueletos de baleia, navios quebrados, pedaços pequenos e desgastados de templos e palácios exóticos, brinquedos de criança, escudos despedaçados... toda e qualquer coisa capaz de flutuar sobre as águas havia sido arrastada para dentro da ilha flutuante. Aqui e ali, uma palmeira ou um carvalho havia brotado de uma noz ou glande flutuante.

- Não é...? – o grisalho pirata Ktalor disse, apontando para a proa de um navio embutido na superfície emaranhada da ilha.

- Sim, é! O navio de Bêlit, desaparecido durante todos estes anos! – disse Cernoserce.

- Bêlit? – disse Corania. – Esse nome soa familiar!

- Uma vagabunda shemita! – Sua mãe riu com desdém. – Ela costumava vagar pelos mares, com uma tripulação inteira de corsários das ilhas do sul. Só Mitra sabe o que ela fazia naquele navio!

Os náufragos barachos subiram no navio. O Tigresa havia obviamente sofrido um incêndio, as pranchas de madeira estavam tortas e os mastros quebrados.

- Você sabe – disse Mão de Ferro. – Precisamos estar dispostos a consertar este estrago e, se conseguirmos tirá-lo deste chão, logo poderíamos arrastar o navio até a praia e fazê-lo flutuar.

- Você não pode estar falando sério! É um navio naufragado! Nunca navegará novamente! – Valéria disse.

- Disseram o mesmo de você, quando a bola de uma catapulta argoseana esmagou sua perna – disse Cernoserce.

Valéria balançou pesarosamente a cabeça.

- Tudo bem, você então fica aqui com o restante da tripulação. Corania e eu seguiremos os dois sábios até a aldeia.

- Não seria melhor simplesmente cortar agora as gargantas dos nemédios, e acabar com eles? – Ktalor falou em voz baixa.

- Por que tanta sede de sangue? Eles parecem bastante inofensivos, e um deles salvou minha vida.

- Não gosto do jeito como o mais novo olha para Corania. Ela é apenas uma garota, e não sabe do que os homens são capazes! – disse Mão de Ferro, e todos os outros piratas murmuraram concordando.

Valéria examinou sua filha. A garota estava afiando sua lâmina com marcas de batalha, contra um lastro de pedra há muito esquecido. Vergeras pairava atenciosamente diante do ombro dela. O jovem corava violentamente toda vez que a garota saía do caminho dele.

- Acho que ela pode tomar conta de si mesma – Valéria disse. – Os nemédios viverão... por enquanto!

A aldeia ocupava o ponto mais alto da ilha, suas casas curiosamente construídas com os pedaços de destroços e de cargas de detritos que se misturaram para formar a ilha.

Os habitantes da aldeia, como sua própria terra natal, eram um conglomerado de tudo o que fora arrastado à praia daquela ilha. Olhavam sombriamente, mas nada fizeram para impedir os intrusos. Os próprios recém-chegados olhavam embasbacados para as cabanas de estranho feitio que se amontoavam contra o caminho. Ruelas em desordem serpenteavam de forma confusa entre as choupanas.

O próprio ponto mais alto da ilha, uma montanha em miniatura de lixo no centro exato da ilha, estava coroado por um curioso objeto de pedra. Parecia ser o tronco e os galhos quebrados de alguma árvore exótica. Ela tinha um brilho oleoso à luz pálida do sol, e emitia um frio lúgubre que lembrava desagradavelmente a Valéria uma forca.

Em frente a este monte singular de terra, havia um ancião. Ele outrora havia sido alto, e seu cabelo escorrido e grisalho lhe cobria o rosto, mas falava com eles numa voz grave e macia.

- Bem-vindos, forasteiros! – ele disse. – Bem-vindos à nossa pobre terra de exílio.

Valéria deu um passo à frente, seu punho repousado sobre o quadril, próximo à sua espada curva:

- Obrigada. Somos navegantes barachos. Nosso navio afundou, mas tivemos sorte de achar abrigo em sua bela ilha.

- Piratas barachos, você quer dizer! – disse o ancião, gesticulando de forma depreciativa com a mão.

Valéria deu de ombros:

- Todos que seguem o mar já experimentaram um pouco de pirataria, de vez em quando.

Um sorriso fácil cruzou a face do insular.

- Isso mesmo – ele disse. – Sou Ranog, o líder de nossa pobre comunidade; venham comigo, e nós lhes abasteceremos com um pouco de comida e bebida. – Lançou os cabelos para trás, revelando um olho azul como o céu e outro inchado e vermelho, que estava quase saindo de sua órbita. Seu olho normal os observava calmamente, mas o olho injetado de sangue perambulava independente e inquietamente sobre os recém-chegados, antes de finalmente descansar em Vergeras com olhar faminto.

Valéria estava enervada, mas tentou não demonstrá-lo em sua voz:

- Apreciamos a oferta, mas não podemos permanecer por um longo tempo. O restante da nossa tripulação montou acampamento na trilha atrás de nós, e espera que voltemos logo.

Ranog abriu novamente seu sorriso falso e acenou para que prosseguissem:

- Todos são bem-vindos! Traga sua tripulação mais tarde! Todos serão abastecidos!

A cabana do líder não era maior que qualquer uma das outras, mas todos estavam reunidos e comiam uma refeição de peixe e algas. Os habitantes da ilha pareciam bastante amigáveis, mas alguma coisa neles deixava Valéria inquieta – especialmente o aspecto faminto e ansioso de seu líder de visão bizarra. Ranog lhes ofereceu o uso de uma cabana na aldeia, mas Valéria recusou, preferindo se juntar novamente aos seus homens.

De volta ao Tigresa, ela ficou aliviada em ver que seus sequazes haviam fortificado seu acampamento com paliçadas de madeira flutuante. Não confiava em nada nem ninguém naquela ilha maldita. Os piratas colocaram uma sentinela a postos e ocuparam o local para a noite.

Valéria não conseguia dormir, apesar de toda a sua exaustão. Emboscada no mar, naufragada e enfrentando um futuro numa ilha bizarra e flutuante, ela estava inquieta e agitada. Finalmente, desistiu de dormir e, afivelando sua espada, foi checar as sentinelas. A lua estava cheia e uma leve brisa lhe agitava os cabelos, enquanto ela se aproximava do primeiro vigia. Ela franziu a testa quando ele não lhe pediu a senha. Caminhou a passos largos até ele e lhe sacudiu o ombro. Ele caiu de bruços sobre o chão e sua cabeça pendeu de forma não-natural para o lado. Ajoelhando-se, Valéria notou que ele estava com o pescoço quebrado!

Seu grito acordou a tripulação e Alcemides. Eles se armaram instantaneamente, mas nenhuma ameaça se materializou na escuridão.

- O que Ranog está fazendo? – Valéria se perguntou. – Por que matar nossa sentinela e não atacar?

- Onde está Vergeras? – perguntou Corania.

Uma busca rápida mostrou que o jovem desaparecera. Os habitantes da ilha devem ter matado o guarda e levado Vergeras sem fazer barulho.

- Vamos subir até a aldeia, pegá-lo de volta! – disse Valéria.

Rapidamente os piratas se organizaram e saíram marchando pela trilha. Ao se aproximarem da aldeia, ouviram um som de tambores à frente. As primeiras cabanas estavam vazias e eles avançaram para dentro do centro da vila esquálida.

O luar prateado brilhou sobre uma cena selvagem. Toda a população estava aglomerada na base do pequeno morro. Os habitantes da ilha entoavam cantos bizarros e oscilavam ao balançarem seus braços no ar. Ranog se erguia no topo da pequena colina, a estranha árvore agora mais parecia um altar obsceno, enquanto o ancião agitava uma adaga de sílex e declamava feitiços medonhos.

Logo, um grupo de ilhéus musculosos apareceu. Uma figura amarrada se debatia no meio deles. Corania gritou, ao reconhecer Vergeras que lutava em vão contra seus captores. Os homens arrastaram o jovem até a árvore e o estiraram sobre sua superfície. O tronco era simplesmente um altar dos deuses desconhecidos dos habitantes da ilha.

Os encantamentos de Ranog ficaram mais altos e frenéticos, e uma névoa parecia cobrir a lua.

- Zarono! Zarono! Agro! Yam! Yam! Agro! – os nativos reunidos gritavam em voz estridente. Uma luz imunda saiu do altar e um buraco estreito se abriu diante dele, na superfície da ilha.

Piratas endurecidos ofegaram de horror, quando o deus dos ilhéus saiu rastejando do próprio chão sob o altar. Cor-de-laranja à luz da lua, com muitas pernas e aracnóide, ele se comprimia de forma não-natural através da abertura muito pequena da estrutura da ilha. Tentáculos dentados lhe guarneciam a boca babante. Sem olhos, a criatura parecia depender de duas antenas com pontas afiadas, tanto para ver quanto para ouvir. Ela ondulava ao sair do chão, lodo pingando dos encaixes de seu casco com chifres.

Quem sabe como esta criatura medonha e pavorosa veio assolar a ilha flutuante? Talvez tenha vindo como um ovo flutuante num pedaço de destroço, que trouxera ao mundo essa carga monstruosa nesta ilha bastarda. Ou talvez aquela criatura sempre tenha vivido lá, a própria base e gênese daquela ilha terrível de destroços e destruição.

Vergeras se retorcia contra suas amarras, enquanto seus captores o forçavam para baixo, sobre o pavoroso altar. A horrível divindade dos ilhéus degradados deslizava para a frente, a boca sem dentes escancarada. O jovem lutou desesperadamente, ao ver o deus horrendo dos habitantes da ilha avultando sobre ele.

Então Corania avançou, com cada fibra de sua alma jovem gritando contra o destino não-natural que parecia estar reservado ao rapaz indefeso. Sua espada saiu da bainha, enquanto ilhéus troncudos se moviam para excluí-la do drama obsceno sobre o altar. Sangue jorrou, homens gritaram de dor e terror. A garota baracha saltou sobre o altar profano, sua lâmina decepando as mãos de dois dos homens que seguravam Vergeras. Com um grito, sua tripulação avançou depois dela.

Ranog berrou e tentou enfiar sua adaga de sílex nas costas da moça, mas ela se virou com flexibilidade e agarrou o pulso descarnado do ancião. Então, enquanto caía ao chão, ela arremessou o xamã de cabelos selvagens diretamente para dentro da boca do deus aquoso. Ranog soltou um grito estridente, enquanto desaparecia dentro daquela coisa babante, e tanto ilhéus quanto piratas se encolheram quando viram as secreções ácidas da criatura suja começarem a corroer a carne retorcida do sacerdote. Os guinchos de terror e dor do homem ressoaram através da aldeia, e eles puderam ver os ossos brancos aparecendo, através de sua pele que era dissolvida rapidamente, enquanto ele esperneava e se debatia.

Então, a boca em forma de esporão se fechou e a besta profana bateu os dentes para eles e disparou rapidamente para diante sobre patas com chifres e segmentos. Os piratas, todos homens duros, recuaram diante da criatura não-natural.

- Tragam tochas! – gritou Valéria. – Queimem aquela coisa de volta à sua toca!

Os barachos se reuniram e fizeram o monstro recuar. A luz do fogo se refletiu no corpo segmentado da criatura; lodo aquoso brilhou de forma medonha ao luar. Golpes sortudos de espada lhe quebraram a carapaça e feriram a carne. Ela entoou um grito lancinante, quando a massa de atacantes a forçou para trás.

Um dos tentáculos da criatura serpenteou para a frente, pegou Mão de Ferro pelo tornozelo e começou a arrastá-lo para dentro da boca do monstro. Valéria lançou-se para diante, prendeu o apêndice lodoso no chão com sua perna-de-pau e retalhou furiosamente o membro da criatura maligna. Ela se contorceu e a pirata arrastou seu sequaz para o lado. Súbito, uma figura magricela estava entre ela e a besta.

- Ei! Monstro! Afaste-se dos meus amigos! – Alcemides bradou. O pequeno estudante lançou um balde cheio de líquido dentro da boca da criatura e se lançou para um lado. Houve um lampejo de luz brilhante, quando o balde lançou o acido dentro da boca da coisa. O monstro guinchou, quando um jato de fluido nocivo lhe explodiu da garganta. Ele entrou em convulsões quando galões de fluido malcheiroso e espumante foram vomitados de sua boca. O líquido chiava e fumegava onde quer que pousasse. Todos os piratas bateram rapidamente em retirada, mas o corpo da besta logo estava coberto pelo fluido repugnante. Ela se lançou ao chão e se contorceu inutilmente, quando a lama cáustica começou a corroer e definhar sua carne horrenda.

- Que veneno havia naquele balde? – Valéria perguntou, num sussurro atemorizado.

- Somente água! – disse Alcemides, levantando-se e sacudindo o pó das mãos. – Em contato com o ácido forte no esôfago daquela criatura, causou uma perfeitamente previsível reação explosiva.

- É espantoso! – disse Valéria, enquanto observava as monstruosas convulsões de morte do deus maligno.

- Apenas algo que aprendi no primeiro ano do curso de Alquimia! – disse o sábio.

- Uma educação universitária tem sua utilidade, afinal – Valéria disse.

Ela se voltou para a tripulação:

- Saqueiem a aldeia! Peguem principalmente comida e ferramentas. Depois, de volta ao acampamento e começar a trabalhar no Tigresa pela manhã.

* * *

A cabine da capitã do Tigresa havia sido equipada da melhor forma possível, tendo em conta os recursos da ilha; e, embora ela não estivesse à altura dos padrões usuais de Valéria de conforto e luxo, ela estava bastante feliz em estar de volta ao mar. Sorria contente ao sentir o convés se mover sob os pés. Semanas de trabalho duro haviam sido belamente recompensadas. Ela estava, mais uma vez, em seu ambiente, e toda sua inquietação e medo haviam sido soprados pelo ar livre e selvagem do mar.

Ouviu uma leve batida em sua porta e gritou:

- Entre.

- Com licença, capitã – disse Alcemides, enquanto entrava na sala. – Espero que este seja um bom momento. Há algo que eu gostaria de lhe perguntar.

O pequeno estudante parecia incomumente nervoso, e avançava muito mais timidamente do que quando encarou a siba monstruosa, sobre o corpo exausto da mulher.

- Por que não se senta, Alcemides? Depois de tudo o que você fez por mim, espero que eu possa lhe conceder qualquer pedido razoável.

- Eu... eu... é apenas... O Baile Universitário anual é no próximo mês em Numantia – o pequeno homem gaguejou, ruborizando violentamente. – E eu me perguntei se tu me farias a honra de ser minha convidada!

Valéria hesitou. Ela estava acostumada a lidar com homens de ação; homens que tomavam o que queriam, sem pedir. Este erudito estava bem além de sua experiência. Num momento de reflexão, percebeu que gostava muito da idéia de ter seus favores pedidos delicadamente. Analisou pensativamente o sábio. Seria um homem de boa aparência, se apenas penteasse o cabelo e a barba.

Ela sorriu para o sábio:

- Alcemides, me diga: o que sabe sobre as maneiras das mulheres?

Ele riu:

- Muito pouco, eu receio. Passei a maior parte de minha vida em livrarias empoeiradas, em busca de conhecimento. Mas acho que gosto muito de sua companhia, e pensei que talvez pudéssemos passar algum tempo juntos e conhecermos melhor um ao outro.

- Uma idéia excelente, mas que gasta muito tempo. Conheço uma maneira melhor de conhecermos um ao outro. Gostaria de aprender?

Valéria se levantou e caminhou até ele. É difícil caminhar de forma sedutora com uma perna de pau, mas a pirata tinha alguma prática. Deleitava-se em ver os olhos do sábio se arregalarem e seu queixo cair. Então ela abriu a camisa e a lançou para longe. O rosto de Alcemides ficou vermelho e ele começou a tremer.

O sábio falhava em falar várias vezes, antes de gaguejar:

- Serei seu estudante mais aplicado!

- Prepare-se para sua primeira lição – Valéria ronronou, sentando-se no colo do homenzinho e lhe oferecendo os lábios.

O erudito percebeu quase imediatamente como deveria responder àquela proposta pouco conhecida. Seus esforços virginais foram completamente entusiásticos.

* * *

Passaram-se quatro horas, quando Valéria se agitou em sua cama desarrumada. Ela se espreguiçou e pensou na situação ímpar que uma professora é capaz de sentir com um pupilo devotado. Então olhou ao redor e viu Alcemides curvado sobre a mesa. O sábio estava ocupado com uma pena e um pergaminho.

- O que está escrevendo? – Valéria perguntou, se levantando, espreguiçando e caminhando até ele.

- Apenas um pequeno bilhete para meu caro colega sábio Astreas, minha querida.

- Talvez eu deva dar uma olhada nisto, antes que você sele – disse Valéria, puxando o pergaminho de sob sua pena. – Hmmm... como pensei! – ela disse. – Você não vai mandar missivas fanfarronas para todos os seus amiguinhos sábios.

- Não estou me vangloriando, minha pomba! Estou simplesmente compartilhando as notícias da minha boa-sorte! – ele disse. – Embora eu realmente gostasse que alguns dos arrogantes, que disseram que eu nunca conseguiria uma mulher, me vissem com a mulher mais bonita do mundo!

- Bom... já que você falou isso tão belamente... Ficarei feliz em conhecer pessoalmente seus amigos neste Baile Universitário. Talvez eu até use um certo vestido de seda que realmente exalta minha forma!

- Isso... isso seria maravilhoso, querida. Mas... mas tudo exalta sua forma! – disse Alcemides.

Valéria sorriu e pressionou sua forma magnífica contra o rosto do sábio. Alcemides quase desmaiou. Ela sorriu afetuosamente para ele e lhe deu um beijo na testa.

- Você é mesmo uma doçura – ela disse. – Estou muito feliz de não ter lhe matado naquela ilha flutuante!

- Você diz as coisas mais encantadoras – Alcemides disse ardentemente, levantando-se e tomando-lhe a forma flexível nos braços. – E, minha cara professora, acho que estou pronto para minha segunda tarefa agora.


E o Tigresa deslizava suavemente sobre o mar brilhante, sua forma esguia se movendo com facilidade sobre as ondas elevadas. Pois, enquanto o sol se põe sobre ações passadas, sua tripulação vira o rosto para novas aventuras. Verdadeiros barachos da Irmandade Vermelha, eles navegam adiante em busca de sangue e saque, deixando tronos dourados e sonhos fantasmas para homens inferiores.


Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: The REH Forum.

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