(por “Von Kalmbach”)
“Eternamente, nas tumbas despedaçadas dos tempos antigos,
Onde horrores nascidos da noite rastejam entre os ossos,
Pesadelos negros aterrorizam através da escuridão
E reis mortos sonham sobre seus tronos em ruínas”.
(Verso Antigo)
1) A Ilha dos Mortos
O SOL AFUNDAVA
no oeste, pintando as nuvens do anoitecer com um brilho escarlate. Na praia de
uma ilha remota – uma das muitas que ficam próximas ao continente, longas
léguas ao sul de Abombi –, um grande navio negro estava ancorado, seu pendão
vermelho enrolado ao redor do mastro. Os altos corsários emplumados, que constituíam
sua tripulação, agora bebiam juntos em seu acampamento na praia, à luz de uma
fogueira tremulante, enquanto uma figura solitária estava de pé sobre um
promontório, olhando para o mar.
Na noite que
se aproximava, bem longe daquela praia protegida, duas figuras saíram da
desordem de vegetação que cercava uma clareira da selva. Formavam um casal pitoresco,
enquanto avançavam através da relva, em direção às ruínas cheias de trepadeiras
em seu centro.
A primeira era
uma mulher de aparência notável, uma orgulhosa beleza pálida com a forma de uma
deusa, que caminhava com a graça flexível de uma pantera. Aros e braceletes de
ouro lhe adornavam as mãos e os braços, e pedras preciosas cintilavam entre os
cachos negros que lhe caíam até os ombros, dos quais pendia um opulento manto
vermelho. Uma faixa larga lhe envolvia a cintura fina e quadris largos, onde
brilhava uma adaga cravejada de jóias.
Seu companheiro
era um homem do norte, um cimério com uma juba de cabelos negros e selvagens
olhos azuis. De ombros largos e membros grossos, a escuridão bronzeada de sua
pele não conseguia esconder as incontáveis cicatrizes que lhe cobriam a estrutura
maciça. Seu cocar emplumado o proclamava como um chefe de guerra das ilhas do
sul; mas a longa e larga espada na bainha de couro desgastado, a qual lhe
pendia do quadril, nunca fora antes usada por qualquer chefe tribal. Ele olhou
com desaprovação ao redor, até a mulher se voltar, descansando uma das mãos
brancas ao redor do braço dele.
- Meus
corsários chamam este lugar de A Ilha dos Mortos – disse a mulher. – Eles dizem
que aqui os mortos caminham, e espíritos assombram o vento. Mas, Conan, eu nada
temo. Que N’Yaga discurse sobre as superstições que quiser. Bêlit e seu
parceiro andam por onde gostam.
O cimério
permaneceu calado, mas a suspeita aparecia em seus olhos, enquanto seu olhar
perambulava sobre as ruínas silenciosas, e sobre a inquieta parede de folhas
que cercava a clareira. Assim como os corsários, ele também era um bárbaro, e
estava acostumado a compartilhar os instintos e superstições deles com relação
a tais coisas. Para ele, N’Yaga falava sabedoria, ao passo que Bêlit, apesar de
todas as suas selvagens piratarias no mar, era, no entanto, uma filha da
civilização.
- Não foi
apenas para um encontro que eu lhe trouxe para tão dentro da ilha – disse
Bêlit. – De acordo com N’Yaga, esta ilha já foi o local de sepultamento de uma
raça antiga. Os pergaminhos de Askalon não a mencionam. Creio que eles
continuam desconhecidos, até mesmo para os grandes estudiosos da Nemédia e
Stygia. Tais riquezas, que são freqüentemente enterradas com mortos de alta
estirpe, devem estar aqui para serem levadas. Conan, tomaremos aquela riqueza
para nós mesmos, pois os mortos não precisam dela.
O crepúsculo
se tornou noite, e a lua pálida se ergueu. Estrelas brilhavam fracamente no
céu. Bêlit lançou o manto fora e caminhou através da clareira, até um local
onde uma árvore caída havia feito uma lacuna na vegetação ao redor do espaço
aberto. Ela deu um passo sobre sua base e abriu seu caminho com graça felina,
ao longo do comprimento contorcido do tronco coberto de musgo. O luar delineava
sua forma sinuosa e cintilava em suas jóias. Ela estava ali de pé, destacada
contra as estrelas, como uma maravilha sombreada, desenhada com prata.
Bêlit virou-se
e estendeu um braço convidativo para Conan, e ele se juntou a ela. Ali eles
ficaram, descendo o olhar para o grande vale que ficava além, onde fileira após
fileira de domos com janelas de vidro apareciam além das palmeiras da selva,
cujas folhas desciam e subiam gentilmente.
- Já estive
aqui antes – disse Bêlit. – Vim para cá há um ano. Amanhã, caminharemos entre
aquelas cúpulas, e veremos quais riquezas podemos encontrar.
Voltaram à
clareira, e colheram algumas das frutas que cresciam livremente naquelas
redondezas. Bêlit estirou seu manto e eles ficaram deitados juntos, olhando um
para o outro enquanto se banqueteavam. Apoiada no cotovelo, Bêlit mordia uma
fruta, e seus olhos brilhavam ao olhar para Conan.
- Eu nunca
senti afeição por qualquer príncipe suave, nascido em cidades, vestido com
perfumadas sedas douradas e com cabelos perfumados. Cona, você já é lenda entre
meu povo adotivo. Ó, leão do norte, isto eu sei: nenhum outro homem terá o amor
de Bêlit. – Ela deslizou os braços de marfim ao redor do pescoço dele, e
sussurrou: – Me ame.
Conan lhe
devolveu ferozmente o abraço. E, naquela clareira iluminada pela lua, eles se
acasalaram tomados por uma paixão indomável.
*
* *
A lua havia se
deslocado meio caminho através do céu, quando Bêlit levantou a cabeça e saiu de
baixo do braço de Conan. O cimério tinha o sono tão leve quanto o de um gato, e
acordou imediatamente. Estava deitado de costas, observando-a enquanto ela
pegava e vestia seus ornamentos e sua faixa de seda. Mais uma vez, ela
retornava ao ponto, do qual olhavam sobre o vale.
Descendo o
olhar através das sombreadas folhas de palmeira, Bêlit viu um suave brilho
cor-de-rubi, o qual vinha dos topos dos domos. Um arrepio medonho a percorreu,
mas ao mesmo tempo ela sentiu um fascínio. A insinuação de suave resplendor que
vira no céu, enquanto se deitava próxima a Conan, não havia sido imaginada. Ela
gritou, e o cimério se levantou, pegando a espada e o punhal.
Enquanto ele
se juntava a ela, Bêlit falou suavemente na escuridão:
- Conan, o que
você acha disso? Talvez esta ilha não seja abandonada. Alguém mora aqui.
Conan sentia a
raiva de Bêlit. Se aquela ilha era ocupada, então algum tesouro havia sido
igualmente saqueado. No entanto, ela não parecia convencida pela própria explicação.
- Se mora, não
vi nenhum rastro – Conan disse. – E, se aquelas luzes forem fogueiras acesas lá
dentro...
Bêlit deslizou
impacientemente à frente de Conan, os olhos ardendo com a fúria em ebulição que
freqüentemente tomava conta dela, quando separada de seu prêmio. Ele pôs uma
mão sobre o ombro dela, e ela girou. Conan desafivelou o cinto de sua faca
tribal de guerra e a ofereceu a Bêlit. Era uma arma longa, com cabo de osso,
numa bainha de madeira e atada com couro, e quase tão longa quanto uma espada
curta. Bêlit normalmente desprezava o uso de armas, mas aceitou o presente de
Conan, cingindo-o nos quadris com uma confiança nascida da habilidade.
Conan e Bêlit desceram
cuidadosamente para dentro do vale, deslizando como panteras através da
escuridão. Os arbustos eram densos e engrinaldados por trepadeiras. Logo,
chegaram às laterais de uma parede alta de pedra, ornada com quartzo e
silenito. Embora a selva crescesse até sua base, os arbustos rareavam lá; e
eles atravessaram sua distância por algum tempo, sem encontrar janelas ou
quaisquer meios de entrada. Bêlit se voltou para falar com Conan, mas ele havia
sumido.
Por um
instante perplexo, Bêlit ficou lá, seus olhos escuros procurando desvairadamente.
Então, ela ergueu o olhar e viu uma silhueta familiar, destacada contra o céu
estrelado. O cimério estava agora acima dela, no parapeito da parede. Ele se
inclinou e estendeu a mão, a qual Bêlit pegou com ambas as próprias. Num
movimento suave, Conan içou Bêlit sem esforço para seu lado.
A parede, na
qual estavam agora, tinha 30 cm de largura, com um espigão que se curvava
brandamente. Corria entre duas das cúpulas periféricas, ao lado de um longo
pátio entupido de árvores. Conan e Bêlit correram ao longo dela com graça e
equilíbrio felinos. Chegaram ao topo do primeiro domo e olharam para baixo,
através de sua janela de cristal, cuidadosamente encaixada na pedra por alguma
arte esquecida. Estava totalmente escuro lá dentro.
Agora eles
contornavam o domo e caíam sobre o teto de uma das passagens cobertas que
ligavam as cúpulas. Atravessaram seu comprimento, movendo-se para dentro e
chegando a outro domo, de cujo alto uma suave luz cor de rubi pulsava, crescia
e diminuía. Conan e Bêlit o subiram, com suas feições estranhamente iluminadas.
Espiaram através da janela de cristal, mas esta era muito opaca para se
discernir detalhes.
Conan e Bêlit
correram como fantasmas. Desciam o olhar para um domo, após outro dos pátios entupidos
de arbustos, mas não viram portas nem janelas. Todo o lugar parecia totalmente
fechado.
Eles chegaram
ao domo central, galgaram até sua borda e subiram até seu ápice. Deste ponto
mais alto, olhavam para uma vasta rede de cúpulas, ligadas por passagens e
entremeadas por largos pátios entupidos de arbustos. Tudo era traçado no padrão
de alguma estranha geometria. Alguns dos domos estavam iluminados por dentro
com fogo de rubi, mas a maioria permanecia na escuridão. Lá embaixo do vale, um
rio brilhava como prata através da selva, e mais além, a grande vastidão
sombria do oceano tremeluzia ao luar. Acima de tudo aquilo, pairava uma
sensação sobrenatural de estranha antiguidade.
Conan e Bêlit
desceram mais uma vez, e seguiram até o outro lado daquele vasto mausoléu.
Desceram ao nível da selva, onde um largo pavimento quebrado de lajes submersas
serpenteava das árvores.
Conan observou
a área:
- Juro que
ninguém pôs o pé aqui antes de nós.
Eles deram a
volta, seguindo o pavimento até um conjunto de portas escuras que selavam a
entrada, intrincadamente trabalhadas em algum metal desconhecido e intocadas
pelas devastações do tempo. Conan se esforçou para abri-las, os músculos se
sobressaindo em nós nos braços e nas costas largas, mas elas se recusaram a
ceder aos seus esforços. Bêlit correu cuidadosamente as mãos pálidas sobre a
superfície ornamentada, franzindo a testa. Então, os olhos dela reluziram de
triunfo, quando deslizou para trás um trinco escondido e torceu a estrela no
centro das duas grandes portas.
Mais uma vez,
o cimério tentou entrar, e desta vez as portas cederam para dentro ao toque de
sua mão que procurava.
2) A Tumba do Ykarhu
A ESCURIDÃO LÁ
DENTRO era quase impenetrável, mas lá adiante eles viam um resplendor fraco e
distante, no qual a luz da lua brilhava através de uma das janelas de cristal.
O pó de eras incalculáveis jazia sobre a soleira, e um suspiro sepulcral passou
correndo por eles, misturando-se à brisa quente.
Conan andou
para lá e para cá, e juntou galhos, folhas e cipós secos. Com isto, ele fez
quatro tochas. Cortou alguns gravetos e fez um pequeno fogo, com o qual acendeu
dois dos tições, entregando um para Bêlit.
Equipados
dessa forma, Conan e Bêlit caminharam para dentro da escuridão. A fumaça de
seus tições acesos subia até o teto abobadado, enquanto eles se moviam para
dentro, e a luz palpitante daquelas chamas mal parecia dissipar a escuridão
fúnebre, a qual se fechava ao redor deles como uma mortalha.
Os olhos de
Bêlit cintilavam, enquanto seu olhar passava pelos entalhes encaixados que
adornavam as paredes. Conan parecia meditativo, seus olhos azuis perambulando
incansavelmente, enquanto imagens esculpidas de morte e sepultamento marchavam
como fantasmas diante dele, nas paredes lúgubres.
Entravam cada
vez mais no mausoléu, ao longo de uma passagem comprida e larga – uma das que
eles haviam atravessado em seu percurso através do teto. Somente agora eles
estavam lá dentro, como dois espectros iluminados por tochas, avançando sinuosamente
para dentro do inferno.
Sobre as paredes,
havia mais daqueles entalhes elaborados, baixos-relevos dos atos dos antigos
reis esculpidos em pedra, e tudo coroado pelo símbolo de uma estrela crescente,
astro-chefe de uma constelação desconhecida. Ali também havia palavras escritas,
mas numa linguagem desconhecida para Conan e Bêlit.
E assim,
chegaram à primeira das criptas abobadadas e com janelas de cristal. A luz de
suas tochas agora se misturava com o suave resplendor do luar, quando este se
infiltrou do alto. Circundando a câmara e enfileirados contra as paredes, havia
seis tronos de mármore.
Havia um
cadáver pálido sobre cada trono, suas vestes agora meros punhados de farrapos e
a carne de quem as usava estranhamente intacta, considerando os muitos milênios,
ou eons incalculáveis, que devem ter passado desde seu sepultamento. Alguma
sugestão da personalidade de cada um foi horrivelmente preservada nas feições
magras e cinzas. Sobre a testa de cada um havia um aro simples, moldado do
mesmo e estranho metal das portas. E, no pescoço de cada um, pendia um amuleto
com uma única gema, como uma lágrima de rubi posta sobre uma corrente de ouro
branco.
No centro da câmara,
havia um suporte derrubado, forjado do mesmo metal estranho das portas e aros.
Parecia ter sido projetado para segurar algo no centro da câmara. Um arrepio
gelado formigou no couro cabeludo de Conan, quando ele viu que a poeira havia
sido agitada aqui, embora não houvesse meios de determinar o que exatamente o
havia feito. Seguiu a trilha no pó por um longo caminho através dos corredores.
Ela continuava para bem longe escuridão adentro, e Conan retornou até Bêlit.
Bêlit estava
no centro da câmara com um sorriso nos lábios, enquanto examinava o amuleto de
rubi, o qual ela agora usava no pescoço. Quando Conan voltou, ela olhou para
cima, seus olhos escuros resplandecendo. Ela deixou a gema cair, e esta ficou
pendurada entre seus seios nus, brilhando como um coágulo de sangue sobre sua
corrente dourada. Conan conteve um súbito e selvagem impulso de arrancar aquela
coisa dela, e arremessá-la contra a parede.
Bêlit agarrou
a mão de Conan e o guiou adiante, para dentro da escuridão de outro corredor.
Conan parou, agarrando-lhe a mão, e a arrastou para si.
- Espere – ele
disse –; há alguma coisa aqui. Eu vi no pó...
Bêlit riu:
- Você não
disse que ninguém havia pisado aqui, antes de nós? Oh, Conan, estes são apenas
alguns dos tesouros que encontraremos.
Então, Bêlit
tirou sua mão da de Conan e correu para a frente. Conan praguejou ardentemente,
e a seguiu dentro daquela escuridão estígia.
*
* *
Através de
passagens anoitecidas, Bêlit guiou Conan, e através de uma cripta abobadada
após outra. Em cada uma, havia um círculo sombrio de cadáveres, usando amuletos
idênticos ao que Bêlit usava. Em cada uma, havia um suporte derrubado, alguns
torcidos como se pela pressão de um grande peso. Em cada um, Conan via que o pó
fora remexido bem longe dos sinais da passagem de Bêlit. Então, lá adiante,
Conan viu a silhueta de Bêlit emoldurada contra um brilho de rubi.
Quando Conan
adentrou esta nova câmara, ele viu Bêlit curvada sobre um grande cristal no
centro; um cristal do tamanho de uma romã, o qual pulsava e palpitava em seu
suporte com fogo de rubi, como se uma grande chama ardesse em seu centro. Ele
tingia a câmara inteira com sua radiação, dançando em seus rostos e nas formas
dos cadáveres sombrios com sua luz espectral. Conan sentiu uma presença
pressionando contra sua mente e ouviu um sussurro semelhante ao de mil
sussurros, mas se livrou da sensação com uma praga.
Bêlit ficou
contemplando as profundezas do cristal, seus olhos escuros brilhando com uma
estranha fascinação. A gema entre seus seios agora estava incandescente, retribuindo
a luz da gema maior. Bêlit começou a oscilar, seus olhos rolaram para cima, e
então ela caiu desmaiada ao chão.
Conan correu
para a frente e a pegou nos braços. Primeiro, a cabeça dela ficou pendurada;
depois, ela murmurou de forma incoerente e começou a se levantar. Com a ajuda
de Conan, Bêlit ficou de pé instavelmente e olhou ao redor da câmara. Ela
correu as mãos sobre o corpo, como se o explorando pela primeira vez, e seus
olhos caíram sobre Conan como se ela não o conhecesse.
Um arrepio
tomou conta de Conan. Os movimentos de Bêlit eram singularmente estranhos. E,
de alguma forma, ele sabia que, quem quer que estivesse à sua frente agora, não
era Bêlit.
Ela começou a
falar. A princípio, suas palavras saíram vacilantes, e Conan não conseguia
entendê-las, nem à linguagem na qual eram faladas. Então, ela começou a enunciar
em Shemita enfraquecido:
- Nômade. Eu
sou Xeyr. A alma de sua mulher está na gema, e agora eu visto o corpo dela.
Conan
resmungou e arrancou a espada da bainha. Erguendo-a, ele virou em direção ao
grande cristal, no seu suporte no centro da cripta.
- Anule sua
feitiçaria – ele exigiu –, ou, por Crom, esmagarei esta bugiganga em mil
fragmentos!
Os olhos de
Bêlit reluziram em medo súbito, e ela se lançou entre Conan e o grande cristal.
Conan a pôs de lado e reassumiu sua posição ameaçadora.
- Não! –
gritou Xeyr com a voz de Bêlit. – Se fizer isso, você nunca mais a verá outra
vez. A menos que me escute, manterei
este corpo, e aquela que você conheceu permanecerá presa – ela tocou o rubi
entre os seios – aqui...
Conan conhecia
pouco de feitiçaria, e não tinha como saber se Xeyr falava a verdade ou não. Em
suas viagens, ele ouviu histórias de feiticeiros na distante Khitai e nos
Montes Himelianos, os quais praticavam certos rituais de transferências da
alma. Esmagar o cristal poderia libertar Bêlit. E depois...?
Conan hesitou.
De má-vontade, ele embainhou a espada.
- Fale, e
termine com isso – ele rangeu, engolindo sua ira.
- Você está
dentro das Tumbas dos Ykarhu. Aqui jazem os corpos do povo de Ykar, e aqui
também jazem suas almas. Dormimos há milhares de anos, evitando atravessar os
portões da morte, graças ao nosso conhecimento sobrenatural.
“Viemos para
cá como espíritos, através da vastidão sonhadora de distâncias inimaginavelmente
cósmicas, da distante Ykar, na constelação Aru. Vendo as nações ricas e
orgulhosas deste mundo verdejante diante de nós – Valúsia, Commoria, Grondar, Kamelia,
Thule, Verúlia, Atlântida –, ficamos fascinados por este lugar e decidimos
morar aqui.
“Deste modo,
nossos espíritos voaram para as ilhas do sul, até o reino insular de Ingara, a
menor entre as nações daquela era. E lá, nós cometemos nosso grande crime, cuja
culpa pesa muito sobre nós. Usamos nossas artes para roubar os corpos da classe
dominante, deixando-lhes as almas a esmo, e obtivemos soberania sobre o povo
deles, o qual fizemos nosso. Governamos, e nossas vidas eram longas, como as
vidas dos homens são contadas. Mas nossa longevidade nada significou, contra o
grande cataclismo que sacudiu o mundo, e que lançou a maioria das grandes raças
de volta aos fossos de selvageria, dos quais elas haviam rastejado há muito
tempo.
“Quase toda
Ingara submergiu no mar. No despertar daquele cataclismo, não desejávamos mais
viver neste mundo fraturado, e procuramos mais uma vez retornar, através do
firmamento estrelado, para nosso lar distante. Mas nossas habilidades haviam
diminuído e sido esgotadas através dos milênios em que vivemos em corpos
mortais, e não tínhamos mais o poder de retornar.
“Com o último
de nosso povo, construímos esta tumba na forma de um grande símbolo ykarhiano.
Qualquer um que viajasse para cá, vindo da distante Ykar, nos identificaria por
este símbolo e viria nos guiar para casa. Nesse meio tempo, criamos os cristais
para aumentarmos nossas habilidades desaparecidas, e usarmos o poder deles para
projetar nossa própria consciência de volta através das fendas do espaço, em
busca das vias cósmicas pela quais possamos retornar.
“Assim nós
sonhamos, e nossos espíritos buscaram. Mas recentemente aquele sonho foi
perturbado. Um grande terremoto sacudiu esta ilha, e foi aberta uma fenda
dentro de nossas tumbas, a qual se abria para vastas cavernas sem luz sob a
terra. Uma criatura se ergueu daquelas profundezas. Noite após noite, ela sai
das profundezas para caminhar entre nossas criptas. Rouba nossos cristais,
entregando-nos lentamente a uma eternidade de pesadelo de espera aprisionada.
“Oh, viajante,
mate essa criatura para nós, e devolverei o espírito de sua mulher ao corpo
dela”.
Conan passou
um braço pelos lábios ressecados. A perspectiva de perder Bêlit rastejava como
loucura negra através de seu cérebro. Mais uma vez, ele pensou em esmagar o
cristal, numa tentativa selvagem de quebrar a feitiçaria de Xeyr, mas o risco
era muito grande.
Sua mão
cicatrizada caiu sobre o cabo de sua espada.
- Diga-me onde
ela está – ele sussurrou sombriamente.
3) O Habitante das Profundezas
SEGUINDO AS
INTRUÇÕES DE XEYR, Conan chegou a um grande talho no chão do mausoléu
esparramado. As paredes estavam partidas e, ao redor das beiradas, os
pavimentos também estavam partidos e desmoronados profundezas adentro, juntamente
com parte do teto abobadado, deixando no alto uma fenda estreita, através da
qual as estrelas cintilavam.
Conan espiou
sobre a beirada. A luz de sua tocha palpitou sobre o entulho de Ykarhu, e logo
desapareceu na escuridão imensurável. Um estranho odor pairava no ar e, naquelas
redondezas, Conan viu onde o pó havia sido mexido pela passagem de alguma
criatura enorme.
Sem corda, e
com as beiradas do buraco instáveis demais para uma descida, Conan decidiu
aguardar o retorno da criatura. Ele voltou à cripta mais próxima, apagou a
tocha e permitiu que seus olhos se ajustassem à escuridão iluminada pela lua.
As sombras mal
haviam movido uma polegada através da parede, quando Conan percebeu uma
estranha iluminação saindo do fosso, e ouviu o som de alguma coisa enorme
avançando de baixo. Ele se agachou e recuou para dentro da escuridão maior,
entre dois tronos, seus olhos cintilando ferozmente.
Uma forma
monstruosa saiu do buraco – humanóide na forma, mas se movendo como nenhum
humano já o fizera. Ela se ergueu gigantescamente para fora do fosso, oscilando
estranhamente enquanto avançava. Uma luz semelhante a fogo-fátuo irradiava de
um objeto seguro pela mão esquerda da criatura, a qual delineava tanto o
interior da tumba quanto a própria criatura, a qual, Conan agora conseguia ver,
tinha a parte superior do corpo de um homem sobre a parte inferior do de uma
grande serpente. A criatura oscilava e deslizava ao longo do corredor, em sua
direção, a luz em sua mão delineando as paredes da passagem enquanto ela
avançava, e fazendo sua sombra saltar fantasmagoricamente.
Um arrepio
primordial percorreu Conan. Ele olhou desvairadamente ao redor, como uma fera
capturada. As paredes da cripta onde ele aguardava estavam totalmente cobertas
por baixos-relevos, e o cimério girou e os escalou com a facilidade de um
vigoroso montanhês. Ele se moveu rapidamente para o alto e ao redor da cripta,
até pender acima da porta da passagem no exato momento em que a criatura
entrava na câmara.
Enquanto
passava sob ele, o cimério teve seu primeiro vislumbre bem próximo de uma
serpente humana. Sua pele era pálida e escamosa. A cabeça era humanóide, com
olhos grandes que brilhavam vermelhos, e seu focinho era parcialmente dilatado
como o de uma serpente. Longos cabelos brancos, caídos como tiras de couro e
engrinaldados com ossos, lhe cresciam da cabeça até lhe caírem sobre as costas.
Na sua mão esquerda, segurava uma rocha, incrustada com algum tipo de fungo
luminoso; e, na direita, uma longa lança com ponta de ônix.
A criatura se
moveu para dentro da cripta e desceu outra passagem, esquecida pelo homem que
se agarrava lá em cima. Poucos momentos depois, Conan desceu silenciosamente e
rastreou a criatura, seguindo-lhe a estranha iluminação através das catacumbas
silenciosas, até ela chegar a uma cripta, no centro da qual um dos cristais de
Ykarhu ainda pulsava e palpitava. A criatura parou lá e, à luz do brilho de
rubi, ergueu sua lança e começou a oscilar diante do cristal.
A pele de
Conan se arrepiava, enquanto ele se pendurava de volta à escuridão. Ele
observava o habitante das profundezas curvetear diante do cristal, dançando
como devia ter dançado muitas noites antes. Qual antigo e não-contado ritual,
ou instinto, estava sendo representado ali, ele não sabia, nem o cimério
esperou que a cena se desdobrasse totalmente – não enquanto o espírito de Bêlit
estivesse preso na gema da alma de Xeyr. Ele desembainhou a espada e se moveu
furtivamente, em direção à câmara.
Alguma coisa
avisou a serpente humana, pois ela subitamente se retorceu em sua direção.
Conan saltou para a frente e pulou, com sua espada erguida para um grande giro,
o qual terminaria rapidamente a luta se ele aterrissasse; mas a cauda da
serpente humana girou e o atingiu em pleno ar. O golpe de espada de Conan errou
o alvo, abrindo um ferimento superficial no peito da criatura, enquanto a
grande pancada da cauda dela o fez se espatifar dentro de um dos tronos de
mármore.
Conan empurrou
para o lado o cadáver que caiu sobre ele e se ergueu. Ele viu a lança de ônix
brilhando acima de si, e disparou para o lado enquanto ela reluzia para baixo,
lhe escoriando a pele quando passou. Conan instantaneamente agarrou a haste da
lâmina, tentando arrancá-la da mão da criatura, mas outro golpe da enorme cauda
o deixou estatelado.
A lança desceu
novamente, e Conan rolou para o lado e logo ficou de pé. A serpente humana
atacava com rapidez fantástica para uma criatura do seu tamanho; mas, apesar de
toda a sua rapidez, o cimério louco por sangue era mais ágil.
A criatura
tinha a vantagem do tamanho, do alcance e do uso, tanto da cauda quanto da lança;
mas o cimério era mais rápido, evitando os golpes de seu inimigo, enquanto
manobrava constantemente para entrar na sua guarda e dar o golpe mortal. Durante
aquela luta, o suporte que apoiava o cristal de Ykarhu foi derrubado pelas
espirais da serpente humana. O cristal rolou contra a parede, sua radiação
ensangüentada iluminando a cena com um brilho infernal.
A lança de
ônix veio relampejando novamente, e Conan, mais uma vez, a agarrou; mas, desta
vez, ele saltou para a frente e para o alto, sobre a cauda que chicoteava, e
desceu sua espada sobre a coroa da serpente humana com toda a força de seu
poderoso braço e ombro. O crânio do ofídio foi aberto até o queixo. Nenhum
lutador treinado conseguiria dar aquele golpe – um golpe que combinava o
instinto do guerreiro natural com o atletismo cru do selvagem. Por alguns
momentos desvairados, a câmara foi preenchida pelas espirais espancadoras da
besta moribunda. Conan saltou para trás e esperou pela morte dela.
Então, ele
recolocou o cristal sobre seu suporte, no centro da câmara. Quando seus dedos
tocaram a superfície, ouviu outra vez um sussurro de vozes em sua mente, suas
palavras simplesmente além do alcance de sua percepção. Conan deixou o cristal
cair dentro do suporte e fez a mão recuar com uma praga.
Ele pegou a
lança e a rocha luminosa, e retornou, através das catacumbas, até o fosso. Lá, Conan
começou a alavancar lajes e lançá-las dentro do buraco. Enquanto trabalhava, um
estrondo grave sacudiu o chão e ele saltou para trás, enquanto a beirada do buraco
desabava, selando completamente a entrada para qualquer escória que houvesse lá
embaixo.
*
* *
Conan retornou
à câmara onde Xeyr e Bêlit aguardavam. Bêlit estava com o olhar vazio quando
Conan entrou, e então se voltou para olhá-lo.
- Eu lhe
agradeço, nômade. – Xeyr, com a voz de Bêlit, ergueu a mão e tirou o amuleto do
pescoço, colocando-o no cristal.
“Não retorne a
esta ilha, pois existem, entre os ykarhu, aqueles que usariam novamente corpos
mortais, ao invés de agüentarem a longa espera. Quando eu voltar à minha
gema-alma, sua mulher dormirá por algum tempo, e depois acordará. Adeus”.
Então, Bêlit
ficou deitada sobre o chão e parecia dormir. Conan tentou em vão acordá-la, e
então ele a ergueu gentilmente nos braços e carregou-a através das silenciosas
passagens escuras, em direção à entrada. Por capricho, ele virou de lado,
procurando a câmara central. Encontrou-a, e ficou petrificado de admiração
enquanto olhava para a riqueza de Ykarhu, empilhada em grandes montes sob o
domo central. O luar, adentrando obliquamente as janelas de cristal e brilhando
sobre a riqueza de uma época incalculável, dava a tudo um ar de brilhante
fantasmagoria.
No centro
desta câmara, havia um grande estrado empilhado com moedas triangulares de
ouro. Conan as afastou para Bêlit e a deitou sobre uma cama de ouro reluzente.
Após algum
tempo, Bêlit se moveu e acordou. Ela sorriu, quando viu Conan de pé ao seu
lado, e bocejou, espreguiçando-se indolentemente.
- Conan – ela
murmurou sonolenta –, eu sonhei que navegávamos no Tigresa, além da beirada do mundo e por entre as estrelas... Eu
estirei o braço e as colhi como se fossem jóias...
Conan sorriu
largamente e a regou com grandes punhados de moedas douradas, as quais tremeram
sobre o peito de marfim dela. Os belos olhos escuros de Bêlit se arregalaram de
admiração, enquanto olhava a riqueza que jazia ao seu redor. Ela sorriu e se
luxuriou em sua cama de ouro.
Conan se
juntou a ela. E lá, sobre a riqueza da nação passada de Ingara, ele apertou
Bêlit com seus braços férreos.
FIM
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.