(por Robert E. Howard)
Outrora, eu
fui Gorm do Povo do Bisão. Não consigo explicar a vocês como me lembro disso,
mais do que posso explicar o fenômeno que faz com que eu e vocês nos lembremos
dos acontecimentos de ontem e anteontem. Sou James Allison, morrendo de uma
doença que frustra os esforços de toda a ciência moderna, e fui Gorm do Povo do
Bisão, que viveu numa região e era distantes. Mais que isso não sei dizer. Eu fui; eu sou. Não posso questionar a evidência de dez mil anos, a qual me
ensina que serei novamente. Basta.
Sou James Allison, fui Gorm. E, nas vozes de Gorm e James Allison, contarei
minha história, a história de Gorm, que viveu quando o mundo era jovem, e a
humanidade era fraca e escassa. E começarei do momento em que eu, Gorm do Povo
do Bisão, jazia com as mãos e os pés amarrados ao lado do altar de pedra do
Povo do Rio, com os uivos dos adoradores enlouquecidos em meus ouvidos e a
máscara horrenda do sacerdote deles curvada sobre mim, suas plumas ondulando na
brisa que soprava para baixo a fumaça das fogueiras, em anéis encapelados que
obscureciam o círculo de rostos selvagens.
Aquela máscara
bestial se curvava cada vez mais perto, e através de suas fendas oculares
brilhavam os olhos, negros como contas, do sacerdote que a usava. E, cada vez
mais perto do meu peito nu, afundava a mão que agarrava um bastão, em cuja
fenda havia uma pedra de sílex em brasa – não fechei os olhos, quando aquele
pedaço infernalmente quente tocou meu peito e afundou em minha carne. Um
pequeno feixe de fumaça se enrolou para o alto, saindo de minha pele, mas não
fiz som algum, nem demonstrei minha agonia aguda, exceto pelo palpitar de um
cílio. Do Povo do Rio se ergueu um uivo enlouquecido; o sacerdote se
empertigou, agitando a pedra em brasa e guinchando. Em meu peito,
definitivamente queimado, apareceu o símbolo do sacrifício.
Logo, uma
adaga de sílex afundaria em meu coração enquanto eu jazia na pedra manchada de
negro, para inundar aquele símbolo fumegante com sangue, e os deuses do povo do
rio seriam saciados e mandariam arroz gordo nos pântanos, e cevada abundante
nos campos.
Uma vítima já
jazia no altar – um jovem do meu próprio povo, embora de outra tribo, capturado
quase na mesma hora que eu e levado ao esconderijo secreto do ídolo do Povo do
Rio, como eu fui, de modo que fomos consagrados juntos ao sacrifício; pois o
ídolo de seu deus estava num local oculto, conhecido apenas pelos sacerdotes do
Povo do Rio e pelos guerreiros que nos acompanhavam lá. O Povo do Rio acreditava
que o ídolo continha suas almas e, portanto, deveria ser guardado num lugar
secreto e vigiado contra inimigos. Agora, as pessoas começavam a rodear o altar
de pedra e o círculo de fogueiras, cantando e saltando em sua dança grotesca –
quem me dera poder reconstituir aquela cena primitiva!
A aldeia do
Povo do Rio ficava na extremidade de um istmo de terra, que corria para dentro
do Grande Rio. Esse istmo se alargava no final, era toscamente circular, e suas
cabanas de barro e vime ocupavam o espaço quase todo. Sua paliçada, feita de
troncos eretos e afiados enfiados na terra, erguia-se no próprio aro dos baixos
penhascos que cercavam a extremidade da península. O altar de pedra, meramente
uma rocha plana no alto de uma pilha de pedras, erguia-se no centro da aldeia,
onde havia um espaço limpo. Fogueiras, feitas para formar um triangulo,
cercavam a pedra, o sacerdote que estava ao lado da pedra e as vítimas, que
jaziam sobre ela e ao lado dela.
Ao redor deste
triângulo, o Povo do Rio dançava e zumbia seus cânticos de sacrifício – pessoas
de baixa estatura, mas densamente musculosas, com cabeleiras bastas e
desgrenhadas, e negros olhos brilhantes; pessoas vestidas com roupas de pele e
linho rudemente tecido. Eu, Gorm, era típico do meu povo – alto, de ombros largos,
com olhos cinzentos e cabelos claros.
O sacerdote
cantou; ele ergueu a faca de sílex e, quando ela caiu, foi saciada no sangue do
coração do homem dos Bisões, que jazia no altar. Diante do esguicho escarlate,
as pessoas uivaram como lobos, e algumas arrancaram as roupas e pularam para
dentro das fogueiras, espalhando faíscas. Um tição, golpeado por um pé
desatento, voou pelo ar e caiu perto de mim, queimando minha carne, mas caindo
de modo que a chama tocou nas correias que me amarravam as pernas. Fiquei
imóvel, cerrando meus dentes contra a ardência da chama; e, quando a amarra
estava quase cortada, mudei de posição, de modo que as amarras em meus braços
pudessem ser queimadas. E, no momento em que o sacerdote arrancou o coração do
outro homem dos Bisões e o lançou no fogo, esforcei meus músculos endurecidos
pela agonia e arrebentei as cordas.
Num instante,
eu estava de pé e correndo em direção à paliçada. Homens e mulheres uivavam e
se dispersavam do meu caminho, enquanto eu golpeava a torto e a direito com um
tição flamejante, tirado de uma fogueira. Flechas assobiavam perto de mim,
quando galguei a paliçada e mergulhei no rio.
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Agradecimentos especiais: Ao howardmaníaco “Ghost of ‘82”, do site The REH Forum, e ao amigo e howardmaníaco Karoly Mazak, da Hungria.
A Seguir: O Retorno de Lilitu (encerrando a saga “Um Novo
Recomeço...”).