(por Fernando Neeser de Aragão)
1) Salvador, janeiro de 2008:
“Ilusora de pessoas de outros lugares,
A cidade e sua fama vai além dos mares.
No meio da esperteza internacional,
A cidade até que não está tão mal.
E a situação, sempre mais-ou-menos;
Sempre uns com mais e outros com menos.
A cidade não pára, a cidade só cresce;
O de cima sobe e o de baixo desce...”
(Chico Science, em “A Cidade” /1994).
A cidade de Salvador
tem pequenas ilhas de sofisticação e luxo, cercadas de miséria em várias
partes. É fácil perceber as tentativas de alguns soteropolitanos de transformar
a cidade em uma Nova Iorque: bairros ricos, restaurantes caríssimos e shoppings
com nomes estrangeiros. Para quem tem grana, é fácil viver na maior capital
nordestina com um padrão de vida semelhante ao dos estadunidenses.
“Manhattan
Square”, “Downtown Mandarin”, “Alphaville” (este último, construído graças ao
recente e infeliz desmatamento do que sobrou da Mata Atlântica, na Avenida
Paralela)... Daqui a pouco, o gringo branco que visitar Salvador vai pensar que
houve algum problema com o trajeto do vôo e se perguntará se está próximo de
casa – ou seja, em algum lugar da Europa e Estados Unidos.
P... que
pariu! Já estou farto de tantos estrangeirismos e tanta baixa auto-estima com
nossa língua! Tenho orgulho das minhas raízes nórdicas e angolanas
(aparentemente, não tenho nenhum ancestral índio), mas se somos brasileiros,
vamos falar o nosso Português, e não ficarmos chamando merenda de
“coffe-break”, ginástica de “fitness”, moda de “fashion” e boxe tailandês de
“kickboxing”!
Sem educação,
não há emprego; sem justiça nem emprego, não há paz. É assim que meus
conterrâneos se julgam “civilizados” e melhores que os valorosos índios que
aqui viviam? As únicas coisas boas que o europeu trouxe para cá foram a
tecnologia e o fim do canibalismo. Em compensação, os navios portugueses
trouxeram ratos, baratas, gripe e DSTs – e os europeus e seus descendentes
trouxeram desmatamentos, extermínio quase total de índios, poluição e um quadro
cada vez maior de desigualdade econômica, não só aqui, mas em todo o Brasil!
Meu nome é
Olavo Roberto dos Santos. Ex-policial, e morador do bairro da Liberdade,
trabalhei no Centro como funcionário público, nos Barris.
Na academia de
musculação que eu freqüentava – assim como na de jiu-jítsu e no meu próprio
trabalho –, a galera me chamava de “Cauã”, apesar dos meus cabelos serem
claros, porque meus lábios levemente grossos e meu porte lembravam o ator Cauã
Reymond – ex-namorado da atriz Aline Moraes e mais tarde esposo da também atriz
Grazi Massafera.
Certa vez,
durante uma de minhas rondas no Campo da Pólvora, espanquei um sujeito que,
violando o Estatuto da Criança e do Adolescente, havia batido na filha de 10
anos. Isso me fez receber uma advertência de meus superiores. Meses depois,
contudo, ao ver uma dona-de-casa dar uma chinelada no filho de 3 anos, enquanto
eu passeava à paisana pela Ladeira da Independência, fui lá, dei um temendo
esporro naquela vagabunda e ameacei prendê-la caso repetisse aquilo. Então, vi
dois colegas da polícia – dois péssimos exemplos para uma classe que tem como
juramento zelar pelo bem-estar de pessoas de todas as idades, os quais haviam presenciado a cena, e estavam
próximos da mulher quando esta praticara o ato covarde –, e perguntei a eles
por que não haviam feito nada. Eles me responderam, dizendo que a mulher havia
agido corretamente, que ela era uma “mãe exemplar” (“exemplar”, o c...alho!) e
que eu é quem estava errado.
Furioso,
distribuí súbitos e breves golpes de jiu-jítsu, quebrando o maxilar do guarda
mais magro e fazendo o policial gordo vomitar o que comera no café-da-manhã, graças
a um chute que lhe acertei na enorme barriga. Fui exonerado da polícia. Só não
me processaram nem prenderam, porque um advogado amigo meu conversou, com os
policiais do quartel onde trabalhávamos, sobre o Estatuto do qual eu já havia
falado, e da importância do seu cumprimento.
Este advogado
entendia minhas opiniões – e até concordava com algumas delas –, mas meu amigo,
o advogado Jeremias Silva, era comedido onde eu agia impulsivamente. Jeremias
era negro e magro e, apesar de ser um advogado, usava cabelo black-power. Adorava ouvir blues e música de discoteca – coisa
muito rara na terra que sofre com a ditadura do pagode e do arrocha –, e também
comia muito espaguete (putz, aquele cara não engordava de ruim!). Embora ele
tivesse apenas 35 anos, já era pai de cinco filhos e, apesar de evangélico, não
era fanático religioso – se fosse, só ouviria gospel e usaria sua lábia contra
o ECA. Eu e Jeremias éramos amigos desde pequenos, quando fomos colegas de
primário e ginásio no Colégio Duque de Caxias. Eu sempre o defendia com unhas e
dentes – literalmente falando, além de punhos –, quando algum ex-coleguinha o
discriminava pela cor.
Enquanto isso,
eu, desempregado, “meti as caras” em apostilas, estudei e passei num concurso
para funcionário público. Fui aprovado e comecei a trabalhar no Juizado dos
Barris. Ô porre, aquele trabalho de filas intermináveis! Pelo menos eu ganhava
melhor do que como PM... Mas a vontade que eu tinha, quando via certos
advogados e estagiários querendo ter razão em tudo (uma minoria prepotente, que
só servia para denegrir a própria classe), era a de meter a mão num daqueles
mauricinhos engravatados, ou de xingar uma daquelas patriçolas de blazer...
2)
Meu expediente
havia terminado, e eu me dirigi à Rua Junqueira Ayres, na qual ficava o
Shopping Piedade, onde minha amada esposa trabalhava (não éramos oficialmente
casados, mas morávamos juntos e, para mim, “juntou, casou”). Seu nome era Shizuka
Nakamura – uma linda nissei mestiça, de longos cabelos cacheados, rosto semelhante
ao de Hitomi Tanaka (apesar dos lábios carnudos) e com seios enormes e maravilhosos,
ainda maiores e mais longos que os de Fuko (mas ela nunca aceitaria que eu a
comparasse com estas duas últimas jovens japonesas, por elas serem modelos eróticas).
De lá, iríamos até o ponto de ônibus do Bradesco do Center Lapa, pegar nosso
ônibus para o bairro da Liberdade.
Adentrando o
Piedade, porém, vi comerciantes, lojistas e clientes correndo em pânico total!
Preocupado com a mulher que amo, corri até a loja onde ela trabalhava. Mas,
antes que eu chegasse lá, avistei uma de suas colegas correndo aos gritos.
Corri até ela e perguntei onde estava Shizuka.
- E-ela foi
levada! – gaguejou a moça, com os olhos brilhando de terror.
- Por quem? –
perguntei, quase desesperado.
- Por uma das coisas – ela disse. – Elas estão levando
todo mundo pra Praça da Sé, segundo as rádios e a TV!
- Que “coisas”
são essas? – exigi.
- Essas
coisas! – ela apontou com o dedo, soltou um grito agudo de terror e saiu correndo.
Então,
deparei-me com três criaturas de pesadelo. O primeiro daqueles seres hediondos
veio voando em minha direção como um abutre caindo sobre a presa. Seus dois
olhos gelados me perfuravam a própria alma. Um frio selvagem irradiava da figura...
ela exalava um cheiro de barro bolorento e lixo de cripta. Automaticamente
saquei minha pistola, já que, com a permissão do CRAF (Certificado de Registro
de Arma de Fogo), meu porte de arma não foi cancelado – mesmo porque eu não
usara nenhuma arma de fogo contra nenhum ex-colega (nem sequer contra aqueles
dois que haviam se omitido a cumprir a lei), e meu passado de ex-PM faria de
mim um alvo fácil para meliantes, caso eu andasse desarmado.
No primeiro
tiro, a bala penetrou a boca aberta da criatura e lhe saiu pela nuca, numa
explosão de sangue e miolos; o segundo acertou o pescoço de outra, e o terceiro
penetrou entre os olhos de mais outra.
Súbito, por
algum motivo inexplicável, a porcaria do gatilho da pistola travou após o
terceiro tiro e, guardando-a de volta no bolso, corri até o Shopping Center
Lapa, e lá, roubei uma katana – ou
espada samurai – de sua única loja de armas e persegui os vampiros seguintes,
que abundavam ali dentro e lá fora. Saí pelo Bradesco da Praça da Piedade,
talhando a barriga de um deles com um giro de minha lâmina, e os segui pela Avenida
Joana Angélica, até o ponto de ônibus do Colégio Central, onde as dantescas
criaturas de pesadelo se dispersaram e sumiram.
De repente, do
fundo da Rua Henrique Facchinetti, transversal da Rua Engenheiro Silva Lima, a
qual liga a Avenida Joana Angélica à Rua do Paraíso, emergiu mais uma daquelas
medonhas criaturas aladas, com olhos de brilho horrendamente vermelho e os
longos caninos afiados pingando sangue. E, com um único e ascendente golpe de
espada, eu o cortei em dois, da genitália ao crânio. Em seus estertores, aquele
ser moribundo mostrou ser uma jovem mulher, de pele morena e cabelos negros.
Que zorra era aquela?! Que diabos estava acontecendo? Percebi que estava diante
de algum horror, nascido do útero da noite, da escuridão e de um passado pavoroso.
Com uma
velocidade nascida do desespero, atravessei a rua, corri para a Rua do Paraíso
e desci até a Estação da Barroquinha; em poucos minutos, eu já subia a Ladeira
da Praça e alcançava, um minuto depois, a Praça da Sé. Deparei-me com um cordão
de isolamento, feito ao redor do Edifício Themis, policiais ao redor daquele
prédio e holofotes iluminando aqueles malditos vampiros que adentravam o local,
carregando pessoas que gritavam aterrorizadas.
Aquela praça do
Centro Histórico – um dos grandes pontos turísticos de Salvador, pois levava ao
visitadíssimo Pelourinho – estava vazia, exceto pelas pessoas e assombrações dentro
daquele edifício e ao redor dele. Nenhum turista circulava pelo local; nenhuma
prostituta se sentava nos bancos a céu aberto, à espera de clientes; nenhuma
loja, restaurante nem ciber-café estavam abertos, desde a Rua Chile até a
Ladeira do Carmo... e todo este trecho estava sem energia elétrica; as únicas
luzes a brilharem eram as das viaturas, dos holofotes, dos veículos dos órgãos
de imprensa – estes, mais afastados e protegidos – e de um estranho brilho
incandescente ao redor do agora mal-assombrado prédio.
Inexplicavelmente,
a katana que eu roubara do Center
Lapa me fez atravessar a barreira mística que impedia o acesso ao Edifício
Themis, na Praça da Sé. A tropa de choque, que ali se aglomerava – exceto pelo
único ponto desguarnecido do cordão de isolamento, ao qual atravessei –, não
conseguiu impedir que eu entrasse, e nem conseguiria, pois nem pessoas nem
balas eram capazes de atravessá-la – apenas os malditos vampiros alados, que
carregavam suas indefesas vítimas humanas, e que agora levavam minha Shizuka
para a cobertura daquela edificação.
Aliás,
vampiros não faltaram para que eu enfrentasse – desde a galeria no térreo, até
os vários lances de escada que subi correndo até chegar ao último andar daquele
prédio que era, ao mesmo tempo, um hotel e um edifício comercial (cujas lojas e
escritórios agora não funcionavam, por conta daquela feitiçaria medonha). As
balas dos policiais que atiravam naqueles vampiros que não carregavam vítimas
não conseguiam matar as criaturas. As lendas obscuras eram verdadeiras,
então... armas humanas eram inúteis – pois pode um homem matar alguém já morto
há longos séculos, como morrem os mortais? Mas, de alguma forma inexplicável,
as balas que disparei e os golpes da katana
haviam dado cabo das criaturas – pelo menos das recém-amaldiçoadas.
Então, no
penúltimo andar, mãos em forma de garra no meu pescoço me desarmaram e incitaram
a um frenesi de loucura. Assim como meus ancestrais mais primitivos lutaram
corpo-a-corpo contra inimigos em vantagens de abalar o cérebro, eu lutava contra
a fria e morta coisa com garras, que buscava minha vida e alma. Como
os outros vampiros que enfrentei,
era uma forma alta e em forma de abutre... os olhos gelados, as mãos com longas
unhas negras... as vestes bolorentas, horrendamente antigas...
Daquela
batalha horrível, nunca me lembrei de muita coisa. Era um caos cego, no qual eu
gritava como uma besta, rasgava, golpeava e batia, onde longas unhas negras
como as garras de uma pantera me puxavam, e dentes afiados tentavam e tentavam
me atingir a garganta. Rolando e caindo pela escada, meio envolvidos pelas
dobras emboloradas daquela antiga capa apodrecida, golpeávamos e puxávamos um
ao outro, entre as ruínas da mobília despedaçada, e a fúria do vampiro não era
mais terrível que o meu desespero enlouquecido.
Espatifamos-nos
de ponta-cabeça numa mesa, derrubando-a para o lado, e um lampião a óleo – uma
relíquia antiqüíssima, talvez colocada lá por quem quer que liderasse os
vampiros – se despedaçou no chão, borrifando as cortinas com chamas súbitas.
Senti o arder
do óleo em combustão que o salpicou, mas, no frenesi vermelho da luta, não dei
atenção. As garras negras me puxavam violentamente, os olhos inumanos ardiam
geladamente em minha alma; entre meus dedos frenéticos, a pele definhada do
monstro era tão dura quanto madeira seca. E onda após onda de loucura cega caía
sobre mim. Como um homem que lutava contra um pesadelo, eu guinchava e
golpeava, enquanto ao nosso redor a fogueira saltava e alcançava as paredes e
teto.
Através de
jatos disparados e línguas lambedoras de fogo, cambaleamos e rolamos como um
demônio e um mortal guerreando nos pisos perfurados de fogo do inferno. E, no
crescente tumulto das chamas, juntei fôlego para uma última e vulcânica explosão
de força frenética. Desvencilhando-me e cambaleando para cima, ofegante e sangrando,
investi cegamente contra a forma repugnante e a agarrei num aperto do qual nem
mesmo o vampiro conseguiu se livrar. E, girando completamente meu agressor
demoníaco no alto, eu o arremessei para baixo, através da beirada erguida da
mesa caída, como um homem que pretende quebrar um bastão de madeira com o
joelho. Algo se partiu como um galho quebrando, e o vampiro caiu do meu aperto
para se contorcer numa postura estranha sobre o chão que queimava. Mas ele
ainda não estava morto, pois seus olhos flamejantes ainda ardiam para mim com
uma fome medonha, e ele se esforçava para brandir sua garra com a espinha
quebrada, como o faria uma serpente moribunda.
Cambaleando e
ofegando, sacudi o sangue dos olhos, recuperei minha espada e saí oscilando
cegamente pela porta quebrada. E, como um homem que sai dos portais do inferno,
corri aos tropeções através das escadas que levavam ao último andar. Olhando
para trás, vi que a criatura iria queimar até os próprios ossos ficarem
totalmente consumidos e destruídos.
Logo, como num
pesadelo, entrei em outra batalha demoníaca no escuro, onde o morto tentava
derrubar o vivo. Fui arremessado e desarmado novamente, com uma força de
despedaçar os ossos, contra as paredes. Lançado ao chão, o horror silencioso se
agachou como um vampiro sobre mim, seus dedos horrendos me afundando na garganta.
Sufocado e
ofegando, puxei as mãos estranguladoras para o lado e lancei a coisa para
longe. Por um instante, a escuridão nos separou novamente; então, o horror se
arremessou contra mim outra vez. Quando a coisa atacou, eu o agarrei às cegas e
consegui o aperto de luta que desejava; e, lançando toda a minha força por trás
do ataque, arremessei o horror de ponta-cabeça, caindo sobre ele com todo o meu
peso. A espinha do vampiro se quebrou como um galho podre, e as mãos
dilaceradoras amoleceram e os membros estirados relaxaram. Qualquer que fosse o
prazer profano que animava o cadáver, ele o havia abandonado quando o quebrar
da espinha havia desunido os centos nervosos e rompido as raízes do sistema
muscular. Era óbvio que, embora mais velho que a maioria dos vampiros que
matei, este último era mais jovem que o anterior.
Lendas pouco
conhecidas dizem que um vampiro, assim como uma grande serpente, quando está
bem-alimentado, cai num sono profundo e pode ser pego sem perigo. Seriam
verdadeiras as outras lendas – imortalizadas pela ficção de várias mídias –, de
que os vampiros não suportam a luz do dia? Eu não sabia e, naquele momento,
isso pouco me importava, pois a vida de minha amada esposa estava em perigo; e
se eu esperasse o nascer do sol, seria tarde demais para Shizuka.
Pegando de
volta minha katana – a qual ficara
longe de meu alcance desde o início daquela luta –, eu finalmente cheguei à
cobertura do prédio, e me deparei com o ser que liderava aquelas criaturas
macabras. Ela era uma mulher nua, flexível e parda, com olhos grandes
resplandecendo num rosto sem alma. Seus olhos eram eloqüentes de ódio e sua
boca, apesar de bela e vermelha, era inumana.
Aquela mulher,
que se identificara pelo nome de Lilitu, era uma criatura louca, megalomaníaca
e racista, a qual, objetivando fazer aquilo que ela chamava de “limpeza
racial”, raptava homens, mulheres e crianças não-caucasianos para sacrificá-los
sobre um altar de mármore branco, no alto do Ed. Themis – e agora não tão
branco, por causa da abundante quantidade de sangue humano derramado. Aquela
desgraçada arrancava os corações de suas vítimas e os lançava, ainda pulsantes,
para seus vampiros comerem! A próxima vítima da loucura de Lilitu seria minha
amada Shizuka.
Ela estava despida
e amarrada sobre o altar de mármore, os pulsos atados acima da cabeça a um anel
numa das extremidades do altar, os pés amarrados a outro anel na outra
extremidade, seus lindos olhos rasgados brilhando de desespero, seu belo corpo
tremendo de horror, seus longos cabelos de cachos negros e seus lindos peitões
de marfim esparramados sobre aquilo que poderia ser seu leito de morte. Quando
avancei para tentar soltar Shizuka, a bruxa começou a me hipnotizar, para que
seus vampiros me transformassem em mais um morto-vivo ao seu serviço.
3)
Enquanto eu sucumbia
ao seu feitiço, todo o cenário mudou e tudo foi apagado num grande movimento de
escuridão gelada. Houve uma sensação de arremesso através de um vazio de frieza
intolerável; um urro nos meus ouvidos, como de asas gigantescas. Logo, meus pés
bateram contra chão sólido; a estabilidade seguiu aquele instante caótico, que
havia sido como o momento de dissolução que junta ou separa dois estados de
existência, iguais em estabilidade, mas em classe mais estranhos que o dia e a
noite. Percebi que, naquele instante, eu havia cruzado um golfo inimaginável, e
que estava em terras nunca antes tocadas por pés humanos vivos.
Os dedos da
maldita Lilitu me agarravam o pulso, mas eu não conseguia vê-la. Eu estava numa
escuridão de um tipo que jamais havia encontrado. Era quase palpavelmente suave,
totalmente espalhada e totalmente envolvente. Estando no meio dela, não era
fácil sequer imaginar a luz do sol, nem rios brilhantes, nem o capim cantando
ao vento. Pertencíamos àquele outro mundo – um mundo perdido e esquecido no pó
de um milhão de séculos. O mundo de vida e luz era um capricho do destino – uma
fagulha brilhante, ardendo momentaneamente num universo de poeira e sombras.
Trevas e silêncio eram o estado natural do cosmo, e não a luz e os ruídos da
Vida. Não era de se espantar que os mortos dali odiassem os vivos, os quais
perturbavam a calma cinzenta do Infinito, com sua risada tilintante.
Os dedos de
Lilitu me arrastavam através de escuridão abismal. Eu tinha uma vaga sensação,
como a de estar numa caverna titânica, enorme demais para a compreensão. Eu
sentia paredes e chão, embora não pudesse vê-los nem nunca alcançá-los;
pareciam recuar à medida que eu avançava, embora sempre houvesse a sensação da
presença de ambos. Às vezes, meus pés agitavam o que eu esperava ser apenas pó.
Havia um cheiro empoeirado por toda a escuridão; eu cheirava os odores da
decadência e do mofo.
Vi luzes se
movendo como vermes incandescentes pela escuridão. Contudo, não eram luzes como
eu conhecia o brilho. Eram mais como manchas de uma escuridão menor, que
pareciam fosforescer apenas por contraste com as trevas envolventes, às quais
salientavam sem iluminarem. Lenta e laboriosamente, rastejavam pela noite
eterna. Alguém chegou muito perto de nós, meu cabelo se eriçou e agarrei a
espada. Mas Lilitu não deu atenção, enquanto me conduzia apressadamente. A
ponta fosca brilhou perto de mim por um instante; ela iluminava vagamente um
rosto indistinto, vagamente humano, embora estranhamente semelhante ao de um
pássaro.
A existência
se tornou algo obscuro e emaranhado para mim, no qual eu parecia viajar por mil
anos através da escuridão de poeira e decadência, puxado e guiado pela mão de
uma mulher-lobo. Então, ouvi o murmúrio dela assobiar entre dentes, e ela parou.
Diante de nós,
tremeluzia outro daqueles estranhos globos de luz. Eu não sabia dizer se ele
iluminava um homem ou um pássaro. A criatura estava ereta como um homem, mas
estava coberta de plumas cinzas – pelo menos, pareciam mais plumas do que qualquer
outra coisa. As feições não eram mais humanas que as deles eram de pássaro.
- Este é o
morador de Shuala, que pôs sobre você a maldição dos mortos – sussurrou Lilitu.
– Pergunte a ele o nome daquele que lhe odeia na terra.
- Diga-me o
nome de meu inimigo! – indaguei, tremendo ao som da minha própria voz, que
murmurava sombria e sobrenatural através da escuridão sem eco.
Os olhos do
morto brilhavam, vermelhos, e o mesmo foi até mim com um farfalhar de penas de
asas e um longo raio de luz, saltando de dentro da mão erguida do ser. Recuei,
agarrando a espada, mas Lilitu sibilou:
- Não, use
isto!
E senti um
cabo enfiado entre meus dedos. Estava agarrando uma cimitarra de lâmina curva,
em forma de lua crescente, que brilhava como um arco de fogo branco.
Aparei o
ataque da coisa-pássaro, e fagulhas choveram na escuridão, queimando-o como
partículas de fogo. As trevas se colaram em mim como um manto negro; a incandescência
do monstro emplumado me perturbava e frustrava. Era como enfrentar uma sombra
no labirinto de um pesadelo. Somente o brilho ardente da lâmina de meu inimigo me
protegia do seu toque. Por três vezes, cantou a morte em meus ouvidos, e eu a
desviei por pouco; então, minha própria lâmina em forma de crescente cortou a
escuridão e rangeu na articulação do ombro do outro. Com um grito agudo e
estridente, a coisa deixou cair a arma e despencou bruscamente, com um líquido
leitoso jorrando da ferida aberta. Ergui novamente a cimitarra, quando a
criatura arfou numa voz que não era mais humana que barras de galhos, sopradas
umas contra as outras pelo vento:
- Naram-Ninub,
o bisneto do meu bisneto! Através de artes negras, ele falou e me comandou
através dos golfos!
- Naram-Ninub!
– fiquei congelado de espanto. Novamente, os dedos de Lilitu se fecharam no meu
pulso. Novamente, a escuridão foi afogada em trevas profundas e ventos uivantes
soprando entre as esferas.
Cambaleei da
Casa de Arabu à luz da lua, do lado de fora da vila arruinada, oscilando com a
vertigem da transformação. Ao meu lado, os dentes de Lilitu brilhavam entre os
curvados lábios vermelhos. Agarrando as grossas madeixas amontoadas no pescoço
dela, eu a sacudi selvagemente, como faria com uma mulher mortal. Naquele
momento, percebi que eu não era Olavo – eu era Pyrrhas, o argivo que se
aventurara na Suméria e enfrentara Lilitu e seu amante, bem como a uma maldição
que me fora lançada pelo traiçoeiro Naram-Ninub, há milhares de anos. Lilitu, a
mulher-demônio que deu origem, séculos depois, à lenda de Lilith, na mitologia
judaica...
Percebi, então
que a katana, à qual eu empunhava no
século 21, era a mesma espada à qual os homens chamavam de Cortadora de
Crânios. Por Ymir, eu poderia cantar uma saga inteira sobre essa lâmina
reluzente! Ela brilhou através da história, como uma estrela de guerra e matança.
Não há lâmina como ela, nem nunca houve. Foi a espada de Golias, e com ela Davi
decepou a cabeça do gigante naquele sangrento campo de batalha. Ela foi a
espada de dois gumes do Islã, e lampejou na mão inconstante de Maomé, o
Profeta; sim, e por meios tortuosos antecedeu os muçulmanos Europa adentro; e
com ela nas mãos, Roland morreu na passagem de Roncesvalles. Richard, o Coração
de Leão, a usou, sem sonhar que manejava o próprio ferro quente de Durandal, do
qual Blondin cantou. Akbar talhou com ela uma estrada para um império; foi a
espada de Átila; e depois ficou pendurada por muitos anos no palácio de algum
príncipe afegão, até ser vendida no mercado negro durante a invasão dos
exércitos estadunidenses ao Afeganistão, em 2003, e forjada em forma de katana, até ir parar numa das lojas do
Shopping Center Lapa, onde eu a achei – ou melhor, reencontrei.
Eu mesmo a
forjara, na juventude do mundo, quando fui Brachan o celta, misturando no
bronze o sangue dos homens e dos tigres e, através de um estranho processo, que
nunca seria duplicado, o bronze adquirira a resistência e força do aço de
Damasco – inquebrável e imperecível. Tinha a largura de uma mão, abaixo da
guarda, se afilando até uma ponta afiada, com um curioso declive curvo que dava
às duas lâminas uma beirada quase côncava. O botão do punho da espada era uma
pesada bola de bronze... mas a Cortadora de Crânios era uma espada entre
espadas. Não consigo descrever a beleza dela, seu balanço e sua rapidez
elástica, mais do que a beleza de minha outra senhora: Shizuka Nakamura.
Fui homem em
muitas terras e condições; mas – e esta é outra coisa estranha –, minha linha
de reencarnação corre reta, seguindo um canal infalível. Exceto pelos mestiços
Gorm, do Povo do Bisão, e Olavo Roberto dos Santos, nunca fui outra coisa além
de um homem daquela raça inquieta, à qual os homens chamaram outrora de
nordheimeres; mais tarde, de arianos, e que hoje chamam por muitos nomes e
designações. A história deles é a minha, desde o primeiro gemido choramingante
de um macaco branco e sem pêlos, na desolação do Ártico, até o grito de morte
do último produto degenerado da civilização definitiva, em alguma obscura e
incalculável era futura.
Mesmo a
destruição do planeta não pode matar aquele espírito, seja seu fim o gelo
escurecedor sob um sol morto e gelado, ou a ira dissipadora de fogos cósmicos.
Mesmo que a terra exploda, como uma iridescente bolha de ar flutuando no golfo
do infinito, ainda assim, a vida não
é destruída. Já tive visões, vastas, terríveis e maravilhosas do cataclismo que
não destruirá o espírito que sou eu, mas irá arremessá-lo dentro de infinitos
incalculáveis, dentro de inimaginados oceanos de sóis e estrelas além da
percepção do homem, para tomar novamente toda a infindável sucessão em mundos
magníficos e estranhos, além dos vazios ressoantes.
Ah, já fui
muitos homens em muitas terras! O que será que não fui? Rei, guerreiro,
escravo; morri em Maratona, em Arbela, Cannae, Charlons, Clontarf, Hastings,
Agincourt, Austerlitz, São Jacinto e Gettysburg. Fui um anônimo chefe tribal,
montando um garanhão semi-selvagem, quando trouxemos o bronze para dentro da
Europa Ocidental; usei lança e escudo na falange macedônica, quando as
planícies da Índia estremeceram diante da travessia de Alexandre; puxei um arco
forte em Poitiers, quando nossas assobiantes nuvens de flechas romperam a
cavalaria da França; ouvi o ranger de couro, o retinir de esporas e o cantar
dos cavaleiros da noite, quando levamos os rebanhos de bois com chifres longos
a mugirem pela trilha indistinta à qual chamam Chisholm, para construirmos um
novo e jovem império, de couro, carne de boi e aço.
Meu nome foi
Ghor, Hialmar, Niord, Hunwulf, Hengibar, Brachan, Gorm, Pyrrhas, Tyr, Bragi,
Bran, Horsa, Eric, John e o inválido James Allison, dentre muitos outros. Ah,
amei tanto quanto matei e perambulei na juventude do mundo. Renunciei a coroas
para ganhar a mulher de minha escolha, e destruí impérios pela mesma razão;
acasalei-me em fumegantes campos de batalha, com o vermelho da matança ainda
coagulado em meus dedos e os gritos dos moribundos ressoando em meus ouvidos. Percorri,
com as mãos ensangüentadas, as ruas abandonadas de Roma, atrás de Brennus da
cabeleira amarela; vaguei através das plantações arrasadas, com Alaric e seus
godos, quando o fogo das vilas em chamas iluminou a terra como se fosse dia, e
um império dava suas últimas arfadas sob nossos pés calçados em sandálias;
vadeei, de espada na mão, através da rebentação espumante, desde a galé de
Hengist, para criar os alicerces da Inglaterra em sangue e pilhagem; quando
Leif, o Sortudo, avistou as amplas praias brancas de um mundo desconhecido, eu
estava ao lado dele no convés do navio-dragão, minha barba dourada soprada pelo
vento; e quando Godfrey de Bouillon liderou seus cruzados sobre as muralhas de
Jerusalém, eu estava entre eles, com gorro de aço e brigantina. E foi graças à katana – a qual me pertencera há
milhares de anos, com o nome de Cortadora de Crânios – que eu consegui me
livrar da hipnose de Lilitu.
4)
Despertando
daquele transe – que, na verdade, havia sido lembranças bastante úteis para mim
–, percebi que só havia um meio de salvar Shizuka e os outros prisioneiros, e
de livrar a cidade – e talvez o país e o mundo – daquela terrível ameaça.
Aproveitando a surpresa que brilhou nos olhos de Lilitu ao me ver desperto,
tracei um arco sangrento com minha espada curva, e o corpo da bela e perversa
feiticeira desabou para um lado, e a cabeça ensangüentada para o outro.
Não era do meu
feitio matar mulheres, mas se eu a poupasse, muita gente inocente teria
morrido.
Com a morte de
Lilitu, todos os vampiros retornaram à sua forma humana; o corpo da feiticeira
– assim como sua cabeça decepada – se derreteu em ossos, e estes viraram pó; e
a luz sinistra, irradiada pelo prédio – a qual barrava a entrada de todos ali,
menos a minha e a dos ex-vampiros com suas vítimas –, desapareceu completamente.
O fogo, que queimara um dos vampiros que matei, desapareceu milagrosamente
antes que queimasse a sala onde ele jazia. Cobri a nudez da aliviada e
recém-desamarrada Shizuka, com um robe que pertencera a uma falecida vítima
daquela mulher-demônio da Casa de Arabu.
Por um
momento, lembrei – e estranhei – o fato de Lilitu não ter tais faculdades, de
controlar vampiros e eles se dissolverem após a morte... É como se houvesse alguém
por trás daquela maldita criatura, à qual eu enviara para o inferno.
Contudo, meus
devaneios foram interrompidos, quando vi os prisioneiros vivos de Lilitu ainda
amarrados. Enquanto Shizuka se vestia com o robe com o qual eu a cobrira, eu
desamarrava aquele pessoal e a polícia adentrava o prédio. Dentre os
prisioneiros de Lilitu, reconheci um policial que trabalhava na Rua Chile, bem
como a minha amiga Kátia Augusta, professora de ginástica aeróbica e dona de
uma das melhores academias do bairro de Brotas – ambos fisicamente simpáticos e
constituídos com a selvagem economia de uma pantera.
A pedido
daquelas dezenas de ex-futuras vítimas de Lilitu, a polícia não me prendeu, mas
fui levado, junto com eles e Shizuka, para prestarmos depoimento na delegacia
mais próxima.
* *
*
“Qualquer outro lugar ao sol,
Outro lugar ao sul...
Céu azul, céu azul!
Onde haja só meu corpo nu junto ao seu corpo nu...”.
(Gilberto Gil, em “Vamos Fugir”/
1985).
Com a devida
licitação pública – e o apoio da aliviada e agradecida população da cidade –, o
então prefeito de Salvador me premiou com R$1.000.000,00 e uma aposentadoria,
ao saber de meus feitos. Com este dinheiro, eu e Shizuka finalmente nos mudamos
daquele muquifo onde morávamos, no bairro da Liberdade, e fomos viver numa
distante tribo indígena, totalmente desconhecida pelos “civilizados”, onde eu e
minha amada esposa geramos e criamos um casal de gêmeos, educando-os de acordo
com o Estatuto da Criança e do Adolescente, através do exemplo e sem jamais
bater – que pouco ou nada diferia da maneira como a maioria dos nativos
remanescentes do Brasil ainda faz (pelo menos, aqueles não perderam sua cultura
original).
Somente meu
amigo Jeremias – que era uma pessoa de confiança – foi informado sobre meus
planos de viajar para viver entre índios, embora nem ele soubesse ao certo para
que local eu e meu grande amor iríamos morar.
Enquanto desfrutávamos de uma vida paradisíaca entre o povo que nos
acolheu – eu sempre vigilante, com a Cortadora de Crânios em forma de katana, alerta para possíveis invasores,
os quais felizmente nunca chegaram lá (talvez a katana tivesse, de alguma forma, a capacidade de manter nossa tribo
invisível às pessoas mal-intencionadas) –, fiquei novamente intrigado com o
fato de Lilitu, uma mulher-demônio dos sumérios,
que, com raras exceções, só fazia levar os mortos à sombria Casa de Arabu,
querer exterminar a população que não era 100% européia em Salvador.
De vez em
quando eu sonhava – ou melhor, me lembrava – com a época quando fui um dos
vanires que invadiram e tomaram a Stygia durante a última glaciação, transformando-a
no Egito, e, dentro de uma pirâmide negra em Khemi, me deparei com uma estranha
stígia branca, alta, de cabelos negros, e olhos luminosos e igualmente negros. Naqueles
sonhos, ela tentava me atacar com seus caninos afiados, mas recuava diante de
minha espada e sempre fugia com sua horda diabólica, ao ouvir os alaridos da
horda ruiva de Egil – o qual se tornaria o novo rei da Stygia e cujo nome
renomearia aquele país – adentrando a enorme pirâmide, onde aquela vampira
vivera durante milênios.
Aquele sonho
parecia ser uma pista para minhas dúvidas – mesmo porque, antes de tentar me
atacar, ela parecia saciada com o sangue que sugara de dois conterrâneos meus,
como nunca se sentira com pessoas não-arianas.
Não restavam
dúvidas de que havia alguém por trás dos atos malignos de Lilitu! Alguém cheia
de esconderijos e de planos de fuga, cheia de tempo ilimitado e de servos que
não sabem para quem está trabalhando. Alguém que talvez tenha até matado Adart Lili, amante de Lilitu! Tal pessoa só podia ser a vampira, que havia
fugido de mim e dos vanires, há muitas eras; que provavelmente sugaria o sangue
dos poucos brancos que restassem em Salvador, e de cujo nome nunca consegui me
lembrar – se é que ela o havia dito para mim.
Mas aquilo já
não me incomodava nem me incomoda mais. Vivo e amo minha Shizuka, nossos filhos
e a valorosa tribo que nos acolheu; e somos todos felizes como nunca fomos em
nossas vidas!
FIM
Agradecimentos
especiais: Aos howardmaníacos e amigos Osvaldo Magalhães e Ricardo
Highlander, de Brasília (DF), e Deuce Richardson, dos EUA; e à minha amada
esposa Edilene Brito da Cruz de Aragão.