A Perigosa Helen Tavrel – Parte 2

(por Keith J. Taylor)



- Sou provavelmente a melhor atiradora de pistola do mundo – disse a garota modestamente –, mas a lâmina é a minha querida.
Ela puxou sua fina espada de dois gumes, e talhou e trespassou o ar.
- Vocês, marujos, raramente apreciam o verdadeiro valor do aço reto – ela disse. – Olhe para você, com esse sabre desajeitado. Eu poderia lhe atravessar, enquanto você ainda o estivesse erguendo para talhar. Assim!
A ponta da espada dela subitamente saltou para fora, e um cacho de meu cabelo planou até a terra”.
(Robert E. Howard – “A Ilha da Perdição Pirata)


A filha adotiva de Roger O’Farrel havia acabado de completar sua primeira verdadeira viagem no Caribe, disfarçada a bordo de um dos dois navios que O’Farrel tomou para perseguir o rude l’Ollonais. Havia durado um ano, e Helen tinha agora 16 anos. Havia aprendido um pouco de náutica, muitas artimanhas piratas, o trabalho de carregador de pólvora, e visto um pouco de ação, como quando os dois navios de O’Farrel desembarcaram contra a frota de l’Ollonais e inutilizaram os mastros e cordames. No final, O’Farrel havia levado l’Ollonais para seu fim, nas mãos dos índios selvagens na costa de Honduras – embora nem um pouco mais selvagens que o próprio l’Ollonais.

Enquanto retornavam para Havana, encontraram um navio inglês da esquadra jamaicana, equipado com 40 canhões – mais do que as duas fragatas cubanas, a San Patricio e a Pilar, tinham entre elas. Mas eram dois navios, cada um deles mais manobrável que o navio inglês, e dançaram ao redor dele, lançando tiros para dentro de sua popa e quadras da popa, até a embarcação ter que abandonar a luta e fugir para Kingston – com uma nova história para contar ao governador da Jamaica sobre o maldito O’Farrel. Helen foi novamente uma participante entusiasmada da ação, como carregadora de pólvora, levando cargas e balas para os canhões da tripulação do Pilar.

Ao retornar para Havana, Helen enfrentou novo perigo de alguém a quem havia esquecido completamente – e, no que diz respeito ao assunto, ela não achava que valia a pena se lembrar. O degenerado mexeriqueiro que a emboscou e à sua amiga Renata numa praça pública, quando Helen estava disfarçada de garoto, e teve seu rosto talhado pelo florete de Helen, guardava rancor. Agora ele sabia, assim como a maioria da cidade, sobre a viagem de Helen a bordo do Pilar em perseguição a l’Ollonais – novamente disfarçada de garoto. Ele tinha inteligência suficiente para fazer a associação. Enquanto seu pai adotivo O’Farrel fosse um servo estimado do capitão geral da cidade, esse jovem aristocrata devasso não ousaria em sã consciência tocá-la. Mas a situação mudou no final de sua bem-sucedida viagem para destruir l’Ollonais. O capitão geral Francisco de Ávila renegou o prometido pagamento a O’Farrel por aquela tarefa imensamente perigosa, tentando enganá-lo com 1/50 do total, o que O’Farrel rejeitou furioso. O resultado foi uma discussão borbulhante e o total rompimento entre os dois homens.

Helen agora era jogo seguro aos olhos do mexeriqueiro.

Ele nunca esteve tão errado – e nunca estaria novamente.

Pegou-a sozinha nas ruas de Havana, e trouxe dois amigos com ele para compartilhar da diversão de brutalizá-la. Helen Tavrel tinha uma pistola naquela época, a qual ela nunca se preocupou em sacar. Usava sua lâmina. Desta vez, ela não resolveu o problema transpassando o ombro de alguém. Trespassou o corpo do líder e de um dos seus comparsas – fatalmente em ambos os casos. O último fugiu. Foram os primeiros homens aos quais matara. Não havia muito tempo que ela completara 16 anos.

Por essa razão, e por causa de sua discussão com de Ávila, O’Farrel deixou rapidamente Havana, levando Helen consigo. Seus criados Ramon, Eulália e a filha deles Renata, amiga de infância de Helen, fugiram com eles, antes que as famílias dos jovens que Helen matara se vingassem neles. Viajaram para Santiago, na costa sul de Cuba. Aquela cidade também tinha seu capitão geral, um amargo (e não menos desonesto) rival de Francisco de Ávila.

O’Farrel chegou a Santiago no San Patrício e com nenhum outro navio. De Ávila havia se apossado do Pilar e do galeão Santa Barbara, os quais O’Farrel usava ocasionalmente. (Ele havia desapropriado o San Patrício também, mas aquilo não havia detido O’Farrel. Ele simplesmente pegou o fragata e partiu. Ele já havia tirado navios de portos vigiados antes.)

Sua filha adotiva havia alcançado uma idade inquieta, mesmo que ela não fosse tempestuosa e propensa a muitas aventuras de infância – o que ela era. Ansiava pelo tipo de vida errante e lutadora que O’Farrel vivera, e em Santiago ela deixou isso bem claro para ele, combinando a astuta persuasão de uma filha adorada com a determinação feroz de uma pirata nata. O’Farrel se entristeceu com este desenvolvimento. Mesmo assim, ele conhecia a si mesmo, ao tipo de exemplo que dera a ela e ao sangue dos Taverels que ela carregava. Se não a deixasse ir, ela iria assim mesmo. Ela já o fizera, na perseguição a l’Ollonais.

Finlo Hilton, o manês chamado Hilton Sanguinário, havia sido um dos capitães de l’Ollonais na última e mal-sucedida viagem do selvagem pirata, e um daqueles que sobreviveram porque havia desertado da frota principal antes do fim. Helen não se importava com qualquer rancor que Hilton pudesse guardar contra seu pai adotivo; ela o procurou com um pedido que era mais uma ordem: navegar com a tripulação de sua chalupa de onze canhões (oito canhões pequenos e três armas giratórias), a Serpe (*).  Hilton era vaidoso e preferia comandar um navio maior, com mais peso de armas, não apenas pelo efeito de intimidação sobre vítimas potenciais, mas pelo prestígio dele, muito embora um navio mais leve, que arrastava menos água, fosse superior pelo trabalho rápido, quase em direção à costa; e ter uma tripulação menor significava menos homens para dividir o saque. Helen, com uma atitude diferente, se sentia bem melhor por estar navegando uma chalupa.

Hilton riu dela e a chamou de garotinha, mas, sob seu escárnio, diferentes motivos e considerações lutavam dentro dele. Ele se recusava a admitir, mesmo para si próprio, que temia O’Farrel e as conseqüências, se Helen fosse ferida a bordo do navio de Hilton. Ainda assim, seria uma grande vingança se aquilo viesse exatamente acontecer. Dentro de seu coração negro, ele obteve um compromisso: que a garota fique a bordo da Serpe e assuma seus riscos. Era improvável que ela durasse uma viagem neste tipo de companhia. E Hilton poderia garantir que tinha um navio formidável sob os pés na época em que O’Farrel navegava em perseguição ao manês.

- Sou o capitão, e mais ninguém – ele rosnou –, e você só pisa em meu convés por sua conta e risco, atrevida.

- Está ótimo – ela retrucou – e eu aceito. Do mesmo modo que fique claro que qualquer homem seu me insulte e tente me violar por conta e risco dele.

Hilton Sanguinário riu novamente. Fazia por merecer seu apelido. Um homem moreno, de braços longos, com um rosto cheio de erupções, olhos protuberantes e uma testa saliente, sua feiúra não era ajudada pela boca carnuda de lábios frouxos. Mas comandava cada abordagem e era capaz de partir um homem da cabeça até o osso do peito, com seu sabre, o que era mais importante do que ser bonito em seu ofício. Era inclusive um marinheiro promissor, e havia sido desde sua infância na Ilha de Man, embora seu mestre de navegação Shannet fosse seu superior lá, além de ser mais esperto e inventivo.

A viagem de Hilton para a Costa Mosquito e Honduras com l’Ollonais dera realmente errado, de modo que ele resolveu evitar aquelas regiões naquele momento, embora continuasse viajando para oeste. Seus objetivos eram Campeche e Veracruz, no Vice-Reino da Nova Espanha. Com apenas uma chalupa, também não havia chance de saquear qualquer cidade, como Myngs, inimigo de O’Farrel, havia feito em 1663 – que havia tomado uma frota bucaneira –, mas os navios partiram de Campeche no inverno, e eram freqüentemente navios de contrabando com cargas ilegais, fugindo às draconianas leis espanholas de comércio, dirigindo-se a Trinidad.

Hilton ficou à espreita, na esperança de emboscar tais navios. Neste momento, ele apreciou um golpe direto de sorte. Um filibute holandês saiu do porto e cruzou-lhe o caminho. Esses navios exclusivamente mercantes haviam sido desenhados com espaço para carga e eram manuseados por pequenas tripulações. Por comercializarem freqüentemente no Báltico, tinham um corte transversal meio em forma de pêra, pois taxas e tarifas bálticas foram baseadas na área do convés de um navio. Assim, um convés estreito com um porão arredondado economizava dinheiro. Sua estrutura rasa os permitia, como uma chalupa pirata de um só mastro, negociar em portos rasos e entrar em ancoradouros fluviais. Sua desvantagem era que raramente carregavam tripulações ou armas suficientemente grandes, para repelirem piratas. Hilton estava deleitado.

O navio mercante adernou e esvaziou o convés para lutar, caso falhasse em ultrapassar a Serpe de Hilton. A chalupa logo o derrubou, o filibute estando “em péssima arrumação” – sua carga desequilibrada no porão. Helen ficou tão ansiosa quanto qualquer um dos impiedosos cães-do-mar de Hilton, esperando no parapeito com o florete na mão e uma cinta de pistolas lançada de um lado a outro do peito.

Hilton Sanguinário pôs sua chalupa contra a popa do holandês, para lhe esvaziar o convés com tiros de canhão. Os quatro canhões ao longo de um lado da Serpe atiraram, varrendo o navio mercante da popa à proa, deixando sangue e homens mutilados no convés. Então partiram para a abordagem. Era esquisito com a Serpe contra a proa do navio holandês, porém ótimo para um bombardeio, mas Helen estava entre os primeiros sobre o lado, pulando e estocando entre os marujos sobreviventes do convés do filibute. Um homem caiu gorgolejando, perfurado no pescoço, e, sacando a pistola, ela baleou um segundo. Um terceiro marujo, armado com um machado de abordagem, ela distraiu com uma finta de seu florete, e então lhe enfiou a pistola vazia no olho e usou o florete seriamente para lhe atravessar as tripas. Os outros piratas invadiram os conveses e mataram todos os homens a bordo, como era o costume de Hilton.

A carga mostrou ser proveitosa: sal, cera, algodão e pau-campeche mexicano, que produzia um valioso corante. Hilton propôs que eles agora viajassem para Iucatã e para o sul, em direção a Porto Bello e Cartagena. Se não encontrassem presas válidas naquelas águas, poderiam navegar ao longo da costa setentrional da América do Sul em direção a Trinidad, onde contrabandistas e mercadores de todas as nações comercializavam constantemente, apesar da ilha estar sob governo espanhol. O governador, dificultado por fracas fortificações e uma guarnição tão pequena que uma tripulação bucaneira média – e principalmente uma frota – riria ruidosamente ao ser confrontada por ela, nada podia fazer, exceto aceitar subornos e olhar para o outro lado. A tripulação de Hilton aplaudiu a idéia, Helen Tavrel entre eles.

Seu pai adotivo sendo quem era, Helen conhecia vários artifícios bucaneiros. Ela sugeriu o truque comum de usar um navio capturado como chamariz; hastear a bandeira tricolor holandesa sobre o filibute e navegar nele de forma pacífica, na esperança de que algum navio mercante se aproximasse buscando a segurança nos números, ou simplesmente notícias. Hilton concordou, e pôs 30 de seus 70 piratas a bordo do filibute, um deles um holandês chamado Venneker, posando como seu capitão.

A trama não teve resultados durante a parte seguinte da viagem, e nenhuma presa provável foi avistada entre Porto Bello e Cartagena. Com relação a Macaraibo, Hilton nem sequer considerou uma incursão lá. A entrada era muito estreita, o porto muito bem defendido, e ele não tinha a força para um bem-sucedido ataque terrestre. Bucaneiros experientes que eram – e homens de espírito, pelo menos, além de patifes sanguinários –, a tripulação de Hilton aceitou isto como uma circunstância freqüente e não reclamou. Filhotes viçosos no ofício, esperando gloriosos sucesso e riqueza por três dias numa viagem, o teriam feito.

Entre Macaraibo e Curaçao, o tédio se apoderou da tripulação, além de queixas, e o homem inevitável tentou sua sorte libertina com Helen Tavrel. Sua luta feroz quando tomaram seu primeiro prêmio havia sido observada por alguns, e eles a aceitaram, mas esse pirata não tinha visto e duvidava disso. Também duvidava que ela pudesse ser virgem, já que ela quis navegar numa embarcação como a Serpe. Ela lhe recusou os avanços antropóides, e tentou lhe dar uma joelhada entre as pernas, mas ele era um brigão experiente e deteve aquele golpe tão naturalmente quanto bebia rum. Então começou a tentar subjugá-la. Helen se lembrou do conselho de uma garota da beira-mar, e fingiu se submeter e corresponder, para em seguida lhe arranhar os olhos com os dedos enrijecidos. Aquilo aconteceu durante o tempo suficiente para que ela se desvencilhasse e desembainhasse o florete. Chamando a tripulação, ela acusou o bucaneiro e o desafiou para um duelo. Aconteceu da forma usual: os combatentes desembarcaram num baixio com uma pistola cada um, e apenas um retornou. O quase-estuprador de Helen ficou para trás, com uma bala fatal no pulmão. Ela aprendera a matar em Havana; agora estava aprendendo a matar imediatamente.

O homem morto não tinha nenhum marujo que quisesse vingá-lo. A Serpe prosseguiu até Curaçao, mas Hilton não desembarcou lá, após refletir um pouco. Seu filibute capturado tinha um holandês que poderia se passar por seu capitão, mas todos os outros homens a bordo eram ingleses, escoceses ou negros, e a maioria era muito claramente irmã do ofício de bucaneiro. Ele evitou a ilha e ficou espreitando a pouca distância da praia. Curaçao era um notável porto e mercado para o comércio de escravos. Escravistas vindos da África Ocidental chegavam com suas cargas o tempo todo, vendiam seus bens humanos e – muito freqüentemente – carregavam seus navios com melaço que levavam à Nova Inglaterra.

Logo apareceu um navio traficante holandês de escravos. O filibute de aparência inocente, sob a bandeira das planícies, boiava à vista do escravista, o qual naturalmente perguntou como estava o mercado em Curaçao: faminto ou abarrotado. A maioria dos navios negreiros eram filibutes, como a embarcação capturada por Hilton; seus grandes porões os tornavam apropriados para acomodar grandes quantidades de escravos, e os holandeses haviam dominado a habilidade de construí-los a baixo custo e em massa. Este, no entanto, era uma exceção, com fileiras mais afiadas e soltas, e vários canhões. Vendo-o, Hilton Sanguinário estava pronto para apostar à primeira vista que ele praticava tanto pirataria quanto tráfico de escravos. Também o desejou à primeira vista. Era maior e mais rápido que a Serpe.

Sua própria rapidez dava uma melhor chance de fuga, se Venneker mostrasse cedo demais suas verdadeiras cores, mas a proximidade à praia fez o capitão escravista se sentir seguro. Ele permitiu que o filibute chegasse perto. Venneker ficou ao lado, abordou a meio-navio e seus 30 demônios mataram temerariamente até Hilton na chalupa vir para ajudá-los; quase não chegava a tempo. Helen Tavrel, rindo e praguejando alternadamente, esvaziou as pistolas e então atravessou a fumaça e o sangue do grosso da luta, até o navio negreiro ser deles.

Hilton e seu conselho decidiram que eles o levariam para Barbados, onde escravos eram sempre necessários para as plantações de açúcar, e venderiam a carga humana. Isto perturbou Helen mais do que o sangue e a matança, pois Roger O’Farrel era seu pai adotivo e ele odiava escravidão; Cromwell havia mandado milhares de irlandeses para a escravidão, ou para a servidão contratada que era um pouquinho melhor, aqui nas Índias. Barbados havia sido o destino de muitos, e Virginia o de outros.

Selvagem e destemida numa luta, totalmente mulher na idade pelos padrões da época, Helen ainda era uma adolescente capaz de se sentir desconcertada e assustada diante da perspectiva de se parecer tola. Se falasse em libertar os escravos, ouviria enormes gargalhadas, como ela sabia. Reuniu toda a sua coragem, e chamou a atenção para o fato de que o navio por si só já era um ótimo prêmio, enquanto uma carga africana continha perigo de revolta e eles não poderiam pôr toda uma tripulação a bordo, para evitá-la. A melhor atitude seria deixá-los ir embora.

Hilton zombou da idéia.

- Se eu decidir que os bumbos são um perigo, eu os jogarei ao mar, ao invés de deixá-los delicadamente em alguma praia confortável – ele disse.

Os bucaneiros votaram acerca do assunto, enquanto Helen suava frio, ao perceber que talvez suas palavras tivessem condenado todos os africanos à morte. No final, a decisão de vendê-los em Barbados foi a que prevaleceu, e Helen apertou os lábios, aliviada.

Hilton vendeu o filibute holandês juntamente com seu conteúdo, de modo que a viagem provou ter sido boa. Ele tentou trapacear Helen sobre a porção dela, dizendo que, uma vez que ela fora contra vender os africanos, não precisava esperar o lucro. Ela recusou aquilo abruptamente. Um capitão bucaneiro só podia esperar problemas, se ele quebrasse a cláusula que dizia respeito à partilha do saque, e Helen havia lutado bem. Ela sabia que o restante da companhia a ajudaria nisto, e eles o fizeram.

Hilton terminou a viagem na Jamaica, em busca de uma farra em Port Royal. Para o manês era seguro, mas para a filha de Roger O’Farrel não, e alguém havia tentado vendê-la aos ingleses dez anos antes. Ela desconfiava de Hilton. Fugindo de Port Royal com seus ganhos amarrados numa faixa de algodão, ela passou fuligem no seu cabelo loiro, roubou roupas sujas e um pequeno bote, e seguiu seu próprio caminho até o sul de Cuba. Havia praticado aquele ardil naquele momento, e conhecia aquilo de trás para frente.

Helen Tavrel havia começado a criar renome entre os bucaneiros.




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.



A Seguir: A Perigosa Helen Tavrel – Parte 3.




Compartilhar