Os Pictos Águias

(por Fernando Neeser de Aragão)



A aldeia do chefe deles ficava mil léguas a oeste dali; mas, como seu xamã estava com eles, aqueles malditos selvagens de pele escura, estatura baixa e olhos negros como contas haviam resolvido me sacrificar ali mesmo. Usavam tangas de pele de gamo, enfeitadas por contas, e uma pena de águia estava enfiada na negra cabeleira de cada um; estavam pintados com desenhos hediondos e pesadamente armados – eram os malditos pictos Águias! Eu, Conan da Ciméria, estava com os pés e mãos amarrados a uma estaca de madeira do clã dos Águias, com os uivos dos enlouquecidos adoradores em meus ouvidos, bem como a risada do sacerdote deles – suas plumas balançando ao forte vento do sul naquela noite quente. Aqueles uivos humanos eram ecoados por uivos inumanos, semelhantes aos de almas penadas e vindos de pântanos próximos, nos quais abundavam criaturas demoníacas, para as quais aqueles selvagens pintados queriam me sacrificar.

Ao meu lado, em outra estaca, jazia o último dos guardas que Lorde Valerian mandara como escolta em meu retorno ao Forte Tuscelan, grato por eu ter devolvido sua bela irmã Amaltheia sã e salva a ele (por Crom, o Forte Tuscelan não era o lugar adequado para alguém como Amaltheia; e, por isso, eu a deixei na casa de Valerian, e o aconselhei a mandá-la para algum local mais seguro, como Tauran, ou, de preferência, Tarantia). Somente eu e um pobre soldado bossoniano havíamos sobrevivido a um ataque-surpresa de pictos a caminho do forte.

A fumaça de suas fogueiras fazia uma bruma que ofuscava o anel de rostos escuros que me cercavam. O soldado bossoniano ao meu lado já jazia morto em sua estaca, sua alma sugada por um demônio invocado pelo xamã. Logo, aquela criatura, à qual aquela tribo adorava, viria buscar minha alma – ou eles invocariam outro horror daquele mesmo pântano, para me condenar a um destino pior que a morte.

Agora, os pictos começavam a cercar tanto a estaca onde eu me encontrava quanto o círculo de fogueiras, cantando e saltando em sua dança sacrifical.

Contudo, mesmo as amarras pictas não eram suficientes para deterem um cimério! Isso sem contar que meu pavor pelo sobrenatural me havia aumentado as forças, e aquelas não eram cordas tão fortes quanto as de um navio, e nem sequer correntes. Assim, com toda a força de meus músculos contraídos pelo desespero, arrebentei minhas amarras.

Num instante, eu estava correndo dali, em direção ao meu elmo, cota-de-malha e espada, que estavam largados no chão; esmurrei a torto e a direito até alcançar os três objetos mais importantes para minha sobrevivência, enquanto aqueles selvagens enlouquecidos uivavam, e flechas e lanças voavam próximas a mim. Entretanto, ao ver que as flechas haviam parado e a criatura disforme continuava me perseguindo, vi que seria alcançado por ela antes que aqueles malditos Águias o conseguissem. Sabendo que minha espada seria inútil contra aquele monstro sugador de almas, agarrei uma das lanças que aqueles demônios pintados me arremessaram e a lancei no coração negro do bruxo daquela tribo. Enquanto ele caía morto, o ser demoníaco se dissolveu e sumiu. O bando caiu em silêncio. Mas, logo depois de refeitos da surpresa, os pictos retomaram a perseguição.

Foi quando percebi que, à frente deles, corria outro homem, usando as mesmas roupas e enfeites daquele a quem eu matara – era um novo bruxo! Agarrei outra lança e a arremessei em direção àquele novo xamã, mas uma multidão daqueles cães pintados se colocou entre ele e eu, de modo que um deles recebeu o longo dardo picto no lugar do líder feiticeiro dos Águias. Rapidamente vesti minha cota-de-malha e elmo, enquanto abria caminho para fora daquele círculo humano – que logo começou a se fechar ao meu redor – e de fogueiras, derramando sangue, miolos e entranhas pictas em meu caminho até o sul.

Logo, dei meia-volta e, com um grito feroz de alegria – pois, naquele momento, eu era novamente Conan, da Tribo do Grande Lago, nascido e criado em meio a um povo que encontra prazer na loucura da batalha –, corri até um picto que corria uivando em minha direção. Cortei aquele uivo, quando minha espada lhe rasgou os músculos grossos do pescoço e ele caiu, jorrando sangue, com sua cabeça pendurada por um retalho de carne. Outros daqueles demônios pintados investiram contra mim, ganindo como um bando de cães de caça, mas, com um golpe ascendente de minha espada, transformei o rosto do picto mais adiantado numa ruína vermelha. Saltando, esquivando-me e contra-atacando, eu evitava aqueles machados que golpeavam, como só um cimério sabe evitar. Parti a cabeça de mais um, como se fosse um melão, fazendo seus miolos jorrarem; derramei as tripas de outro, com um giro de minha lâmina, e, quando mais outro se lançou contra mim, dando um golpe descendente com seu machado, eu detive, com minha espada, seu pulso que descia. Sua mão voou do pulso num arco escarlate, e em seguida, eu lhe abri ferozmente o peito musculoso, cortando-lhe costelas, coração e parte dos pulmões. Em seguida, dei prosseguimento à minha fuga.

Ouvi aqueles cães falarem em ir para “um arvoredo sagrado para Jhebbal Sag”, enquanto eu corria para o sul – o bando estava próximo demais do Rio Negro para que eu o atravessasse diretamente dali. Logo entendi o que aqueles pictos queriam dizer com isto.

Ouvi o quebrar de um graveto atrás de mim e dei meia-volta. Era uma criatura obscura, indistinta e bestial, mas vagamente humana no contorno. Segundo os gritos agudos dos selvagens Águias e seu xamã, era um macaco-touro, uma coisa que, para eles, era sagrada ao Peludo que vive na lua – o deus-gorila Gulah. Mas não tive tempo de escutar mais nada do que falavam, pois a criatura já estava quase me agarrando com seus braços disformes. Minha espada lhe atravessou a barriga, de modo que a ponta da arma se sobressaiu pelas costas da coisa; mas o monstro não caiu. Logo, ele me apertava com seus braços grossos e peludos, de força tão inumana quanto sua aparência.

Aqueles enormes braços musculosos me espremiam cada vez mais forte, tirando meu fôlego e ameaçando quebrar minhas costelas. Minha cota-de-malha quase não servia para me proteger, pois, apesar de resistir a golpes de espadas e outras armas, era – como todas as malhas metálicas – flexível demais para proteger um corpo humano de uma pressão como aquela. Gritei de dor, enquanto ouvia os brados de alegria daqueles malditos pictos que assistiam à cena, enquanto brumas negras e escarlates giravam aos meus olhos, tirando-me a visão. E o odor da pele e corpo da coisa me latejava na cabeça, mas, ainda pior era o fedor de seu bafo. A consciência me abandonava lentamente, enquanto aqueles poderosos braços de pêlos emaranhados se apertavam ao meu redor, ameaçando me partir em dois.

Súbito, senti que o aperto da criatura se afrouxava, tão rápida e convulsivamente quanto havia se firmado. Então, vi o ódio e a dor misturados em seu rosto simiesco, e percebi que, durante aquele abraço fatal, minha espada havia afundado ainda mais nas entranhas do monstro e, com um movimento brusco de meus braços férreos, me livrei do aperto daquele ser repulsivo. No instante seguinte, arranquei minha espada de sua barriga num único puxão, e logo depois enfiei a lâmina no peito peludo do macaco-touro, arrancando-lhe um grito. Em seguida, ele estremeceu e desabou, contorcido e morto, ao solo.

Por um instante, os pictos ficaram pasmos novamente; em seguida, duas serpentes pictas me atacaram a um comando do bruxo. Agarrei a primeira pelas têmporas, cortando-lhe o corpo ao meio, enquanto a outra tentava se enroscar em meu corpo. Antes que ela o fizesse, eu lhe decepei a cabeça peçonhenta, fazendo seu corpo se debater em convulsões mortais para longe de mim. Agarrando um machado picto, eu o arremessei certeiro na cabeça de uma pantera invocada pelo bruxo e decepei, com um só golpe de minha espada, a cabeça de um leopardo que investia em minha direção.

Então, me lembrei das palavras do velho caçador de bruxas de Kush, há alguns anos, e percebi – dadas as lutas que eu acabava de ter – que, naquela área, havia mais bestas que se lembravam de Jhebbal do que em qualquer outro lugar.

Um picto brandiu seu machado contra mim, mas lhe detive o golpe descendente com minha espada, acertei um murro no estômago do miserável e lhe abri a cabeça até os dentes, com minha lâmina. Decepei a cabeça de outro picto, e o braço de mais outro – em cujo peito arremessei, logo depois, o machado do picto ao qual eu decapitara, pois um inimigo bom é um inimigo morto. Em seguida, com quatro jorros escarlates feitos pelos giros de minha lâmina, abri o peito e barriga de mais dois, e decapitei mais dois que estavam no caminho.

Decidido a não arriscar minha espada, aproveitei que havia menos pictos ao redor do bruxo, agarrei o machado de um dos Águias mortos e o lancei, certeiro e fatal, na testa do bruxo, fazendo-lhe o crânio explodir em sangue e miolos. Saí correndo, sabedor de que, assim que aqueles malditos se refizessem desse elemento-surpresa, eles, mesmo sem seu atual líder-feiticeiro, me perseguiriam vingativamente, com uma sede de sangue maior do que nunca, por causa da morte do feiticeiro. Meus pulmões já doíam devido à longa corrida, e minha garganta estava seca devido à exaustão. Mas eu corria, indiferente a tudo isso, até chegar a uma pequena clareira.

De repente, aqueles cães pintados pararam, enquanto eu avistava paliçadas de madeira avultando no horizonte. Apavorado, um deles grunhiu “Gwawela!”, e todos fugiram correndo para sul e oeste, evitando passar pelo maldito pântano. Então, percebi que eu estava relativamente próximo à tão falada aldeia da maldita picta, a quem eu matara há vários dias, chamada Manatha, a qual, junto com o também falecido Garogh, ameaçara a vida de Amaltheia.

Sem perder tempo, dei a volta para leste, mergulhei no Rio Negro, são e salvo, até a outra margem, e de lá para o Forte Tuscelan.





Epílogo: Apenas o Forte Tuscelan oferece proteção aos colonos da região da Terra dos Pictos conhecida como Conajohara, situada entre o Rio Trovão e o Rio Negro. Conan salva a vida de um jovem colono chamado Balthus, e logo se vêem enfrentando um demônio da floresta a serviço do mais poderoso dos xamãs pictos, Zogar Sag.
Após várias emboscadas e capturas, a dupla se vê perseguida por feras selvagens que servem a Zogar Sag; Conan espanta os animais com o antigo sinal de Jhebbal Sag, o qual aprendeu anos atrás. Ele tenta alertar o forte, mas este já está sob ataque e condenado. Conan deve finalmente matar tanto Zogar Sag quanto o demônio da floresta, que é um filho de Jhebbal Sag, buscando se vingar do cimério por este ter usado o símbolo. Balthus é morto pelos pictos, e Conan promete matar dez pictos em retribuição (Além do Rio Negro/ Conan, O Bárbaro, Ed. Évora/ http://cronicasdacimeria.blogspot.com.br/2007/09/fronteira-do-fim-do-mundo-beyond-black.html).



Agradecimentos especiais: Ao howardmaníaco e amigo Osvaldo Magalhães, de Brasília – DF.




A Seguir: O Estrangeiro Negro (sinopse) – por Robert E. Howard.


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