Amalric da Aquilônia

(por Fernando Neeser e Osvaldo Magalhães)



Argos recrutou um exército de mercenários, os quais entraram em navios e navegaram ao longo da costa. Ao mesmo tempo, um exército kothiano invadiria a Stygia por terra. Seu líder é o príncipe zíngaro Zapayo da Kova. Como a maioria dos zíngaros, o príncipe Zapayo é um homem alto, moreno e magro, de rosto aquilino, e cabelos e olhos negros, usando um elmo morion e uma armadura de cota-de-malha sob as sedas que lhe recobrem o corpo esguio.

Dentre aqueles mercenários na frota, há um punhado de não-argoseanos. Entre estes últimos, se destaca um que, apesar da aparência ocidental, não é hiboriano nem civilizado. Embora seja tão alto e de cabelos tão negros quanto os de Zapayo, é um dos guerreiros de musculatura mais avantajada ali, e seu torso grande e bem-torneado é coberto por uma cota-de-malha, da qual se desfralda um manto vermelho. Sob suas espessas sobrancelhas negras, num rosto moreno, cicatrizado e emoldurado por uma desgrenhada cabeleira negra, se destacam olhos tão azuis quanto os mares ensolarados ali percorridos. É quase um gigante em altura e musculatura.

Naquele momento, sua estrutura agigantada descansa sobre uma enorme espada embainhada, enquanto ele respira fundo o fresco ar salgado pelo mar. Familiarizado com aquelas águas há anos, ele é um homem cujo simples e desembaraçado caminhar indica uma agilidade tão grande quanto sua força de urso pardo. Todos na tripulação o conhecem como Conan, o cimério. Zapayo de Zingara e Conan da Ciméria são amigos desde a época em que o cimério era bucaneiro. A devolução de Sancha à sua Kordava natal havia criado uma grande amizade entre o mercenário e o príncipe, antes mesmo que o navio Esbanjador – chefiado pelo cimério e tomado por este do falecido bucaneiro Zaporavo – naufragasse na costa shemita.

Contudo, alguns meses depois disso, o príncipe zíngaro havia sido exilado pelo Rei Zancho de Zingara, graças às intrigas de outros príncipes de Zingara. Agora, como nobre deposto, ele trabalha a serviço do rei de Argos.

Embora haja muitos argoseanos ali, todos os mercenários – à exceção de seu líder – ignoram o fato de Conan ter sido recentemente um pirata baracho e um bucaneiro zíngaro. O próprio príncipe zíngaro havia se dado ao trabalho de escolher a dedo somente os argoseanos das cidades afastadas do litoral, como Kyros, onde a fama de Conan como ex-pirata é desconhecida. Já com os kothianos, Zapayo não havia tido este trabalho, pois Koth não é um reino banhado pelo mar. Contudo, alguns sabem que aquele bárbaro havia sido o temido Amra, líder dos corsários negros, e se perguntam se ele pretende queimar as embarcações stígias de Khemi, como nos tempos em que fora companheiro de Bêlit e dividira, com esta última, o comando do Tigresa.

Um dos mercenários a se indagar a este respeito é um jovem loiro, de olhos cinzentos, vestido com um par de sandálias, calças compridas e um colete de malha sobre a camisa, e chamado Amalric. Filho de um poderoso nobre da ilustre casa de Valerus, nas montanhas ocidentais da Aquilônia, Amalric se tornara um renegado porque seu pai resolvera fazer dele, o filho caçula, um sacerdote de Mitra e dar toda a herança ao irmão mais velho do jovem de olhos cinzas, o qual agora é um mercenário. Recusando-se a ter de abraçar o sacerdócio e abandonar suas orgias, Amalric foi embora de sua casa e se tornou um guerreiro errante. Embora não seja uma vida luxuosa, o loiro pode, pelo menos, gastar seu soldo com mulheres de taverna, lutar, matar – e, às vezes, até mesmo violentar.

Logo o aspecto da costa muda. Há não muito tempo, eles navegavam próximos aos penhascos de Argos, com colinas azuis atrás deles. Agora o litoral é a orla de vastas campinas, que mal se erguem sobre a linha da água, e se estendem para cada vez mais longe numa distância nebulosa. Aqui há poucos portos e ancoradouros, mas a planície verde é pontilhada pelas cidades dos shemitas; o mar verde, lambendo as bordas das planícies verdes, e os zigurates das cidades brilhando palidamente ao sol, um pouco reduzidos pela distância.

Pelas terras pastoris, andam as manadas de gado e fortes cavaleiros atarracados, com elmos cilíndricos, narizes aquilinos e barbas encaracoladas, negro-azuladas, com arcos em suas mãos. Alguns deles ficam parados ao longo da praia, examinando a frota com ar de suspeita. Este é o litoral das terras de Shem, onde não há lei, exceto as que são impostas por cada cidade-estado. No distante leste, Conan sabe, os prados dão lugar ao deserto, onde não há cidades, e as tribos nômades perambulam desembaraçadamente.

Enquanto eles continuam indo para o sul, passa o imutável panorama das campinas pontilhadas de cidades, e, por fim, o cenário começa novamente a mudar. Moitas de tamarindo aparecem e os pequenos bosques de palmeiras ficam mais densos. O litoral fica mais acidentado, com um paredão de árvores e palmeiras verdes, e atrás delas se erguem colinas nuas e arenosas. Correntes deságuam no mar e, ao longo de suas margens molhadas, a vegetação cresce densa e com grande variedade.

Então, eles finalmente passam pela desembocadura de um grande rio, que mistura seu fluxo ao oceano, e vêem as grandes muralhas e torres negras de Khemi se alçarem contra o horizonte meridional. O rio é o Styx, e Khemi é o maior porto da Stygia e sua cidade mais importante. Naquela cidade, feiticeiros de pele escura conjuram suas magias, envolvidos pela fumaça que sobe eternamente de altares manchados de sangue. Sobre esses altares se ouvem os gritos desesperados de mulheres nuas; é ali, dizem, que Set, a Velha Serpente, arqui-demônio dos hiborianos mas deus dos stígios, enrola suas reluzentes espirais por entre seus seguidores.

Nenhum navio entra sem ser convidado nesse porto. E é naquele momento que vai aparecendo, cada vez mais visível no horizonte, uma esquadra stígia, constituída de navios baixos, longos e negros como serpentes escuras, com conveses elevados, elevando-se da popa à proa e mastros feitos de troncos maciços de palmeiras, com cerca de nove metros de altura.

De longe, os mercenários de Zapayo conseguem perceber a aparência física de seus oponentes, cuja frota rapidamente se aproxima da deles. São altos, esguios, fortes e imberbes. A cor deles é de um marrom bronzeado. Os únicos povos – dentre os que Conan e Amalric conhecem – mais escuros do que os stígios são os negros que vivem ao sul, e os exterminados mestiços chagas, que outrora governavam Kush. Suas vestes consistem em cotas-de-malha, tangas de seda e sandálias. Em suas cabeças, todos usam um elmo de bronze, e cada um traz no braço esquerdo um pequeno escudo redondo de madeira, reforçado com couro endurecido e pregos de bronze. Suas armas são espadas curvas de ferro e aço, maças de madeira polida e leves machados de batalha. Alguns carregam arcos pesados, de poder evidente, e aljavas com longas flechas farpadas.

Seu líder usa, além dos adereços dos guerreiros de sua frota, braceletes de ouro e uma pesada corrente dourada no pescoço. A um comando deste, tem início o combate, ao mesmo tempo em que Zapayo dá a mesma ordem para atacar.

Após uma breve troca de tiros de flechas – com baixas de ambos os lados –, a esquadra zíngara lança seus ganchos de abordagem contra a frota stígia.

Saltando da amurada do seu navio para a primeira embarcação rival ao alcance, Conan da Ciméria acerta um chute no elmo do stígio mais próximo, destroçando-lhe o crânio. Aterrissando no convés de madeira feito um enorme felino, ele trespassa a armadura do rival seguinte com uma poderosa estocada de sua espada, de lâmina azulada, e arremessa o cadáver contra outro stígio, o qual investia contra o cimério.

Ao mesmo tempo, enquanto mata outro guerreiro de Khemi com uma punhalada no pescoço, Amalric da Aquilônia recebe um golpe de maça na nuca e cai semi-consciente sobre o cadáver do homem a quem acabara de matar. Antes que o autor do golpe possa matar o aquiloniano, Zapayo acerta uma estocada certeira nas costas do stígio. Este cambaleia e cai morto ao lado de Amalric, antes que este possa se erguer completamente.

Agora totalmente desperto e de pé – e sem tempo para agradecer verbalmente –, o jovem loiro sorri para o líder zíngaro e este o retribui; no instante seguinte, ambos se separam e continuam se lançando à ofensiva contra aqueles homens altos e esguios, de pele escura e narizes aquilinos. Esquivando-se de um golpe de kopeshe, Amalric decepa a mão do pretenso assassino e, na fração de segundo seguinte, a cabeça do mesmo, antes que ele possa, apesar da mão mutilada, usar a maça em sua esquerda contra o jovem aquiloniano.

Em meio àquele caos, um gigantesco stígio desarma Amalric com um machado enorme e, largando-o, lança o aquiloniano ao chão com um soco no ombro. O loiro reage, dando-lhe um chute no elmo. “Se é para matar sem o uso de armas”, pensa o ex-nobre, “vou mostrar a este cão de pele escura quem é o melhor de nós dois”. No entanto, para surpresa do jovem de olhos cinzas, o gigante em cota-de-malha não demonstra sentir a menor dor e lhe desfere um murro no rosto.

Agarrando o aquiloniano pela gola do colete de malha, seu enorme antagonista – de altura e musculatura iguais às de Conan – o lança para o outro lado daquela turbulenta embarcação de guerra, onde gritos se misturam ao tinir do metal. Ele aguarda o jovem loiro se erguer, só para ter o prazer de espancá-lo ainda mais, até matá-lo. O duelo continua, bastante acirrado. O stígio é mais pesado e forte que Amalric; este, em compensação, é mais ágil e resistente, e vai mais facilmente se esquivando dos golpes de seu rival e contra-atacando.

O duelo já dura vários minutos, mas nenhum deles parece extenuado com a troca de socos e chutes. Enquanto isso, um atarracado – porém ágil – mercenário argoseano vai matando vários stígios com sua lança, espalhando sangue pelo convés e pelo próprio corpo suado. Cansado de usar tal arma, o jovem guerreiro moreno de cabelos castanhos atira sua lança no pescoço do mais adiantado de um pequeno agrupamento de guerreiros da Stygia, e desembainha sua espada, matando uma quantidade ainda maior de adoradores de Set. Outro dos guerreiros de Zapayo alterna golpes mortais de espada com chutes precisos – os quais lançam stígios para as águas do mar, onde o peso de seus coletes de malha os faz se afogarem. Mas, de longe, é a espada de Conan que mais derrama sangue stígio, num redemoinho sangrento de aço e músculos, onde o cimério sempre se mostra um alvo móvel e quase inatingível.

O stígio que atacara Amalric tateia ao acaso pelo chão do convés e, encontrando uma adaga, tenta esfaquear o aquiloniano; mas a lâmina se quebra na cota-de-malha do jovem loiro. Este, por sua vez, conseguiu recuperar sua espada em meio àquele caos de luta e matança e, num só giro, abre o elmo de bronze e crânio raspado do gigante stígio, numa explosão de faíscas, sangue e miolos.

Enquanto isso, os mercenários hiborianos de Zapayo da Kova vão se impondo, pouco a pouco, tanto naquele navio quanto nos demais, exterminando os adoradores de serpente com golpes de espadas, machados, lanças, maças e até escudos. Os poucos navios, que conseguem escapar à destruição imposta pelos mercenários brancos, fogem até o porto de muralhas negras de Khemi.

Muitas de suas embarcações stígias costumam trafegar, subindo e descendo o grande rio, mais do que ao longo das costas marítimas. Este é um dos fatores que favorecem a vitória dos mercenários sobre os adoradores de Set.

* * *

Ao sul dos desertos stígios, ficam as vastas planícies gramadas de Kush. Por incontáveis léguas, não se vê coisa alguma, além de intermináveis extensões de terra forrada de grama alta. Aqui e ali, há uma ou outra árvore solitária, quebrando a monótona ondulação da savana: acácias de espinho, dracenas de folha de espada, lobélias-esmeralda e poinsétias venenosas. De vez em quando, a pradaria é atravessada por um córrego em seu leito pouco profundo, regando uma estreita galeria de árvores às suas margens. Manadas de zebras, antílopes, búfalos e outras criaturas nativas das savanas perambulam através das imensas pradarias, pastando ao mesmo tempo.

A grama assobia e dança ao vento, sob um céu de profundo cobalto no qual brilha intensamente o ardente sol tropical. De vez em quando uma nuvem ferve, lançando trovões e relâmpagos durante rápidas tempestades de catastrófica fúria, que morrem e desaparecem com a mesma velocidade com a qual se formam.

Através dessa vastidão sem limites, marcha o exército mercenário heterogêneo, comandado pelo príncipe zíngaro. Desistindo da idéia de saquear Khemi e ir para o sul da Stygia através daquela cidade e do Rio Styx, o príncipe Zapayo da Kova resolvera deixar seus navios entre Kush e Stygia, e seguir pelo norte do mais setentrional dos Reinos Negros, para dali subir até o sul da Stygia. Conan da Ciméria, um dos mercenários sob o comando de Zapayo, nem precisou avisá-lo do perigo em atravessar a Stygia de norte a sul, e ficou admirado com a cautela do príncipe zíngaro.

Naquela exuberante região do norte de Kush, eles acampam numa noite, num rio sem nome, próximo a uma pavorosa cabana, amontoada de caveiras. Mas não muito próximos à choupana, pois todos ali temem o sobrenatural. Amalric é o único daquele exército a conversar com o único morador daquela choupana – um bruxo negro –, porque este se aproxima do loiro ex-nobre aquiloniano. Zapayo manda Conan acompanhá-lo, pois todos ali conhecem a experiência que aquele cimério tem com o sobrenatural.

Eles ficam de cócoras ao redor da pequena fogueira, no centro da sinistra cabana do feiticeiro negro. A choupana tem menos atrativos ainda do que seu dono. Um catre de bambu – provavelmente do mesmo tipo de bambu que crescia nas lagunas formadas pelo rio sem nome –, forrado com palha, encontra-se em um canto escuro. No lado oposto, há uma grande vasilha de barro, onde provavelmente o feiticeiro guarda sua água de beber. Sobre a fraca fogueira no centro da cabana, há um caldeirão de ferro pendurado, com sua alça vazada atravessada por uma grossa vara de madeira negra, a qual se apóia em forquilhas enterradas no solo batido. Há um odor estranho no ar. Nem mesmo Conan, com seu olfato lupino, consegue identificar a origem daquele cheiro. Não é de todo acre ou putrefato, mas o cheiro da fumaça da fogueira impede Conan de reconhecer o odor. Mas o cimério desiste de tentar identificar o odor e se concentra no velho acocorado do outro lado da fraca fogueira, enquanto a fumaça volutea até o alto da choupana, fugindo para a noite estrelada por uma brecha no centro do teto de palha. O velho continua a tagarelar com Amalric, quando Conan nota algo peculiar: a cabana é circular e relativamente grande por fora, mas quadrada e até apertada por dentro. É nesse momento que seus olhos agudos, acostumados a identificar inimigos ocultos na mata, percebem um leve movimento de sombras entre sombras por detrás das frestas de bambus entre a parede interna e a externa da cabana; e não são movimentos criados pelos reflexos bruxuleantes da fogueira. Neste instante, seus instintos bárbaros lhe dizem o que é aquele odor: víboras! Há víboras e serpentes por detrás daquelas paredes, e elas estão em movimento. Conan dá um salto para trás e desembainha sua espada num átimo de segundo.

- Feiticeiro maldito! O que significa essa trapaça dos infernos?! – ruge o cimério.

Amalric, que estava de cócoras, assusta-se e cai de costas no chão batido, rolando como um gato e pondo-se de pé já com a espada na mão. Ele olha atônito para o cimério que ergue o feiticeiro pela garganta, utilizando apenas a força do poderoso braço esquerdo.

- Conan, o que houve? Não vejo nada que possa ter despertado sua ira. Eu...

- Use seus olhos Amalric! Há serpentes por detrás das paredes de bambu!

- Mitra! – balbucia o aquiloniano. – O que significa isso, feiticeiro? Pretendia nos matar?

O velho, sufocado pela mão esquerda de Conan, faz sinal para que o cimério afrouxe seu aperto, ao que o bárbaro o atende, baixando-o até ao solo, mas mantendo a espada apontada para seu peito.

- Oh, não, meus amigos, eu não ter intenção de machucá-los. Mas um velho precisar de proteção contra inimigos da noite, mesmo um feiticeiro como este velho. As serpentes não podem sair pelas brechas, porque ser muito estreitas para elas... mas quando cai a noite, eu liberar passagem delas, fechando essa porta de fora e depois essa de dentro. Eu mostrar a vocês.

O velho vai até a entrada da cabana e puxa uma porta de bambu que fica no lado externo. Depois, puxa uma outra porta, também de bambu, que fica na parte interna. O velho então vai para o lado direito da porta e puxa uma tábua de entre dois bambus, repetindo o gesto do lado esquerdo. Logo estava criado um caminho para as serpentes transitarem de um lado a outro da cabana, mas por dentro das paredes ocas entre o lado externo e interno da cabana. Amalric percebe a engenhosidade do velho: se alguém abrisse a porta externa, daria de cara com várias serpentes venenosas, enquanto o feiticeiro permanecia seguro dentro da choupana.

Conan resmunga algo e cospe na fogueira. Amalric gargalha e caçoa de Conan e sua eterna desconfiança, mas o cimério lhe devolve um gélido olhar que refreia a frivolidade do jovem loiro.

O velho recoloca as tábuas entre os bambus e aguarda as serpentes liberarem a passagem para abrir novamente as portas da cabana. O pitoresco trio volta a conversar ao redor da fogueira, mas Conan continua atento a alguma sorrateira serpente que, porventura, houvesse escapado das paredes.

O feiticeiro fala ao jovem mercenário loiro sobre um deus chamado Ollam-onga, o qual vive numa casa rubra, numa cidade em ruínas, e é adorado por cultos sombrios em selvas negras e ao longo de rios sombrios e escuros.

- Ollam-onga – diz o velho negro, falando o Stígio de forma truncada e com os típicos tons guturais dos Reinos Negros – só quebrar o encantamento que o prende à forma material, se ele se banquetear com coração de homem dos cabelos amarelos... Se não comer, não é mais do que um homem como você!

E o velho sussurra ao aquiloniano, em tons atemorizantes e estremecedores, um encanto contra aquela misteriosa criatura. Naquele momento, a noite prende seu fôlego, os leões – mantidos à distância pelas fogueiras, as quais ardem mais forte que a fogueira moribunda acesa pelo feiticeiro – param de rugir ao longo do rio, e as próprias folhas das palmeiras param de roçar umas nas outras. O grito de um inseto, o ruído dissonante de uma asa contra um galho, o roçar de folhas de capim umas nas outras, tudo tem significados claros para Conan – mas não aqueles fenômenos sobrenaturais, aos quais só os bruxos entendem. Amalric, nervoso, sua em bicas de medo e repulsa naquele sinistro ambiente.

- Agora, eu ter palavra com homem dos olhos azuis.

- Pode falar em sua própria língua – responde Conan, se dirigindo ao feiticeiro em idioma Kushita.
 
- Também sou farejador de bruxas, guerreiros do norte – diz o kushita, olhando, com um sorriso de múmia, para Conan. Então, sem dizer mais nada, o velho sai de sua cabana, acompanhado pelo cimério e pelo aquiloniano, pega um graveto e desenha algo na areia do rio.
 
Eles não sentem vento algum contra seus rostos, mas há um estranho sussurro de folhas acima deles, e um gemido bizarro e fantasmagórico atravessa os galhos das palmeiras.
 
O símbolo parece arcaico e sem significado para Amalric. Ele acha que seja sua ignorância sobre arte estrangeira que o impediu de identificá-lo como símbolo de alguma cultura civilizada. Mas, apesar de toda a erudição artística do ex-nobre, ele nem chega perto de uma resposta definitiva sobre aquilo.
 
Conan, entretanto, reconhece aquele símbolo. Ele já o tinha visto em montanhas inabitadas a leste do Vilayet, pouco depois daquele ataque frustrado a Khorusun!
 
- Outrora, todas as coisas o adoravam, homem branco de olhos azuis. Isso foi há muito tempo, quando homens e feras falavam uma só língua. Os homens o esqueceram; até mesmo os animais selvagens o esqueceram. Poucos lembram. Os homens que se lembram de Jhebbal Sag, de quem sou sacerdote, e as feras que lembram são irmãos, e falam a mesma língua. – diz o feiticeiro. – Não se esqueçam de minhas palavras, guerreiros brancos... especialmente você, homem dos olhos azuis, que precisará um dia afastar feras das Terras Pictas com este símbolo... você, bárbaro das colinas do norte, pode levar mais tempo para precisar disso do que o rapaz de cabelos amarelos – o bruxo acrescenta, falando novamente em Stígio, para que Amalric possa entender.
 
- Em nome de Crom – pergunta Conan, falando o Kushita com forte sotaque bárbaro –, como sabe tanto sobre o futuro e lugares tão distantes?
 
- Eu viajo para muito longe do corpo, quando estou dormindo – responde o feiticeiro, com um sorriso de múmia. – Além de conhecer lugares muito, muito distantes daqui, encontro demônios e espíritos que me falam muito sobre o futuro. Eles me falaram sobre a caverna, inabitada há um milhão de anos, que você, homem dos olhos azuis visitou a leste do Mar de Vilayet. Eles também me disseram que vocês viriam. E sei que vocês não estão em guerra contra Kush, e sim contra a maldita Stygia... por isso, lhes chamei para avisá-los.

No dia seguinte, todos levantam acampamento e seguem em frente.

* * *

Após alguns dias de marcha para norte e leste, eles atravessam a fronteira norte de Kush e alcançam uma aldeia de tlazitlanos, às margens do Lago Zuad. Expulsos há milênios da costa oeste do Continente Sem Nome numa guerra – e miscigenados com lemurianos em seu caminho até a Stygia –, os tlazitlanos são quase todos esguios, de estatura mediana e pele escura, apesar de não serem negros. Todos usam roupas de seda, a despeito de serem aldeões – pois, na Stygia, a seda é um artigo tão comum quanto na Hirkânia –, e são magros e musculosos, com longos cabelos preto-azulados a lhes caírem soltos sobre os ombros. Apenas os líderes das aldeias são altos – ou por terem pouca miscigenação lemuriana, ou por serem mestiços de tlazitlanos com shemitas. Apesar da notória xenofobia dos stígios, estes permitiram a presença de tlazitlanos em seu país, devido ao parentesco entre ambos.

O líder dos tlazitlanos daquela aldeia é tão alto e forte quanto Conan, e sua aparência é a de um stígio com pouca miscigenação lemuriana. Seus ombros largos e rosto barbado indicam presença de sangue shemita no líder daquela aldeia. Aquele líder gigante, de nome Xecalanc, argumenta que só permitirá que os mercenários famintos levem qualquer coisa da aldeia, se o melhor guerreiro dentre eles enfrentá-lo num duelo. Zapayo se oferece para duelar com ele. Caso o zíngaro vença, aquele exército poderá apreender os bens da aldeia; do contrário, os mercenários terão de seguir sem comida até o próximo acampamento, durante a travessia para Luxur.

- Zapayo – intervém Conan, consciente de que o príncipe zíngaro morrerá ao primeiro golpe do líder –; é melhor que eu o enfrente. Você não é páreo para ele – acrescenta o cimério, na forma franca e direta dos bárbaros, sem os rodeios que os civilizados costumam fazer diante de nobres da realeza.

- Pois tente, seu fanfarrão dos infernos! – grita Xecalanc, brandindo sua espada contra o cimério, antes que Zapayo respondesse qualquer coisa a Conan.

O bárbaro se esquiva do giro decepante da espada do tlazitlano, e detêm o seguinte com sua própria lâmina desembainhada. Contudo, Xecalanc possui uma agilidade e habilidade tão grandes quanto as do cimério, de modo que, no momento seguinte, o tlazitlano consegue livrar sua espada – que estava quase entrelaçada com a de Conan – e, girando-a num círculo duplo, tenta novamente decepar o bárbaro de olhos azuis. Este se esquiva, ao mesmo tempo em que rechaça a lâmina do líder da aldeia com outro golpe de espada, para, no instante seguinte, acertar um chute nos testículos de Xecalanc – os quais, ao contrário do tronco, não estão protegidos por cota-de-malha.

Quando o cimério está prestes a rachar o crânio do tlazitlano curvado de dor, este, demonstrando um poder de recuperação tão assustador quanto o de Conan, desarma o cimério ao lhe golpear a lâmina com lâmina, com uma força nascida da fúria atiçada pela dor em suas gônadas. Ao cimério só resta esquivar-se do golpe seguinte. Ciente de que não terá uma segunda chance de evitar um golpe fatal, Conan aplica toda a sua força num poderoso chute, dirigido ao rosto de Xecalanc. Este cai ao chão, finalmente morto, com a escura face aquilina reduzida a uma massa amorfa de carne, sangue, ossos quebrados e miolos. Do rosto do líder tlazitlano, só restam intactos o cabelo e barba ensangüentados.

A seguir, os mercenários queimam as cabanas da aldeia tlazitlana e, a pedido de Conan, cuja longa amizade com Zapayo lhe dá enorme prestígio, poupam as vidas de todos os outros moradores, além de levarem metade da comida daquele povo – ao invés de todos os mantimentos. Juntamente com os mantimentos roubados, eles levam água fresca, colhida do enorme lago onde fica a aldeia. O mesmo ocorre com outras aldeias tlazitlanas nos dias seguintes, já na margem leste do Lago Zuad.

Sem demonstrá-lo a ninguém, o ex-nobre aquiloniano fica ressentido. Ele adoraria poder violar algumas belas mulheres daquele estranho povo – as quais ele não achava muito feias, apesar dele, como a maioria dos hiborianos, ter preferência por mulheres brancas, ou não muito escuras, e pouco suadas. É lamentável, pensa Amalric, que estes mercenários sejam comandados por um zíngaro cheio daquilo que o jovem loiro acha frescura.

Naquele momento, enquanto segue com o exército para o leste, ele se lembra de quando era um nobre da grande casa de Valerus, na Aquilônia, e da suave música baixa tocando através dos salões; e das moças esguias, com seios perfumados por fragrâncias de rosas, passos delicados e cabelos trançados, as quais vinham atender às suas necessidades e às de seus convidados, com bandejas douradas de comida nas mãos e roupas sumárias, às quais o aquiloniano facilmente tirava após matar a fome – moças com alvos membros nus, cabelos escuros e sedosos, e olhos brilhantes; ou com tranças da cor de ouro derretido e suaves olhos sonhadores.

* * *

A marcha para leste continua durante os dias que se seguem. A intenção daquele exército é virar para o norte, num determinado ponto do sul da Stygia, e atacar dentro do coração daquele país, para formar uma junção com o exército kothiano, o qual ficou de avançar pelo norte.

Súbito, um mensageiro chega com uma terrível notícia, de que os mercenários argoseanos foram traídos. Koth havia feito as pazes em separado com os stígios, e um exército stígio estava avançando em direção ao sul para detê-los, enquanto outro os havia removido da costa.

Desesperado, o Príncipe Zapayo concebe a louca idéia de marcharem todos para leste, na esperança de contornarem a fronteira stígia e finalmente chegarem às terras de Shem Oriental. Mas o exército do norte os alcança.


Carruagens de bronze retumbam sobre as areias do deserto, e há o breve vislumbre de nobres altos, de rostos aquilinos, com mantos de seda enrolados sobre eles e faixas de ouro, com o emblema de uma serpente com a cabeça erguida, prendendo suas negras cabeleiras; os negros cocheiros nus firmam suas pernas musculosas contra a força dos ferozes cavalos stígios.

Sobre um local elevado e privilegiado, os mercenários de Zapayo giram e se preparam para enfrentarem a horda que os perseguia.

Organizada em forma de cunha, a horda stígia aproxima-se do platô, os stígios com seus olhos brilhando enlouquecidos sobre a beirada de seus escudos, e indiferentes aos seus próprios companheiros caídos ou à chuva de flechas que desce dos penhascos ao redor.

Enquanto o Príncipe Zapayo da Kova grita ordens para que os mercenários lutem com mais esforço, Amalric apara o golpe de uma espada stígia ao mesmo tempo em que esfaqueia a jugular do rival que o atacou. Ao mesmo tempo, Conan abre, num só golpe, escudo, peito e clavícula de outro stígio.

- Arqueiros! Lancem mais flechas nos flancos destes malditos adoradores de serpentes – berra o líder zíngaro. – E lancem rochas também!

Assim é feito. E os lobos stígios do deserto morrem às centenas, crivados de flechas e esmagados por enormes matacões. Enquanto Conan derruba, com um chute fatal no rosto, um último inimigo que tentava subir o platô, Amalric observa a destruição que havia sido feita. A primeira investida stígia havia sido desfeita – ao menos por enquanto –, mas a força principal do inimigo permanece intacta.

- Os flancos estão arruinados. Eles recuam – diz um dos mercenários argoseanos ao príncipe zíngaro.

- Eles só estão indo lamber suas feridas – responde Zapayo. – Logo, eles irão se recuperar e voltarão. Estamos num aperto mortal.

Então, Conan da Ciméria se dirige ao príncipe e lhe sussurra algo que Amalric não consegue ouvir. No momento seguinte, o zíngaro fala ao aquiloniano:

- Amalric! Junte esses cavaleiros, siga a trilha através do desfiladeiro oeste e ataque os stígios por trás. Talvez estejamos condenados, mas pelo menos poderemos fazer um estrago nos bastardos, antes de morrermos.

Apressadamente, Amalric junta os lanceiros e segue o caminho indicado por Zapayo. Durante o trajeto, o mercenário aquiloniano ouve – ou pensa ouvir – o líder dos stígios bradar:

- Filhos do deserto, marchemos novamente! Eu, Tuthmoses, lhes prometo vitória. Por Set, matem os infiéis. Matem a todos!!

O ex-nobre ainda consegue ouvir, de longe, o espatifar de escudos contra escudos, espadas contra cimitarras, e lanças sendo profundamente enfiadas em armaduras e corpos.

Chegando à retaguarda, Amalric avista Tuthmoses dando ordens para os homens que estavam atrás preencherem os flancos e os arqueiros continuarem disparando, alegando que não seriam novamente empurrados pelos mercenários.

Naquele momento, o jovem líder stígio é surpreendido, ao ver o ataque repentino de Amalric por trás. Embora o aquiloniano lute ao lado de algumas dezenas de lanceiros, a ferocidade da carga pela retaguarda é tamanha, que os stígios pensam estarem sendo atacados por centenas pelos fundos. Atordoado pela surpresa, e pego entre as duas forças, o exército de Tuthmoses começa a ceder.

Enquanto talha e mata, Amalric avista, do outro lado da maré humana, Conan e Zapayo descendo do platô e, como uma avalanche desabando sobre uma floresta de árvores novas, rompendo a formação de cunha do exército stígio e deixando em seu caminho um verdadeiro carpete esmagado de mortos. Os guerreiros daquele país desértico cambaleiam com o ataque repentino por ambos os lados, enquanto Conan racha o crânio raspado de um adorador de Set, ao mesmo tempo em que Zapayo estoca o pescoço de outro antagonista de nariz aquilino.

O ardil de Conan – usado pela primeira vez, há muitos anos no Passo de Shamla, contra as hordas de Natohk e com a ajuda de outro Amalric – havia funcionado. Acreditando-se cercado por uma força superior, o exército de Tuthmoses se rompe e é derrubado ao pó do solo desértico pelas forças de Zapayo da Kova.

O líder stígio ainda tenta pegar a vitória do colo dos deuses, esticando seu arco para flechar Zapayo, mas uma seta argoseana em seu pescoço põe um fim repentino à vida de Tuthmoses. Pelos lados, os lanceiros acompanhados por Amalric atravessam os corpos dos feridos, pregando-os na areia ensangüentada, enquanto o aquiloniano corta as gargantas de outros com sua espada de aço azulado.

A batalha durou um dia inteiro, e os poucos stígios sobreviventes foram mandados de volta ao acampamento.

Com os stígios derrotados, e nenhum inimigo à vista, os mercenários de Zapayo relaxam, tiram os elmos, soltam os cintos e largam as lanças. Piadas rudes enchem o ar, enquanto eles mastigam carne e se afogam em canecas de cerveja. Ao longo da planície, os homens saboreiam tâmaras e azeitonas.

- Atenção, homens! – brada Zapayo, na língua Argoseana. – Amanhã, prosseguiremos para o leste, até chegarmos a Shem Oriental, que é a nossa atual meta para fugirmos desses malditos adoradores de serpentes!

* * *

Entretanto, na manhã seguinte, outro exército stígio alcança os mercenários de Zapayo, cercando-os.

Os stígios não baseiam sua glória e poder nos navios e esquadras. Embarcações de comércio e galeras de guerra eles têm, de fato, mas não em proporção à força terrestre. Desse modo, à frente do exército, vem a cavalaria stígia, composta por guerreiros em cota-de-malha e seda. Logo atrás, há uma longa linha de carros puxados por grandes cavalos stígios com plumas na cabeça, resfolegando e empinando, agitados. Os guerreiros nos carros são homens altos, com elmos de bronze adornados com o símbolo de uma lua crescente dando suporte a uma bola dourada. Eles carregam pesados arcos em suas mãos. Não são arqueiros comuns, mas nobres do sul, criados para a guerra e para a caça, acostumados a derrubar leões com suas flechas.

Durante a troca de tiros de flechas, as baixas entre os exaustos mercenários é maior que entre os adoradores de Set, cujos disparos vêm tanto dos stígios a cavalo na fileira da frente, quanto dos que se encontram em suas bigas. Os hiborianos, pegos entre dois fogos, lutam desesperadamente sobre as selas de seus cavalos, inflamados, não pela esperança de sobreviverem e vencerem, mas pelo desejo de levar o máximo possível de stígios para o inferno, junto com eles. Muitos dos mercenários derrubados dos seus cavalos – com ferimentos leves ou graves – são impiedosamente pisoteados, tanto pelos garanhões stígios, quanto pelas bigas de bronze.

Os cavalos dos sobreviventes da batalha anterior completam a ruína dos mercenários hiborianos que ousaram invadir o território da Stygia.

Um mercenário argoseano é derrubado ao chão pela rasteira de um stígio, e morre com uma estocada fatal na barriga. Um kothiano corre até os assassinos do argoseano, talhando e decepando cimitarras stígias durante o trajeto, mas tem seu braço decepado por outro inimigo e, ao se curvar de dor, sua cabeça decepada rola sobre a areia regada de sangue. Os demais mercenários de Zapayo vão morrendo como moscas, com ventres perfurados, crânios abertos e pescoços cortados.

Detendo o punho armado de um stígio, Amalric arremete a espada entre o pescoço e queixo de seu atacante. O antagonista seguinte é esfaqueado na barriga pela mão esquerda do aquiloniano, o qual, possesso de ódio, decepa metade do pescoço de um terceiro com a espada azulada de dois gumes. Enquanto isso, esquivando-se de um golpe de espada stígia, Conan decepa, na altura da cintura, o cavaleiro que tentara matá-lo, numa explosão de sangue e intestinos. Ao mesmo tempo, um argoseano acerta fatalmente as costas de um stígio com sua lança, mas em seguida tem seus próprios pulmões varados por duas lanças rivais.

Zapayo, por sua vez, cercado por inúmeros stígios, crava sua espada na barriga do mais próximo e arremete tanto o pé quanto a cabeça protegida pelo morion nos antagonistas que se aglomeram ao seu redor. O zíngaro estoca mais um no peito e mais outro no pescoço, antes que duas espadas stígias ponham fim à vida do príncipe, com estocadas fatais nos lados de Zapayo.

Conan põe seu cavalo para correr, a fim de vingar a morte do amigo e, no caminho, decepa duas cabeças inimigas e parte outro cavaleiro stígio ao meio, na altura da cintura, após um breve entrechocar de espadas.

Mas, no momento seguinte, Amalric vê um escudo atingir a cabeça desprotegida de Conan e derrubar o cimério de seu cavalo.

Pouquíssimas vezes, Conan havia enfrentado homens tão altos e musculosos quanto Baal-Pteor. E, assim como o falecido estrangulador kosalano, o stígio que lhe arremessara o escudo não é um inimigo fácil para o cimério. O bárbaro havia ficado desarmado ao desarmá-lo, mas o gigante musculoso havia acertado um soco no poderoso queixo de Conan; e agora, o cimério recebe várias pedradas na cabeça desprotegida, as quais lhe desfiguram a face e fazem o sangue lhe espirrar da boca, ao mesmo tempo em que o bárbaro tateia em busca da espada. Conan não a encontra, mas acha uma ponta de lança com um resto de cabo quebrado e, num único golpe, mata o rival, enfiando a lâmina, de uma têmpora a outra, na cabeça do stígio.

Sacudindo a areia, sangue e suor dos olhos, o mercenário cimério pega a espada e o escudo de volta e se lança novamente à encarniçada batalha.

Esta já está perdida, com Zapayo da Kova morto, e quase todo o exército mercenário exterminado. Então, montando novamente em seu cavalo e avistando Amalric – o único homem a cavalo e vivo, além dele –, o cimério grita o nome do aquiloniano, e ambos conseguem fugir daquela carnificina, com gritos de triunfo e morte ainda ecoando em seus ouvidos.

* * *

Conan e Amalric cavalgam para o sul, rumo ao deserto, pois não há outra direção pela qual possam ir. Devido a três duras batalhas, as cotas-de-malha dos fugitivos estão agora caindo aos pedaços, deixando à mostra a surrada camisa de algodão branco de Amalric e o largo tronco musculoso de Conan. O cimério havia estado antes nesta parte do mundo, e acredita que ele e o aquiloniano têm uma chance de sobreviver. Embora Amalric tenha a experiência na floresta, adquirida nas montanhas ocidentais da Aquilônia, ele se sente totalmente perdido naquele ermo árido e vazio; e tudo o que lhe resta é confiar nas palavras de Conan.

- Conheço este oásis, Amalric – diz Conan. – Foi aqui onde eu e Natala ficamos, após sairmos de Xuthal há um ano. Mas temos que pegar logo essa água, pois os cavaleiros stígios chegarão aqui, dentro de uma hora!

Assim é feito e, após breves vinte minutos de descanso, os dois sobreviventes prosseguem, com os cantis cheios. E, nos dias seguintes, a fuga continua, de oásis em oásis, até o cimério e o aquiloniano irem parar num deserto total, onde o sol arde na alma. Somente naquela terra estéril e desconhecida, de areia resplandecente e seca – na qual até mesmo Conan se perde –, os dois ex-mercenários conseguem se livrar definitivamente da perseguição dos cavaleiros stígios.

Depois daquilo, vêm longas milhas cambaleando através das areias, expostos a um sol escaldante, sobrevivendo da água cada vez mais escassa de seus cantis e da comida que têm numa bolsa. São dias de viagem árdua, forçando os animais e racionando água e comida. Conan e Amalric continuam às cegas, na esperança de se depararem com uma nova fonte; sabem que, atrás deles, não há oásis numa distância que possam alcançar a pé. É uma opção desesperada, mas a única que têm.

* * *

Dia após dia, os dois ex-mercenários ainda cavalgam, parando apenas para dormir à noite, até cambalearem e ficarem a meio caminho do delírio. O sol se põe mais uma vez sobre o Deserto Meridional, pintando aquela vastidão de marrom-escuro e vermelho. Até que, numa noite, Conan e Amalric avistam fogueiras e se aproximam delas, aventurando-se desesperadamente na possibilidade de fazerem amizade com os homens presentes naquele acampamento. Mas, assim que ficam ao alcance dos homens ali acampados, uma chuva de flechas recebe os dois. O cavalo de Conan é atingido e empina, derrubando seu montador. Amalric imagina que o pescoço do cimério se quebrou feito um graveto, pois este não se mexeu mais.

No instante seguinte, a montaria do aquiloniano cai morta sobre a areia com uma flecha no pescoço. Na escuridão da noite – e mais por sorte que por habilidade – Amalric consegue fugir dali a pé. Ele só tem um mero vislumbre dos homens que o atacaram: altos, magros, de pele marrom e usando trajes bárbaros.

* * *

Após dois dias e noites a pé, perambulando e passando fome e sede no deserto, Amalric avista, numa noite, uma fogueira num oásis. Mesmo sem saber, e temendo quem possa estar nele, o cambaleante aquiloniano caminha até avistar – e ser avistado por – três silhuetas altas e escuras. São três homens quase negros – todos fortes, sendo um deles barrigudo, e os outros dois, esguios.

 Mais uma vez, ele resolve se aventurar desesperadamente – desta vez sozinho – na possibilidade de fazer amizade com desconhecidos.




A Seguir: Lissa de Gazal (desenvolvido a partir de um fragmento/sinopse de Robert E. Howard)




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