O Poço Macabro

(por Robert E. Howard)



Originalmente publicado em Weird Tales, outubro de 1933.


Para dentro do oeste, desconhecido do homem,
Navios singraram desde o início do mundo.
Leia, se tiver coragem, o que escreveu Skelos,
Com mãos mortas remexendo seu casaco de seda:
“E siga os navios através dos naufrágios soprados pelo vento...
Siga os navios que não voltam jamais”.


1)

Sancha, outrora de Kordava, bocejou delicadamente, esticou seus braços flexíveis de forma luxuriante e ajeitou-se mais confortavelmente na seda franjada de arminho, estendida no tombadilho da popa do galeão. Que a tripulação a observava com ardente interesse, desde o convés e o castelo da proa, ela percebia de forma indiferente, assim como tinha consciência de que seu vestido de seda curto pouco escondia seus voluptuosos contornos daqueles olhos ávidos. Por essa razão, sorria de forma insolente e se preparava para cochilar um pouco mais, antes que o sol, projetando seu disco dourado sobre o oceano, ofuscasse seus olhos.

Mas, naquele instante, um som chegou aos seus ouvidos, diferente do rangido das vigas, do retesar dos cordames e do bater das ondas. Ela se sentou, com o olhar fixo na amurada pela qual, para sua surpresa, galgava uma figura gotejante. Seus olhos escuros se arregalaram, seus lábios vermelhos se entreabriram num “o” de surpresa. O intruso era um estranho para ela. Água escorria em cascatas de seus ombros largos e braços musculosos. Sua única roupa — um par de calções de seda vermelhos e brilhantes — estava ensopada, assim como o seu largo cinto com fivela de ouro e a espada embainhada que segurava. Quando ele surgiu na amurada, o sol nascente desenhou seu contorno como uma grande estátua de bronze. Passou seus dedos pela cabeleira negra escorrida, e seus olhos azuis se acenderam ao pousar na garota.

— Quem é você? — ela exigiu. — De onde você vem?

Ele fez um gesto que abrangeu um quarto de bússola em direção ao mar, mas seus olhos não abandonaram a forma flexível da moça.

— Você um é tritão, para sair assim das águas? — perguntou, confusa pela sinceridade daquele olhar, embora estivesse acostumada a ser admirada.

Antes que ele pudesse responder, passos rápidos soaram nas tabuas do convés, e logo o mestre do galeão mirava o estranho, dedos contraindo-se ao redor do cabo da espada.

— Quem diabos é você, tratante? — demandou em tom nada amistoso.

— Eu sou Conan — respondeu o outro, imperturbável. Sancha atentou os ouvidos novamente. Nunca tinha ouvido o idioma zíngaro falado com um sotaque como o daquele forasteiro.

— E como subiu a bordo do meu navio? — A voz se irritava de suspeita.

— Nadando.

— Nadando! — exclamou o mestre, furiosamente. — Está brincando comigo, cão? Estamos muito longe de terra à vista. De onde você veio?

Conan apontou com o braço bronzeado e musculoso na direção leste, cintilando no dourado ofuscante do sol que se erguia.

— Vim das Ilhas.

— Oh! — O outro o encarou com um interesse crescente. Sobrancelhas negras contraíram-se sobre olhos zangados, e um lábio fino ergueu-se de forma desagradável.

— Então você é um daqueles cães das Barachas?

Um leve sorriso passou pelos lábios de Conan.

— E você sabe quem eu sou? — demandou seu interrogador.

— Este navio é o Esbanjador; então, você deve ser Zaporavo.

— Sim!

O fato de o estranho o conhecer mexeu com a sombria vaidade do capitão. Ele era alto, tão alto quanto Conan, embora de compleição mais magra. Emoldurado pelo elmo de aço, seu rosto era moreno, sombrio e semelhante ao de uma ave de rapina. Por isso, os homens o chamavam de Falcão. Sua armadura e suas vestes eram ricas e ornamentadas, segundo a moda de um magnata zíngaro. Sua mão nunca se afastava do cabo da espada.

Havia pouca simpatia no olhar que dedicava a Conan. Existia pouco apreço entre os renegados zíngaros e os foras-da-lei que infestavam as Ilhas Barachas, perto da costa sul da Zingara. Esses homens eram quase todos marinheiros de Argos, com alguns marujos de outras nacionalidades. Saqueavam embarcações e pilhavam cidades na costa da Zingara, assim como faziam os bucaneiros zíngaros. A diferença era que estes dignificavam sua profissão, autodenominando-se flibusteiros, embora fizessem o mesmo que os piratas barachos. Não eram os primeiros, nem seriam os últimos, a empregar eufemismos para enfeitar a definição de ladrão.

Alguns desses pensamentos passaram pela cabeça de Zaporavo, enquanto ele brincava com o cabo da espada e franzia a testa para seu hóspede não-convidado. Conan não dava pistas sobre quais seriam seus pensamentos. Postava-se de braços cruzados, tão placidamente como se estivesse em seu próprio convés. Seus lábios sorriam, seus olhos eram imperturbáveis.

— O que está fazendo aqui? — interpelou abruptamente o flibusteiro.

— Julguei ser necessário abandonar um encontro em Tortage antes da lua subir, noite passada — respondeu Conan. — Parti num bote furado, remei e baldeei água a noite toda. Logo ao amanhecer, avistei as pontas de suas velas e deixei a pobre banheira afundar, porque achei que conseguiria ser mais veloz nadando.

— Há tubarões nessas águas — bramiu Zaporavo, que ficou ligeiramente irritado com a sacudida daqueles ombros largos como resposta. Uma olhada pelo convés mostrou uma fileira de rostos curiosos olhando para cima. Uma palavra os faria saltar para o tombadilho, numa tempestade de espadas que superaria até mesmo um guerreiro como aquele que o estranho parecia ser.

— Por que eu deveria me sobrecarregar com qualquer vagabundo sem nome que o mar expele? — rosnou Zaporavo, com olhar e modos mais insultuosos que suas palavras.

— Um navio sempre pode usar mais um bom marinheiro — respondeu o outro sem ressentimento. Zaporavo fez uma carranca, ciente da verdade daquela afirmação. Ele hesitou e, ao fazer isso, perdeu seu navio, seu comando, sua garota e sua vida. Mas é claro que não poderia ter visto o futuro, e para ele Conan era apenas mais um refugo, expelido — como ele definira — pelo mar. Não gostava do sujeito, mas ele não o havia provocado. Seus modos não eram insolentes, embora fossem mais confiantes do que Zaporavo gostaria que fossem.

— Você vai trabalhar pelo seu sustento — rosnou o Falcão. — Saia da popa. E lembre-se: a única lei aqui é a minha vontade.

O sorriso pareceu se alargar nos lábios finos de Conan. Sem hesitação, porém sem pressa, virou-se e desceu para o convés. Não olhou novamente para Sancha, que, durante aquela breve conversa, permanecera observando ansiosamente, olhos e ouvidos atentos.

Quando chegou ao convés, a tripulação o rodeou — todos zíngaros seminus, suas vestes pomposas manchadas de alcatrão, e jóias que brilhavam em brincos e nos cabos das adagas. Estavam ansiosos pelo tradicional esporte de iniciação do estranho. Aqui ele seria testado, e seu futuro status na tripulação seria decidido. Acima, na popa, Zaporavo aparentemente havia esquecido a existência do estranho, mas Sancha o observava, tensa de interesse. Aquelas cenas já tinham se tornado familiares para ela, e sabia que a iniciação seria brutal e provavelmente sangrenta.

Mas sua familiaridade com aquelas questões era escassa, se comparada com a de Conan. Ele sorriu levemente, quando chegou ao convés e viu as ameaçadoras figuras rodeando-o de forma truculenta. Parou e olhou o círculo de uma forma inescrutável, sua postura inabalada. Havia um certo código nessas coisas. Se Conan tivesse atacado o capitão, toda a tripulação teria pulado em sua garganta. Mas agora eles lhe dariam uma chance justa contra quem fosse selecionado para aplicar a iniciação.

O homem escolhido para aquela função avançou — um bruto magro e musculoso, com uma faixa carmesim enrolada na cabeça como um turbante. Seu queixo fino era proeminente, e o rosto coberto de cicatrizes era inacreditavelmente maligno. Cada olhar e cada movimento arrogante era uma afronta. Sua forma de começar a iniciação foi tão primitiva, tosca e rude quanto ele próprio.

— Barachas, hein? — sorriu desdenhosamente. — É o lugar onde eles criam cães como homens. Nós da Irmandade cuspimos neles... assim!

O marujo cuspiu no rosto de Conan e tentou alcançar a espada.

O movimento do baracho foi rápido demais para ser seguido pelo olhar. Como uma marreta, seu punho golpeou com um terrível impacto a mandíbula de seu provocador. O zíngaro voou pelo ar e caiu como um amontoado disforme perto da amurada.

Conan virou-se para os outros. Exceto por um brilho sonolento nos olhos, seu comportamento permanecia inalterado. Porém, a iniciação estava terminada tão repentinamente quanto havia começado. Os marujos ergueram seu companheiro. Sua mandíbula fraturada pendia inerte, e a cabeça estava inclinada de forma não-natural.

— Por Mitra, o pescoço dele está quebrado! — praguejou um lobo-do-mar de barbas negras.

— Vocês flibusteiros são uma raça de ossos fracos — riu o pirata. — Nas Barachas, nós não ligamos para tapinhas como esse. Agora algum de vocês vai querer brincar de golpes de espada? Não? Então está tudo bem e somos amigos, certo?

Não faltaram bocas para garantir que ele falava a verdade. Braços vigorosos atiraram o homem morto por cima da amurada, e uma dúzia de barbatanas de tubarões cortaram as águas quando ele afundou. Conan riu e esticou seus poderosos braços como um grande gato que se espreguiça, e seu olhar dirigiu-se ao tombadilho acima. Sancha estava inclinada na amurada, os lábios vermelhos abertos, olhos escuros brilhando de interesse. O sol atrás dela delineava sua figura esbelta através da saia leve, a qual a luz tornava transparente. Em seguida, surgiu diante dela a sombra carrancuda de Zaporavo e uma mão pesada caiu de forma possessiva sobre seus ombros esbeltos. Havia ameaça e propósito no olhar que deitou sobre o homem no convés. Conan sorriu de volta, como se risse de uma piada que apenas ele conhecia.

Zaporavo cometeu o engano que muitos autocratas cometem. Sozinho na popa, em sua sombria grandiosidade, subestimou o homem abaixo dele. Ele tivera a oportunidade de matar Conan, mas a perdeu, absorvido em suas próprias ruminações taciturnas. Não era fácil para ele pensar que qualquer dos cães sob seus pés constituísse uma ameaça. Ocupava uma alta posição há tanto tempo, havia esmagado tantos inimigos sob seus pés, que inconscientemente se supunha acima das maquinações de rivais inferiores.

Conan realmente não lhe fazia nenhuma provocação. Misturava-se com a tripulação, vivia e se divertia como eles. Mostrou-se um habilidoso marinheiro, e de longe o homem mais forte que qualquer um já vira. Fazia o trabalho de três homens e era sempre o primeiro a se oferecer para quaisquer tarefas pesadas ou perigosas. Seus companheiros começaram a confiar nele. Conan não discutia com ninguém, e eles tinham o cuidado de não discutir com ele. Jogava com eles, apostava seu cinto e a bainha da espada, ganhava dinheiro e armas, e os devolvia dando risada. A tripulação instintivamente o via como o líder do castelo de proa. Ele não revelava nenhuma informação sobre o que causara sua fuga das Barachas, mas o fato de saberem que fora capaz de um feito sangrento o bastante para ter sido exilado daquele bando selvagem aumentava o respeito por parte dos ferozes flibusteiros. Em relação a Zaporavo e aos companheiros, ele era sempre impecavelmente cortês, nunca insolente ou servil.

Mesmo o mais obtuso marujo percebia o contraste entre o ríspido, sombrio e taciturno comandante, e o pirata, cuja risada era tempestuosa e imediata, que bradava canções vulgares numa dúzia de línguas, tomava cerveja como um beberrão e, aparentemente, não pensava no amanhã.

Se Zaporavo soubesse que estava sendo comparado, mesmo que inconscientemente, com um simples marinheiro, teria ficado mudo de surpresa e indignação. Mas estava envolvido com suas ponderações, que se tornavam mais negras e sombrias com o arrastar dos anos, e com seus vagos sonhos de grandeza e a garota cuja posse era um amargo prazer, como todos os seus demais prazeres.

E ela olhava cada vez mais para o gigante de cabelos negros, que se sobressaía entre seus companheiros, no trabalho e na diversão. Ele nunca falava com ela, mas não havia dúvida quanto à ternura do olhar dele. Ela não tinha dúvida sobre isso, e se perguntava se deveria ousar seguir adiante no perigoso jogo de encorajá-lo.

Não era grande o tempo que a separava dos palácios de Kordava, mas era como se um mundo de mudanças a separasse de sua vida antiga, antes de Zaporavo a arrancar gritando da caravela em chamas que seus lobos haviam saqueado. Ela, que fora a mimada e adulada filha do Duque de Kordava, aprendera o que era ser o brinquedinho de um bucaneiro. Por ser suficientemente flexível para se vergar sem quebrar, vivia onde outras mulheres haviam morrido. Por ser jovem e vibrante de vida, encontrou prazer na existência.

A vida era incerta, onírica e com contrastes agudos, que adquiriam formas de batalha, pilhagem, assassinato e fuga. As visões rubras de Zaporavo a deixavam ainda mais incerta do que a vida média dos flibusteiros. Ninguém sabia qual seria seu próximo plano. Agora haviam deixado todas as costas mapeadas para trás e mergulhavam cada vez mais fundo naquela imensidão encrespada, normalmente evitada pelos navegadores, e na qual, desde o início do Tempo, navios haviam se aventurado apenas para desaparecer para sempre da vista dos homens. Todas as terras conhecidas haviam ficado para trás e, dia após dia, as ondas da imensidão azul descortinavam o vazio à sua frente. Aqui não havia pilhagem; nem cidades para saquear, nem navios para queimar. Os homens murmuravam, embora não deixassem seus murmúrios alcançar os ouvidos de seu mestre implacável, o qual andava na popa dia e noite, com passos pesados, em sua majestade taciturna, ou então estudava atentamente antigas cartas e mapas amarelados pelo tempo, lendo em tomos que pareciam pergaminhos amassados, comidos por vermes. Às vezes falava com Sancha, de uma forma apaixonada — ela achava —, sobre continentes perdidos e ilhas fabulosas, que permaneciam desconhecidas em meio à espuma azul de golfos sem nome, onde dragões chifrudos guardavam tesouros reunidos há muito, muito tempo por reis pré-humanos.

Sancha ouvia sem compreender, abraçando os joelhos esguios, seus pensamentos vagando longe das palavras de seu austero companheiro, de volta para um gigante de bronze bem-distribuído, cuja risada era tão tempestuosa e elemental quanto o vento do mar.

Assim, depois de muitas e cansativas semanas, eles avistaram terra a oeste. Ancoraram ao amanhecer numa baía rasa, e viram uma praia que parecia uma faixa branca bordejando uma extensão de delicadas encostas gramadas, cobertas por árvores verdejantes. O vento trazia aromas de vegetação fresca e temperos, e Sancha bateu palmas de alegria diante da perspectiva de se aventurar na praia. Porém, sua ansiedade transformou-se em aborrecimento, quando Zaporavo ordenou que permanecesse a bordo até que ele a mandasse chamar. Ele nunca dava nenhuma explicação sobre suas ordens. Por isso, ela nunca sabia de suas razões, a não ser as do demônio à espreita dentro dele, que freqüentemente o fazia machucá-la sem razão.

Então ela deitou-se zangada na popa, e ficou observando os homens remarem em direção à costa, através das águas calmas que cintilavam como jade líquido sob o sol da manhã. Viu quando se reuniram na areia, desconfiados, de armas preparadas, enquanto vários se espalhavam em meio às árvores que cercavam a praia, e percebeu que, entre estes, se encontrava Conan. Não havia como confundir aquela figura alta e morena, de passos flexíveis. Os homens diziam que ele não era, de modo algum, um homem civilizado, mas um cimério, um daqueles bárbaros tribais que viviam nas colinas cinzentas do Norte distante, e cujos ataques causavam terror aos seus vizinhos do sul. Pelo menos, ela sabia que havia alguma coisa nele, alguma super-vitalidade ou barbarismo que o destacava de seus parceiros bravios.

Vozes ecoaram ao longo da praia, até que o silêncio tranqüilizou os bucaneiros. A aglomeração se dissipou e os homens se espalharam pela praia, em busca de frutas. Sancha os viu subindo nas árvores para a colheita, o que a fez ficar com água na linda boca. Bateu o pequeno pé e praguejou, com a eficiência adquirida pela convivência com seus companheiros blasfemos.

Os homens na praia realmente haviam encontrado frutas e se refestelavam com elas, considerando especialmente saborosa uma variedade desconhecida, de casca dourada. Zaporavo, porém, não buscava nem comia frutas. Quando seus batedores não encontraram nada que indicasse homens ou feras na vizinhança, permaneceu olhando para o interior, para as grandes extensões de encostas gramadas mesclando-se umas às outras. Depois, com uma breve palavra, ajustou o cinto da espada e caminhou a passos largos para debaixo das árvores. Seu imediato contestou o fato de ele ir sozinho, e foi recompensado por um selvagem soco na boca. Zaporavo tinha suas razões para querer ir só. Queria saber se aquela era realmente a ilha mencionada no misterioso Livro de Skelos, em que inúmeros sábios asseguravam que estranhos monstros guardavam criptas cheias de ouro gravado com hieróglifos. Por suas próprias razões obscuras, não desejava partilhar seu conhecimento — quiçá verdadeiro — com ninguém, muito menos com sua tripulação.

Observando da popa atentamente, Sancha viu quando ele desapareceu na floresta frondosa. Pouco depois avistou Conan, o baracho, virar-se e olhar brevemente para os homens espalhados para cima e para baixo na praia. Em seguida, o pirata partiu rapidamente na direção de Zaporavo, e também desapareceu nas árvores.

A curiosidade de Sancha foi atiçada. Esperou que eles reaparecessem, mas isso não aconteceu. Os marujos se movimentavam sem objetivo para cima e para baixo na praia, e alguns haviam se aventurado pelo interior. Muitos se deitaram à sombra para dormir. O tempo passou, e Sancha agitava-se de inquietação. O sol começou a ficar mais quente, apesar da cobertura do convés da popa. O local estava quente, silencioso e insuportavelmente monótono; a poucos metros de distância, separado por uma extensão de água rasa e azul, o mistério frio e sombreado daquela praia arborizada, e daquela campina pontilhada de bosques, a convidava. Além disso, o mistério em relação a Zaporavo e a Conan lhe era estimulante.

Ela conhecia bem a punição que receberia se desobedecesse a seu impiedoso senhor, e ficou sentada por algum tempo, contorcendo-se indecisa. Finalmente, decidiu que a ousadia valeria o risco de sofrer um dos açoitamentos de Zaporavo e, silenciosamente, chutou para longe as sandálias de couro macio, despiu o vestido e ergueu-se no convés, nua como Eva. Subindo pela amurada e descendo pelas correntes, deslizou para dentro da água e nadou até a praia. Ficou em pé por alguns momentos, estremecendo quando a areia fez cócegas nos pequenos dedos de seus pés, enquanto procurava a tripulação. Avistou alguns apenas, a uma certa distância abaixo e acima da praia. Muitos estavam dormindo profundamente sob as árvores, com pedaços de frutas douradas ainda agarrados em seus dedos. Perguntou-se por que estariam dormindo tão profundamente, logo de manhã cedo.

Ninguém a chamou, quando ela atravessou a faixa de areia branca e entrou na sombra do bosque. Percebeu que as árvores cresciam em agrupamentos irregulares e, entre os aglomerados, estendiam-se encostas cobertas por grama. À medida que prosseguia para o interior, na direção tomada por Zaporavo, sentiu-se fascinada pela paisagem verde que se descortinava delicadamente à sua frente — uma sucessão de encostas suaves, atapetadas de relva verde e pontuadas por bosques. Entre as encostas havia declives suaves, igualmente gramados. O cenário parecia se mesclar em si mesmo, ou uma cena na outra; a visão era singular, ao mesmo tempo ampla e restrita. Acima de tudo aquilo, pairava um silêncio onírico, como um encantamento.

Então, ela chegou subitamente ao topo plano de uma encosta, cercada por árvores altas. A sensação de conto de fadas desapareceu abruptamente, com a visão de algo que jazia sobre a grama avermelhada e pisoteada. Sancha involuntariamente gritou e retraiu-se; depois, avançou devagar, de olhos arregalados e com todos os membros tremendo.

Era Zaporavo que estava ali, deitado na relva, os olhos mortos voltados para cima, um ferimento aberto no peito. Sua espada estava caída perto de sua mão imóvel. O Falcão havia feito seu último vôo.

Não se pode dizer que Sancha olhou o cadáver de seu senhor sem emoção. Ela não tinha motivos para amá-lo, mas ao menos sentia o que qualquer garota sentiria ao ver o corpo do primeiro homem que a possuíra. Não chorou nem sentiu qualquer necessidade de chorar, mas foi acometida por um forte tremor, seu sangue pareceu congelar por um instante, e ela teve que resistir a uma onda de histeria.

Olhou ao redor, à procura do homem que esperava ver. Não viu nada além do círculo de árvores gigantescas, altas e frondosas, e as encostas azuis além delas. Será que o matador do flibusteiro se arrastara para longe, mortalmente ferido? Nenhuma trilha sangrenta se afastava do corpo.

Intrigada, observou as árvores próximas e ficou paralisada, ao escutar um farfalhar que não parecia ter sido causado pelo vento nas folhas cor de esmeralda. Caminhou em direção às árvores, perscrutando as profundezas frondosas.

— Conan? — Seu chamado era inquisidor. Sua voz soou estranha e fraca, na vastidão daquele silêncio, que se tornara subitamente tenso.

Seus joelhos começaram a tremer, quando um pânico inominável a envolveu.

— Conan! — ela gritou desesperada. — Sou eu... Sancha! Onde está você? Por favor, Conan... — A voz dela vacilou até desaparecer. Um horror inacreditável dilatou seus olhos castanhos. Seus lábios vermelhos se abriram num grito inarticulado. Seus membros ficaram paralisados. Embora sentisse uma desesperada necessidade de fugir, não conseguia se mover. Só conseguia gritar, sem palavras.


2)

Quando Conan viu Zaporavo embrenhar-se sozinho pela floresta, sentiu que havia chegado a oportunidade que esperava. Ele não comera nenhuma fruta, nem participara das brincadeiras rudes de seus camaradas. Todas as suas faculdades estavam concentradas em observar o chefe bucaneiro. Acostumados aos humores de Zaporavo, seus homens não ficaram particularmente surpresos com o fato de seu capitão preferir explorar sozinho uma ilha desconhecida, e provavelmente hostil. Por isso, voltaram às suas próprias diversões, e não perceberam quando Conan deslizou como uma pantera caçadora atrás do capitão.

Conan não subestimava seu controle sobre a tripulação. Mas, até então, nenhuma batalha ou pilhagem lhe concedera o direito de desafiar o capitão para um duelo até a morte. Naqueles mares vazios, não tivera a oportunidade de ser posto à prova, de acordo com a lei dos flibusteiros. Mas ele sabia que, se matasse Zaporavo sem o conhecimento deles, a tripulação sem líder provavelmente não se comprometeria com a lealdade a um homem morto. Naquela matilha de lobos, apenas os vivos contavam.

Assim, de espada em punho e coração determinado, seguiu Zaporavo até chegar ao topo plano de uma encosta, rodeado por árvores altas. Por entre os troncos, avistava-se a paisagem de montes verdes se mesclando na distância azul. Sentindo estar sendo perseguido, Zaporavo virou-se no meio da clareira, com a mão no cabo da espada.

O bucaneiro xingou.

— Cão! Por que me seguiu?

— Você é louco de ainda perguntar? — riu Conan, avançando rapidamente em direção ao seu antigo chefe. Seus lábios sorriam e, em seus olhos azuis, dançava um brilho selvagem.

Zaporavo desembainhou a espada com uma praga sombria. Aço chocou-se contra aço, quando o baracho avançou destemido e com a guarda aberta, a lâmina cantando um círculo de chama azul acima da cabeça.

Zaporavo era veterano de mil lutas nos mares e na terra. Não havia homem no mundo mais profunda e meticulosamente versado na arte da espada. Mas nunca estivera diante de uma lâmina manuseada por músculos criados nas terras selvagens além das fronteiras da civilização. Contra sua habilidade de luta, opunha-se uma velocidade cegante e uma força impossíveis de serem enfrentadas por um homem civilizado. A forma de Conan lutar era heterodoxa, porém tão instintiva e natural quanto a de um lobo da floresta. As complexidades da esgrima eram tão inúteis contra sua fúria primitiva, quanto a habilidade de um boxeador humano contra as investidas violentas de uma pantera.

Lutando como jamais lutara antes, empregando cada gota de força que lhe restava para deter a lâmina que se movia como um raio diante de sua cabeça, em meio ao desespero, Zaporavo levou uma pancada perto do punho da espada, sentindo adormecer todo o braço sob o impacto terrível. A esta pancada, seguiu-se instantaneamente uma estocada aplicada com tanta força, que a ponta afiada atravessou armadura e costelas como papel, até perfurar fundo o coração. Os lábios de Zaporavo se contorceram numa breve agonia, mas, sombrio até o fim, não emitiu nenhum som. Ele estava morto antes que seu corpo relaxasse sobre a grama pisada, onde gotas de sangue brilhavam como rubis espalhados sob o sol.

Conan sacudiu as gotas vermelhas da espada, sorrindo com um prazer despojado, espreguiçando-se como um enorme gato... e subitamente ficou imóvel, a expressão de satisfação de seu rosto sendo substituída por um olhar de espanto. Parou como uma estátua, a espada arrastando-se em sua mão.

Ao desviar o olhar de seu inimigo vencido, seus olhos distraidamente descansaram nas árvores ao redor e no panorama além delas. Nesse momento, avistou uma coisa fantástica — algo incrível e inexplicável. Sobre o cume suave e arredondado de uma encosta distante, caminhava rapidamente uma figura alta, negra e nua, carregando no ombro uma figura branca, também nua. A aparição sumiu tão repentinamente quanto havia surgido, deixando o observador ofegante de surpresa.

O pirata olhou ao redor, examinou indeciso o caminho de onde viera e praguejou. Estava confuso e um tanto inquieto, se é que o termo pode ser aplicado a alguém com aqueles nervos de aço. Em meio a um ambiente realista, mas exótico, havia se introduzido uma fantástica imagem errante, de fantasia e pesadelo. Conan não duvidava de sua visão, nem de sua sanidade. Ele sabia que havia visto algo estranho e sobrenatural. A imagem de uma figura negra qualquer, correndo pela paisagem carregando um cativo branco, já seria suficientemente bizarra; mas aquela figura negra ainda era extremamente alta.

Balançando a cabeça em dúvida, Conan começou a andar na direção em que havia visto a coisa. Não refletiu sobre a sabedoria de sua atitude. Com a curiosidade tão atiçada, não teve escolha a não ser seguir seus impulsos.

Percorreu as encostas que se sucediam, cada uma com sua relva homogênea e seus aglomerados de árvores. O caminho sempre fazia Conan ganhar altitude, embora tenha subido e descido leves declives com uma regularidade monótona. A seqüência de cumes arredondados e declives suaves era surpreendente: parecia infinita. Mas finalmente avançou, até o que parecia ser o ponto mais alto da ilha. Parou ao avistar paredes brilhantes e torres verdes que, antes dele chegar até lá, fundiam-se tão perfeitamente com a paisagem verde, que pareciam invisíveis, mesmo para sua visão aguçada.

Ele hesitou, dedilhou a espada e seguiu em frente, mordido pelo verme da curiosidade. Não viu ninguém ao se aproximar de uma arcada alta, aberta na parede curva. Não havia porta. Olhou cuidadosamente através dela, e viu o que parecia ser um grande pátio aberto, atapetado de grama e cercado por uma parede circular, feita de uma substância verde e semi-transparente. Vários arcos se abriam a partir dali. Avançando corajosamente, de pés descalços e espada em punho, escolheu uma das arcadas aleatoriamente e passou para outro pátio semelhante. Por cima de uma parede interna, avistou pináculos de estranhas estruturas em forma de torres. Uma dessas torres fora construída dentro, ou projetada para dentro do pátio em que se encontrava. Uma larga escadaria conduzia para cima, ao longo da parede. Ele subiu, se perguntando se aquilo tudo era real, ou se estava no meio de um sonho de lótus negro.

No alto da escada, encontrou-se numa saliência murada — ou um balcão, ele não sabia bem o que era. Agora podia enxergar melhor os detalhes das torres, mas eles não lhe faziam sentido. Pouco à vontade, percebeu que nenhum ser humano comum poderia tê-las construído. Havia simetria e sistema naquela arquitetura, mas era uma simetria louca e um sistema estranho à sanidade humana. Quanto ao plano da cidade como um todo — ou o castelo, ou o que quer que fosse —, conseguia ver apenas o suficiente para ter a impressão de estar diante de um grande número de pátios, a maioria circulares, cada um cercado por sua própria parede, e ligados uns aos outros por arcadas abertas, todos aparentemente agrupados ao redor de um aglomerado de torres fantásticas ao centro.

Ao virar-se na direção oposta àquelas torres, teve uma visão tão chocante que se agachou repentinamente atrás do parapeito do balcão, espiando com surpresa.

O balcão ou beiral era mais alto do que a parede oposta, e Conan estava olhando por cima daquela parede para outro pátio gramado. A curva interna da parede seguinte daquele pátio diferia das outras que havia visto. Em vez de ser lisa, parecia marcada por longas linhas ou prateleiras cheias de pequenos objetos, cuja natureza ele não conseguia determinar.

Mas deu pouca importância à parede no momento. Sua atenção foi atraída para o grupo agachado em volta de um poço verde-escuro, no meio do pátio. As criaturas eram negras e estavam nuas, feitas à imagem do homem; mas a menor delas, se ficasse em pé, veria a cabeça do alto pirata à altura de seus ombros. Eram mais altas do que maciças, mas muito bem formadas, sem sinais de deformidade ou anomalia além de sua estatura anormal. Mas, mesmo àquela distância, Conan sentia o demonismo essencial de suas feições.

No meio deles, nu e encolhido, encontrava-se um jovem que Conan reconheceu como o marinheiro mais jovem a bordo do Esbanjador. Então, era ele o prisioneiro que o pirata vira ser carregado pela encosta coberta de grama. Conan não havia ouvido sons de luta — não vira manchas de sangue ou ferimentos, nos braços e pernas polidos e cor de ébano dos gigantes. Evidentemente, o rapaz havia se afastado de seus companheiros em direção ao interior da ilha, e fora apanhado por um homem negro à espreita. Conan definiu mentalmente as criaturas como homens negros, por falta de um termo melhor. Porém, instintivamente, sabia que aqueles grandes seres cor de ébano não eram homens, como ele entendia o termo.

Nenhum som chegava até ele. Os negros anuíam e gesticulavam uns para os outros, mas não pareciam estar falando — pelo menos, não vocalmente. Um deles, agachado diante do garoto encolhido, segurava na mão algo parecido com uma flauta. Ele levou o objeto aos lábios e aparentemente soprou, embora Conan não ouvisse nenhum som. Mas o jovem zíngaro ouviu ou sentiu algo, e se encolheu. Estremeceu e se contorceu como que em agonia. Tornou-se evidente uma regularidade na contorção de seus membros, que rapidamente passou a ser rítmica. A contorção transformou-se num violento espasmo, e o espasmo ganhou movimentos regulares. O jovem começou a dançar, da mesma forma que as serpentes dançam compulsoriamente ao som do pífaro de um faquir. Não havia nada de prazer ou alegria naquela dança. Havia, de fato, um abandono terrível de se ver, mas que não era nada alegre. Era como se a canção inaudível da flauta agarrasse fundo a alma dentro do rapaz com dedos obscenos e, com uma tortura brutal, arrancasse dela cada expressão involuntária de suas paixões secretas. Era uma convulsão de obscenidade, um espasmo de lascívia — uma transpiração de apetites secretos moldados pela compulsão: desejo sem prazer, dor emparelhada terrivelmente com luxúria. Era como ver uma alma desnudada, expondo todos os seus segredos sombrios e indizíveis.

Conan observava, imobilizado pela repulsa e trêmulo de náusea. Embora fosse puramente primitivo como um lobo da floresta, não ignorava os segredos perversos das civilizações decadentes. Já havia vagado pelas cidades de Zamora e conhecido as mulheres de Shadizar, a Perversa. Mas sentia ali uma abjeção cósmica que transcendia a mera degenerescência humana. Um ramo perverso da árvore da Vida, desenvolvido ao longo de caminhos além da compreensão humana. Não estava chocado com as contorções e postura agonizantes do pobre rapaz, e sim com a obscenidade cósmica daqueles seres, que podiam trazer à luz os segredos abismais que dormem na escuridão insondável da alma humana e encontrar prazer numa expressão insolente de coisas que não deveriam ser sequer sugeridas, nem em pesadelos intermináveis.

Subitamente, o torturador negro largou a flauta e se levantou, agigantando-se diante da contorcida figura branca. Agarrando brutalmente o garoto pelo pescoço e quadril, ele o ergueu e enfiou de cabeça no poço verde. Conan viu o brilho claro do corpo nu em meio às águas verdes, enquanto o gigante negro mantinha seu cativo bem abaixo da superfície. Então, houve um movimento inquieto entre os outros negros, e Conan rapidamente se escondeu atrás da parede do balcão, sem se atrever a levantar a cabeça, para não ser visto.

Depois de um certo tempo, foi vencido pela curiosidade e, cautelosamente, voltou a espiar. Os negros estavam atravessando uma arcada em direção a outro pátio. Um deles estava acabando de colocar algo sobre um beiral da parede adiante, e Conan reparou que era o mesmo que torturara o rapaz. Era mais alto do que os outros, e usava uma faixa cravejada de jóias na cabeça. Do garoto zíngaro, não havia sinal. O gigante seguiu seus companheiros e, em seguida, Conan os viu emergirem da arcada pela qual ele tivera acesso àquele castelo de horror. Enfileiraram-se nas encostas verdes e caminharam na direção de onde viera. Não portavam armas, mas ele sentiu que planejavam novas agressões contra os flibusteiros.

Porém, antes de ir alertar os inadvertidos bucaneiros, queria investigar o destino do rapaz. Nenhum som perturbava a quietude ao redor. O pirata acreditava que as torres e os pátios estavam desertos, exceto por sua própria presença.

Desceu rapidamente a escada, atravessou o pátio e entrou por uma arcada ao local que os negros haviam acabado de deixar. Agora conseguia observar a natureza da parede estriada. Era recoberta de saliências estreitas, aparentemente cortadas na pedra sólida. Distribuídas ao longo daquelas saliências, ou prateleiras, havia milhares de figuras minúsculas, a maioria delas de cor acinzentada. Não muito maiores do que a mão de um homem, as figuras representavam homens. Eram tão bem-feitas, que Conan reconheceu diversas características raciais nas diferentes imagens — feições típicas de zíngaros, argoseanos, ophirianos e corsários kushitas. Estas últimas eram de cor negra, assim como seus correspondentes reais. Conan sentiu uma vaga inquietação, enquanto observava aquelas figuras mudas e cegas. Havia nelas uma imitação de realidade, que era um tanto perturbadora. Apalpou-as cuidadosamente e não conseguiu entender de que material eram feitas. A sensação era de osso petrificado; mas não podia imaginar que aquela substância petrificada fosse tão abundante naquele local, para ser usada de forma tão perdulária.

Percebeu que todas as imagens nas prateleiras mais altas representavam tipos que lhe eram familiares. As prateleiras mais baixas eram ocupadas por figuras de feições que lhe eram estranhas. Elas, ou expressavam meramente a imaginação do artista, ou representavam tipos raciais há muito desaparecidos e esquecidos.

Meneando a cabeça com impaciência, Conan virou-se para o poço. O pátio circular não oferecia local para se esconder. Como o corpo do rapaz não estava à vista em parte alguma, deveria estar jazendo no fundo do poço.

Ao aproximar-se do plácido círculo verde, olhou para a superfície cintilante. Era como olhar através de um vidro verde e grosso — nítido, mas estranhamente ilusório. De dimensões médias, o poço era redondo e bordejado por um anel de jade verde. Olhando para baixo, podia ver o fundo arredondado — mas, a que distância da superfície, ele não saberia dizer. O poço parecia incrivelmente profundo. Conan teve consciência de uma estonteante sensação de vertigem ao olhar para baixo, como se estivesse diante de um abismo. Ficou intrigado com sua capacidade de enxergar o fundo; mas ele estava diante de seus olhos como algo impossivelmente remoto, ilusório e sombrio, mas visível. Em alguns momentos, pensou ter visto uma luminosidade desmaiada no fundo daquelas águas da cor de jade, mas não soube dizer ao certo. Tinha certeza de que o poço não tinha nada, exceto a água tremeluzente.

Então onde, em nome de Crom, estava o rapaz que vira ser brutalmente afogado naquele poço? Erguendo-se, Conan dedilhou a espada e olhou ao redor do pátio mais uma vez. Seu olhar concentrou-se num ponto de uma das prateleiras superiores. Ele vira o negro alto colocar alguma coisa ali... Um suor frio subitamente brotou da pele morena do bárbaro.

Hesitante, o pirata aproximou-se da parede brilhante, como que atraído por um ímã. Aturdido por uma suspeita monstruosa demais para ser expressa, observou a última figura naquela saliência. Uma horrível familiaridade se fez evidente. Petrificadas, imóveis, reduzidas, porém inconfundíveis, as feições do garoto zíngaro o olhavam sem vê-lo. Conan recuou, estremecido nos alicerces de sua alma. Sua espada encaixou-se em sua mão paralisada enquanto observava boquiaberto, atordoado por uma percepção abismal e horrível demais para ser absorvida pela mente.

Porém, o fato era incontestável. O segredo das imagens anãs fora revelado. No entanto, atrás daquele segredo havia outro ainda mais sombrio e enigmático a respeito de seus criadores.


3)

Quanto tempo permaneceu imerso em cogitações vertiginosas, Conan nunca soube. Um som desviou seu olhar daquela cena — uma voz feminina, que soava cada vez mais alta, como se sua dona estivesse sendo trazida para perto. Conan reconheceu aquela voz, e sua paralisia desapareceu instantaneamente.

Um rápido salto o levou para cima das prateleiras estreitas, onde se agarrou, chutando de lado algumas imagens próximas, para obter lugar para os pés. Mais um salto e uma escalada, e ele já estava agarrado ao beiral da parede, espiando por cima. Era uma muralha externa, e ele estava olhando para a pradaria verde que rodeava o castelo.

No outro lado da planície gramada, um gigante negro vinha caminhando, trazendo uma cativa que se contorcia sob um de seus braços, como um homem que carrega uma criança rebelde. Era Sancha, seus cabelos negros caídos em ondas desgrenhadas, a pele cor de oliva contrastando radicalmente com o tom de ébano lustroso de seu captor, que não dava atenção aos seus gritos e contorções, enquanto caminhava em direção à arcada externa.

Desaparecendo atrás da muralha, Conan saltou negligentemente pela parede, e deslizou para dentro da arcada que se abria para o pátio seguinte. Agachado, viu o gigante entrar no pátio do poço, carregando sua cativa que se agitava. E agora, conseguia divisar os detalhes da criatura.

De perto, a magnífica simetria do corpo e dos membros era ainda mais impressionante. Sob a pele cor de ébano, ondulavam longos músculos arredondados, e Conan não duvidava de que o monstro fosse capaz de despedaçar um homem normal, membro por membro. As unhas das mãos forneciam outras armas, pois eram crescidas como garras de uma fera selvagem. O rosto era uma máscara de ébano esculpida. Os olhos eram fulvos, de um dourado vibrante que brilhava e cintilava. Mas o rosto era inumano; cada traço, cada feição, era estampado pela maldade — uma maldade que transcendia a mera maldade humana. Aquela coisa não era humana — não poderia ser. Era um desenvolvimento da Vida originado nos fossos de uma criação blasfema — uma perversão do desenvolvimento evolucionário.

O gigante jogou Sancha na relva, onde ela se arrastou, gritando de dor e terror. Depois lançou um olhar incerto, e seus olhos fulvos se estreitaram quando miraram as imagens viradas e derrubadas na parede. Em seguida se inclinou, agarrou sua cativa pelo pescoço e partes íntimas, e caminhou com determinação em direção ao poço verde. Conan deslizou de sua arcada e correu como um vento mortal pela relva.

O gigante virou-se, e seus olhos flamejaram ao ver o vingador bronzeado correndo em sua direção. A surpresa daquele instante relaxou seu aperto cruel. Sancha escapou de suas mãos e caiu na grama. Suas garras estenderam-se para pegá-lo, mas Conan mergulhou para baixo de seu alcance e enfiou sua espada na virilha do gigante. O negro caiu como uma árvore abatida, esguichando sangue e, no instante seguinte, Conan foi agarrado pelo abraço frenético de Sancha, que se ergueu e enlaçou seus braços ao redor dele, num frenesi histérico de terror e alívio.

Ele praguejou ao se desvencilhar, mas seu inimigo já estava morto. Os olhos fulvos estavam vidrados, os longos membros cor de ébano tinham parado de se contorcer.

— Oh, Conan — soluçava Sancha, agarrando-se a ele com tenacidade —; o que vai ser de nós? O que são esses monstros? Ah, certamente aqui é o Inferno e esse era o diabo...

— Então o Inferno precisa de outro diabo — disse o baracho com um esgar feroz. — Mas como ele conseguiu pegar você? Eles tomaram o navio?

— Não sei. — Ela tentou enxugar as lágrimas, procurou pela saia e então se lembrou que não estava vestida. — Eu vim para a praia. Vi você ir atrás de Zaporavo e segui vocês dois. Encontrei Zaporavo... foi... foi você que...

— Quem mais? — grunhiu o bárbaro. — E depois?

— Vi um movimento nas árvores — ela estremeceu. — Pensei que fosse você. Chamei... depois vi isso... essa coisa negra agachada como um macaco entre os galhos, me olhando de soslaio. Foi como um pesadelo; eu não conseguia correr. Tudo o que eu conseguia era gritar. Então, ele desceu da árvore e me agarrou... oh, oh, oh! — Ela escondeu o rosto entre as mãos, e começou a tremer novamente ante a memória daquele horror.

— Bem, nós precisamos sair daqui — grunhiu ele, pegando-a pela cintura. — Vamos. Precisamos avisar a tripulação...

— A maioria estava dormindo na praia, quando entrei na floresta — ela falou.

— Dormindo?! — exclamou ele de forma profana. — Pelos sete demônios do fogo do Inferno e da maldição...

— Escute! — ela se imobilizou, uma imagem clara e trêmula de medo.

— Estou ouvindo — ele interrompeu. — Um gemido! Espere!

Saltou pelas saliências mais uma vez e, olhando por cima da muralha, praguejou com uma fúria concentrada que fez até mesmo Sancha ofegar. Os homens negros estavam voltando, mas não vinham sozinhos nem de mãos vazias. Cada um deles trazia uma figura humana desfalecida; alguns traziam duas. Seus cativos eram os flibusteiros. Pendiam inertes nos braços de seus captores e, se não fosse um ocasional movimento ou contração vago, Conan teria acreditado que estavam mortos. Estavam desarmados, mas não despidos. Um dos negros trazia as espadas embainhadas, numa grande braçada de aço cortante. De tempos em tempos, um dos marujos esboçava um grito vago, como um bêbado falando durante um sono embriagado.

Como um lobo acuado, Conan olhou para eles. Três arcadas conduziam para fora do pátio do poço. Os negros haviam saído do pátio pela arcada leste e presumivelmente deveriam voltar por ela. Ele entrara pela arcada sul e se escondera na arcada oeste, mas não tivera tempo de notar o que havia além dela. Apesar de sua ignorância quanto à planta do castelo, foi forçado a tomar sua decisão prontamente.

Saltando muralha abaixo, restaurou a posição das imagens com uma pressa frenética, arrastou o cadáver de sua vítima até o poço e o atirou lá dentro. Ele afundou instantaneamente e, nesse momento, Conan viu distintamente uma espantosa contração — um encolhimento e um enrijecimento. Afastou-se rápido, estremecendo. Depois pegou o braço de sua companheira e conduziu-a velozmente em direção à arcada sul, enquanto ela implorava para ser informada sobre o que estava acontecendo.

— Eles pegaram a tripulação — ele respondeu rispidamente. — Eu não tenho plano nenhum, mas vamos nos esconder em algum lugar e observar. Se não olharem para dentro do poço, talvez não suspeitem da nossa presença.

— Mas eles vão ver o sangue na grama!

— Talvez achem que um de seus próprios demônios o tenha derramado — respondeu o pirata. — De qualquer forma, temos que correr esse risco.

Os dois estavam no pátio de onde Conan havia presenciado a tortura do rapaz, e ele logo a conduziu para a escadaria que subia até a parede sul, forçando Sancha a se agachar atrás da balaustrada do balcão. Não era um esconderijo muito eficaz, mas era o melhor que havia ali.

Os dois mal haviam se abrigado, quando os negros invadiram o pátio. Houve um som retumbante ao pé da escada, e Conan se enrijeceu, agarrando a espada. Mas os negros passaram através de uma arcada no lado sudoeste, e ouviu-se uma série de baques e gemidos. Os gigantes estavam depositando suas vítimas na relva. Um risinho histérico subiu aos lábios de Sancha, mas Conan rapidamente tapou sua boca, abafando o som antes que pudesse traí-los.

Depois de certo tempo, ouviram o som de muitos passos na relva abaixo, e depois reinou o silêncio. Conan espiou por cima da muralha. O pátio estava vazio. Os negros se reuniam novamente ao redor do poço, no pátio adjacente, agachados no chão. Pareciam não prestar atenção às grandes manchas de sangue sobre a relva e no anel de jade em torno do poço. Evidentemente, manchas de sangue eram uma coisa comum para eles. Nem olharam para dentro do poço. Estavam absorvidos em algum inexplicável conclave próprio. O negro alto tocava novamente sua flauta dourada, e seus companheiros ouviam como estátuas de ébano.

Tomando a mão de Sancha, Conan deslizou escada abaixo, inclinando-se para sua cabeça não ser vista acima da muralha. A garota encolhida seguia a contragosto, observando temerosa a arcada que levava ao pátio do poço, apesar de que, naquele ângulo, nem o poço nem o bando sinistro eram visíveis. Ao pé da escadaria, estavam as espadas dos zíngaros. Aquele ruído que tinham ouvido eram as armas capturadas, sendo jogadas ao chão.

Conan arrastou Sancha em direção à arcada sudoeste, e os dois silenciosamente atravessaram o gramado e entraram no pátio adiante. Os flibusteiros jaziam ali em amontoados descuidados, bigodes eriçados e brincos reluzindo. Aqui e ali, um deles movia-se ou gemia com inquietação. Conan abaixou-se até eles e Sancha se ajoelhou ao seu lado, inclinando-se para frente, com as mãos apoiadas nos joelhos.

— Que cheiro doce e enjoado é esse? — ela perguntou, nervosa. — Está no hálito de todos eles.

— É daquela maldita fruta que estavam comendo — respondeu Conan lentamente. — Eu me lembro do cheiro dela. Deve ser como o lótus negro, que faz os homens dormirem. Por Crom, estão começando a acordar... mas estão desarmados, e imagino que aqueles demônios negros não vão esperar muito tempo, antes de começarem a fazer sua magia neles. Que chance os rapazes vão ter, desarmados e tontos de sonolência?

Refletiu por um instante, estampando uma careta no rosto causada pela concentração de seus pensamentos; depois segurou o ombro cor de oliva de Sancha, com um aperto que a fez retrair-se.

— Escute! Vou atrair aqueles porcos negros para outra parte do castelo, e mantê-los ocupados por algum tempo. Enquanto isso, você acorda esses tolos e traz as espadas para eles... é uma chance de luta. Você consegue?

— Eu... não sei! — ela gaguejou, estremecendo de terror e mal sabendo o que estava dizendo.

Com uma praga, Conan agarrou as grossas tranças junto da cabeça da garota e sacudiu-a até as paredes dançarem diante da estonteante visão da moça.

— Você tem que conseguir! — ele sibilou para ela. — É a nossa única chance!

— Vou fazer o melhor que puder! — ela ofegou e, com um grunhido de recomendação e um tapa encorajador nas costas que quase a derrubou, Conan se afastou.

Poucos instantes depois, ele estava agachado na arcada que se abria para o pátio do poço, olhos fixos nos seus inimigos. Eles ainda estavam sentados ao redor do poço, mas começavam a mostrar indícios de uma impaciência maligna. Conan ouvia os gemidos aumentando no pátio onde os bucaneiros estavam despertando, que começavam a se misturar com xingamentos incoerentes. Ele flexionou os músculos e assumiu uma posição felina, respirando tranqüilamente pela boca.

O gigante adornado de jóias levantou-se, tirando a flauta dos lábios — e, nesse instante, Conan saltou como um tigre entre os negros surpresos. E como um tigre salta e ataca sua presa, Conan saltou e atacou: três vezes sua espada desfechou golpes, antes que qualquer um pudesse erguer a mão para se defender. Em seguida, saltou e afastou-se correndo pelo gramado. Atrás dele, estendiam-se três figuras negras no chão, com os crânios partidos.

Embora a inesperada fúria do ataque-surpresa tenha pegado os gigantes desprevenidos, os sobreviventes se recuperaram rápido o bastante. E estavam nos calcanhares de Conan quando ele corria pela arcada oeste, suas longas pernas cobrindo o solo à alta velocidade. Ele sentia-se confiante em sua habilidade para mantê-los à distância o quanto quisesse, mas essa não era sua intenção. O bárbaro queria conduzi-los em uma longa perseguição, para dar a Sancha tempo para despertar os zíngaros e armá-los.

Quando correu para dentro do pátio além da arcada oeste, Conan praguejou. Aquele pátio era diferente dos outros. Em vez de redondo, era octogonal, e a arcada pela qual entrara era a única entrada ou saída.

Virando-se, percebeu que o bando todo o seguira. Um grupo aglomerava-se na arcada, e o resto se espalhava numa longa fileira enquanto se aproximava. Ele os encarou, recuando lentamente em direção à muralha norte. A fileira se curvava num semicírculo, espalhando-se para cercá-lo. Continuou a se mover para trás; porém, cada vez mais lentamente, observando que seus perseguidores aumentavam o espaço entre si. Eles temiam que ele tentasse escapar pelas pontas da crescente e alongavam sua fileira para evitar que isso acontecesse.

Conan os observava, com a calma prontidão de um lobo e, quando atacou, foi com a velocidade devastadora de um trovão — bem no centro da crescente. O gigante que barrava seu caminho tombou, trespassado ao meio do osso esterno, e o pirata já estava fora do círculo que se fechava antes que os negros da direita e da esquerda pudessem vir ao auxílio do camarada abatido. O grupo no portão preparou-se para receber seu ataque, mas ele não os atacou. Havia se virado e observava seus perseguidores sem emoção aparente, e certamente sem medo.

Dessa vez eles não se espalharam numa linha tênue. Tinham aprendido que seria fatal dividir suas forças contra uma encarnação de fúria devastadora como aquela. Juntaram-se numa massa compacta e avançaram contra ele sem pressa, mantendo a formação.

Conan sabia que, se caísse naquela massa de músculos e ossos com garras, só poderia haver um resultado. Se fosse apanhado, estaria ao alcance daquelas garras e à mercê da massa corpórea superior dos opositores, diante da qual nem mesmo sua ferocidade primitiva prevaleceria. Olhou para a muralha ao redor, e viu uma projeção em forma de beiral no canto superior do lado oeste. Não sabia o que era, mas serviria ao seu propósito. Começou a recuar em direção ao canto, e os gigantes avançaram mais rapidamente. Evidentemente, pensaram que eles próprios o estavam conduzindo ao canto, e Conan encontrou tempo para refletir que provavelmente os negros o viam como membro de uma raça mais primitiva, mentalmente inferior eles. Tanto melhor. Nada pode ser mais desastroso do que subestimar seu antagonista.

Agora ele estava a poucos metros da muralha, e os negros o cercavam rapidamente, evidentemente pensando em acuá-lo no canto antes que percebesse a situação. O grupo no portão havia abandonado seu posto e se apressava para juntar-se aos companheiros. Os gigantes ficaram meio agachados, olhos brilhando como o fogo dourado do inferno, dentes brancos cintilando, garras erguidas prontas para o ataque. Eles esperavam um movimento brusco e violento por parte de sua presa, mas quando aquilo aconteceu, foram pegos de surpresa.

Conan ergueu a espada, deu um passo em direção a eles, depois girou e correu em direção à parede. Com uma rápida torção e um impulso de músculos de aço, saltou no ar e seu braço estendido agarrou a projeção. Instantaneamente houve um ruído de ruptura e o beiral cedeu, precipitando o pirata de volta ao pátio.

Ele caiu de costas e, se não fosse o acolchoado da relva, teria quebrado a coluna, apesar de todos os seus músculos. Ricochetando como um grande felino, encarou seus inimigos. A dançante negligência desaparecera daqueles olhos. Agora eles flamejavam como uma fogueira azul. Seus cabelos se eriçaram, e seus lábios finos rosnaram. Num instante, a situação se convertera de um jogo ousado para uma batalha de vida e morte, e a natureza selvagem de Conan respondeu com toda a fúria de sua selvageria.

Imobilizados por um instante pela velocidade do episódio, agora os negros tentavam agarrá-lo e arrastá-lo ao chão. Naquele instante, porém, um grito rompeu o silêncio. Virando-se, os gigantes viram uma multidão de desclassificados reunindo-se na arcada. Os bucaneiros oscilavam como bêbados e xingavam de forma incoerente. Estavam aturdidos e desconcertados, mas agarravam suas espadas e avançavam com uma ferocidade nem um pouco diminuída pelo fato de não compreenderem o que estava acontecendo.

Enquanto os negros observavam a cena, espantados, Conan deu um grito estridente e os atacou como um trovão laminado. Eles caíram como trigo maduro sob sua lâmina, e os zíngaros, gritando com uma fúria ainda entorpecida, correram cambaleantes através do pátio e caíram sobre seus gigantescos inimigos com um fervor sanguinário. Ainda estavam zonzos. Ao emergirem estonteados de seu sono dopado, sentiram Sancha sacudindo-os freneticamente e forçando espadas em suas mãos, ouviram vagamente seu apelo para tomar algum tipo de atitude. Não compreenderam tudo o que ela dissera, mas a visão de estranhos e de sangue jorrando era suficiente para eles.

Num instante, o pátio se transformara num campo de batalha que logo se assemelharia a um matadouro. Os zíngaros oscilavam e cambaleavam sobre os próprios pés, mas brandiam as espadas com força e eficiência, praguejando copiosamente, e totalmente indiferentes a quaisquer ferimentos, exceto os instantaneamente fatais. Eram em muito maior número que os negros, mas estes se provaram fortes antagonistas. Bem mais altos que seus agressores, os gigantes promoviam devastação com garras e dentes, rasgando gargantas de homens e esmagando crânios com golpes de punhos fechados. Envolvidos e misturados naquele corpo-a-corpo, os bucaneiros não conseguiam transformar em vantagem sua agilidade superior. Muitos se encontravam entorpecidos demais por seu sono drogado, para se esquivar dos golpes dos oponentes. Eles lutavam com uma ferocidade cega e selvagem, com mais intenção de matar do que defender. O som das espadas sendo brandidas era como de cutelos de açougueiros, e os gritos, urros e xingamentos eram chocantes.

Encolhida na arcada, Sancha estava aturdida pelo ruído e pela fúria da luta. Tinha a impressão pálida de um caos giratório, no qual o aço reluzia e cortava, braços se agitavam, rostos furiosos apareciam e desapareciam, e corpos em luta colidiam e ricocheteavam, unidos e misturados numa dança demoníaca de loucura.

Os detalhes mostravam-se brevemente, como contornos escuros num pano de fundo sangrento. Ela viu um marinheiro zíngaro, cegado por uma aba de escalpo rasgado que caíra sobre seus olhos, firmar-se sobre as pernas bem abertas e enterrar sua espada até o cabo num ventre negro. Ouviu distintamente o bucaneiro rosnar durante o golpe e viu os olhos fulvos da vítima rolarem em súbita agonia: sangue e vísceras esparramaram-se na lâmina cravada em suas entranhas. O negro moribundo agarrou a lâmina com as mãos nuas, enquanto o marinheiro puxava a espada bruta e cegamente. Então, um braço negro enlaçou a cabeça do zíngaro e um joelho negro plantou-se com força cruel no meio de suas costas. Sua cabeça foi torcida para trás num ângulo hediondo, e alguma coisa se partiu com um ruído mais alto que o clangor da luta, como um galho grosso se quebrando. O vencedor atirou o corpo de sua vítima ao chão. Quando fez isso, algo parecido com um raio de luz azul lampejou acima de seus ombros, vindo de trás, da direita para a esquerda. Ele cambaleou, a cabeça tombou sobre seu peito e dali para a terra, de forma horrenda.

Sancha sentia-se enjoada. Engasgou e tentou vomitar. Fez esforços fracassados para se virar e fugir do espetáculo, mas suas pernas não funcionavam. Também não conseguia fechar os olhos. Na verdade, abriu-os ainda mais. Revoltada, repugnada, nauseada, ainda assim sentia a terrível fascinação que sempre experimentava diante da visão de sangue derramado. Mas aquela batalha transcendia tudo o que jamais vira em disputas entre seres humanos, em ataques a portos ou em batalhas marítimas. Então ela avistou Conan.

Separado de seus companheiros pela massa de inimigos, Conan havia sido envolvido e arrastado por uma onda negra de braços e corpos. Eles o teriam pisoteado até a morte, mas ele havia trazido um deles junto na queda, e o corpo do negro protegia o pirata embaixo dele. Eles chutavam e unhavam o baracho, e tentavam puxar seu semelhante que se contorcia, mas Conan cravara os dentes desesperadamente em sua garganta e agarrava-se tenazmente ao seu escudo moribundo.

Uma investida dos zíngaros diminuiu a pressão. Conan jogou de lado o cadáver e levantou-se, ameaçador e manchado de sangue. Os gigantes pairavam acima dele como grandes sombras negras, agarrando e desfechando golpes terríveis no ar. Porém, ele era tão difícil de ser agarrado ou atingido quanto uma pantera louca por sangue e, a cada virada ou lampejo de sua lâmina, o sangue esguichava. Ele já havia recebido castigo o bastante para matar três homens comuns, mas sua vitalidade de touro permanecia intacta.

O grito de guerra de Conan ergueu-se acima do som da carnificina, e os desnorteados, mas furiosos, zíngaros se reanimaram e redobraram seus ataques, até que o ruído de carnes rasgadas e de ossos quebrados, sob as espadas, quase afogou os uivos de dor e ódio.

Os negros hesitaram e romperam em fuga para o portão. Sancha gritou ao perceber aquela movimentação, e saiu rapidamente do caminho. Eles se congestionaram na estreita arcada, e os zíngaros espetaram e esfaquearam suas costas comprimidas com estridentes uivos de júbilo. O portão estava em ruínas, quando os sobreviventes conseguiram atravessá-lo e se dispersar, cada um por si.

A batalha tornou-se uma perseguição. Nos pátios gramados, nas brilhantes escadarias, sobre os tetos inclinados das torres fantásticas, e até mesmo no alto das largas paredes revestidas, os gigantes fugiam, pingando sangue a cada passo, arrasados por seus inclementes perseguidores, que mais pareciam lobos. Encurralados, alguns deles viravam-se para lutar e homens morriam. Mas o resultado final era sempre o mesmo: um corpo negro mutilado retorcendo-se na relva, ou arremessado, enquanto se contorcia, de um parapeito ou do topo de uma torre.

Sancha havia encontrado refúgio no pátio do poço, onde ficou agachada, tremendo de terror. Lá fora, erguiam-se gritos ferozes, pés batendo na grama e, da arcada, emergiu uma figura negra tingida de sangue. Era o gigante com a faixa cravejada de jóias na cabeça. Um perseguidor agachado estava logo atrás, e o negro voltou-se, bem próximo à beira do poço. Numa atitude extremada, ele havia apanhado uma espada largada por um marinheiro moribundo e, quando o zíngaro precipitado investiu, golpeou-o com aquela arma pouco familiar. O bucaneiro tombou com o crânio rachado, mas o golpe fora desfechado de forma tão desastrada, que a lâmina se partiu na mão do gigante.

Ele atirou o punho da espada nas figuras que se aglomeravam na arcada, e correu para o poço, o rosto transformado numa máscara de ódio convulso.

Conan passou pelos homens no portão, e seus pés arrancaram a grama em seu ataque precipitado.

Porém, o gigante abriu seus grandes braços e, de seus lábios, surgiu um grito inumano — o único som emitido por um negro durante toda a luta. Ele bradou todo seu terrível ódio para o céu; era como uma voz uivando das profundezas. Diante daquele som, os zíngaros vacilaram. Mas Conan não se deteve. Em silêncio e numa postura assassina, avançou contra a figura de ébano postada à beira do poço.

Mas, no momento em que a espada gotejante do pirata brilhava em pleno ar, o negro girou e saltou para o alto. Por um rápido instante, todos o viram pairando no ar acima do poço. Em seguida, com um rugido estremecedor, as águas verdes se ergueram e o encontraram, envolvendo-o num vulcão verde.

Conan parou sua corrida precipitada, bem a tempo de não cair no poço, e saltou para trás, empurrando os homens atrás de si, com um poderoso giro dos braços. A piscina esverdeada agora parecia um gêiser, e seu ruído atingiu um volume ensurdecedor enquanto uma grande coluna de água elevava-se cada vez mais alto, com uma grande coroa de espuma florescendo em seu topo.

Conan estava conduzindo seus homens para o portão, seguindo logo atrás, batendo neles com a parte plana da espada. O barulho do jato de água parecia ter roubado as faculdades dos flibusteiros. Vendo Sancha paralisada no lugar, observando o pilar efervescente com os olhos arregalados de terror, ele chamou sua atenção com um berro que superou o barulho da água e fez com que ela saísse de sua imobilidade. A garota correu em sua direção, braços abertos, e ele a ergueu sob um braço e correu para fora do pátio.

No pátio que se abria para o mundo exterior, os sobreviventes haviam se reunido, exaustos, esfarrapados, feridos e sujos de sangue, e quedaram-se olhando sem fala para o grande e instável pilar, que se erguia cada vez mais em direção à abóbada azul do céu. Seu tronco verde estava mesclado de branco; a coroa espumante era três vezes maior que a circunferência da base. Embora continuasse a subir em direção ao céu, naquele momento a coluna ameaçava explodir e cair numa torrente avassaladora.

O olhar de Conan varreu o grupo ensangüentado e nu, e soltou uma praga ao ver apenas vinte deles. Na tensão do momento, agarrou pelo pescoço um dos corsários e o sacudiu de forma tão violenta, que o ferimento do homem borrifou gotas de sangue em torno deles.

— Onde está o resto? — gritou no ouvido de sua vítima.

— Só restaram esses! — gritou o outro de volta, acima do rugido do gêiser. — Os outros foram mortos por aqueles negros...

— Bem, saiam daqui! — vociferou Conan, com um empurrão que mandou o homem cambaleando para a arcada externa. — Aquela fonte vai explodir a qualquer momento...

— Vamos todos nos afogar — gritou um flibusteiro, mancando em direção à arcada.

— Afogar, o inferno! — bradou Conan. — Vamos ser transformados em pedaços de osso petrificado! Saiam daqui, malditos!

Ele correu para a arcada externa, um olho na torre verde estridente que pairava tão terrivelmente acima dele, outro nos fugitivos. Estonteados pelo sangue derramado, pela luta e pelo trovejante ruído, alguns zíngaros se moviam como homens em transe. Conan apressava-os com um método simples. Agarrava os retardatários pelo cangote e impelia-os violentamente através do portão, acrescentando certo ímpeto com um potente chute no traseiro e exigindo mais pressa com pungentes comentários a respeito dos ancestrais de suas vítimas. Sancha queria ficar ao seu lado, mas ele afastou-a com braços fortes, xingando intensamente, e acelerou seus movimentos com um tremendo tapa em seu traseiro, que a mandou correndo para o platô.

Conan não saiu do portão, até ter certeza de que todos os seus homens que ainda viviam já haviam deixado o castelo, e começado a caminhar pela planície gramada. Depois olhou novamente para aquele pilar que rugia contra o céu, fazendo as torres parecerem pequenas, e também fugiu daquele castelo de horrores inomináveis.

Os zíngaros já tinham atravessado a orla do platô e fugiam pelas encostas. Sancha esperou por ele no cume da primeira encosta, onde Conan parou por um instante para observar novamente o castelo. Era como se uma gigantesca flor de caule verde e coroa branca pairasse acima das torres; aquele rugido enchia o céu. Então, o pilar verde-jade e branco rompeu-se num ruído que parecia o firmamento se rasgando, e muralhas e torres foram encobertas por uma trovejante torrente.

Conan agarrou a mão da garota e correu. As encostas subiam e desciam diante dos dois, e atrás soava o ruído de um rio correndo. Um olhar por cima do ombro contraído revelou um vagalhão verde subindo e caindo, como se varresse as encostas. A torrente não se espalhava nem se dissipava; como uma serpente gigante, fluía sobre as depressões e cumes arredondados. Mantinha um curso consistente: ela os estava seguindo.

Aquela percepção elevou Conan a um nível mais alto de resistência. Sancha tropeçou e caiu de joelhos, com um gemido de desespero e exaustão. Levantando-a, o pirata jogou-a sobre os ombros gigantes e continuou correndo. Seu peito ofegava, seus joelhos tremiam, sua respiração fluía arfante através dos dentes. Acelerou o passo. À frente, viu os marinheiros avançando arduamente, estimulados pelo terror que os perseguia.

O oceano surgiu subitamente em sua visão e, diante do seu olhar embaçado, flutuava o Esbanjador, intacto. Os homens atropelaram-se desordenadamente para entrar nos botes. Sancha caiu no fundo de um deles e lá ficou, prostrada. Embora o sangue pulsasse em seus ouvidos e o mundo parecesse avermelhado aos seus olhos, Conan assumiu os remos ao lado dos ofegantes marinheiros.

Com os corações prestes a explodir de exaustão, eles remaram até o navio. O rio verde eclodiu através do cinturão de árvores. As árvores tombavam como se os troncos tivessem sido cortados, e desapareciam conforme afundavam na torrente cor de jade. A maré fluiu até a praia e lambeu o oceano, e as ondas ganharam um tom verde mais profundo e sinistro.

Um medo instintivo e irracional mantinha os bucaneiros remando, fazendo com que esforçassem cada vez mais seus corpos agonizantes e seus cérebros cambaleantes. Eles não sabiam o que temiam, mas tinham consciência de que, naquela abominável onda verde, havia uma ameaça para o corpo e para a alma. Conan sabia disso e, quando avistou aquela larga torrente deslizar nas ondas e fluir através das águas em direção a eles, sem mudar de forma ou direção, invocou sua última reserva de forças de forma tão feroz que o remo partiu-se em suas mãos.

Mas as proas dos botes chocaram-se contra o madeirame do Esbanjador, e os marinheiros subiram pelas correntes cambaleando, deixando as embarcações flutuando à deriva. Sancha subiu apoiada no ombro de Conan, flácida como um cadáver, para ser jogada sem cerimônia sobre o convés pelo baracho, antes deste assumir o leme, bradando ordens para sua reduzida tripulação. Ao longo do episódio, ele assumira a liderança sem questionamentos, e todos instintivamente o seguiram. Eles cambaleavam como bêbados, manipulando as cordas e polias mecanicamente. A corrente da âncora, desamarrada, caiu na água, as velas se desfraldaram e inflaram com o vento que aumentava. O Esbanjador estremeceu, balançou e singrou majestosamente para o mar. Conan olhou para a praia: como uma língua de chama cor de esmeralda, uma onda agitava a água inutilmente, à distância de um remo da quilha do Esbanjador. E não avançou mais. Seu olhar seguiu o ininterrupto fluxo verde bruxuleante da ponta daquela língua à praia branca e encosta acima, até que desapareceu na distância azul.

Recuperando o fôlego, o baracho sorriu para a ofegante tripulação. Sancha estava perto dele, lágrimas histéricas lhe escorrendo pelo rosto. Os calções de Conan pendiam em trapos ensangüentados. Seu cinto e bainha estavam perdidos. Sua espada, em pé no convés ao seu lado, estava dentada e com crostas de manchas vermelhas. O sangue se emplastava em sua cabeleira negra, e metade de uma orelha tinha sido arrancada de sua cabeça. Seus braços, pernas, peito e ombros estavam mordidos e arranhados como que por panteras. Mas ele sorria quando se equilibrou em suas poderosas pernas, manejando o leme numa pura exuberância de poder muscular.

— E agora? — gaguejou a jovem.

— A pilhagem dos mares! — ele riu. — Uma tripulação irrisória, mastigada e arranhada, quase aos pedaços, mas que consegue manejar o navio. E tripulações sempre podem ser encontradas. Venha aqui, garota, e me dê um beijo.

— Um beijo? — ela gritou histericamente. — Você pensa em beijos numa hora dessas?

A risada dele soou acima dos baques e estalidos das velas, quando a ergueu do chão na curva de um dos braços fortes, e beijou seus lábios vermelhos com ressoante deleite.

— Eu penso na Vida! — ele rugiu. — Os mortos estão mortos, e o que passou já era! Tenho um navio, uma tripulação de guerreiros e uma garota com lábios como o vinho, e é só isso que peço. Lambam suas feridas, seus fanfarrões, e abram um barril de cerveja. Vocês vão trabalhar como jamais trabalharam antes num navio. Dancem e cantem enquanto puderem, seus malditos! Ao diabo com mares vazios! Vamos singrar para águas onde os portos são gordos, e os navios mercantes estão abarrotados de riquezas para serem saqueadas!

FIM


Tradução: Claudio Salles Carina.

Revisão: Fernando Neeser de Aragão.

Fontes: Conan O Cimério, Vol. 2, Ed. Conrad (2006) e http://gutenberg.net.au/ebooks06/0600951h.html


A seguir: O Esbanjador.



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