(por Robert E. Howard)
Originalmente publicado em Weird
Tales, outubro de 1933.
Para dentro do oeste, desconhecido do homem,
Navios singraram desde o início do mundo.
Leia, se tiver coragem, o que escreveu Skelos,
Com mãos mortas remexendo seu casaco de seda:
“E siga os navios através dos naufrágios soprados pelo
vento...
Siga os navios que não voltam jamais”.
1)
Sancha, outrora de Kordava, bocejou delicadamente,
esticou seus braços flexíveis de forma luxuriante e ajeitou-se mais confortavelmente
na seda franjada de arminho, estendida no tombadilho da popa do galeão. Que a tripulação
a observava com ardente interesse, desde o convés e o castelo da proa, ela
percebia de forma indiferente, assim como tinha consciência de que seu vestido
de seda curto pouco escondia seus voluptuosos contornos daqueles olhos ávidos.
Por essa razão, sorria de forma insolente e se preparava para cochilar um pouco
mais, antes que o sol, projetando seu disco dourado sobre o oceano, ofuscasse
seus olhos.
Mas, naquele instante, um som chegou aos seus
ouvidos, diferente do rangido das vigas, do retesar dos cordames e do bater das
ondas. Ela se sentou, com o olhar fixo na amurada pela qual, para sua surpresa,
galgava uma figura gotejante. Seus olhos escuros se arregalaram, seus lábios
vermelhos se entreabriram num “o” de surpresa. O intruso era um estranho para
ela. Água escorria em cascatas de seus ombros largos e braços musculosos. Sua
única roupa — um par de calções de seda vermelhos e brilhantes — estava
ensopada, assim como o seu largo cinto com fivela de ouro e a espada embainhada
que segurava. Quando ele surgiu na amurada, o sol nascente desenhou seu contorno
como uma grande estátua de bronze. Passou seus dedos pela cabeleira negra
escorrida, e seus olhos azuis se acenderam ao pousar na garota.
— Quem é você? — ela exigiu. — De onde você vem?
Ele fez um gesto que abrangeu um quarto de bússola em
direção ao mar, mas seus olhos não abandonaram a forma flexível da moça.
— Você um é tritão, para sair assim das águas? —
perguntou, confusa pela sinceridade daquele olhar, embora estivesse acostumada
a ser admirada.
Antes que ele pudesse responder, passos rápidos
soaram nas tabuas do convés, e logo o mestre do galeão mirava o estranho, dedos
contraindo-se ao redor do cabo da espada.
— Quem diabos é você, tratante? — demandou em tom
nada amistoso.
— Eu sou Conan — respondeu o outro, imperturbável. Sancha
atentou os ouvidos novamente. Nunca tinha ouvido o idioma zíngaro falado com um
sotaque como o daquele forasteiro.
— E como subiu a bordo do meu navio? — A voz se
irritava de suspeita.
— Nadando.
— Nadando! — exclamou o mestre, furiosamente. — Está
brincando comigo, cão? Estamos muito longe de terra à vista. De onde você veio?
Conan apontou com o braço bronzeado e musculoso na
direção leste, cintilando no dourado ofuscante do sol que se erguia.
— Vim das Ilhas.
— Oh! — O outro o encarou com um interesse crescente.
Sobrancelhas negras contraíram-se sobre olhos zangados, e um lábio fino
ergueu-se de forma desagradável.
— Então você é um daqueles cães das Barachas?
Um leve sorriso passou pelos lábios de Conan.
— E você sabe quem eu sou? — demandou seu
interrogador.
— Este navio é o Esbanjador; então, você deve ser
Zaporavo.
— Sim!
O fato de o estranho o conhecer mexeu com a sombria
vaidade do capitão. Ele era alto, tão alto quanto Conan, embora de compleição
mais magra. Emoldurado pelo elmo de aço, seu rosto era moreno, sombrio e
semelhante ao de uma ave de rapina. Por isso, os homens o chamavam de Falcão.
Sua armadura e suas vestes eram ricas e ornamentadas, segundo a moda de um
magnata zíngaro. Sua mão nunca se afastava do cabo da espada.
Havia pouca simpatia no olhar que dedicava a Conan.
Existia pouco apreço entre os renegados zíngaros e os foras-da-lei que
infestavam as Ilhas Barachas, perto da costa sul da Zingara. Esses homens eram quase
todos marinheiros de Argos, com alguns marujos de outras nacionalidades.
Saqueavam embarcações e pilhavam cidades na costa da Zingara, assim como faziam
os bucaneiros zíngaros. A diferença era que estes dignificavam sua profissão, autodenominando-se
flibusteiros, embora fizessem o mesmo que os piratas barachos. Não eram os
primeiros, nem seriam os últimos, a empregar eufemismos para enfeitar a definição
de ladrão.
Alguns desses pensamentos passaram pela cabeça de
Zaporavo, enquanto ele brincava com o cabo da espada e franzia a testa para seu
hóspede não-convidado. Conan não dava pistas sobre quais seriam seus
pensamentos. Postava-se de braços cruzados, tão placidamente como se estivesse
em seu próprio convés. Seus lábios sorriam, seus olhos eram imperturbáveis.
— O que está fazendo aqui? — interpelou abruptamente
o flibusteiro.
— Julguei ser necessário abandonar um encontro em Tortage
antes da lua subir, noite passada — respondeu Conan. — Parti num bote furado,
remei e baldeei água a noite toda. Logo ao amanhecer, avistei as pontas de suas
velas e deixei a pobre banheira afundar, porque achei que conseguiria ser mais
veloz nadando.
— Há tubarões nessas águas — bramiu Zaporavo, que
ficou ligeiramente irritado com a sacudida daqueles ombros largos como
resposta. Uma olhada pelo convés mostrou uma fileira de rostos curiosos olhando
para cima. Uma palavra os faria saltar para o tombadilho, numa tempestade de espadas
que superaria até mesmo um guerreiro como aquele que o estranho parecia ser.
— Por que eu deveria me sobrecarregar com qualquer
vagabundo sem nome que o mar expele? — rosnou Zaporavo, com olhar e modos mais insultuosos
que suas palavras.
— Um navio sempre pode usar mais um bom marinheiro — respondeu
o outro sem ressentimento. Zaporavo fez uma carranca, ciente da verdade daquela
afirmação. Ele hesitou e, ao fazer isso, perdeu seu navio, seu comando, sua
garota e sua vida. Mas é claro que não poderia ter visto o futuro, e para ele
Conan era apenas mais um refugo, expelido — como ele definira — pelo mar. Não
gostava do sujeito, mas ele não o havia provocado. Seus modos não eram
insolentes, embora fossem mais confiantes do que Zaporavo gostaria que fossem.
— Você vai trabalhar pelo seu sustento — rosnou o
Falcão. — Saia da popa. E lembre-se: a única lei aqui é a minha vontade.
O sorriso pareceu se alargar nos lábios finos de
Conan. Sem hesitação, porém sem pressa, virou-se e desceu para o convés. Não
olhou novamente para Sancha, que, durante aquela breve conversa, permanecera
observando ansiosamente, olhos e ouvidos atentos.
Quando chegou ao convés, a tripulação o rodeou — todos
zíngaros seminus, suas vestes pomposas manchadas de alcatrão, e jóias que
brilhavam em brincos e nos cabos das adagas. Estavam ansiosos pelo tradicional
esporte de iniciação do estranho. Aqui ele seria testado, e seu futuro status na tripulação seria decidido. Acima,
na popa, Zaporavo aparentemente havia esquecido a existência do estranho, mas
Sancha o observava, tensa de interesse. Aquelas cenas já tinham se tornado familiares
para ela, e sabia que a iniciação seria brutal e provavelmente sangrenta.
Mas sua familiaridade com aquelas questões era
escassa, se comparada com a de Conan. Ele sorriu levemente, quando chegou ao
convés e viu as ameaçadoras figuras rodeando-o de forma truculenta. Parou e
olhou o círculo de uma forma inescrutável, sua postura inabalada. Havia um
certo código nessas coisas. Se Conan tivesse atacado o capitão, toda a
tripulação teria pulado em sua garganta. Mas agora eles lhe dariam uma chance
justa contra quem fosse selecionado para aplicar a iniciação.
O homem escolhido para aquela função avançou — um
bruto magro e musculoso, com uma faixa carmesim enrolada na cabeça como um
turbante. Seu queixo fino era proeminente, e o rosto coberto de cicatrizes era
inacreditavelmente maligno. Cada olhar e cada movimento arrogante era uma
afronta. Sua forma de começar a iniciação foi tão primitiva, tosca e rude
quanto ele próprio.
— Barachas, hein? — sorriu desdenhosamente. — É o
lugar onde eles criam cães como homens. Nós da Irmandade cuspimos neles...
assim!
O marujo cuspiu no rosto de Conan e tentou alcançar a
espada.
O movimento do baracho foi rápido demais para ser
seguido pelo olhar. Como uma marreta, seu punho golpeou com um terrível impacto
a mandíbula de seu provocador. O zíngaro voou pelo ar e caiu como um amontoado
disforme perto da amurada.
Conan virou-se para os outros. Exceto por um brilho
sonolento nos olhos, seu comportamento permanecia inalterado. Porém, a
iniciação estava terminada tão repentinamente quanto havia começado. Os marujos
ergueram seu companheiro. Sua mandíbula fraturada pendia inerte, e a cabeça
estava inclinada de forma não-natural.
— Por Mitra, o pescoço dele está quebrado! —
praguejou um lobo-do-mar de barbas negras.
— Vocês flibusteiros são uma raça de ossos fracos —
riu o pirata. — Nas Barachas, nós não ligamos para tapinhas como esse. Agora
algum de vocês vai querer brincar de golpes de espada? Não? Então está tudo bem
e somos amigos, certo?
Não faltaram bocas para garantir que ele falava a
verdade. Braços vigorosos atiraram o homem morto por cima da amurada, e uma
dúzia de barbatanas de tubarões cortaram as águas quando ele afundou. Conan riu
e esticou seus poderosos braços como um grande gato que se espreguiça, e seu
olhar dirigiu-se ao tombadilho acima. Sancha estava inclinada na amurada, os
lábios vermelhos abertos, olhos escuros brilhando de interesse. O sol atrás
dela delineava sua figura esbelta através da saia leve, a qual a luz tornava
transparente. Em seguida, surgiu diante dela a sombra carrancuda de Zaporavo e
uma mão pesada caiu de forma possessiva sobre seus ombros esbeltos. Havia
ameaça e propósito no olhar que deitou sobre o homem no convés. Conan sorriu de
volta, como se risse de uma piada que apenas ele conhecia.
Zaporavo cometeu o engano que muitos autocratas
cometem. Sozinho na popa, em sua sombria grandiosidade, subestimou o homem abaixo
dele. Ele tivera a oportunidade de matar Conan, mas a perdeu, absorvido em suas
próprias ruminações taciturnas. Não era fácil para ele pensar que qualquer dos
cães sob seus pés constituísse uma ameaça. Ocupava uma alta posição há tanto
tempo, havia esmagado tantos inimigos sob seus pés, que inconscientemente se
supunha acima das maquinações de rivais inferiores.
Conan realmente não lhe fazia nenhuma provocação.
Misturava-se com a tripulação, vivia e se divertia como eles. Mostrou-se um
habilidoso marinheiro, e de longe o homem mais forte que qualquer um já vira.
Fazia o trabalho de três homens e era sempre o primeiro a se oferecer para
quaisquer tarefas pesadas ou perigosas. Seus companheiros começaram a confiar
nele. Conan não discutia com ninguém, e eles tinham o cuidado de não discutir
com ele. Jogava com eles, apostava seu cinto e a bainha da espada, ganhava dinheiro
e armas, e os devolvia dando risada. A tripulação instintivamente o via como o
líder do castelo de proa. Ele não revelava nenhuma informação sobre o que causara
sua fuga das Barachas, mas o fato de saberem que fora capaz de um feito
sangrento o bastante para ter sido exilado daquele bando selvagem aumentava o
respeito por parte dos ferozes flibusteiros. Em relação a Zaporavo e aos
companheiros, ele era sempre impecavelmente cortês, nunca insolente ou servil.
Mesmo o mais obtuso marujo percebia o contraste entre
o ríspido, sombrio e taciturno comandante, e o pirata, cuja risada era
tempestuosa e imediata, que bradava canções vulgares numa dúzia de línguas,
tomava cerveja como um beberrão e, aparentemente, não pensava no amanhã.
Se Zaporavo soubesse que estava sendo comparado,
mesmo que inconscientemente, com um simples marinheiro, teria ficado mudo de
surpresa e indignação. Mas estava envolvido com suas ponderações, que se
tornavam mais negras e sombrias com o arrastar dos anos, e com seus vagos
sonhos de grandeza e a garota cuja posse era um amargo prazer, como todos os
seus demais prazeres.
E ela olhava cada vez mais para o gigante de cabelos
negros, que se sobressaía entre seus companheiros, no trabalho e na diversão.
Ele nunca falava com ela, mas não havia dúvida quanto à ternura do olhar dele.
Ela não tinha dúvida sobre isso, e se perguntava se deveria ousar seguir
adiante no perigoso jogo de encorajá-lo.
Não era grande o tempo que a separava dos palácios de
Kordava, mas era como se um mundo de mudanças a separasse de sua vida antiga,
antes de Zaporavo a arrancar gritando da caravela em chamas que seus lobos
haviam saqueado. Ela, que fora a mimada e adulada filha do Duque de Kordava, aprendera
o que era ser o brinquedinho de um bucaneiro. Por ser suficientemente flexível
para se vergar sem quebrar, vivia onde outras mulheres haviam morrido. Por ser
jovem e vibrante de vida, encontrou prazer na existência.
A vida era incerta, onírica e com contrastes agudos,
que adquiriam formas de batalha, pilhagem, assassinato e fuga. As visões rubras
de Zaporavo a deixavam ainda mais incerta do que a vida média dos flibusteiros.
Ninguém sabia qual seria seu próximo plano. Agora haviam deixado todas as
costas mapeadas para trás e mergulhavam cada vez mais fundo naquela imensidão encrespada,
normalmente evitada pelos navegadores, e na qual, desde o início do Tempo, navios
haviam se aventurado apenas para desaparecer para sempre da vista dos homens.
Todas as terras conhecidas haviam ficado para trás e, dia após dia, as ondas da
imensidão azul descortinavam o vazio à sua frente. Aqui não havia pilhagem; nem
cidades para saquear, nem navios para queimar. Os homens murmuravam, embora não
deixassem seus murmúrios alcançar os ouvidos de seu mestre implacável, o qual
andava na popa dia e noite, com passos pesados, em sua majestade taciturna, ou
então estudava atentamente antigas cartas e mapas amarelados pelo tempo, lendo
em tomos que pareciam pergaminhos amassados, comidos por vermes. Às vezes
falava com Sancha, de uma forma apaixonada — ela achava —, sobre continentes perdidos
e ilhas fabulosas, que permaneciam desconhecidas em meio à espuma azul de
golfos sem nome, onde dragões chifrudos guardavam tesouros reunidos há muito,
muito tempo por reis pré-humanos.
Sancha ouvia sem compreender, abraçando os joelhos
esguios, seus pensamentos vagando longe das palavras de seu austero
companheiro, de volta para um gigante de bronze bem-distribuído, cuja risada
era tão tempestuosa e elemental quanto o vento do mar.
Assim, depois de muitas e cansativas semanas, eles
avistaram terra a oeste. Ancoraram ao amanhecer numa baía rasa, e viram uma
praia que parecia uma faixa branca bordejando uma extensão de delicadas
encostas gramadas, cobertas por árvores verdejantes. O vento trazia aromas de
vegetação fresca e temperos, e Sancha bateu palmas de alegria diante da
perspectiva de se aventurar na praia. Porém, sua ansiedade transformou-se em aborrecimento,
quando Zaporavo ordenou que permanecesse a bordo até que ele a mandasse chamar.
Ele nunca dava nenhuma explicação sobre suas ordens. Por isso, ela nunca sabia
de suas razões, a não ser as do demônio à espreita dentro dele, que freqüentemente
o fazia machucá-la sem razão.
Então ela deitou-se zangada na popa, e ficou observando
os homens remarem em direção à costa, através das águas calmas que cintilavam
como jade líquido sob o sol da manhã. Viu quando se reuniram na areia,
desconfiados, de armas preparadas, enquanto vários se espalhavam em meio às
árvores que cercavam a praia, e percebeu que, entre estes, se encontrava Conan.
Não havia como confundir aquela figura alta e morena, de passos flexíveis. Os
homens diziam que ele não era, de modo algum, um homem civilizado, mas um
cimério, um daqueles bárbaros tribais que viviam nas colinas cinzentas do Norte
distante, e cujos ataques causavam terror aos seus vizinhos do sul. Pelo menos,
ela sabia que havia alguma coisa nele, alguma super-vitalidade ou barbarismo
que o destacava de seus parceiros bravios.
Vozes ecoaram ao longo da praia, até que o silêncio
tranqüilizou os bucaneiros. A aglomeração se dissipou e os homens se espalharam
pela praia, em busca de frutas. Sancha os viu subindo nas árvores para a
colheita, o que a fez ficar com água na linda boca. Bateu o pequeno pé e praguejou,
com a eficiência adquirida pela convivência com seus companheiros blasfemos.
Os homens na praia realmente haviam encontrado frutas
e se refestelavam com elas, considerando especialmente saborosa uma variedade
desconhecida, de casca dourada. Zaporavo, porém, não buscava nem comia frutas.
Quando seus batedores não encontraram nada que indicasse homens ou feras na
vizinhança, permaneceu olhando para o interior, para as grandes extensões de
encostas gramadas mesclando-se umas às outras. Depois, com uma breve palavra,
ajustou o cinto da espada e caminhou a passos largos para debaixo das árvores.
Seu imediato contestou o fato de ele ir sozinho, e foi recompensado por um selvagem
soco na boca. Zaporavo tinha suas razões para querer ir só. Queria saber se
aquela era realmente a ilha mencionada no misterioso Livro de Skelos, em que inúmeros sábios asseguravam que
estranhos monstros guardavam criptas cheias de ouro gravado com hieróglifos.
Por suas próprias razões obscuras, não desejava partilhar seu conhecimento —
quiçá verdadeiro — com ninguém, muito menos com sua tripulação.
Observando da popa atentamente, Sancha viu quando ele
desapareceu na floresta frondosa. Pouco depois avistou Conan, o baracho,
virar-se e olhar brevemente para os homens espalhados para cima e para baixo na
praia. Em seguida, o pirata partiu rapidamente na direção de Zaporavo, e também
desapareceu nas árvores.
A curiosidade de Sancha foi atiçada. Esperou que eles
reaparecessem, mas isso não aconteceu. Os marujos se movimentavam sem objetivo para
cima e para baixo na praia, e alguns haviam se aventurado pelo interior. Muitos
se deitaram à sombra para dormir. O tempo passou, e Sancha agitava-se de
inquietação. O sol começou a ficar mais quente, apesar da cobertura do convés
da popa. O local estava quente, silencioso e insuportavelmente monótono; a
poucos metros de distância, separado por uma extensão de água rasa e azul, o
mistério frio e sombreado daquela praia arborizada, e daquela campina
pontilhada de bosques, a convidava. Além disso, o mistério em relação a Zaporavo
e a Conan lhe era estimulante.
Ela conhecia bem a punição que receberia se
desobedecesse a seu impiedoso senhor, e ficou sentada por algum tempo,
contorcendo-se indecisa. Finalmente, decidiu que a ousadia valeria o risco de
sofrer um dos açoitamentos de Zaporavo e, silenciosamente, chutou para longe as
sandálias de couro macio, despiu o vestido e ergueu-se no convés, nua como Eva.
Subindo pela amurada e descendo pelas correntes, deslizou para dentro da água e
nadou até a praia. Ficou em pé por alguns momentos, estremecendo quando a areia
fez cócegas nos pequenos dedos de seus pés, enquanto procurava a tripulação. Avistou
alguns apenas, a uma certa distância abaixo e acima da praia. Muitos estavam
dormindo profundamente sob as árvores, com pedaços de frutas douradas ainda
agarrados em seus dedos. Perguntou-se por que estariam dormindo tão
profundamente, logo de manhã cedo.
Ninguém a chamou, quando ela atravessou a faixa de
areia branca e entrou na sombra do bosque. Percebeu que as árvores cresciam em
agrupamentos irregulares e, entre os aglomerados, estendiam-se encostas
cobertas por grama. À medida que prosseguia para o interior, na direção tomada
por Zaporavo, sentiu-se fascinada pela paisagem verde que se descortinava delicadamente
à sua frente — uma sucessão de encostas suaves, atapetadas de relva verde e
pontuadas por bosques. Entre as encostas havia declives suaves, igualmente
gramados. O cenário parecia se mesclar em si mesmo, ou uma cena na outra; a visão
era singular, ao mesmo tempo ampla e restrita. Acima de tudo aquilo, pairava um
silêncio onírico, como um encantamento.
Então, ela chegou subitamente ao topo plano de uma
encosta, cercada por árvores altas. A sensação de conto de fadas desapareceu
abruptamente, com a visão de algo que jazia sobre a grama avermelhada e
pisoteada. Sancha involuntariamente gritou e retraiu-se; depois, avançou devagar,
de olhos arregalados e com todos os membros tremendo.
Era Zaporavo que estava ali, deitado na relva, os
olhos mortos voltados para cima, um ferimento aberto no peito. Sua espada
estava caída perto de sua mão imóvel. O Falcão havia feito seu último vôo.
Não se pode dizer que Sancha olhou o cadáver de seu
senhor sem emoção. Ela não tinha motivos para amá-lo, mas ao menos sentia o que
qualquer garota sentiria ao ver o corpo do primeiro homem que a possuíra. Não
chorou nem sentiu qualquer necessidade de chorar, mas foi acometida por um
forte tremor, seu sangue pareceu congelar por um instante, e ela teve que
resistir a uma onda de histeria.
Olhou ao redor, à procura do homem que esperava ver.
Não viu nada além do círculo de árvores gigantescas, altas e frondosas, e as
encostas azuis além delas. Será que o matador do flibusteiro se arrastara para
longe, mortalmente ferido? Nenhuma trilha sangrenta se afastava do corpo.
Intrigada, observou as árvores próximas e ficou
paralisada, ao escutar um farfalhar que não parecia ter sido causado pelo vento
nas folhas cor de esmeralda. Caminhou em direção às árvores, perscrutando as
profundezas frondosas.
— Conan? — Seu chamado era inquisidor. Sua voz soou estranha
e fraca, na vastidão daquele silêncio, que se tornara subitamente tenso.
Seus joelhos começaram a tremer, quando um pânico
inominável a envolveu.
— Conan! — ela gritou desesperada. — Sou eu... Sancha!
Onde está você? Por favor, Conan... — A voz dela vacilou até desaparecer. Um
horror inacreditável dilatou seus olhos castanhos. Seus lábios vermelhos se
abriram num grito inarticulado. Seus membros ficaram paralisados. Embora
sentisse uma desesperada necessidade de fugir, não conseguia se mover. Só
conseguia gritar, sem palavras.
2)
Quando Conan viu Zaporavo embrenhar-se sozinho pela
floresta, sentiu que havia chegado a oportunidade que esperava. Ele não comera
nenhuma fruta, nem participara das brincadeiras rudes de seus camaradas. Todas
as suas faculdades estavam concentradas em observar o chefe bucaneiro.
Acostumados aos humores de Zaporavo, seus homens não ficaram particularmente
surpresos com o fato de seu capitão preferir explorar sozinho uma ilha
desconhecida, e provavelmente hostil. Por isso, voltaram às suas próprias
diversões, e não perceberam quando Conan deslizou como uma pantera caçadora
atrás do capitão.
Conan não subestimava seu controle sobre a
tripulação. Mas, até então, nenhuma batalha ou pilhagem lhe concedera o direito
de desafiar o capitão para um duelo até a morte. Naqueles mares vazios, não
tivera a oportunidade de ser posto à prova, de acordo com a lei dos
flibusteiros. Mas ele sabia que, se matasse Zaporavo sem o conhecimento deles,
a tripulação sem líder provavelmente não se comprometeria com a lealdade a um homem
morto. Naquela matilha de lobos, apenas os vivos contavam.
Assim, de espada em punho e coração determinado,
seguiu Zaporavo até chegar ao topo plano de uma encosta, rodeado por árvores
altas. Por entre os troncos, avistava-se a paisagem de montes verdes se
mesclando na distância azul. Sentindo estar sendo perseguido, Zaporavo virou-se
no meio da clareira, com a mão no cabo da espada.
O bucaneiro xingou.
— Cão! Por que me seguiu?
— Você é louco de ainda perguntar? — riu Conan,
avançando rapidamente em direção ao seu antigo chefe. Seus lábios sorriam e, em
seus olhos azuis, dançava um brilho selvagem.
Zaporavo desembainhou a espada com uma praga sombria.
Aço chocou-se contra aço, quando o baracho avançou destemido e com a guarda
aberta, a lâmina cantando um círculo de chama azul acima da cabeça.
Zaporavo era veterano de mil lutas nos mares e na
terra. Não havia homem no mundo mais profunda e meticulosamente versado na arte
da espada. Mas nunca estivera diante de uma lâmina manuseada por músculos
criados nas terras selvagens além das fronteiras da civilização. Contra sua
habilidade de luta, opunha-se uma velocidade cegante e uma força impossíveis de
serem enfrentadas por um homem civilizado. A forma de Conan lutar era
heterodoxa, porém tão instintiva e natural quanto a de um lobo da floresta. As
complexidades da esgrima eram tão inúteis contra sua fúria primitiva, quanto a
habilidade de um boxeador humano contra as investidas violentas de uma pantera.
Lutando como jamais lutara antes, empregando cada
gota de força que lhe restava para deter a lâmina que se movia como um raio
diante de sua cabeça, em meio ao desespero, Zaporavo levou uma pancada perto do
punho da espada, sentindo adormecer todo o braço sob o impacto terrível. A esta
pancada, seguiu-se instantaneamente uma estocada aplicada com tanta força, que
a ponta afiada atravessou armadura e costelas como papel, até perfurar fundo o
coração. Os lábios de Zaporavo se contorceram numa breve agonia, mas, sombrio
até o fim, não emitiu nenhum som. Ele estava morto antes que seu corpo
relaxasse sobre a grama pisada, onde gotas de sangue brilhavam como rubis espalhados
sob o sol.
Conan sacudiu as gotas vermelhas da espada, sorrindo
com um prazer despojado, espreguiçando-se como um enorme gato... e subitamente
ficou imóvel, a expressão de satisfação de seu rosto sendo substituída por um
olhar de espanto. Parou como uma estátua, a espada arrastando-se em sua mão.
Ao desviar o olhar de seu inimigo vencido, seus olhos
distraidamente descansaram nas árvores ao redor e no panorama além delas. Nesse
momento, avistou uma coisa fantástica — algo incrível e inexplicável. Sobre o
cume suave e arredondado de uma encosta distante, caminhava rapidamente uma
figura alta, negra e nua, carregando no ombro uma figura branca, também nua. A
aparição sumiu tão repentinamente quanto havia surgido, deixando o observador
ofegante de surpresa.
O pirata olhou ao redor, examinou indeciso o caminho
de onde viera e praguejou. Estava confuso e um tanto inquieto, se é que o termo
pode ser aplicado a alguém com aqueles nervos de aço. Em meio a um ambiente
realista, mas exótico, havia se introduzido uma fantástica imagem errante, de
fantasia e pesadelo. Conan não duvidava de sua visão, nem de sua sanidade. Ele
sabia que havia visto algo estranho e sobrenatural. A imagem de uma figura
negra qualquer, correndo pela paisagem carregando um cativo branco, já seria suficientemente
bizarra; mas aquela figura negra ainda era extremamente alta.
Balançando a cabeça em dúvida, Conan começou a andar
na direção em que havia visto a coisa. Não refletiu sobre a sabedoria de sua
atitude. Com a curiosidade tão atiçada, não teve escolha a não ser seguir seus
impulsos.
Percorreu as encostas que se sucediam, cada uma com
sua relva homogênea e seus aglomerados de árvores. O caminho sempre fazia Conan
ganhar altitude, embora tenha subido e descido leves declives com uma
regularidade monótona. A seqüência de cumes arredondados e declives suaves era
surpreendente: parecia infinita. Mas finalmente avançou, até o que parecia ser
o ponto mais alto da ilha. Parou ao avistar paredes brilhantes e torres verdes
que, antes dele chegar até lá, fundiam-se tão perfeitamente com a paisagem
verde, que pareciam invisíveis, mesmo para sua visão aguçada.
Ele hesitou, dedilhou a espada e seguiu em frente,
mordido pelo verme da curiosidade. Não viu ninguém ao se aproximar de uma
arcada alta, aberta na parede curva. Não havia porta. Olhou cuidadosamente
através dela, e viu o que parecia ser um grande pátio aberto, atapetado de
grama e cercado por uma parede circular, feita de uma substância verde e semi-transparente.
Vários arcos se abriam a partir dali. Avançando corajosamente, de pés descalços
e espada em punho, escolheu uma das arcadas aleatoriamente e passou para outro
pátio semelhante. Por cima de uma parede interna, avistou pináculos de
estranhas estruturas em forma de torres. Uma dessas torres fora construída dentro,
ou projetada para dentro do pátio em que se encontrava. Uma larga escadaria
conduzia para cima, ao longo da parede. Ele subiu, se perguntando se aquilo
tudo era real, ou se estava no meio de um sonho de lótus negro.
No alto da escada, encontrou-se numa saliência murada
— ou um balcão, ele não sabia bem o que era. Agora podia enxergar melhor os
detalhes das torres, mas eles não lhe faziam sentido. Pouco à vontade, percebeu
que nenhum ser humano comum poderia tê-las construído. Havia simetria e sistema
naquela arquitetura, mas era uma simetria louca e um sistema estranho à
sanidade humana. Quanto ao plano da cidade como um todo — ou o castelo, ou o
que quer que fosse —, conseguia ver apenas o suficiente para ter a impressão de
estar diante de um grande número de pátios, a maioria circulares, cada um cercado
por sua própria parede, e ligados uns aos outros por arcadas abertas, todos
aparentemente agrupados ao redor de um aglomerado de torres fantásticas ao centro.
Ao virar-se na direção oposta àquelas torres, teve
uma visão tão chocante que se agachou repentinamente atrás do parapeito do
balcão, espiando com surpresa.
O balcão ou beiral era mais alto do que a parede
oposta, e Conan estava olhando por cima daquela parede para outro pátio
gramado. A curva interna da parede seguinte daquele pátio diferia das outras
que havia visto. Em vez de ser lisa, parecia marcada por longas linhas ou
prateleiras cheias de pequenos objetos, cuja natureza ele não conseguia determinar.
Mas deu pouca importância à parede no momento. Sua
atenção foi atraída para o grupo agachado em volta de um poço verde-escuro, no
meio do pátio. As criaturas eram negras e estavam nuas, feitas à imagem do
homem; mas a menor delas, se ficasse em pé, veria a cabeça do alto pirata à
altura de seus ombros. Eram mais altas do que maciças, mas muito bem formadas,
sem sinais de deformidade ou anomalia além de sua estatura anormal. Mas, mesmo
àquela distância, Conan sentia o demonismo essencial de suas feições.
No meio deles, nu e encolhido, encontrava-se um jovem
que Conan reconheceu como o marinheiro mais jovem a bordo do Esbanjador. Então,
era ele o prisioneiro que o pirata vira ser carregado pela encosta coberta de
grama. Conan não havia ouvido sons de luta — não vira manchas de sangue ou
ferimentos, nos braços e pernas polidos e cor de ébano dos gigantes.
Evidentemente, o rapaz havia se afastado de seus companheiros em direção ao
interior da ilha, e fora apanhado por um homem negro à espreita. Conan definiu
mentalmente as criaturas como homens negros, por falta de um termo melhor.
Porém, instintivamente, sabia que aqueles grandes seres cor de ébano não eram
homens, como ele entendia o termo.
Nenhum som chegava até ele. Os negros anuíam e
gesticulavam uns para os outros, mas não pareciam estar falando — pelo menos,
não vocalmente. Um deles, agachado diante do garoto encolhido, segurava na mão
algo parecido com uma flauta. Ele levou o objeto aos lábios e aparentemente
soprou, embora Conan não ouvisse nenhum som. Mas o jovem zíngaro ouviu ou
sentiu algo, e se encolheu. Estremeceu e se contorceu como que em agonia.
Tornou-se evidente uma regularidade na contorção de seus membros, que
rapidamente passou a ser rítmica. A contorção transformou-se num violento espasmo,
e o espasmo ganhou movimentos regulares. O jovem começou a dançar, da mesma
forma que as serpentes dançam compulsoriamente ao som do pífaro de um faquir.
Não havia nada de prazer ou alegria naquela dança. Havia, de fato, um abandono
terrível de se ver, mas que não era nada alegre. Era como se a canção inaudível
da flauta agarrasse fundo a alma dentro do rapaz com dedos obscenos e, com uma
tortura brutal, arrancasse dela cada expressão involuntária de suas paixões
secretas. Era uma convulsão de obscenidade, um espasmo de lascívia — uma transpiração
de apetites secretos moldados pela compulsão: desejo sem prazer, dor emparelhada
terrivelmente com luxúria. Era como ver uma alma desnudada, expondo todos os
seus segredos sombrios e indizíveis.
Conan observava, imobilizado pela repulsa e trêmulo
de náusea. Embora fosse puramente primitivo como um lobo da floresta, não
ignorava os segredos perversos das civilizações decadentes. Já havia vagado
pelas cidades de Zamora e conhecido as mulheres de Shadizar, a Perversa. Mas
sentia ali uma abjeção cósmica que transcendia a mera degenerescência humana.
Um ramo perverso da árvore da Vida, desenvolvido ao longo de caminhos além da
compreensão humana. Não estava chocado com as contorções e postura agonizantes
do pobre rapaz, e sim com a obscenidade cósmica daqueles seres, que podiam trazer
à luz os segredos abismais que dormem na escuridão insondável da alma humana e
encontrar prazer numa expressão insolente de coisas que não deveriam ser sequer
sugeridas, nem em pesadelos intermináveis.
Subitamente, o torturador negro largou a flauta e se
levantou, agigantando-se diante da contorcida figura branca. Agarrando
brutalmente o garoto pelo pescoço e quadril, ele o ergueu e enfiou de cabeça no
poço verde. Conan viu o brilho claro do corpo nu em meio às águas verdes,
enquanto o gigante negro mantinha seu cativo bem abaixo da superfície. Então,
houve um movimento inquieto entre os outros negros, e Conan rapidamente se escondeu
atrás da parede do balcão, sem se atrever a levantar a cabeça, para não ser
visto.
Depois de um certo tempo, foi vencido pela
curiosidade e, cautelosamente, voltou a espiar. Os negros estavam atravessando
uma arcada em direção a outro pátio. Um deles estava acabando de colocar algo
sobre um beiral da parede adiante, e Conan reparou que era o mesmo que
torturara o rapaz. Era mais alto do que os outros, e usava uma faixa cravejada
de jóias na cabeça. Do garoto zíngaro, não havia sinal. O gigante seguiu seus
companheiros e, em seguida, Conan os viu emergirem da arcada pela qual ele tivera
acesso àquele castelo de horror. Enfileiraram-se nas encostas verdes e caminharam
na direção de onde viera. Não portavam armas, mas ele sentiu que planejavam
novas agressões contra os flibusteiros.
Porém, antes de ir alertar os inadvertidos
bucaneiros, queria investigar o destino do rapaz. Nenhum som perturbava a
quietude ao redor. O pirata acreditava que as torres e os pátios estavam
desertos, exceto por sua própria presença.
Desceu rapidamente a escada, atravessou o pátio e
entrou por uma arcada ao local que os negros haviam acabado de deixar. Agora
conseguia observar a natureza da parede estriada. Era recoberta de saliências
estreitas, aparentemente cortadas na pedra sólida. Distribuídas ao longo
daquelas saliências, ou prateleiras, havia milhares de figuras minúsculas, a
maioria delas de cor acinzentada. Não muito maiores do que a mão de um homem,
as figuras representavam homens. Eram tão bem-feitas, que Conan reconheceu
diversas características raciais nas diferentes imagens — feições típicas de
zíngaros, argoseanos, ophirianos e corsários kushitas. Estas últimas eram de
cor negra, assim como seus correspondentes reais. Conan sentiu uma vaga
inquietação, enquanto observava aquelas figuras mudas e cegas. Havia nelas uma
imitação de realidade, que era um tanto perturbadora. Apalpou-as cuidadosamente
e não conseguiu entender de que material eram feitas. A sensação era de osso
petrificado; mas não podia imaginar que aquela substância petrificada fosse tão
abundante naquele local, para ser usada de forma tão perdulária.
Percebeu que todas as imagens nas prateleiras mais
altas representavam tipos que lhe eram familiares. As prateleiras mais baixas
eram ocupadas por figuras de feições que lhe eram estranhas. Elas, ou
expressavam meramente a imaginação do artista, ou representavam tipos raciais
há muito desaparecidos e esquecidos.
Meneando a cabeça com impaciência, Conan virou-se
para o poço. O pátio circular não oferecia local para se esconder. Como o corpo
do rapaz não estava à vista em parte alguma, deveria estar jazendo no fundo do
poço.
Ao aproximar-se do plácido círculo verde, olhou para
a superfície cintilante. Era como olhar através de um vidro verde e grosso —
nítido, mas estranhamente ilusório. De dimensões médias, o poço era redondo e
bordejado por um anel de jade verde. Olhando para baixo, podia ver o fundo
arredondado — mas, a que distância da superfície, ele não saberia dizer. O poço
parecia incrivelmente profundo. Conan teve consciência de uma estonteante
sensação de vertigem ao olhar para baixo, como se estivesse diante de um
abismo. Ficou intrigado com sua capacidade de enxergar o fundo; mas ele estava
diante de seus olhos como algo impossivelmente remoto, ilusório e sombrio, mas visível.
Em alguns momentos, pensou ter visto uma luminosidade desmaiada no fundo daquelas
águas da cor de jade, mas não soube dizer ao certo. Tinha certeza de que o poço
não tinha nada, exceto a água tremeluzente.
Então onde, em nome de Crom, estava o rapaz que vira
ser brutalmente afogado naquele poço? Erguendo-se, Conan dedilhou a espada e
olhou ao redor do pátio mais uma vez. Seu olhar concentrou-se num ponto de uma
das prateleiras superiores. Ele vira o negro alto colocar alguma coisa ali...
Um suor frio subitamente brotou da pele morena do bárbaro.
Hesitante, o pirata aproximou-se da parede brilhante,
como que atraído por um ímã. Aturdido por uma suspeita monstruosa demais para
ser expressa, observou a última figura naquela saliência. Uma horrível
familiaridade se fez evidente. Petrificadas, imóveis, reduzidas, porém
inconfundíveis, as feições do garoto zíngaro o olhavam sem vê-lo. Conan recuou,
estremecido nos alicerces de sua alma. Sua espada encaixou-se em sua mão
paralisada enquanto observava boquiaberto, atordoado por uma percepção abismal
e horrível demais para ser absorvida pela mente.
Porém, o fato era incontestável. O segredo das imagens
anãs fora revelado. No entanto, atrás daquele segredo havia outro ainda mais
sombrio e enigmático a respeito de seus criadores.
3)
Quanto tempo permaneceu imerso em cogitações vertiginosas,
Conan nunca soube. Um som desviou seu olhar daquela cena — uma voz feminina,
que soava cada vez mais alta, como se sua dona estivesse sendo trazida para
perto. Conan reconheceu aquela voz, e sua paralisia desapareceu
instantaneamente.
Um rápido salto o levou para cima das prateleiras
estreitas, onde se agarrou, chutando de lado algumas imagens próximas, para
obter lugar para os pés. Mais um salto e uma escalada, e ele já estava agarrado
ao beiral da parede, espiando por cima. Era uma muralha externa, e ele estava
olhando para a pradaria verde que rodeava o castelo.
No outro lado da planície gramada, um gigante negro
vinha caminhando, trazendo uma cativa que se contorcia sob um de seus braços,
como um homem que carrega uma criança rebelde. Era Sancha, seus cabelos negros caídos
em ondas desgrenhadas, a pele cor de oliva contrastando radicalmente com o tom
de ébano lustroso de seu captor, que não dava atenção aos seus gritos e
contorções, enquanto caminhava em direção à arcada externa.
Desaparecendo atrás da muralha, Conan saltou
negligentemente pela parede, e deslizou para dentro da arcada que se abria para
o pátio seguinte. Agachado, viu o gigante entrar no pátio do poço, carregando
sua cativa que se agitava. E agora, conseguia divisar os detalhes da criatura.
De perto, a magnífica simetria do corpo e dos membros
era ainda mais impressionante. Sob a pele cor de ébano, ondulavam longos
músculos arredondados, e Conan não duvidava de que o monstro fosse capaz de
despedaçar um homem normal, membro por membro. As unhas das mãos forneciam
outras armas, pois eram crescidas como garras de uma fera selvagem. O rosto era
uma máscara de ébano esculpida. Os olhos eram fulvos, de um dourado vibrante
que brilhava e cintilava. Mas o rosto era inumano; cada traço, cada feição, era
estampado pela maldade — uma maldade que transcendia a mera maldade humana.
Aquela coisa não era humana — não poderia ser. Era um desenvolvimento da Vida
originado nos fossos de uma criação blasfema — uma perversão do desenvolvimento
evolucionário.
O gigante jogou Sancha na relva, onde ela se
arrastou, gritando de dor e terror. Depois lançou um olhar incerto, e seus
olhos fulvos se estreitaram quando miraram as imagens viradas e derrubadas na
parede. Em seguida se inclinou, agarrou sua cativa pelo pescoço e partes
íntimas, e caminhou com determinação em direção ao poço verde. Conan deslizou
de sua arcada e correu como um vento mortal pela relva.
O gigante virou-se, e seus olhos flamejaram ao ver o
vingador bronzeado correndo em sua direção. A surpresa daquele instante relaxou
seu aperto cruel. Sancha escapou de suas mãos e caiu na grama. Suas garras
estenderam-se para pegá-lo, mas Conan mergulhou para baixo de seu alcance e enfiou
sua espada na virilha do gigante. O negro caiu como uma árvore abatida,
esguichando sangue e, no instante seguinte, Conan foi agarrado pelo abraço
frenético de Sancha, que se ergueu e enlaçou seus braços ao redor dele, num
frenesi histérico de terror e alívio.
Ele praguejou ao se desvencilhar, mas seu inimigo já
estava morto. Os olhos fulvos estavam vidrados, os longos membros cor de ébano
tinham parado de se contorcer.
— Oh, Conan — soluçava Sancha, agarrando-se a ele com
tenacidade —; o que vai ser de nós? O que são esses monstros? Ah, certamente
aqui é o Inferno e esse era o diabo...
— Então o Inferno precisa de outro diabo — disse o baracho
com um esgar feroz. — Mas como ele conseguiu pegar você? Eles tomaram o navio?
— Não sei. — Ela tentou enxugar as lágrimas, procurou
pela saia e então se lembrou que não estava vestida. — Eu vim para a praia. Vi
você ir atrás de Zaporavo e segui vocês dois. Encontrei Zaporavo... foi... foi
você que...
— Quem mais? — grunhiu o bárbaro. — E depois?
— Vi um movimento nas árvores — ela estremeceu. —
Pensei que fosse você. Chamei... depois vi isso... essa coisa negra
agachada como um macaco entre os galhos, me olhando de soslaio. Foi como um
pesadelo; eu não conseguia correr. Tudo o que eu conseguia era gritar. Então,
ele desceu da árvore e me agarrou... oh, oh, oh! — Ela escondeu o rosto entre
as mãos, e começou a tremer novamente ante a memória daquele horror.
— Bem, nós precisamos sair daqui — grunhiu ele,
pegando-a pela cintura. — Vamos. Precisamos avisar a tripulação...
— A maioria estava dormindo na praia, quando entrei
na floresta — ela falou.
— Dormindo?! — exclamou ele de forma profana. — Pelos
sete demônios do fogo do Inferno e da maldição...
— Escute! — ela se imobilizou, uma imagem clara e
trêmula de medo.
— Estou ouvindo — ele interrompeu. — Um gemido!
Espere!
Saltou pelas saliências mais uma vez e, olhando por
cima da muralha, praguejou com uma fúria concentrada que fez até mesmo Sancha ofegar.
Os homens negros estavam voltando, mas não vinham sozinhos nem de mãos vazias. Cada
um deles trazia uma figura humana desfalecida; alguns traziam duas. Seus
cativos eram os flibusteiros. Pendiam inertes nos braços de seus captores e, se
não fosse um ocasional movimento ou contração vago, Conan teria acreditado que
estavam mortos. Estavam desarmados, mas não despidos. Um dos negros trazia as
espadas embainhadas, numa grande braçada de aço cortante. De tempos em tempos,
um dos marujos esboçava um grito vago, como um bêbado falando durante um sono
embriagado.
Como um lobo acuado, Conan olhou para eles. Três
arcadas conduziam para fora do pátio do poço. Os negros haviam saído do pátio
pela arcada leste e presumivelmente deveriam voltar por ela. Ele entrara pela
arcada sul e se escondera na arcada oeste, mas não tivera tempo de notar o que
havia além dela. Apesar de sua ignorância quanto à planta do castelo, foi
forçado a tomar sua decisão prontamente.
Saltando muralha abaixo, restaurou a posição das
imagens com uma pressa frenética, arrastou o cadáver de sua vítima até o poço e
o atirou lá dentro. Ele afundou instantaneamente e, nesse momento, Conan viu
distintamente uma espantosa contração — um encolhimento e um enrijecimento.
Afastou-se rápido, estremecendo. Depois pegou o braço de sua companheira e
conduziu-a velozmente em direção à arcada sul, enquanto ela implorava para ser
informada sobre o que estava acontecendo.
— Eles pegaram a tripulação — ele respondeu rispidamente.
— Eu não tenho plano nenhum, mas vamos nos esconder em algum lugar e observar.
Se não olharem para dentro do poço, talvez não suspeitem da nossa presença.
— Mas eles vão ver o sangue na grama!
— Talvez achem que um de seus próprios demônios o tenha
derramado — respondeu o pirata. — De qualquer forma, temos que correr esse
risco.
Os dois estavam no pátio de onde Conan havia
presenciado a tortura do rapaz, e ele logo a conduziu para a escadaria que
subia até a parede sul, forçando Sancha a se agachar atrás da balaustrada do
balcão. Não era um esconderijo muito eficaz, mas era o melhor que havia ali.
Os dois mal haviam se abrigado, quando os negros
invadiram o pátio. Houve um som retumbante ao pé da escada, e Conan se
enrijeceu, agarrando a espada. Mas os negros passaram através de uma arcada no lado
sudoeste, e ouviu-se uma série de baques e gemidos. Os gigantes estavam
depositando suas vítimas na relva. Um risinho histérico subiu aos lábios de
Sancha, mas Conan rapidamente tapou sua boca, abafando o som antes que pudesse
traí-los.
Depois de certo tempo, ouviram o som de muitos passos
na relva abaixo, e depois reinou o silêncio. Conan espiou por cima da muralha.
O pátio estava vazio. Os negros se reuniam novamente ao redor do poço, no pátio
adjacente, agachados no chão. Pareciam não prestar atenção às grandes manchas
de sangue sobre a relva e no anel de jade em torno do poço. Evidentemente,
manchas de sangue eram uma coisa comum para eles. Nem olharam para dentro do
poço. Estavam absorvidos em algum inexplicável conclave próprio. O negro alto tocava
novamente sua flauta dourada, e seus companheiros ouviam como estátuas de
ébano.
Tomando a mão de Sancha, Conan deslizou escada
abaixo, inclinando-se para sua cabeça não ser vista acima da muralha. A garota
encolhida seguia a contragosto, observando temerosa a arcada que levava ao
pátio do poço, apesar de que, naquele ângulo, nem o poço nem o bando sinistro
eram visíveis. Ao pé da escadaria, estavam as espadas dos zíngaros. Aquele
ruído que tinham ouvido eram as armas capturadas, sendo jogadas ao chão.
Conan arrastou Sancha em direção à arcada sudoeste, e
os dois silenciosamente atravessaram o gramado e entraram no pátio adiante. Os flibusteiros
jaziam ali em amontoados descuidados, bigodes eriçados e brincos reluzindo.
Aqui e ali, um deles movia-se ou gemia com inquietação. Conan abaixou-se até
eles e Sancha se ajoelhou ao seu lado, inclinando-se para frente, com as mãos
apoiadas nos joelhos.
— Que cheiro doce e enjoado é esse? — ela perguntou,
nervosa. — Está no hálito de todos eles.
— É daquela maldita fruta que estavam comendo —
respondeu Conan lentamente. — Eu me lembro do cheiro dela. Deve ser como o
lótus negro, que faz os homens dormirem. Por Crom, estão começando a acordar...
mas estão desarmados, e imagino que aqueles demônios negros não vão esperar
muito tempo, antes de começarem a fazer sua magia neles. Que chance os rapazes vão
ter, desarmados e tontos de sonolência?
Refletiu por um instante, estampando uma careta no
rosto causada pela concentração de seus pensamentos; depois segurou o ombro cor
de oliva de Sancha, com um aperto que a fez retrair-se.
— Escute! Vou atrair aqueles porcos negros para outra
parte do castelo, e mantê-los ocupados por algum tempo. Enquanto isso, você
acorda esses tolos e traz as espadas para eles... é uma chance de luta. Você
consegue?
— Eu... não sei! — ela gaguejou, estremecendo de terror
e mal sabendo o que estava dizendo.
Com uma praga, Conan agarrou as grossas tranças junto
da cabeça da garota e sacudiu-a até as paredes dançarem diante da estonteante
visão da moça.
— Você tem que conseguir! — ele sibilou para
ela. — É a nossa única chance!
— Vou fazer o melhor que puder! — ela ofegou e, com
um grunhido de recomendação e um tapa encorajador nas costas que quase a
derrubou, Conan se afastou.
Poucos instantes depois, ele estava agachado na
arcada que se abria para o pátio do poço, olhos fixos nos seus inimigos. Eles
ainda estavam sentados ao redor do poço, mas começavam a mostrar indícios de
uma impaciência maligna. Conan ouvia os gemidos aumentando no pátio onde os
bucaneiros estavam despertando, que começavam a se misturar com xingamentos
incoerentes. Ele flexionou os músculos e assumiu uma posição felina, respirando
tranqüilamente pela boca.
O gigante adornado de jóias levantou-se, tirando a
flauta dos lábios — e, nesse instante, Conan saltou como um tigre entre os
negros surpresos. E como um tigre salta e ataca sua presa, Conan saltou e
atacou: três vezes sua espada desfechou golpes, antes que qualquer um pudesse
erguer a mão para se defender. Em seguida, saltou e afastou-se correndo pelo
gramado. Atrás dele, estendiam-se três figuras negras no chão, com os crânios
partidos.
Embora a inesperada fúria do ataque-surpresa tenha
pegado os gigantes desprevenidos, os sobreviventes se recuperaram rápido o
bastante. E estavam nos calcanhares de Conan quando ele corria pela arcada
oeste, suas longas pernas cobrindo o solo à alta velocidade. Ele sentia-se
confiante em sua habilidade para mantê-los à distância o quanto quisesse, mas essa
não era sua intenção. O bárbaro queria conduzi-los em uma longa perseguição,
para dar a Sancha tempo para despertar os zíngaros e armá-los.
Quando correu para dentro do pátio além da arcada
oeste, Conan praguejou. Aquele pátio era diferente dos outros. Em vez de
redondo, era octogonal, e a arcada pela qual entrara era a única entrada ou
saída.
Virando-se, percebeu que o bando todo o seguira. Um
grupo aglomerava-se na arcada, e o resto se espalhava numa longa fileira
enquanto se aproximava. Ele os encarou, recuando lentamente em direção à
muralha norte. A fileira se curvava num semicírculo, espalhando-se para
cercá-lo. Continuou a se mover para trás; porém, cada vez mais lentamente,
observando que seus perseguidores aumentavam o espaço entre si. Eles temiam que
ele tentasse escapar pelas pontas da crescente e alongavam sua fileira para
evitar que isso acontecesse.
Conan os observava, com a calma prontidão de um lobo
e, quando atacou, foi com a velocidade devastadora de um trovão — bem no centro
da crescente. O gigante que barrava seu caminho tombou, trespassado ao meio do
osso esterno, e o pirata já estava fora do círculo que se fechava antes que os
negros da direita e da esquerda pudessem vir ao auxílio do camarada abatido. O
grupo no portão preparou-se para receber seu ataque, mas ele não os atacou.
Havia se virado e observava seus perseguidores sem emoção aparente, e certamente
sem medo.
Dessa vez eles não se espalharam numa linha tênue. Tinham
aprendido que seria fatal dividir suas forças contra uma encarnação de fúria devastadora
como aquela. Juntaram-se numa massa compacta e avançaram contra ele sem pressa,
mantendo a formação.
Conan sabia que, se caísse naquela massa de músculos
e ossos com garras, só poderia haver um resultado. Se fosse apanhado, estaria
ao alcance daquelas garras e à mercê da massa corpórea superior dos opositores,
diante da qual nem mesmo sua ferocidade primitiva prevaleceria. Olhou para a
muralha ao redor, e viu uma projeção em forma de beiral no canto superior do
lado oeste. Não sabia o que era, mas serviria ao seu propósito. Começou a
recuar em direção ao canto, e os gigantes avançaram mais rapidamente.
Evidentemente, pensaram que eles próprios o estavam conduzindo ao canto, e
Conan encontrou tempo para refletir que provavelmente os negros o viam como membro
de uma raça mais primitiva, mentalmente inferior eles. Tanto melhor. Nada pode
ser mais desastroso do que subestimar seu antagonista.
Agora ele estava a poucos metros da muralha, e os
negros o cercavam rapidamente, evidentemente pensando em acuá-lo no canto antes
que percebesse a situação. O grupo no portão havia abandonado seu posto e se
apressava para juntar-se aos companheiros. Os gigantes ficaram meio agachados,
olhos brilhando como o fogo dourado do inferno, dentes brancos cintilando,
garras erguidas prontas para o ataque. Eles esperavam um movimento brusco e
violento por parte de sua presa, mas quando aquilo aconteceu, foram pegos de
surpresa.
Conan ergueu a espada, deu um passo em direção a
eles, depois girou e correu em direção à parede. Com uma rápida torção e um
impulso de músculos de aço, saltou no ar e seu braço estendido agarrou a
projeção. Instantaneamente houve um ruído de ruptura e o beiral cedeu,
precipitando o pirata de volta ao pátio.
Ele caiu de costas e, se não fosse o acolchoado da
relva, teria quebrado a coluna, apesar de todos os seus músculos. Ricochetando
como um grande felino, encarou seus inimigos. A dançante negligência desaparecera
daqueles olhos. Agora eles flamejavam como uma fogueira azul. Seus cabelos se eriçaram,
e seus lábios finos rosnaram. Num instante, a situação se convertera de um jogo
ousado para uma batalha de vida e morte, e a natureza selvagem de Conan
respondeu com toda a fúria de sua selvageria.
Imobilizados por um instante pela velocidade do
episódio, agora os negros tentavam agarrá-lo e arrastá-lo ao chão. Naquele
instante, porém, um grito rompeu o silêncio. Virando-se, os gigantes viram uma multidão
de desclassificados reunindo-se na arcada. Os bucaneiros oscilavam como bêbados
e xingavam de forma incoerente. Estavam aturdidos e desconcertados, mas agarravam
suas espadas e avançavam com uma ferocidade nem um pouco diminuída pelo fato de
não compreenderem o que estava acontecendo.
Enquanto os negros observavam a cena, espantados,
Conan deu um grito estridente e os atacou como um trovão laminado. Eles caíram
como trigo maduro sob sua lâmina, e os zíngaros, gritando com uma fúria ainda
entorpecida, correram cambaleantes através do pátio e caíram sobre seus
gigantescos inimigos com um fervor sanguinário. Ainda estavam zonzos. Ao
emergirem estonteados de seu sono dopado, sentiram Sancha sacudindo-os
freneticamente e forçando espadas em suas mãos, ouviram vagamente seu apelo
para tomar algum tipo de atitude. Não compreenderam tudo o que ela dissera, mas
a visão de estranhos e de sangue jorrando era suficiente para eles.
Num instante, o pátio se transformara num campo de
batalha que logo se assemelharia a um matadouro. Os zíngaros oscilavam e
cambaleavam sobre os próprios pés, mas brandiam as espadas com força e eficiência,
praguejando copiosamente, e totalmente indiferentes a quaisquer ferimentos,
exceto os instantaneamente fatais. Eram em muito maior número que os negros,
mas estes se provaram fortes antagonistas. Bem mais altos que seus agressores,
os gigantes promoviam devastação com garras e dentes, rasgando gargantas de
homens e esmagando crânios com golpes de punhos fechados. Envolvidos e misturados
naquele corpo-a-corpo, os bucaneiros não conseguiam transformar em vantagem sua
agilidade superior. Muitos se encontravam entorpecidos demais por seu sono
drogado, para se esquivar dos golpes dos oponentes. Eles lutavam com uma ferocidade
cega e selvagem, com mais intenção de matar do que defender. O som das espadas
sendo brandidas era como de cutelos de açougueiros, e os gritos, urros e
xingamentos eram chocantes.
Encolhida na arcada, Sancha estava aturdida pelo
ruído e pela fúria da luta. Tinha a impressão pálida de um caos giratório, no
qual o aço reluzia e cortava, braços se agitavam, rostos furiosos apareciam e
desapareciam, e corpos em luta colidiam e ricocheteavam, unidos e misturados
numa dança demoníaca de loucura.
Os detalhes mostravam-se brevemente, como contornos
escuros num pano de fundo sangrento. Ela viu um marinheiro zíngaro, cegado por
uma aba de escalpo rasgado que caíra sobre seus olhos, firmar-se sobre as
pernas bem abertas e enterrar sua espada até o cabo num ventre negro. Ouviu
distintamente o bucaneiro rosnar durante o golpe e viu os olhos fulvos da
vítima rolarem em súbita agonia: sangue e vísceras esparramaram-se na lâmina
cravada em suas entranhas. O negro moribundo agarrou a lâmina com as mãos nuas,
enquanto o marinheiro puxava a espada bruta e cegamente. Então, um braço negro
enlaçou a cabeça do zíngaro e um joelho negro plantou-se com força cruel no
meio de suas costas. Sua cabeça foi torcida para trás num ângulo hediondo, e
alguma coisa se partiu com um ruído mais alto que o clangor da luta, como um
galho grosso se quebrando. O vencedor atirou o corpo de sua vítima ao chão.
Quando fez isso, algo parecido com um raio de luz azul lampejou acima de seus
ombros, vindo de trás, da direita para a esquerda. Ele cambaleou, a cabeça
tombou sobre seu peito e dali para a terra, de forma horrenda.
Sancha sentia-se enjoada. Engasgou e tentou vomitar.
Fez esforços fracassados para se virar e fugir do espetáculo, mas suas pernas
não funcionavam. Também não conseguia fechar os olhos. Na verdade, abriu-os
ainda mais. Revoltada, repugnada, nauseada, ainda assim sentia a terrível
fascinação que sempre experimentava diante da visão de sangue derramado. Mas
aquela batalha transcendia tudo o que jamais vira em disputas entre seres
humanos, em ataques a portos ou em batalhas marítimas. Então ela avistou Conan.
Separado de seus companheiros pela massa de inimigos,
Conan havia sido envolvido e arrastado por uma onda negra de braços e corpos.
Eles o teriam pisoteado até a morte, mas ele havia trazido um deles junto na
queda, e o corpo do negro protegia o pirata embaixo dele. Eles chutavam e
unhavam o baracho, e tentavam puxar seu semelhante que se contorcia, mas Conan
cravara os dentes desesperadamente em sua garganta e agarrava-se tenazmente ao
seu escudo moribundo.
Uma investida dos zíngaros diminuiu a pressão. Conan
jogou de lado o cadáver e levantou-se, ameaçador e manchado de sangue. Os
gigantes pairavam acima dele como grandes sombras negras, agarrando e
desfechando golpes terríveis no ar. Porém, ele era tão difícil de ser agarrado
ou atingido quanto uma pantera louca por sangue e, a cada virada ou lampejo de
sua lâmina, o sangue esguichava. Ele já havia recebido castigo o bastante para
matar três homens comuns, mas sua vitalidade de touro permanecia intacta.
O grito de guerra de Conan ergueu-se acima do som da
carnificina, e os desnorteados, mas furiosos, zíngaros se reanimaram e
redobraram seus ataques, até que o ruído de carnes rasgadas e de ossos quebrados,
sob as espadas, quase afogou os uivos de dor e ódio.
Os negros hesitaram e romperam em fuga para o portão.
Sancha gritou ao perceber aquela movimentação, e saiu rapidamente do caminho.
Eles se congestionaram na estreita arcada, e os zíngaros espetaram e
esfaquearam suas costas comprimidas com estridentes uivos de júbilo. O portão
estava em ruínas, quando os sobreviventes conseguiram atravessá-lo e se
dispersar, cada um por si.
A batalha tornou-se uma perseguição. Nos pátios
gramados, nas brilhantes escadarias, sobre os tetos inclinados das torres
fantásticas, e até mesmo no alto das largas paredes revestidas, os gigantes
fugiam, pingando sangue a cada passo, arrasados por seus inclementes
perseguidores, que mais pareciam lobos. Encurralados, alguns deles viravam-se
para lutar e homens morriam. Mas o resultado final era sempre o mesmo: um corpo
negro mutilado retorcendo-se na relva, ou arremessado, enquanto se contorcia,
de um parapeito ou do topo de uma torre.
Sancha havia encontrado refúgio no pátio do poço,
onde ficou agachada, tremendo de terror. Lá fora, erguiam-se gritos ferozes,
pés batendo na grama e, da arcada, emergiu uma figura negra tingida de sangue.
Era o gigante com a faixa cravejada de jóias na cabeça. Um perseguidor agachado
estava logo atrás, e o negro voltou-se, bem próximo à beira do poço. Numa
atitude extremada, ele havia apanhado uma espada largada por um marinheiro
moribundo e, quando o zíngaro precipitado investiu, golpeou-o com aquela arma
pouco familiar. O bucaneiro tombou com o crânio rachado, mas o golpe fora desfechado
de forma tão desastrada, que a lâmina se partiu na mão do gigante.
Ele atirou o punho da espada nas figuras que se
aglomeravam na arcada, e correu para o poço, o rosto transformado numa máscara
de ódio convulso.
Conan passou pelos homens no portão, e seus pés
arrancaram a grama em seu ataque precipitado.
Porém, o gigante abriu seus grandes braços e, de seus
lábios, surgiu um grito inumano — o único som emitido por um negro durante toda
a luta. Ele bradou todo seu terrível ódio para o céu; era como uma voz uivando
das profundezas. Diante daquele som, os zíngaros vacilaram. Mas Conan não se
deteve. Em silêncio e numa postura assassina, avançou contra a figura de ébano
postada à beira do poço.
Mas, no momento em que a espada gotejante do pirata
brilhava em pleno ar, o negro girou e saltou para o alto. Por um rápido
instante, todos o viram pairando no ar acima do poço. Em seguida, com um rugido
estremecedor, as águas verdes se ergueram e o encontraram, envolvendo-o num
vulcão verde.
Conan parou sua corrida precipitada, bem a tempo de
não cair no poço, e saltou para trás, empurrando os homens atrás de si, com um
poderoso giro dos braços. A piscina esverdeada agora parecia um gêiser, e seu
ruído atingiu um volume ensurdecedor enquanto uma grande coluna de água
elevava-se cada vez mais alto, com uma grande coroa de espuma florescendo em
seu topo.
Conan estava conduzindo seus homens para o portão,
seguindo logo atrás, batendo neles com a parte plana da espada. O barulho do
jato de água parecia ter roubado as faculdades dos flibusteiros. Vendo Sancha
paralisada no lugar, observando o pilar efervescente com os olhos arregalados
de terror, ele chamou sua atenção com um berro que superou o barulho da água e
fez com que ela saísse de sua imobilidade. A garota correu em sua direção,
braços abertos, e ele a ergueu sob um braço e correu para fora do pátio.
No pátio que se abria para o mundo exterior, os
sobreviventes haviam se reunido, exaustos, esfarrapados, feridos e sujos de
sangue, e quedaram-se olhando sem fala para o grande e instável pilar, que se
erguia cada vez mais em direção à abóbada azul do céu. Seu tronco verde estava
mesclado de branco; a coroa espumante era três vezes maior que a circunferência
da base. Embora continuasse a subir em direção ao céu, naquele momento a coluna
ameaçava explodir e cair numa torrente avassaladora.
O olhar de Conan varreu o grupo ensangüentado e nu, e
soltou uma praga ao ver apenas vinte deles. Na tensão do momento, agarrou pelo
pescoço um dos corsários e o sacudiu de forma tão violenta, que o ferimento do
homem borrifou gotas de sangue em torno deles.
— Onde está o resto? — gritou no ouvido de sua
vítima.
— Só restaram esses! — gritou o outro de volta, acima
do rugido do gêiser. — Os outros foram mortos por aqueles negros...
— Bem, saiam daqui! — vociferou Conan, com um
empurrão que mandou o homem cambaleando para a arcada externa. — Aquela fonte
vai explodir a qualquer momento...
— Vamos todos nos afogar — gritou um flibusteiro,
mancando em direção à arcada.
— Afogar, o inferno! — bradou Conan. — Vamos ser
transformados em pedaços de osso petrificado! Saiam daqui, malditos!
Ele correu para a arcada externa, um olho na torre
verde estridente que pairava tão terrivelmente acima dele, outro nos fugitivos.
Estonteados pelo sangue derramado, pela luta e pelo trovejante ruído, alguns
zíngaros se moviam como homens em transe. Conan apressava-os com um método
simples. Agarrava os retardatários pelo cangote e impelia-os violentamente
através do portão, acrescentando certo ímpeto com um potente chute no traseiro
e exigindo mais pressa com pungentes comentários a respeito dos ancestrais de
suas vítimas. Sancha queria ficar ao seu lado, mas ele afastou-a com braços
fortes, xingando intensamente, e acelerou seus movimentos com um tremendo tapa
em seu traseiro, que a mandou correndo para o platô.
Conan não saiu do portão, até ter certeza de que
todos os seus homens que ainda viviam já haviam deixado o castelo, e começado a
caminhar pela planície gramada. Depois olhou novamente para aquele pilar que
rugia contra o céu, fazendo as torres parecerem pequenas, e também fugiu
daquele castelo de horrores inomináveis.
Os zíngaros já tinham atravessado a orla do platô e
fugiam pelas encostas. Sancha esperou por ele no cume da primeira encosta, onde
Conan parou por um instante para observar novamente o castelo. Era como se uma
gigantesca flor de caule verde e coroa branca pairasse acima das torres; aquele
rugido enchia o céu. Então, o pilar verde-jade e branco rompeu-se num ruído que
parecia o firmamento se rasgando, e muralhas e torres foram encobertas por uma trovejante
torrente.
Conan agarrou a mão da garota e correu. As encostas
subiam e desciam diante dos dois, e atrás soava o ruído de um rio correndo. Um
olhar por cima do ombro contraído revelou um vagalhão verde subindo e caindo, como
se varresse as encostas. A torrente não se espalhava nem se dissipava; como uma
serpente gigante, fluía sobre as depressões e cumes arredondados. Mantinha um
curso consistente: ela os estava seguindo.
Aquela percepção elevou Conan a um nível mais alto de
resistência. Sancha tropeçou e caiu de joelhos, com um gemido de desespero e
exaustão. Levantando-a, o pirata jogou-a sobre os ombros gigantes e continuou
correndo. Seu peito ofegava, seus joelhos tremiam, sua respiração fluía arfante
através dos dentes. Acelerou o passo. À frente, viu os marinheiros avançando
arduamente, estimulados pelo terror que os perseguia.
O oceano surgiu subitamente em sua visão e, diante do
seu olhar embaçado, flutuava o Esbanjador, intacto. Os homens
atropelaram-se desordenadamente para entrar nos botes. Sancha caiu no fundo de
um deles e lá ficou, prostrada. Embora o sangue pulsasse em seus ouvidos e o
mundo parecesse avermelhado aos seus olhos, Conan assumiu os remos ao lado dos
ofegantes marinheiros.
Com os corações prestes a explodir de exaustão, eles
remaram até o navio. O rio verde eclodiu através do cinturão de árvores. As
árvores tombavam como se os troncos tivessem sido cortados, e desapareciam
conforme afundavam na torrente cor de jade. A maré fluiu até a praia e lambeu o
oceano, e as ondas ganharam um tom verde mais profundo e sinistro.
Um medo instintivo e irracional mantinha os bucaneiros
remando, fazendo com que esforçassem cada vez mais seus corpos agonizantes e
seus cérebros cambaleantes. Eles não sabiam o que temiam, mas tinham
consciência de que, naquela abominável onda verde, havia uma ameaça para o
corpo e para a alma. Conan sabia disso e, quando avistou aquela larga torrente
deslizar nas ondas e fluir através das águas em direção a eles, sem mudar de
forma ou direção, invocou sua última reserva de forças de forma tão feroz que o
remo partiu-se em suas mãos.
Mas as proas dos botes chocaram-se contra o madeirame
do Esbanjador, e os marinheiros subiram pelas correntes cambaleando,
deixando as embarcações flutuando à deriva. Sancha subiu apoiada no ombro de
Conan, flácida como um cadáver, para ser jogada sem cerimônia sobre o convés
pelo baracho, antes deste assumir o leme, bradando ordens para sua reduzida
tripulação. Ao longo do episódio, ele assumira a liderança sem questionamentos,
e todos instintivamente o seguiram. Eles cambaleavam como bêbados, manipulando
as cordas e polias mecanicamente. A corrente da âncora, desamarrada, caiu na
água, as velas se desfraldaram e inflaram com o vento que aumentava. O Esbanjador
estremeceu, balançou e singrou majestosamente para o mar. Conan olhou para
a praia: como uma língua de chama cor de esmeralda, uma onda agitava a água
inutilmente, à distância de um remo da quilha do Esbanjador. E não avançou
mais. Seu olhar seguiu o ininterrupto fluxo verde bruxuleante da ponta daquela
língua à praia branca e encosta acima, até que desapareceu na distância azul.
Recuperando o fôlego, o baracho sorriu para a
ofegante tripulação. Sancha estava perto dele, lágrimas histéricas lhe escorrendo
pelo rosto. Os calções de Conan pendiam em trapos ensangüentados. Seu cinto e
bainha estavam perdidos. Sua espada, em pé no convés ao seu lado, estava
dentada e com crostas de manchas vermelhas. O sangue se emplastava em sua
cabeleira negra, e metade de uma orelha tinha sido arrancada de sua cabeça.
Seus braços, pernas, peito e ombros estavam mordidos e arranhados como que por
panteras. Mas ele sorria quando se equilibrou em suas poderosas pernas, manejando
o leme numa pura exuberância de poder muscular.
— E agora? — gaguejou a jovem.
— A pilhagem dos mares! — ele riu. — Uma tripulação
irrisória, mastigada e arranhada, quase aos pedaços, mas que consegue manejar o
navio. E tripulações sempre podem ser encontradas. Venha aqui, garota, e me dê
um beijo.
— Um beijo? — ela gritou histericamente. — Você pensa
em beijos numa hora dessas?
A risada dele soou acima dos baques e estalidos das
velas, quando a ergueu do chão na curva de um dos braços fortes, e beijou seus
lábios vermelhos com ressoante deleite.
— Eu penso na Vida! — ele rugiu. — Os mortos estão
mortos, e o que passou já era! Tenho um navio, uma tripulação de guerreiros e
uma garota com lábios como o vinho, e é só isso que peço. Lambam suas feridas,
seus fanfarrões, e abram um barril de cerveja. Vocês vão trabalhar como jamais
trabalharam antes num navio. Dancem e cantem enquanto puderem, seus malditos!
Ao diabo com mares vazios! Vamos singrar para águas onde os portos são gordos,
e os navios mercantes estão abarrotados de riquezas para serem saqueadas!
FIM
Tradução:
Claudio Salles Carina.
Revisão:
Fernando Neeser de Aragão.
Fontes: Conan O Cimério, Vol. 2, Ed.
Conrad (2006) e http://gutenberg.net.au/ebooks06/0600951h.html
A seguir: O
Esbanjador.