Sabatea, a Maldita


(por Fernando Neeser de Aragão)



Doze mil homens de corpo esguio cavalgam pelas areias do deserto – homens tribais zuagires, vestidos em túnicas brancas. O líder deles também está vestido de branco, mas seu turbante esvoaçante é enfeitado nas têmporas por um trançado triplo de pêlos de camelo, que lhe desce pelos lados do rosto bronzeado e cicatrizado, até os ombros poderosos. Sob o turbante, ele usa um capacete de aço, debaixo do qual escapa sua cabeleira desgrenhada de corte reto. E, sob a sombra daquele mesmo turbante, brilha um par de vulcânicos olhos azuis.

Vasos de água, bem como comidas e riquezas, estão sendo levados pelos zuagires sob o comando de Conan. Convencidos pelo próprio cimério de que nada lucrariam se matassem a todos na recém-saqueada Akbitana, os zuagires, a mando de Conan, haviam poupado as vidas inocentes, matando apenas os soldados que os atacaram e soltando os escravos – para alegria da população pobre da cidade e desespero dos lordes dali. Semanas antes da invasão a Akbitana, o cimério e seus comandados haviam atacado o posto avançado turaniano de Vezek. Então, após saber que Akbitana estava totalmente recuperada da invasão das hordas de Thugra Khotan, ocorrida anos antes, o líder bárbaro resolveu ficar um breve tempo sem atacar os turanianos.

Os lobos do deserto agora têm consciência de que uma cidade parcialmente poupada durante um saque terá melhores condições de recuperar suas riquezas em menos tempo, para poder ser saqueada novamente por eles.


Enquanto isso, de trás de uma duna, aparece o inconfundível estandarte do Lobo Branco, seguido por um grupo de cavaleiros vestidos em aço, seda e ouro, que atacam com flechas e iatagãs um destacamento de zuagires que havia diante deles – são ninguém menos que os implacáveis turanianos! Naquele repentino ataque, as linhas de arqueiros de Turan rompem as filas shemitas, transformando-as em grupos desorganizados. No momento seguinte, contudo, chegam mais guerreiros zuagires, que, sob a liderança de Conan, se incorporam à batalha. Os arqueiros montados de Turan começam a ceder. Os cavalos empinam e derrubam seus cavaleiros, e estes são arrancados de suas selas por fortes braços morenos, ou derrubados pelo impacto certeiro de flechas shemitas e pela espada implacável do mais poderoso e habilidoso líder dos zuagires. Logo, os turanianos restantes fazem seus cavalos darem meia-volta e se retirarem a todo galope.

- Pelo visto, chegamos na hora exata, hein, Djebal? – exclama Conan, com um sorriso largo e duro no rosto cicatrizado.

- Sem dúvida, Conan – responde o aliviado segundo-em-comando, devolvendo-lhe o sorriso.

Os ataques recentes a Vezek e Akbitana fazem com que os zuagires passem a evitar temporariamente aqueles locais e adjacências. Então, o cimério e seus homens se dirigem para o sudoeste, evitando Zamboula e procurando algum oásis próximo à fronteira leste da Stygia. Ao longo daqueles dias, no entanto, a água e a comida vão ficando cada vez mais escassas.

O interminável deserto de areia brilha marrom-claro à luz do sol da tarde. A sede extrema faz os zuagires matarem os camelos moribundos e beberem o sangue dos animais. E a fome os leva a destrinchar e assar as montarias que já não podem conduzi-los.

Conan se põe a devorar um cacto, dado a ele por Djebal. Não lhe é desagradável ao paladar, e seu suco é refrescante e sacia a sede.

* * *

No dia seguinte, eles avistam uma enorme construção esculpida na rocha, cuja arquitetura lhes é totalmente desconhecida. Mas é um rio próximo a ela que atrai a atenção dos lobos do deserto. Embora desconfiados e alertas para qualquer perigo, os zuagires se dirigem com seu líder até aquele rio, cujas águas, apesar de serem aparentemente avermelhadas, são límpidas e potáveis. Todos saciam a sede nela. Com a sede totalmente aplacada, Conan pesca ali, agarrando os peixes com a mão calejada e colocando-os, ainda vivos, dentro de um saco de couro, como aprendera em sua infância e adolescência na Ciméria, enquanto os outros zuagires enchem sacos, também de couro, com a água do rio.

Ao sul do Deserto do Leste e a leste da Stygia, fica uma terra escura e maligna, tão temida que até mesmo os temíveis comerciantes shemitas a evitam, e ela é tão pouco conhecida que se acredita que seja há muito abandonada, como a cidade morta de Kuthchemes. E a cidade de Sabatea, diante deles, com seus muitos domos, é a capital de Saa’bah, uma terra antiga, há muito usada como a capital do Anel Negro, na época da Antiga Stygia, e ardentemente disputada pelo velho império do Iranistão.

A primeira habitação humana daquela que se tornaria Sabatea era, originalmente, um sistema de cavernas, construído por uma misteriosa cultura de moradores de grutas. Começando como meramente túneis escavados, a arte e sofisticação destas cavernas se desenvolveu em espetaculares templos, palácios e castelos, escavados nas rochas, com cada detalhe tão impressionante quanto as Cavernas de Jhelai, em Vendhya, ou os templos subterrâneos da Stygia. Finalmente, mais construções convencionais foram erigidas ao redor das montanhas, e a cidade de Sabatea se tornou um poder no Leste.

Durante muitas eras, Sabatea se manteve forte, resistindo até mesmo ao Grande Cataclismo, com sua arquitetura espantosamente durável, e sua posição fortuita numa área geologicamente quieta. Entretanto, o poder do povo que se tornaria o stígios subjugou a cidade, e ela se tornou parte do antigo Império Stígio, onde o notório Anel Negro fez dela o centro de suas abomináveis feitiçarias.

Então, vieram os hiborianos. Quando até mesmo a poderosíssima Kuthchemes cambaleou sob o ataque dos invasores hiborianos, Sabatea foi duramente pressionada a se defender. O Anel Negro se deslocou para Keshatta, e a nobreza fugiu para Khemi; poucos soldados ficaram na cidade, para defendê-la dos saqueadores do norte. O destino foi gentil com Sabatea, quando os hiborianos ignoraram a cidade oculta e voltaram sua atenção para outros lugares. Esta sorte, entretanto, não durou: séculos após a retirada dos stígios, Sabatea foi atacada pelo reino do Iranistão. Mas Sabatea não havia sido complacente: nos anos, desde que fora abandonada pelo Anel Negro, um novo quadro de feiticeiros subiu ao poder. Formado por bruxos, sacerdotes e hereges fugitivos, expulsos de suas terras natais, este círculo poliglota de renegados e radicais transformou Sabatea, de uma relíquia abandonada, em uma fortaleza de magias sombrias. Este círculo podia manipular tanto a Stygia quanto o Iranistão, colocando-os um contra o outro, enquanto conspiravam e o povo de Saa’bah construía suas tropas e infra-estrutura. Com o tempo, Saa’bah emergiria como um novo poder no leste.

Saa’bah é isolada e reservada, com uma população composta, em sua maior parte, por sabateanos nativos e uma considerável presença stígia. Os stígios, naturalmente, cultuam Set, e os templos da Velha Serpente dominam a cidade externa; entretanto, os antigos sabateanos cultuam Yog, o Senhor das Moradas Desertas, do qual o cimério ouviu falar, há muitos meses em Zamboula. Sabatea é o lar do culto a Yog, o qual se espalha até Zamboula e Darfar.

Na época de Conan, Sabatea é uma cidade menor, mas com muitas construções e recursos sem igual, os quais seriam um grande benefício para qualquer aspirante a império. Seus maiores recursos são as inigualáveis pimentas do Rio Vermelho, as quais são parte de um lucrativo comércio de pimentas entre o sacerdócio e os feiticeiros do mundo, e uma fonte primária de renda para Saa’bah. Além disso, os artesãos sabateanos fazem excelentes cerâmicas pintadas – mais comumente vasos para incenso, pós e elixires, feitos por sacerdotes e feiticeiros.

Os zuagires estão acampados à noite, não muito longe do Rio Vermelho, quando Conan, juntamente com Beled e Fadlan se lembram das pimentas que viram crescendo às margens do rio, imaginam haver comida dentro daquela enorme construção e resolvem entrar naquele local, em busca de mais provisões, deixando Djebal no comando de seus lobos do deserto. Pouco mais de uma hora após o cimério ter adentrado aquele misterioso local, uma horda uivante sai de dentro da construção, pronta para investir contra os zuagires do outro lado do rio. Automaticamente, Djebal organiza seus bandoleiros para se defenderem, como aprendeu com Conan.

O exército de Saa’bah é modesto, mas suficiente para defender a terra deles. Os soldados regionais são disponíveis como mercenários ou recrutas regionais em Sabatea: tropas sabateanas, Guerreiros Sabateanos e Fanáticos Yoguitas. As tropas sabateanas são simples camponeses e trabalhadores, armados com lanças e com arcos ao estilo shemita; alguns deles usam armaduras leves, mas a maioria veste pano ou seda. Os Guerreiros Sabateanos são uma elite desorganizada, formada por velhos guerreiros stígios, nômades shemitas e sabateanos dignos de nota na experiência em batalha; usam uma grande variedade de armaduras, e manejam uma arma de cabo curto e um escudo, com um arco longo de estilo stígio. Os Fanáticos de Yog são homens ferozes e perigosos, com devoção fanática; vestidos em robes verdes, eles derrubam seus inimigos com porretes e maças – isto previne a perda excessiva de sangue, o qual é uma parte muito importante de seus rituais.

As tropas e guerreiros sabateanos, bem como os Fanáticos Yoguitas, afastam-se da entrada de seu templo. À distância, perto da margem do rio que corre não muito longe do templo, move-se outra massa escura, mal reconhecível como homens a cavalo. Eles vêm com toda a sua força de cavaleiros. A lua reflete sua luz sobre as armaduras, em meio à escura multidão que avança pouco a pouco. Os esquadrões de Saa’bah se põem a galope, com um brado intenso. Os sabateanos avançam sobre os lobos do deserto, e estes vão ao seu encontro. Flechas voam em nuvens entre os zuagires e os nômades vacilam. O líder militar de Sabatea ordena o ataque. Em fileiras organizadas, os sabateanos caem sobre eles.

As duas massas inimigas se fundem e entrelaçam. Nuvens de poeira se elevam da planície, sob os cascos dos cavalos. Então, as massas das hordas nômades se abrem para a direita e esquerda e, no meio deles, avançam três mil zuagires em sólida formação de cunha, com Djebal à frente deles, devastando os sabateanos como um raio e lhes rompendo as fileiras, antes que aqueles fanáticos tenham tempo de saber o que está acontecendo. Então, os demais zuagires os atacam pelos lados, desfazendo a formação sabateana e dispersando-os. Os sabateanos começam a recuar e fugir. As cimitarras de Djebal e seus comandados sibilam a torto e a direito, matando tanto tropas e guerreiros sabateanos, quanto Fanáticos Yoguitas.

Os três mil guerreiros da formação de cunha – a qual Djebal aprendeu com o cimério a quem ele busca – invadem as hostes de Saa’bah como leões sedentos de sangue, e – assim como os outros zuagires sob seu comando – os bombardeiam com flechas.

* * *

Enquanto a batalha ruge furiosamente do lado externo de Sabatea, lá dentro outro drama se desenrola.

- Você é virgem? – pergunta o sumo sacerdote dos sabateanos a uma linda e voluptuosa morena, de seios fartos e largos quadris firmes, a se contorcer nos braços de dois guerreiros locais.

- Canalha! – responde Leyla. – Sou uma princesa do deserto, não uma meretriz.

- Você era uma princesa do deserto, quando seu pai ainda era vivo e você era livre – ele responde. – Bem, só por garantia, você será examinada. – Em seguida, o sumo sacerdote Ptah-Menkauri se dirige a um homem de cabeça raspada, tão alto e magro quanto ele próprio, próximo a uma das portas: – Enfermeiro! Examine esta jovem.

Leyla tenta se desvencilhar, mas os braços dos lacaios de Ptah-Menkauri são fortes demais para que a jovem shemita consiga escapar.

* * *

Conan, Beled e Fadlan continuam se esgueirando em busca de mais água e comida, mas, ao invés disso, encontram diversos homens e mulheres shemitas acorrentados às paredes de um calabouço. Abrindo, de um único puxão dos musculosos braços bronzeados, as grades da cela, o cimério lhes pergunta o que fazem ali aprisionados. Eles lhe respondem que foram capturados no deserto, para serem sacrificados aos infames deuses Yog e Set, adorados pelos sabateus. Então, com sua força estupenda, Conan arrebenta, uma a uma, as correntes que prendem aquelas pessoas às paredes da masmorra.

- Agora não são mais – responde o líder zuagir. – Aqueles que puderem usar armas, receberão uma – ele acrescenta, entregando sua adaga, a de Beled e a de Fadlan, uma para cada ex-prisioneiro. – Os que não têm adagas terão de usar suas correntes como armas, se algum maldito yoguita aparecer – Conan conclui.

Enquanto liberta os prisioneiros e fala com eles, o cimério ouve a respeito de uma bela e voluptuosa filha de um falecido chefe tribal, a qual fora capturada, dias antes, pelo sumo sacerdote e governante de Sabatea, e que está prestes a ser sacrificada ao abominável Senhor das Moradias Vazias e ao Deus-Serpente. Isto faz com que o interesse de Conan seja maior do que o de comida e água.

Entretanto, após atravessarem os corredores abobadados e anoitecidos daquela cidade maldita – na verdade, o primeiro grande palácio, encontrado pelo cimério e seus comandados em meio a um deserto –, eles se deparam com uma mesa de ébano polido numa das muitas câmaras com teto de cúpula dali. Nela há recipientes com água e comida. Há frutas, carnes e, além de água, vinho. Sem fazerem objeções – é melhor morrerem envenenados do que de fome –, Conan e seus seguidores agarram os cálices e copos cheios de vinho e água, esvaziando-os de um só gole. Com as sedes saciadas, todos atacam as frutas e carnes com grande apetite, ignorando os talheres sobre a mesa, apanhando os pedaços de carne e rasgando-os com seus dentes vorazes.

Com a fome saciada, o cimério e seus aliados descansam por meia-hora; então se levantam das cadeiras e, revigorados pela comida e descanso, vão à procura da moça pela qual o líder bárbaro se interessou.

* * *



Numa cela sem leito de Sabatea, Leyla dorme sobre o chão duro. Ela bem que tentou resistir aos pós de lótus negro que o curandeiro de Ptah-Menkauri a obrigou a inalar. Mas logo sucumbiu às drogas e à própria exaustão. Mas as substâncias entorpecentes lhe desencadeiam sonhos... sonhos de um passado que parece muito distante.

Nascida nas tendas de feltro do sul, sua infância se passou no deserto, onde tudo era liberdade. Na sua adolescência, Leyla era orgulhosa, pois os homens lhe elogiavam a beleza e a iam cortejar. Mas também havia outros, que lhe mataram o pai, massacraram sua família, destruíram e queimaram as tendas onde a jovem nascera e vivera, apontaram-lhes sabres e a raptaram. Aqueles escravistas shemitas que a raptaram – os quais nem sempre tinham escrúpulos sobre como, onde e a quem escravizar – venderam-na ao sumo sacerdote Ptah-Menkauri, rei de Sabatea, em troca das excelentes pimentas e cerâmicas daquela cidade maldita.

Seu sono e sonhos são abruptamente interrompidos pelo abrir da porta de sua cela.

- Garota! Chegou o momento! – diz o curandeiro da cidade, aproximando-se de Leyla e examinando-lhe o rosto. – Meus pós surtiram efeito. Muito bom. Excelente.

De fato, apesar de não estar mais dormindo, a bela jovem está com o corpo e mente enfraquecidos pelas drogas que lhe foram dadas.

- Mas – prossegue o homem – não custa nada usar outra dose, só para garantir. – Então, ele sopra, de sua zarabatana, bem próxima ao rosto da ex-princesa, uma pitada de lótus negro, misturada com extrato de raiz de derketa (nome dado à raiz, em homenagem a uma deusa stígia, adorada em grau menor que Set e Yog pelos sabateus).

Entorpecida, Leyla mal sente as mãos fortes que a levam para fora da cela. Como alguns dos soldados sabateanos, os homens que a conduzem são guerreiros gigantescos, de ombros largos e fortes, com nariz adunco, olhos escuros, e cabelos e barba preto-azuladas – características típicas de todos os mestiços de stígios com shemitas.

Finalmente, eles chegam a uma enorme câmara com três braseiros acesos e uma abertura no teto em forma de cúpula, pela qual a luz da lua e estrelas penetra e, somada às luzes artificiais dali, transforma a noite em quase dia. Mas o que realmente impressionaria e assombraria a jovem shemita ali presente, se ela não estivesse dopada, é uma enorme coisa, para a qual Ptah-Menkauri se dirige.

A gigantesca criatura tem uma cabeça enorme e disforme, de seis metros de diâmetro, e uma boca redonda e gigante, com dentes afiados de mais de meio metro cada um; por aquela boca, seriam facilmente devorados dois homens com estatura de dois metros cada um – a mesma estatura do sumo sacerdote que abre os braços para aquele ser horrendo, cujos enormes tentáculos medem um metro de largura cada.

Os dois soldados colocam a semi-desmaiada Leyla sobre um dos altares da câmara e se retiram do local, juntamente com o curandeiro, fechando a porta atrás de si, a fim de montarem guarda contra os possíveis invasores zuagires, os quais, o sacerdote imagina, estão sendo derrotados do lado de fora da cidade. Então, Ptah-Menkauri prossegue sua invocação:

- Salve, Yog, Senhor das Moradas Desertas e filho de Set, O Senhor da Morte! Rogo-te que aceites nossas oferendas. Abre o portal para que teu pai expurgue desta cidade os invasores. Atentem todos! – ele prossegue, apontando para a lua e as estrelas, na abertura do teto. – O momento da comunhão se aproxima. Que nosso Senhor abençoe este matrimônio. Agora, tragam os prisioneiros acorrentados.

Logo, outros dois guardas se retiram do recinto, atravessando os corredores abobadados que levam até o calabouço. Súbito, um deles tem o pescoço decepado por Beled, ao mesmo tempo em que Conan abre o outro, do umbigo à clavícula, num só golpe ascendente de sua cimitarra, manchando a própria túnica branca de vermelho.

- Quem eram esses? – pergunta Fadlan que, por estar um pouco atrás do cimério e de Beled, não pôde entrar na breve luta.

- Eram guardas que vieram atrás de nós – responde um dos ex-prisioneiros, preparando suas correntes para um possível e iminente combate. – Isso significa que a princesa já está nas mãos de Ptah-Menkauri.

Conan pragueja e, seguindo as orientações de uma ex-prisioneira shemita, prossegue pelos corredores que guiam até a abominável câmara de sacrifícios, seguido por todos ali. Enquanto o cimério se dirige ao local por capricho, para libertar e salvar aquela que pode vir a ser a companheira ideal de um líder zuagir, os ex-cativos acompanham o líder bárbaro por saberem que, se o rei-sacerdote e a encarnação do demônio Yog forem mortos, os sabateanos nunca mais importunarão as tribos shemitas locais, em busca de pessoas para serem sacrificadas.

A escuridão do corredor parece até palpável – tão densa e sufocante quanto um tecido molhado. Mas Conan havia nascido numa terra onde trevas assim são bastante comuns – principalmente nas florestas à noite –, o que o faz enxergar melhor nelas que qualquer um dos que o seguem. Então, ele finalmente avista luzes e aponta, para que os outros vejam.

Há uma porta de carvalho e aço à frente do grupo, vigiada por dois soldados e um sacerdote. A um sinal do líder cimério, um dos guardas tem o coração atravessado pela espada do zuagir Fadlan, com tal força que a ponta da cimitarra se sobressai entre as espáduas do gigante mestiço; o outro tem seu capacete e cabeça abertos até o queixo por Conan, numa explosão de sangue, faíscas e miolos, enquanto o curandeiro é estrangulado pelas correntes de um casal de ex-prisioneiros.

- Como vamos entrar? – pergunta uma das mulheres, pouco depois dos três cadáveres desabarem ao chão.

Conan grunhe e responde:

- Vai esperar que Ptah-Menkauri traga a chave?

Arremetendo o encouraçado ombro esquerdo contra a porta espessa, o cimério a arromba e adentra aquele enorme recinto. Os guardas ali presentes ficam de prontidão – assim como Conan e os dois zuagires que o seguem –, enquanto todos que ali chegaram se vêem chocados ao presenciarem a encarnação material do maldito deus Yog.

- Matem os intrusos! – grita Ptah-Menkauri.

Conan não precisa de maiores motivações para lutar: além da sobrevivência, o cimério está possesso de ódio ao ver aquela belíssima shemita cor-de-oliva semi-desmaiada no altar, enquanto o repulsivo Yog roça seus tentáculos na jovem. Os guardas do sacerdote se movem com precisão treinada, rosnando de exultação e efetuando rápidas e mortíferas investidas entre suas presas.

Mas o cimério e seus comandados não se rendem. Abrindo cabeças, transpassando peitos e quebrando pescoços com suas correntes, todos estão dispostos a destruir aquele maldito deus demoníaco e seu sumo sacerdote, ou morrerem tentando. Um dos ex-prisioneiros estrangula, até a morte, o guarda que tem as chaves para tirar as algemas e fica totalmente livre, enquanto pega a espada do guerreiro que matara. Mas, ele percebe, seus ex-colegas de cela estão ocupados demais para terem tempo de usarem as chaves que ele recuperou.

Súbito, um dos guerreiros de Ptah-Menkauri lhe abre um enorme corte diagonal nas costas, matando-o, ao mesmo tempo em que Conan decepa a calota craniana do assassino do único ex-prisioneiro que alcançara total liberdade. Fadlan mata outro stígio-shemita, transpassando-lhe o pescoço, enquanto Beled enfia sua cimitarra no coração de outro e Conan abre mais outro, num golpe descendente, do peito até a genitália, fazendo espirrar sangue e vísceras.

Em pouco tempo, todos os guardas estão mortos – bem como todos os ex-prisioneiros, que lutaram até a última gota de seu sangue. Conan, Beled e Fadlan estão prontos para investirem contra o sumo sacerdote, e libertarem Leyla da criatura que ainda a afaga repulsivamente. Súbito, o cimério, Beled e a shemita são agarrados, cada um por um enorme tentáculo da terrível criatura. Consciente pela primeira vez em mais de um dia, Leyla grita de horror, ao perceber o que está acontecendo. Fadlan é hipnotizado por Ptah-Menkauri e, deixando a cimitarra cair dos dedos sem vontade, recebe dele um golpe de porrete na cabeça, ficando inconsciente.

Enquanto Conan, Leyla e Beled lutam, com todas as suas forças, contra os tentáculos de Yog, Ptah-Menkauri coloca Fadlan sobre o altar onde antes estivera a ex-princesa. Então, o sacerdote olha novamente para a abertura no teto, e vê que o dia está amanhecendo.

- Chegou o momento! – Ptah-Menkauri exclama, puxando uma adaga sacrifical e enfiando-a no próprio coração.

- Ishtar tenha piedade de nós! – balbucia Leyla, enquanto o sumo sacerdote arranca o próprio coração sem demonstrar qualquer dor.

- Vejam todos! – grita o exultante sacerdote de Set e Yog, apontando novamente a abertura no teto. – A aurora se dissipa em trevas. É chegado o momento em que o Deus-Serpente e seu Filho, o Senhor das Moradas desertas, governarão todos os shemitas!

Então, pronunciando nomes conhecidos apenas pelos sombrios sacerdotes stígios, Ptah-Menkauri brande novamente a adaga, enfiando-a no peito de Fadlan e arrancando o coração do zuagir.

- Desgraçado! – Conan grunhe entre dentes.

Lançando o coração de Fadlan num dos braseiros, Ptah-Menkauri põe seu próprio músculo cardíaco no lugar daquele do shemita sobre o altar, e cai morto ao chão. Quase imediatamente, Fadlan abre os olhos e grita, levantando-se e se sentando no altar onde jazia. Seu sorriso, porém, é tão maligno quanto seu novo coração.

- Louvados sejam Yog e Set! – exclama Ptah-Menkauri, agora com seu coração e alma no corpo de Fadlan. – Eu renasci! Venha, princesa! Não quer abraçar um homem mais belo do que já fui? – ele exclama sorridente, ficando de pé, dirigindo-se até Leyla e tirando-a do tentáculo que a aprisionava.

Apesar de não estar mais drogada, a ex-princesa ainda está enfraquecida demais para conseguir reagir aos braços fortes que a arrastam até o altar. Apesar de toda a matança e sacrifício de ex-prisioneiros, feitos por Conan, a situação parece ter voltado totalmente à estaca zero. Mas não é com esse fatalismo que o líder cimério pensa. Durante todos aqueles minutos tensos, enrolado no tentáculo, o bárbaro havia descansado o bastante para que, de um único puxão, pudesse soltar o braço da espada e cravá-la no membro que o aprisionava, afrouxando-lhe o aperto. De costas para a cena, o sumo sacerdote se sente tão triunfante, que nem ouve quando o cimério se liberta, decepando o tentáculo onde estava preso, para logo depois libertar Beled da mesma forma.

- Por que este pranto, princesa? – diz Ptah-Menkauri a Leyla, pronto para brandir sua adaga pela terceira vez naquela longa noite. – Na Moradia Negra, você viverá para sempre... sendo amante de um deus. Basta um corte, e serás envolvida nas carícias de Yog. E, quando sentir as carnes macias dele, roçando as suas, diga-lhe que é imensa a gratidão de Ptah-Menkauri!

Ele ergue o punhal, mas o detém em pleno ar, pois o som de um grito lhe atrai a atenção. O sumo sacerdote fica horrorizado ao ver a encarnação do seu deus com todos os tentáculos decepados, enquanto Beled agarra um braseiro e começa a queimar a criatura diabólica. Mas o grito que o distraiu foi o de Conan, manchado de sangue, espada na mão, somente a cota-de-malha intacta, o peito ofegante e os olhos azul-vulcânicos brilhando de ódio.

- Idiota! – grita Ptah-Mankauri, desembainhando sua espada e brandindo-a contra o cimério. – O que fiz não será desfeito por um bárbaro estúpido!

Conan detém o golpe da espada do sumo sacerdote, e até se surpreende um pouco, ao ver que aquele maldito luta bem – talvez por estar usando agora o corpo de um guerreiro. Esquivando-se de um golpe da lâmina do sacerdote, o cimério apara o giro seguinte e se esquiva de outro, detendo mais outro. Súbito, Ptah-Menkauri desfere um golpe em falso, deixando uma brecha para Conan, o qual decepa a cabeça do sumo sacerdote de Yog, num jato de sangue.

Soluçando convulsivamente, Leyla abraça o ofegante e vitorioso cimério, e o beija impulsivamente na boca. Ainda sem saber da batalha ocorrida nos portões daquela cidade, o cimério pensa em voltar para seus zuagires lá fora e hesita, lutando contra a força das suas próprias paixões violentas. Mas Beled se prontifica a sair de Sabatea e ir se encontrar com os lobos do deserto. Conan fica tranqüilo e, com a linda ex-princesa enroscando o voluptuoso corpo cor-de-mel nele com um fogo mais poderoso do que qualquer magia, ele lhe devolve o abraço e beijo, e tira a cota-de-malha, ficando quase nu, ao mesmo tempo em que desnuda os avantajados seios morenos da jovem, beijando-os e sugando-lhes vorazmente o suor salgado, enquanto ela geme de prazer. Logo aquela câmara, onde imperava a dor, o medo e a morte, é transformada numa enorme sala nupcial, onde o altar se torna um leito de prazer.


FIM



Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Al Harron, da Escócia, e Deuce Richardson, dos EUA.



A Seguir: Crepúsculo de uma Alcatéia.



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