(por Fernando Neeser de
Aragão)
Amanhece no Deserto Kharamun. Um bando de quase 13 mil zuagires, o qual
segue Conan há mais de um ano, havia levantado acampamento pouco antes do
nascer do sol. Agora, com o sol já ficando alto, eles avistam um oásis. Com
seus olhos de águia, o líder cimério é o primeiro a notar, juntamente com um
estridente grito feminino, um estranho movimento naquele aglomerado verde e
azul de palmeiras e água fresca.
Assim, ele pede para que seus lobos-do-deserto aguardem no ponto onde
todo o bando parou e, juntamente com sua companheira Leyla, Djebal e sua
voluptuosa companheira Samira, e os também guerreiros Ahmad e Beled, cavalga
até o oásis. Lá chegando, os outros percebem com nitidez o que o cimério já vira
claramente de longe: uma mulher com as mãos amarradas para trás, numa corda de
mais de três metros de comprimento que a liga a uma das palmeiras. Ela é uma
shemita, muito embora de pele excepcionalmente escura, mesmo para alguém do seu
povo – o que, juntamente com os lábios levemente grossos, faz Conan imaginar
que ela seja mestiça de shemitas com zamorianos. As mechas brancas, a
contrastarem com os esvoaçantes cabelos negros, lhe acentuam a beleza do jovem
rosto marrom; e seu corpo esguio, coberto por um curto vestido sem mangas, é
constituído com a selvagem economia de um lobo. A cada vez que a jovem tenta
escapar, um dos seis homens a pé que a cercam lhe atira uma pedra no rosto ou
no corpo – sem contar que a corda não a permite se afastar muito da palmeira à
qual está presa.
Ela já está com o lado direito do rosto ferido e sangrando – assim como
os ombros –, quando os seis cavaleiros se aproximam. Os homens que apedrejam a
jovem são altos, e musculosos, com ombros largos e fortes, nariz adunco, olhos
escuros, e barba e cabelos preto-azulados – típicos mestiços de shemitas e com
stígios. Suas armaduras leves, cobertas por roupas de seda, e seus arcos
shemitas às suas costas, os identificam – juntamente com suas características
físicas – como yoguitas. Ao contrário da maioria dos homens do deserto, os
quais adoram a deusa Ishtar, os adoradores de Yog odeiam mulheres guerreiras
que cavalgam e não velam os rostos. E, ao contrário das yoguitas e hirkanianas,
a maioria das shemitas não usa véus, sendo inclusive algumas delas treinadas
para a guerra, e para montarem camelos e cavalos.
Sabendo disso, Conan, Leyla, Djebal, Samira, Ahmad e Beled desmontam e
se aproximam daqueles fanáticos machistas. Naquele instante, os seis zuagires
lamentam não terem conseguido destruir a maldita cidade de Saa’bah, meses atrás
– apesar de haverem expulsado os exércitos derrotados para dentro dos portões
de lá. Com os olhos azuis faiscando sob o turbante, Conan vai à frente de seu
grupo, enquanto os yoguitas interrompem sua repulsiva diversão, e os ordena
laconicamente:
- Soltem-na!
- Vá para o inferno, bárbaro!
Sem dizer uma palavra, o cimério desembainha a espada enquanto o
yoguita faz o mesmo e, após breves cruzamentos de lâmina com aquele homem tão
alto e forte quanto ele, o bárbaro ocidental o estripa num giro sangrento de
sua cimitarra. Ao mesmo tempo, Leyla – agora tão guerreira quanto um zuagir –
abre o rosto de outro yoguita num golpe diagonal de sua lâmina. Djebal abre a
jugular de um terceiro e Samira decepa a cabeça de um quarto. Ahmad abre o
crânio do quinto, enquanto Beled se limita a deixar o sexto fora de ação com um
chute nos testículos.
Puxando uma adaga, Conan caminha até a jovem caída e a solta,
cortando-lhe as amarras que lhe atavam os pulsos. Uma vez livre, a bela mestiça
pega um punhal yoguita que caíra sobre o chão e esfaqueia impiedosamente o
homem que fora derrubado por Beled. Erguendo-se ofegante sobre o cadáver
ensangüentado do fanático ao qual acabou de matar, a jovem de pele escura
cospe-lhe no rosto e exclama:
- Agora você vai apedrejar seus deuses no Inferno, cão!
- Não se esqueça de que um inimigo bom é um inimigo morto – o cimério
diz a Beled, com um sorriso nos lábios e uma piscadela no olho.
Então, a jovem mestiça olha para seu salvador e agradece.
- Não há de quê – responde o bárbaro de olhos azuis. – Eu jamais deixaria fanáticos matarem uma
inocente. Do contrário, meu nome não seria...
- Conan, o maior de todos os líderes zuagires – ela responde sorrindo.
– Sou Fátima, da tribo dos Zamiris... Esses cães massacraram minha tribo,
mataram minha mãe e meu pai. Muitos desses chacais morreram ao atacarem meu
acampamento, mas somente eu sobrevivi, para ser torturada até a morte pelos
seis que ficaram.
Montada na garupa do cavalo de seu parceiro cimério – tanto de lutas
quanto de cama –, Leyla se sente enciumada pela primeira vez em seus doze meses
de vida zuagir. Ela não gostou de ver outra mulher elogiando seu homem.
- Muito bem – sorri Conan. – Então, seja bem-vinda aos zuagires,
Fátima. Dê uma espada a esta guerreira, Beled! – ele acrescenta, erguendo a
voz. – Ela merece.
Logo após saciar sua sede, Fátima monta na garupa do cavalo de Beled, e
o grupo – agora de sete pessoas – também bebe a água do oásis, e retorna ao
bando que os aguarda para acamparem ali.
Abraçada ao encouraçado torso musculoso do cimério, Leyla sussurra:
- Você não deveria deixá-la entrar no nosso bando, Conan.
- Ela não tinha para onde ir, Leyla – ele responde, um pouco irritado.
– E, por Crom, deixe de ciúmes!
* * *
À noite, ao redor daquele um oásis, estendem-se linhas de tendas de
pêlos de camelo. Entre elas, movem-se homens de túnicas brancas e barbas
negras, discutindo, cantando, consertando arreios ou afiando espadas. Enquanto
isso, ao som de palmas, tambores e flautas, uma linda odalisca shemita dança
para os zuagires, entre as palmeiras do oásis onde os lobos do deserto se
encontram acampados.
Naquele momento, Conan e Leyla estão sozinhos na tenda de paredes de
seda, enfeitadas com tapeçarias bordadas a ouro, ricos tapetes e almofadas de
veludo – produtos de saques a caravanas. Àquelas riquezas, somam-se peças de
ouro e seda de Turan, pilhadas de Vezek e de outros postos avançados
turanianos, bem como iatagãs e malhas de aço saqueadas dos adoradores de Tarim.
Do lado de fora, vem um baixo e incessante murmúrio, o som que sempre
acompanha um grande ajuntamento de homens. Um sopro ocasional de vento do
deserto agita as folhas de palmeiras. A linda parceira de Conan se deita sobre
o leito de seda e veludo, abraçada ao bárbaro. À luz da vela que ilumina aquela
tenda, os lindos lábios vermelhos de Leyla, mais uma vez, se abrem como as
pétalas de uma flor na primavera, e são apetitosa e fortemente beijados pelos
finos lábios fortes do cimério.
* * *
O sol de fim de tarde abrasa as areias secas do Deserto Kharamun como
uma gigantesca fornalha. Nada se move neste império de desolação, onde, às
poucas rochas que se sobressaem como marco da fronteira destas infindáveis
planícies, mesclam-se soldados igualmente imóveis que, agachados e em silêncio,
observam o horizonte. Em suas vestes de seda, a lhes cobrirem as armaduras de
cota-de-malha, está bordada a figura do Lobo Branco da bandeira real de Turan.
Tolga, um homem musculoso, de mais de 1m90 e capitão da tropa,
permaneceu o tempo todo da vigília ao lado de seus soldados.
- Então – diz o capitão em voz baixa –, viu alguma coisa, soldado?
Deram o sinal?
- Não, Tolga – responde o arqueiro que, assim como os outros, está
deitado e à espreita. – Mas não se preocupe, senhor. Nosso batedor Sirhan está
atento, lá na frente. Qualquer movimento, e ele nos avisa a tempo.
- Isso é bom – responde Tolga. – Assim não precisaremos sair destas
rochas, onde estamos protegidos.
- O senhor acha que os malditos virão logo?
- Por Erlik, é o que espero. Eu me orgulho de servir ao Rei Yezdigerd,
mas estas roupas de malha são mais quentes que o inferno! – queixa-se o
capitão. – Neste deserto miserável, até o nosso próprio suor ferve. Não vejo a
hora...
A frase morre incompleta na boca de Tolga que, protegendo os olhos,
fixa-os num ponto do horizonte. Ele pisca e esfrega os olhos, forçando a vista
contra a intensa claridade, para ver de novo a pequenina luz que também pisca.
O batedor avançado, escondido entre as dunas de areia, fez o sol refletir num
pequeno espelho, para mandar um sinal ao chefe, que se encontra nas colinas.
À distância, já se pode ver uma nuvem de poeira. Um sorriso se abre
entre as barbas negras do musculoso nobre turaniano, que chega a esquecer o
desconforto que sente. Sem dúvida, a informante traidora fez por merecer o ouro
com o qual se vendeu.
Logo, Tolga já consegue ver a longa fila de guerreiros zuagires,
cobertos com longas khalats brancas e
montando seus esbeltos garanhões do deserto. Quando o bando de saqueadores do
deserto emerge da nuvem de poeira, levantada pelos cascos de seus próprios
cavalos, o lorde turaniano já consegue distinguir claramente os rostos
aquilinos, barbados e escuros de suas futuras vítimas, emoldurados por seus
protetores de cabeça – tão limpo é o ar do deserto e tão brilhante o sol. Um
arrepio de satisfação toma conta de suas veias, como o vinho vermelho de
Aghrapur, encontrado nas melhores adegas particulares de Yezdigerd.
Durante anos, aqueles bandoleiros do deserto tinham saqueado e pilhado
inúmeras aldeias comerciais e paradas de caravanas, ao longo das fronteiras de
Turan.
A princípio, aquele bando – o maior e mais poderoso bando zuagir do
deserto – agiu sob o comando do perverso e traiçoeiro Olgerd Vladislav. Depois,
desde há um ano, comandado por seu sucessor Conan. Finalmente, os espiões
turanianos, infiltrados em aldeias cujos habitantes simpatizavam com os
bandidos, conseguiram encontrar um membro corrupto daquele bando – ninguém
menos que Leyla, companheira do líder cimério dos lobos do deserto e tomada por
um ciúme cada vez mais doentio, desde que Conan deixara a bela mestiça Fátima
entrar no bando.
Tolga esfrega a barba, pensativo. A traidora é bela, alta e voluptuosa,
mas seu crescente ciúme a tornou uma mulher de coração tão frio e indigno de
confiança quanto o de uma víbora.
Agora os zuagires passam pelo desfiladeiro. E lá, para estranheza de
Conan e seu bando, Leyla sai do seu lado e dispara a cavalo para fora do
desfiladeiro. Tolga ergue um dos braços, avisando seus homens para ficarem
preparados. Ele quer que o maior número de zuagires entre no passo, antes de
fechar a armadilha sobre eles. Somente Leyla deve sair dali com vida. No
instante em que ela fica além das paredes de pedra, Tolga abaixa rapidamente o
braço, como se estivesse cortando o ar.
Uma nuvem de flechas assobia pelo ar, atravessando-o como uma chuva
mortífera. Em questão de segundos, os zuagires estão no mais completo tumulto,
gritando e com seus cavalos saltando e disparando para todos os lados. As
flechas continuam caindo em verdadeiras nuvens que varrem sobre eles. Djebal,
Samira e outros bandoleiros caem agarrados às hastes emplumadas que brotam nos
seus corpos como se fosse por magia. Os cavalos relincham assustados, feridos
pelas flechas que lhes atravessam o corpo empoeirado.
A poeira se ergue numa nuvem sufocante, escurecendo a parte inferior do
passo, mas Tolga continua ordenando aos arqueiros que atirem. Mesmo assim, no
instante seguinte, a gigantesca figura do cimério avança pela encosta íngreme,
montando seu enorme garanhão. Ao mesmo tempo dominado pelo feroz desejo de
vingança, ele também sabe que, muitas vezes, a única resposta possível numa
emboscada é uma atitude inesperada. Agarrando-se e subindo com dificuldade
pelas encostas íngremes das laterais do passo, vem todo o bando agitado dos
zuagires, gritando, a pé e montados, direto contra o inimigo. Num instante, os
bandidos do deserto – em número igual ao dos homens do Capitão Tolga – avançam
violentamente pelo topo da colina, de cimitarras em punho, praguejando e
lançando seus estridentes gritos de guerra.
À frente deles, destaca-se a gigantesca figura de Conan. As flechas lhe
rasgaram a túnica branca, deixando à mostra a malha negra que lhe protege todo
o tronco, forte como o de um leão. Sua cabeleira selvagem e mal-aparada escapa
por baixo do capacete. Uma flecha perdida lhe arrancou o enfeite do elmo. Em
seu garanhão de olhos selvagens, ele ataca os inimigos como um demônio saído de
um mito. Em seus punhos marcados por cicatrizes, agita-se sua pesada espada de
aço, tão brilhante quanto um espelho, abrindo caminho por entre os turanianos e
suas flechas sibilantes. Sua lâmina sobe e desce, derramando gotículas
encarnadas pelo ar empoeirado do deserto. A cada golpe, a espada rasga
armaduras, carne e ossos, arrebentando um crânio aqui, um membro ali, lançando
ao chão suas vítimas inertes, mutiladas e ensangüentadas, com as costelas afundadas
para dentro.
Em meio àquele caos, uma mão marrom arranca e derruba Leyla de sua
montaria, e agarra-lhe o queixo, arrastando-lhe a cabeça para trás e para cima.
A traidora não sente o corte da cimitarra através da garganta – a lâmina está
afiada demais para causar dor –, mas ela lhe alcança os ossos da coluna
cervical, cortando o tecido mole no trajeto. Leyla desaba sobre o empoeirado
chão árido, ao mesmo tempo em que uma flecha turaniana atinge mortalmente a
jugular da sua matadora, a zamiri Fátima.
Presenciando a cena, Conan agarra a lança de um zuagir morto, e a
arremessa, precisa e fatalmente, no pescoço do turaniano que matou Fátima.
No instante seguinte, montado num camelo zuagir, Tolga investe contra Conan,
mas este lhe detém o golpe com o mesmo escudo que o protegeu das flechas e,
aproveitando-se da guarda aberta do líder turaniano, abre-lhe o elmo e crânio
até os dentes, numa explosão de faíscas, sangue e miolos. O combate durou duas
horas. Nenhum adorador de Tarim conseguiu sobreviver à matança – e, para
amargura de Conan, nenhum zuagir também. Com suas vestes rasgadas e todo
ensangüentado da cabeça aos pés, o agora solitário cimério contempla milhares
de lobos do deserto jazendo inertes sobre o chão de areia, cuja poeira agora
assenta ao pôr-do-sol.
O bárbaro do ocidente gostaria de poder cremar os corpos de todos
aqueles companheiros e amigos, aos quais liderou durante um ano; mas, diante da
impossibilidade de construir sozinho uma pira funerária para mais de 10 mil
pessoas, Conan escolhe os cadáveres de seus amigos mais próximos. Logo depois,
a noite recém-chegada é iluminada pelo fogo de uma pira onde ardem os corpos
dos valorosos Djebal, Samira, Ahmad, Beled e Fátima. Quando ele foi buscar o
cadáver desta última, tanto ela quanto Leyla jaziam de olhos abertos. O cimério
só se deu ao trabalho de fechar os olhos da zamiri, enquanto torce para que a
traidora dos zuagires seja a primeira a ter sua carcaça devorada pelos abutres.
Pegando o máximo possível de espólios e mantimentos, o melancólico
bárbaro de olhos azuis cavalga para norte, olhando para o sol poente à sua
esquerda, vendo o dia morrer pouco depois de seus valorosos companheiros, dos quais
nunca se esquecerá enquanto for vivo.
FIM
Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Deuce Richardson,
dos EUA.
A Seguir: De Volta
às Estepes.