Nascerá uma Bruxa - parte 2

(por Robert E. Howard)



Originalmente publicado em Weird Tales, dezembro de 1934.
   


3) Uma Carta Para A Nemédia

O sábio Astreas, viajando pelo Oriente em sua busca incansável pelo conhecimento, escreveu uma carta ao seu amigo e companheiro filósofo Alcemides, em sua Nemédia natal, acerca do que constituía o conhecimento das nações ocidentais sobre os acontecimentos desse período no Oriente – sempre uma região nebulosa e meio mítica para as mentes do povo ocidental.

Astreas escreveu, em parte: “Você mal pode imaginar, meu velho e caro amigo, as condições agora existentes neste pequeno reino, desde que a Rainha Taramis admitiu Constantius e seus mercenários – um evento que descrevi brevemente na minha última e apressada carta. Sete meses se passaram desde então, durante os quais parece que o próprio diabo foi solto neste reino infeliz. Taramis parece ter ido muito além da loucura e, se anteriormente ela era famosa por sua virtude, justiça e tranqüilidade, ela é agora conhecida pelas qualidades exatamente opostas àquelas que acabei de enumerar. Sua vida privada é um escândalo – ou talvez "privada" não seja o termo correto, já que a rainha não faz nenhuma tentativa de esconder a devassidão de sua corte. Ela sempre se satisfaz nas orgias mais infames, às quais as mulheres infelizes da corte são forçadas a se juntar, tanto jovens mulheres casadas, quanto virgens.”

"Ela mesma não se preocupou em se casar com seu amante Constantius, que se senta no trono ao lado dela e reina como seu consorte real; e os oficiais dele seguem seu exemplo, não hesitando em seduzir e corromper qualquer mulher que eles desejem, independentemente de sua posição ou classe social. O reino infeliz geme sob tributação exorbitante, as fazendas são extorquidas até os ossos, e os mercadores vestem trapos que são tudo o que é deixado a eles depois da passagem dos coletores de impostos. Não, eles têm sorte se escaparem com a pele intacta.”

"Eu sinto sua incredulidade, bom Alcemides; você vai temer que eu exagere nas condições de Khauran. Tais condições seriam impensáveis em qualquer um dos países ocidentais, é verdade. Mas você deve perceber a enorme diferença que existe entre o Ocidente e o Oriente, especialmente nesta parte do Oriente. Em primeiro lugar, Khauran é um reino pequeno, um dos muitos principados que formam a parte oriental do império de Koth, tendo só tardiamente recuperado a independência que tinha numa época ainda mais antiga. Esta parte do mundo é composta desses pequenos reinos, diminutos em comparação com os grandes reinos do Ocidente ou os grandes sultanatos mais ao Leste, mas importantes para o controle das rotas de caravanas, e de riqueza concentrada neles.”

“Khauran é o mais a sudeste destes principados, na fronteira com os próprios desertos de Shem. A cidade de Khauran é a única de qualquer magnitude no reino, e está dentro da vista do rio que separa as pastagens verdes do deserto arenoso, como uma torre de vigia destinada a proteger os prados férteis por trás dela. A terra é tão rica, que produz três ou quatro colheitas por ano, e as planícies do norte e oeste da cidade estão repletas de aldeias. Para quem está acostumado às grandes plantações e fazendas do Oeste, é estranho ver estes pequenos campos e vinhas; mas quanta riqueza em grãos e frutas se derrama a partir deles, como se viessem de um chifre de abundância. Os aldeões são agricultores, e nada mais. De uma raça mista e aborígene, eles são pacíficos, incapazes de se proteger, e é proibido a eles o porte de armas. Totalmente dependentes dos soldados da cidade para a sua proteção, eles estão indefesos nas condições atuais. Assim, a revolta selvagem das seções rurais, que seria uma certeza em qualquer nação ocidental, é impossível aqui.”

"Eles trabalham passivamente sob a mão de ferro de Constantius, e seus shemitas de barba negra andam incessantemente pelos campos, com chicotes nas mãos, como os feitores dos servos negros que labutam nas plantações do sul de Zíngara.”

"Nem o povo da cidade se sai melhor. Sua riqueza é despojada deles, suas filhas mais belas tomadas para satisfazer o desejo insaciável de Constantius e seus mercenários. Estes homens são totalmente sem piedade ou compaixão, possuidores de todas as características que os nossos exércitos aprenderam a detestar em nossas guerras contra os aliados shemitas da cruel Argos – a crueldade inumana, luxúria e ferocidade de bestas selvagens. O povo da cidade forma a casta dirigente de Khauran – predominantemente hiboriana, valorosa e guerreira. Mas a traição de sua rainha os entregou nas mãos de seus opressores. Os shemitas são a única força armada em Khauran, e a punição mais infernal é infligida a qualquer khaurani encontrado em posse de armas. Uma perseguição sistemática, para destruir todos os jovens khauranis capazes de portar armas, tem sido brutalmente feita. Muitos foram impiedosamente massacrados, e outros vendidos como escravos para o turanianos. Milhares já fugiram do reino, ou entrando no serviço de outros governantes, ou se tornando bandidos, à espreita em numerosos bandos ao longo das fronteiras.”

"No momento, há alguma possibilidade de invasão pelo deserto, que é habitado por tribos de nômades shemitas. Os mercenários de Constantius são homens das cidades shemitas do oeste – pelishtim, anakim e akkharim –, e são ardentemente odiados pelos zuagires e outras tribos errantes. Como você sabe, bom Alcemides, os países desses bárbaros estão divididos entre as pradarias ocidentais, que se estendem até o oceano distante e em que se levantam as cidades com seus habitantes shemitas, e os desertos do Oriente, onde os nômades esguios mantêm o domínio; há uma guerra incessante entre os moradores das cidades e os habitantes do deserto.”

“Os zuagires enfrentaram e atacaram Khauran de surpresa, por séculos, sem sucesso, mas agora eles se ressentem de seus parentes ocidentais terem conseguido conquistar a cidade. Há rumores de que seu antagonismo natural está sendo fomentado ainda mais pelo homem que anteriormente fora o capitão da guarda da rainha, e que, de alguma forma, conseguiu escapar do ódio de Constantius, que o havia crucificado, tendo fugido com os nômades. Ele é chamado de Conan, e ele próprio é um bárbaro, um daqueles cimérios sombrios, cuja ferocidade nossos soldados conheceram mais de uma vez, a custo amargo. Há rumores de que ele tornou-se o braço direito de Olgerd Vladislav, o aventureiro kozak que vagou das estepes do norte e fez-se chefe de um bando de zuagires. Há também rumores de que este bando tem aumentado muito nos últimos poucos meses, e que Olgerd, incitado, sem dúvida, por esse mesmo cimério, está até considerando um ataque-surpresa a Khauran.

“Não pode ser nada mais do que um ataque-surpresa, pois os zuagires não têm máquinas de cerco, nem o conhecimento de como se invadir uma cidade; e tem sido repetidamente provado no passado que os nômades, em sua formação solta de ataque, ou melhor, na sua falta de formação, não são páreos, na luta corpo-a-corpo, para os bem-disciplinados guerreiros pesadamente armados das cidades shemitas. Os nativos de Khauran talvez acolhessem bem essa conquista, afinal os nômades não teriam como ser mais duros com eles que seus mestres atuais, e até mesmo o extermínio total seria preferível ao sofrimento que eles têm de suportar. Mas eles estão tão intimidados e impotentes, que não se atrevem a dar ajuda aos invasores.”

“A situação deles é a mais miserável. Mas Taramis, aparentemente possuída por um demônio, não pára diante de nada. Ela aboliu o culto de Ishtar, e transformou o templo em um santuário de idolatria. Ela destruiu a imagem de marfim da deusa, à qual estes hiborianos orientais adoram (e que, apesar de inferior à verdadeira religião de Mitra que nós, as nações ocidentais, reconhecemos, ainda é superior à adoração ao diabo dos shemitas), e encheu o templo de Ishtar com imagens obscenas de cada tipo inimaginável de deuses e deusas da noite, retratados em toda sorte de poses lascivas e perversas, e com todas as características revoltantes que somente um cérebro degenerado poderia conceber. Muitas dessas imagens podem ser identificadas como divindades repugnantes dos shemitas, turanianos, vendhyanos e khitaianos, mas outras ainda são uma reminiscência de uma antiguidade hedionda e meio-recordada – formas vis esquecidas por todos, exceto nas lendas mais obscuras. Onde a rainha adquiriu o conhecimento delas, não me atrevo a sequer arriscar um palpite.”

“Ela instituiu o sacrifício humano, e desde que se juntou a Constantius, não menos que quinhentos homens, mulheres e crianças já foram imolados. Alguns deles morreram no altar que ela erigiu no templo, ela mesma empunhando a adaga de sacrifício, mas a maioria conheceu um destino ainda mais horrível.”

“Taramis colocou algum tipo de monstro em uma cripta no templo. O que é, e de onde veio, ninguém sabe. Mas, logo depois de ter esmagado a revolta desesperada de seus soldados contra Constantius, ela passou uma noite sozinha no templo profanado, solitária, exceto por uma dúzia de prisioneiros amarrados, e as pessoas da cidade, com um estremecimento de pavor, viram uma espessa e fétida fumaça enrolando-se a partir da cúpula do templo; e ouviram, por toda a noite, o cantar frenético da rainha e os gritos agonizantes de seus prisioneiros torturados. E, quando já findava a madrugada, outra voz se misturou aos outros sons – um estridente coaxar desumano, que congelou o sangue de todos que a ouviram.

"Ao amanhecer, Taramis cambaleou bêbada para fora do templo, com os olhos brilhando de triunfo demoníaco. Os doze cativos nunca mais foram vistos, nem a inumana voz rouca ouvida. Mas há uma sala no templo em que ninguém jamais vai, exceto a rainha, realizando antes um sacrifício humano à frente desta. E esta vítima nunca mais é vista novamente. Todos sabem que naquela câmara sombria se esconde um monstro da noite negra das eras, o qual devora os humanos a guincharem que Taramis oferece a ele.”

"Eu não posso mais pensar nela como uma mulher mortal, mas como uma demônia raivosa, agachando-se no seu covil sujo de sangue, entre os ossos e fragmentos de suas vítimas, com dedos avermelhados e em forma de garras. Os deuses lhe permitirem prosseguir o seu curso medonho desenfreadamente, quase abala minha fé na justiça divina.”

"Quando eu comparo sua conduta atual com seu comportamento quando, pela primeira vez, eu vim para Khauran, há sete meses, fico confuso com a situação, e quase inclinado à crença mantida por muitos das pessoas daqui – que um demônio possuiu o corpo de Taramis. Um jovem soldado, Valerius, acredita noutra coisa. Ele acredita que uma bruxa teria assumido uma forma idêntica à da governante adorada de Khauran. Ele acredita que Taramis tenha sumido no meio da noite, e sido confinada em algum calabouço, sendo esta que está em seu lugar apenas uma feiticeira. Ele jurou que encontraria a verdadeira rainha, se ela ainda vivesse, mas tenho muito medo de que ele próprio possa já ter sido vítima da crueldade de Constantius. Ele foi implicado na revolta dos guardas do palácio, fugiu e permaneceu escondido por algum tempo, teimosamente se recusando a buscar segurança no exterior, e foi durante esse tempo que eu o encontrei e ele me relatou as suas teorias.”

"Mas ele desapareceu, assim como muitos outros têm desaparecido, cujos destinos não me atrevo a conjecturar; e eu temo que ele tenha sido capturado pelos espiões de Constantius.”

"Mas devo concluir esta carta e colocá-la para fora da cidade, por meio de um rápido pombo-correio, que irá levá-la para o posto onde eu o comprei, nas fronteiras de Koth. Por cavaleiro e caravanas de camelos, essa missiva acabará por chegar até você. Eu devo apressar-me, antes que amanheça. É tarde, e as estrelas brilham pálidas nos telhados ajardinados de Khauran. Um silêncio estremecido envolve a cidade, na qual ouço o pulsar de um tambor sombrio do templo distante. Eu não duvido que Taramis esteja por lá, preparando mais alguma crueldade.”



Mas o sábio estava incorreto, em sua conjectura sobre o paradeiro da mulher que ele chamou Taramis. A moça, a quem o mundo conhecia como rainha de Khauran, estava numa masmorra, iluminada apenas por uma tocha bruxuleante que brilhava em suas feições, destacando a crueldade diabólica do seu belo rosto.

No chão de pedra nua diante dela, agachava-se uma figura cuja nudez mal era coberta por trapos esfarrapados.

Nesta figura, Salomé tocou desdenhosamente com a ponta virada para cima de sua sandália dourada, e sorriu vingativamente quando sua vítima se encolheu.

- Você não ama minhas carícias, doce irmã?

Taramis ainda era bonita, apesar de seus trapos, da prisão e dos inúmeros abusos sofridos durante sete cansativos meses. Ela não respondeu às zombarias de sua irmã, mas inclinou a cabeça como alguém que cresceu acostumada à zombaria.

Esta resignação não agradou Salomé. Ela mordeu o lábio vermelho, e ficou batendo a ponta do sapato dela contra o chão, enquanto franzia a testa para a figura passiva. Salomé estava vestida com o esplendor bárbaro de uma mulher de Shushan. Jóias brilhavam à luz das tochas em suas sandálias douradas; em seu peito, brilhavam duas placas peitorais de ouro, e as cadeias delgadas que os prendiam no lugar. Tornozeleiras de ouro retiniam enquanto ela se movia, e valiosas pulseiras pendiam em seus braços nus. Seu penteado alto era o de uma mulher shemita e, nas suas orelhas, brilhavam pingentes de jade pendurados em argolas de ouro, brilhando e piscando a cada movimento impaciente da cabeça altiva. Um cinto incrustado de jóias prendia uma saia de seda, tão transparente que era mais uma zombaria cínica das convenções do vestir da corte.

Suspenso de seus ombros e caindo pelas costas, pendia um escuro manto escarlate, e este foi jogado descuidadamente sobre a curva de um braço, e da sacola que o seu braço sustentava.

Salomé se inclinou de repente e, com a mão livre, agarrou o cabelo desgrenhado de sua irmã e forçou a cabeça desta para trás, para olhar em seus olhos. Taramis mirou aquele olhar de tigre sem vacilar.

- Você não é tão rápida em suas lágrimas como antigamente, doce irmã – murmurou a feiticeira.

- Você não arrancará mais lágrimas de mim – respondeu Taramis. – Muitas vezes, você se divertiu com o espetáculo da rainha de Khauran soluçando por misericórdia de joelhos. Eu sei que você me poupou apenas para me atormentar; por isso, você tem limitado as suas torturas a tormentos que não matam, nem desfiguram permanentemente. Mas não tenho mais medo de você; você drenou o último vestígio de esperança, medo e vergonha de mim. Mate-me e acabe com isso, pois eu derramei minha última lágrima para sua diversão, sua diaba do inferno!

- Você se ilude, minha querida irmã – ronronou Salomé. – Até agora, é só ao seu corpo bonito que eu causei sofrimento; apenas o seu orgulho e auto-estima que eu tenho esmagado. Você se esquece de que, ao contrário de mim, você é capaz de tormento mental. Tenho observado isso, quando eu lhe entretive com as narrativas sobre as comédias que eu tenho encenado com alguns de seus súditos idiotas. Mas, desta vez, eu trouxe uma prova mais viva destas farsas. Você sabia que Krallides, o seu fiel conselheiro, havia voltado escondido de Turan e foi capturado?

Taramis empalideceu.

- O que... o que você fez com ele?

Em resposta, Salomé puxou o pacote misterioso sob seu manto. Ela abriu os laços de seda e ergueu a cabeça de um homem jovem, as feições congeladas em uma convulsão, como se a morte tivesse chegado em meio a desumana agonia.

Taramis gritou, como se uma lâmina perfurasse seu coração.

- Oh, Ishtar! Krallides!

- Sim! Ele estava tentando incitar o povo contra mim, pobre tolo, dizendo-lhes que Conan falou a verdade quando disse que eu não era Taramis. Como o povo pode se revoltar contra os shemitas do Falcão? Com paus e pedras? Bah! Os cães estão agora comendo o seu corpo decapitado na praça do mercado, e sua carniça repugnante será lançada no esgoto para apodrecer.

“Como, irmã?" Ela fez uma pausa, sorrindo para sua vítima. "Você já descobriu que ainda tem lágrimas não-derramadas? Bom! Eu tinha reservado o tormento mental para o fim. A partir de agora vou mostrar-lhe muitas visões como estas!”.

Estando lá à luz das tochas, com a cabeça decepada em sua mão, ela não se assemelhava com nada gerado por uma mulher humana, apesar de sua terrível beleza. Taramis não olhou para cima. Ela estava deitada de bruços no chão lodoso, seu corpo esbelto abalado por soluços de agonia, batendo as mãos crispadas contra as pedras. Salomé caminhou em direção à porta, suas tornozeleiras retinindo a cada passo, os pingentes de suas orelhas piscando à luz das tochas.

Alguns momentos depois, ela saiu de uma porta sob um arco sombrio que dava para um pátio que, por sua vez, abria-se para uma rua sinuosa. Um homem ali postado se voltou para ela – um gigante shemita, com olhos sombrios e ombros como os de um touro, com a sua grande barba negra caindo sobre seu poderoso peitoral, coberto por malha prateada.

- Ela chorou? – Sua voz era como a de um touro, profunda, grave e tempestuosa. Ele era o general dos mercenários, um dos poucos dos associados de Constantius que sabia o segredo das rainhas de Khauran.

- Sim, Khumbanigash. Há seções inteiras de sua sensibilidade que eu ainda não toquei. Quando um sentimento for entorpecido por laceração contínua, vou descobrir um outro ainda novo, um tom mais pungente. Aqui, cão! – Com um tremor, uma cambaleante figura em trapos, sujeira e cabelos emaranhados se aproximou; era um dos mendigos que dormiam nas ruas e quadras abertas. Salomé jogou a cabeça para ele. – Aqui, surdo; lance no esgoto mais próximo. Faça-lhe o sinal com as mãos, Khumbanigash. Ele não pode ouvir.

O general concordou, e a cabeça desgrenhada balançou, enquanto o homem virou-se dolorosamente para longe.

- Por que você mantém essa farsa? – retumbou Khumbanigash. – Você está tão firmemente estabelecida no trono, que nada poderá derrubar você. E se os khauranis tolos souberem da verdade? Eles não podem fazer nada. Proclame-se em sua verdadeira identidade! Mostre-lhes a sua amada ex-rainha... e corte a cabeça dela em praça pública!

- Ainda não, bom Khumbanigash...

Ao bater da porta arcada, não era mais possível ouvir os acentos cruéis de Salomé e as reverberações tempestuosas de Khumbanigash. O mendigo mudo se agachou no pátio, e não havia ninguém para ver que as mãos que seguravam a cabeça decepada tremiam fortemente – mãos bronzeadas e musculosas, estranhamente incongruentes com o corpo encurvado e os trapos imundos.

- Eu sabia! – Era um feroz sussurro vibrante, quase inaudível. – Ela vive! Oh, Krallides, seu martírio não foi em vão! Eles a mantêm trancada naquela masmorra! Oh, Ishtar, se você ama homens de verdade, ajuda-me agora!


4) Lobos Do Deserto

Olgerd Vladislav encheu a taça cravejada de jóias, com vinho escarlate de um jarro de ouro, e empurrou o vaso sobre a mesa de ébano para Conan, o cimério. O vestuário de Olgerd era capaz de satisfazer a vaidade de qualquer hetman zaporoskano.

Sua túnica era de seda branca, com pérolas costuradas no peito. Presa à cintura por um cinto bakhauriot, as saias da túnica caíam para os lados, para revelar suas largas calças de seda, enfiadas em botas curtas de couro verde e macio, decoradas com fios de ouro. Em sua cabeça, havia um turbante de seda verde, enrolado sobre um capacete com ponta, lavrado a ouro. Sua única arma era uma larga e curva faca cherkess, numa bainha de marfim, presa no alto de seu quadril esquerdo, à moda kozak. Lançando-se para trás, na sua cadeira dourada com águias esculpidas, Olgerd estirou as pernas calçadas para a frente, e engoliu ruidosamente o vinho espumante.

Ao seu esplendor, o enorme cimério à sua frente oferecia um forte contraste na aparência, com sua juba negra de corte reto, o rosto marrom e cicatrizado, e os ardentes olhos azuis. Ele vestia uma cota-de-malha negra, e o único brilho sobre ele era a larga fivela de ouro do cinto, que apoiava sua espada na bainha de couro desgastado.

Eles estavam sozinhos na tenda de paredes de seda, na qual pendiam tapeçarias trabalhadas a ouro, com o chão cheio de ricos tapetes e almofadas de veludo – a pilhagem de caravanas. Lá de fora, veio um sopro baixo e incessante, o som que sempre acompanha uma grande multidão de homens, seja no acampamento ou não. Uma rajada de vento ocasional do deserto agitava as folhas de palmeira.

- Hoje na sombra, amanhã no sol – disse Olgerd, folgando seu cinto vermelho um pouco e pegando novamente o jarro de vinho. – Esse é o caminho da vida. Outrora, eu fui um hetman no Zaporoska; agora, sou um chefe do deserto. Sete meses atrás, você estava pendurado em uma cruz do lado de fora de Khauran. Agora é tenente do mais poderoso saqueador entre Turan e os prados ocidentais. Você deve ser grato a mim!

- Por reconhecer a minha utilidade? – Conan riu e ergueu o jarro. – Quando você permite a elevação de um homem, pode-se ter certeza de que você vai lucrar com seu avanço. Eu ganhei tudo o que ganhei com o meu sangue e suor. – Ele olhou para as cicatrizes no interior das palmas de suas mãos. Havia cicatrizes também em seu corpo – cicatrizes que não estavam lá há sete meses.

- Você luta como um regimento de demônios – admitiu Olgerd. – Mas não pense que você teve alguma coisa a ver com os recrutas que já ansiavam por se juntar a nós. Foi o nosso sucesso em invadir, guiado pela minha inteligência, que os trouxe para cá. Estes nômades estão sempre procurando um líder de sucesso para seguir, e eles têm mais fé num estrangeiro do que em um de sua própria raça.

"Não há limite para o que podemos realizar! Temos onze mil homens agora. Em mais um ano, podemos ter três vezes esse número. Nós nos contentamos, até agora, com rápidas incursões sobre os postos avançados turanianos e as cidades-estados a oeste. Com trinta ou quarenta mil homens, não vamos mais fazer ataques-surpresa. Nós vamos invadir, conquistar e nos estabelecermos como governantes. Ainda serei imperador de toda Shem, e você vai ser o meu vizir, enquanto cumprir minhas ordens sem questionar. Nesse meio tempo, eu acho que nós vamos cavalgar para leste e assaltar aquele posto turaniano em Vezek, onde as caravanas pagam pedágio.

Conan balançou a cabeça:

- Eu acho que não.

Olgerd olhou ferozmente, seu temperamento subitamente irritado.

 - O que quer dizer com você não acha? Eu faço o pensamento para esse exército!

- Há homens suficientes neste bando agora, para o meu propósito – respondeu o cimério. – Estou cansado de esperar. Eu tenho contas a acertar.

- Oh! – Olgerd franziu a testa, bebeu vinho de um só gole e depois sorriu largamente. – Ainda pensando naquela cruz, hein? Bem, eu gosto de um bom inimigo. Mas isso pode esperar.

- Você me disse uma vez que ia me ajudar a tomar Khauran – disse Conan.

- Sim, mas isso foi antes de eu começar a ver todas as possibilidades de nossas forças – respondeu Olgerd. – Eu só estava pensando no saque da cidade. Não quero desperdiçar nossa força de forma não-lucrativa. Khauran é uma noz muito forte para a quebrarmos agora. Talvez em um ano...

- Dentro de uma semana – respondeu Conan, e o kozak arregalou os olhos diante da segurança em sua voz.

- Ouça – disse Olgerd –, mesmo que eu estivesse disposto a jogar fora os homens em tal tentativa caprichosa, o que você poderia esperar? Você acha que esses lobos do deserto conseguiriam cercar e tomar uma cidade como Khauran?

- Não haverá cerco – respondeu o cimério. – Eu sei como trazer Constantius para fora das muralhas, até a planície.

- E depois? – gritou Olgerd com uma imprecação. – Na troca de flechas, nossos cavaleiros levariam a pior, pois a armadura dos asshuri é melhor, e, quando viesse a luta de espadas, suas fileiras cerradas e organizadas de espadachins treinados atravessariam nossas linhas soltas, e dispersariam nossos homens como a palha diante do vento.

- Não se houvesse três mil cavaleiros hiborianos desesperados, lutando numa cunha sólida, como eu poderia ensiná-los – respondeu Conan.

- E onde você iria garantir três mil hiborianos? – perguntou Olgerd, com grande sarcasmo. – Você vai evocá-los do ar?

- Eu já os tenho – respondeu o cimério, imperturbável. – Três mil homens de Khauran acampados no oásis de Akrel, aguardando minhas ordens.

- O quê? Olgerd olhou ferozmente, como um lobo assustado.

- Sim. Homens que fugiram da tirania de Constantius. A maioria deles tem vivido como bandidos no deserto a leste de Khauran, e são agora magros, duros e desesperados como tigres que se alimentam de homens. Cada um deles será um desafio e tanto para três mercenários atarracados. É preciso que haja opressão e sofrimento para endurecer a coragem dos homens, e colocar o fogo do inferno em seus músculos. Eles estavam espalhados em pequenos bandos, e tudo que precisavam era de um líder. Eles acreditaram nas palavras que eu enviei pelos meus cavaleiros, juntaram-se no oásis, e se colocaram à minha disposição.

- Tudo isso sem o meu conhecimento? – Uma luz feroz começou a brilhar nos olhos de Olgerd. Ele tocou na sua arma na cintura.

- Foi a mim que eles quiseram seguir, e não você!

- E o que você poderia dizer a esses párias para ganhar a sua lealdade? – Havia um tom perigoso na voz de Olgerd.

- Eu disse a eles que usaria esta horda de lobos do deserto, para ajudá-los a destruir Constantius e dar Khauran de volta para as mãos de seus cidadãos.

- Idiota! – sussurrou Olgerd. – Você já se julga chefe?

Os homens estavam em pé, encarando um ao outro, através da mesa de ébano, luzes demoníacas dançando nos frios olhos cinzentos de Olgerd, e um sorriso feroz nos lábios duros do cimério.

- Eu vou ter você dividido entre quatro palmeiras – disse o kozak calmamente.

- Chame os homens e diga-os para fazê-lo! – desafiou Conan. – Veja se eles lhe obedecem!

Mostrando os dentes num grunhido, Olgerd ergueu a mão - e então fez uma pausa. Havia algo, na confiança estampada na face escura do cimério, que o abalou. Seus olhos começaram a arder como os de um lobo.

- Você, escória das colinas ocidentais – ele murmurou –, você já ousou tentar minar o meu poder?

- Eu não precisei – respondeu Conan. – Você mentiu quando disse que eu não tinha nada a ver com a entrada dos novos recrutas. Tive tudo a ver com isso. Eles obedeceram suas ordens, mas lutaram por mim. Não há espaço para dois chefes dos zuagires. Eles sabem que sou o homem mais forte. Eu os compreendo melhor do que você, e eles a mim; porque eu também sou um bárbaro.

- E o que eles vão dizer, quando você os pedir para lutar por Khauran? – perguntou Olgerd com ironia.

- Eles vão me seguir. Vou prometer-lhes uma caravana de camelos, com o ouro do palácio. Khauran estará disposta a pagar isso, como recompensa para se livrar de Constantius. Depois disso, eu vou liderá-los contra os turanianos, como você planejou. Eles querem pilhagem, e lutarão por ela contra Constantius ou contra qualquer outro.

Nos olhos de Olgerd cresceu um reconhecimento de derrota. Em seus sonhos vermelhos de império, ele não percebeu o que estava acontecendo ao seu redor. Acontecimentos e eventos que pareciam sem sentido até agora, voltaram brilhantes à sua mente, com o seu verdadeiro significado desvelado, trazendo a percepção de que Conan não falava de bazófias vãs. A figura gigante de malha negra, diante dele, era o verdadeiro chefe dos zuagires.

- Não, se você morrer! – murmurou Olgerd, e sua mão se moveu rapidamente em direção ao cabo da faca. Mas, rápido como o bote de um grande gato, o braço de Conan faiscou sobre a mesa e os seus dedos agarraram o antebraço de Olgerd. Houve um estalo de ossos se quebrando e, por um momento tenso, a cena ficou congelada: os dois homens de frente um para o outro, imóveis como estátuas, e a transpiração começando a surgir na testa de Olgerd. Conan riu, nunca diminuindo a pressão sobre o braço quebrado.

- Você está apto para viver, Olgerd?

Seu sorriso não se alterou, enquanto os músculos, crispados como cordas de aço ao longo de seu antebraço, se enterravam na carne trêmula do kozak. Houve o som de ossos quebrados raspando juntos, e o rosto de Olgerd ficou da cor de cinzas; o sangue escorria do seu lábio, onde seus dentes se afundaram, mas ele não pronunciou som algum.

Com uma risada, Conan o soltou e recuou, e o kozak balançou, segurando a borda da mesa com a mão boa, para se firmar.

- Eu lhe dou a vida, Olgerd, como você deu para mim – disse Conan tranqüilamente –, embora fosse para seus próprios fins que você me tirou da cruz. Foi um teste amargo que você me deu, então. Você não poderia suportá-lo, nem ninguém poderia, exceto um bárbaro ocidental.

"Leve o seu cavalo e vá embora. Ele está amarrado atrás da tenda, e há comida e água nos alforjes. Ninguém verá sua saída, mas vá rapidamente. Não há espaço para um chefe caído no deserto. Se os guerreiros lhe virem, mutilado e deposto, jamais deixarão que saia do acampamento vivo”.

Olgerd não respondeu. Lentamente, sem dizer uma palavra, ele se virou e saiu pelo outro lado da tenda, através da abertura esvoaçante. Foi sem nada falar, que ele subiu na sela do grande garanhão branco, o qual estava preso na sombra de uma grande palmeira; e ainda sem falar, com seu braço quebrado enfiado no peito de sua túnica, ele manejou as rédeas do cavalo e cavalgou para o leste, no deserto aberto, para fora da vida do povo zuagir.

Dentro da tenda, Conan esvaziou a jarra de vinho e estalou os lábios com prazer. Colocando a jarra vazia num canto, ele apertou o cinto e saiu a passos largos pela abertura da frente, parando por um momento para olhar em varredura sobre as linhas de barracas de pêlos de camelo, que se estendiam diante dele; e as silhuetas de mantos brancos, que se moviam entre eles, discutindo, cantando, consertando freios ou aguçando espadas curvas.

Ele levantou a sua voz, num trovão que foi aos mais distantes confins do acampamento: – Ei, seus cães, agucem os ouvidos e ouçam! Reúnam-se aqui. Eu tenho uma história para contar.


5) A Voz No Cristal

Em uma câmara, numa torre perto da muralha da cidade, um grupo de homens ouvia atentamente as palavras de outro homem. Eram jovens, porém duros e musculosos, com uma atitude que vem apenas para os homens desesperados e pressionados pela adversidade. Eles estavam vestidos com camisas de malha e couro desgastado; espadas pendiam de suas cinturas.

- Eu sabia que Conan falou a verdade, quando disse que aquela não era Taramis! – o orador exclamou. – Durante meses, tenho percorrido os arredores do palácio, fazendo o papel de um mendigo surdo. Finalmente, eu tive a prova do que eu havia acreditado: que a nossa rainha é uma prisioneira nas masmorras contíguas ao palácio. Eu aproveitei uma oportunidade, capturei um carcereiro shemita e bati-lhe, deixando-o sem sentidos, enquanto ele deixava o pátio na calada da noite; arrastei-o para dentro de uma adega próxima e o interroguei. Antes de morrer, ele me disse o que eu acabei de lhes dizer, e o que temos suspeitado o tempo todo; que a mulher que governa Khauran é uma bruxa: Salomé. Taramis, ele contou, está presa no calabouço mais baixo.

"Esta invasão dos zuagires nos dará a oportunidade que procurávamos. O que Conan pretende fazer, eu não posso dizer. Talvez ele apenas deseje vingança contra Constantius. Talvez ele pretenda saquear a cidade e destruí-la. Ele é um bárbaro, e ninguém pode entender suas mentes.

"Mas isso é o que nós devemos fazer: resgatar Taramis, enquanto a batalha ruge! Constantius vai marchar até a planície, para lutar. Agora mesmo, seus homens já estão montando. Ele vai fazer isso, porque não há alimento suficiente na cidade para suportar um cerco. Conan irrompeu das profundezas do deserto tão bruscamente, que não houve tempo para trazer suprimentos. E o cimério está equipado para um cerco. Batedores relataram que os zuagires têm máquinas de cerco, construídas, sem dúvida, de acordo com as instruções de Conan, que aprendeu todas as artes da guerra entre as nações ocidentais.

"Constantius não deseja um cerco longo; assim sendo, ele vai marchar com seus guerreiros para a planície, onde espera conseguir dispersar as forças de Conan numa só investida. Ele só deixará algumas centenas de homens na cidade, e eles vão estar nas muralhas e torres, vigiando os portões.

"A prisão será deixada desprotegida. Depois que tivermos libertado Taramis, nossas próximas ações dependerão das circunstâncias. Se Conan ganhar, devemos mostrar Taramis para o povo e mandar que eles se unam num levante; e eles irão! Ah, se irão! Com suas próprias mãos nuas, já são o suficiente para dominar os shemitas deixados na cidade e fechar os portões, tanto contra os mercenários quanto contra os nômades. Nenhum deles deverá adentrar nossas muralhas! Então, vamos negociar com Conan. Ele sempre foi leal a Taramis. Se ele souber a verdade, e ela pedir-lhe que o faça, eu acredito que ele vai poupar a cidade. Se, o que é mais provável, Constantius prevalecer, e Conan for derrotado, devemos fugir da cidade com a rainha e buscar segurança em algum outro lugar.

“Está tudo claro?”

Eles responderam a uma só voz.

- Então, vamos desembainhar nossas lâminas, encomendar nossas almas para Ishtar e partir para atacar a prisão, pois os mercenários já estão marchando pelo portão sul.


Isto era verdade. O amanhecer brilhava nos capacetes pontiagudos, que se derramavam em fluxo constante através do amplo arco, e nos alojamentos brilhantes dos carregadores de armas. Esta seria uma batalha de cavaleiros, como só é possível nas terras do Leste. Os cavaleiros fluíam pelos portões, como um rio de aço – figuras sombrias em cotas-de-malhas pretas e prateadas, com suas barbas encaracoladas e narizes em forma de gancho, e seus olhos inexoráveis nos quais brilhava a fatalidade da sua raça – a total falta de dúvida ou de misericórdia.

As ruas e paredes estavam cheias de multidões, que assistiam em silêncio esses guerreiros de uma raça estrangeira saindo a cavalo, para defender a sua cidade natal. Não havia nenhum som; negligentemente e inexpressivos, eles olhavam – aquele povo magro, com roupas sujas, seus destinos em suas mãos.

Numa torre, que dava para a avenida larga que levava ao portão sul, Salomé se espreguiçava num sofá de veludo, cinicamente assistindo como Constantius colocava o largo cinto de sua espada ao redor dos quadris estreitos e vestia suas luvas. Eles estavam sozinhos no quarto. Lá fora, o rítmico retinir de arreios e o arrastar de cascos dos cavalos subiam através dos batentes com barras de ouro.

- Antes do anoitecer – disse Constantius, dando um giro em seu bigode fino –, você vai ter alguns cativos para alimentar o seu demônio no templo. Será que ele já não se cansou de carne macia das pessoas da cidade? Talvez goste de saborear os músculos mais duros de um homem do deserto.

- Tome cuidado para não cair vítima de uma besta tão feroz quanto Thaug – alertou a moça. – Não se esqueça quem é que comanda esses animais do deserto.

- Eu não sou dado a esquecimentos – ele respondeu. – Essa é uma razão pela qual eu estou avançando para encontrá-lo. O cão já lutou no Ocidente e conhece a arte do cerco. Meus batedores tiveram alguns problemas em se aproximar de suas colunas, pois os batedores montados deles têm olhos como os de falcões; mas eles chegaram perto o suficiente para ver as máquinas, que ele está arrastando em carros puxados por camelos: catapultas, aríetes, balistas, manganelas... por Ishtar! Ele deve ter posto dez mil homens trabalhando dia e noite, durante um mês. Onde ele conseguiu o material para sua construção, é mais do que eu posso compreender. Talvez ele tenha feito um tratado com os turanianos, e receba seus suprimentos deles.

"De qualquer forma, eles não vão trazer nenhuma conquista a ele. Já lutei antes com esses lobos do deserto – uma troca recíproca de flechas por um tempo, na qual meus guerreiros estarão protegidos por suas armaduras; em seguida, uma carga, em que meus esquadrões farão uma varredura através dos enxames soltos de nômades, atravessando-os e espalhando-os aos quatro ventos. Cavalgarei de volta pelo portão sul, antes do pôr-do-sol, com centenas de prisioneiros nus cambaleando na cauda do meu cavalo. Vamos realizar uma bela celebração à noite, na grande praça. Meus soldados deliciar-se-ão, esfolando vivos os nossos inimigos; teremos um imenso esfolamento por atacado hoje, e faremos esses habitantes fracotes da cidade assistir. Quanto a Conan, me causará um prazer intenso, se o capturarmos vivo, pois vou empalá-lo sobre os degraus do palácio."

- Esfole tantos quanto queira – respondeu Salomé com indiferença. – Eu gostaria de um vestido feito de pele humana. Mas, pelo menos uma centena de prisioneiros você deve reservar para mim, para o altar e para Thaug.

- Será feito – respondeu Constantius, com a mão enluvada escovando para trás o cabelo fino de sua testa alta, queimada pelo sol. – Para a vitória e a justa homenagem a Taramis! – ele disse com ironia, e, levando seu capacete com viseira debaixo do braço, ele levantou a mão em saudação, e saiu ruidosamente da câmara. Sua voz ainda se fez ouvir, duramente levantada em ordens para seus oficiais.

Salomé se recostou no sofá, bocejou, esticou-se como um grande gato flexível, e chamou: – Zang!

Um sacerdote com pés de gato, com um rosto que parecia um pergaminho amarelado esticado sobre uma caveira, entrou silenciosamente.

Salomé dirigiu-se para um pedestal de marfim, onde havia dois globos de cristal, e tirando dele o globo menor, entregou a esfera reluzente ao sacerdote.

- Cavalgue com Constantius – disse ela. – Dê-me notícias da batalha. Vá!

O homem de rosto descarnado se curvou e, escondendo o globo sob o seu manto escuro, saiu correndo da sala.

Lá fora, na cidade, não se ouvia nenhum som, exceto o barulho dos cascos; e, após um tempo, o barulho de um portão se fechando. Salomé subia uma larga escada de mármore, que levava ao dossel de teto plano, com ameias de mármore. O local se encontrava acima de todas as outras construções da cidade. As ruas estavam desertas, a grande praça em frente ao palácio estava vazia. Em tempos normais, a população já evitava o templo sombrio do lado oposto dessa praça, mas agora a cidade inteira parecia uma cidade morta. Só na muralha sul, e nos telhados acima dela, se percebia algum sinal de vida. Lá, o povo se concentrava maciçamente. Eles não fizeram nenhum tipo de manifestação, não sabendo se torciam pela vitória ou pela derrota de Constantius. A vitória significaria mais miséria sob seu governo intolerável; a derrota, provavelmente, significaria o saque da cidade e um massacre vermelho de sangue. Nenhuma palavra tinha vindo de Conan. Eles não sabiam o que esperar, se estivessem em suas mãos. Lembravam-se apenas de que ele era um bárbaro.


Os esquadrões dos mercenários estavam se movendo para fora, em direção à planície. À distância, perto do lado de cá do rio, outras massas escuras estavam se movendo, quase irreconhecíveis como homens em cavalos. Objetos pontilhavam a margem mais distante; Conan não tinha trazido as suas máquinas de cerco do outro lado do rio, aparentemente temendo um ataque no meio da travessia. Mas ele o tinha cruzado com a força total de seus cavaleiros. O sol se erguia e lançava reflexos de fogo nas multidões escuras. Os esquadrões da cidade partiram em um só galope; um rugido profundo alcançou os ouvidos das pessoas na muralha.

As massas rolantes fundiram-se na batalha e se entremearam; à distância, era uma confusão emaranhada em que nenhum detalhe podia ser visto. Carga e contra-carga não podiam ser identificadas. Nuvens de poeira se erguiam das planícies, sob os cascos retumbantes, ocultando as ações dos combatentes. Através destas nuvens giratórias, surgiam momentaneamente vislumbres de massas de cavaleiros, aparecendo e desaparecendo, e as lanças brilhavam.

Salomé deu de ombros e desceu a escadaria. O palácio estava em silêncio. Todos os escravos estavam na muralha, olhando inutilmente para o sul, junto com os cidadãos.

Ela entrou na câmara onde havia conversado com Constantius, e se aproximou do pedestal, observando que o globo de cristal estava nublado, manchado com listras sangrentas de escarlate. Debruçou-se sobre a bola, xingando baixinho.

- Zang! – ela chamou. – Zang!

Névoas rodaram na esfera, revolucionando e ondulando através de nuvens de poeira, nas quais figuras negras corriam irreconhecíveis; o aço brilhava como um relâmpago na escuridão. Então, o rosto de Zang saltou com surpreendente nitidez; era como se os olhos arregalados mirassem diretamente para Salomé. O sangue pingava de um corte na cabeça de caveira, a pele estava cinza com poeira molhada de suor. Os lábios se entreabriram, contorcendo-se; para outros ouvidos, que não os de Salomé, pareceria que o rosto no cristal se contorcia em silêncio. Mas, para ela, o som veio tão claramente daqueles lábios cinzentos, quanto se o sacerdote estivesse na mesma sala que ela, em vez de a quilômetros de distância, gritando para o cristal menor. Somente os deuses das trevas sabiam que invisíveis filamentos mágicos ligavam aquelas esferas cintilantes.

- Salomé! – gritou a cabeça sangrenta. – Salomé!

- Eu ouço! – ela gritou. – Fale! Como vai a batalha?

- Um terrível destino caiu sobre nós! – gritou a aparição encovada. – Khauran está perdida! Ah, meu cavalo foi derrubado e eu não posso ver claramente! Homens estão caindo em torno de mim! Eles estão morrendo como moscas, em suas malhas prateadas!

- Pare de tagarelar, e me diga o que aconteceu! – ela gritou asperamente.

- Nós cavalgamos até os cães do deserto, e eles vieram a nós! – uivou o sacerdote. – Flechas voaram como nuvens entre as hostes, e os nômades vacilaram. Constantius ordenou o ataque. Em fileiras organizadas, trovejamos para cima deles.

“Então, as massas da horda zuagir abriram-se para a direita e para a esquerda, e, através da fenda aberta, correram três mil cavaleiros hiborianos, de cuja presença nós sequer suspeitávamos. Homens de Khauran, loucos de ódio! Grandes homens com armadura completa, montando enormes cavalos! Em uma cunha sólida de aço, eles nos atingiram como um raio. Eles separaram as nossas fileiras em pedaços, antes que soubéssemos o que se abatia sobre nós, e então os homens do deserto atacaram-nos de ambos os flancos.

“Eles rasgaram nossas fileiras, quebrando-nos e dispersando-nos! É um truque daquele diabólico Conan! As máquinas de cerco são falsas – meras estruturas de troncos de palmeiras e seda pintada, que enganaram nossos batedores que as viam de muito longe. Um truque para nos atrair até a nossa desgraça! Nossos guerreiros fugiram! Khumbanigash caiu – Conan o matou. Eu não vejo Constantius. A raiva khaurani ruge através de nossas massas esmagadas, como leões loucos por sangue, e os homens do deserto nos atingem com flechas. Eu – Ahh!”

Houve um lampejo como o de um relâmpago, ou de aço cortante, uma explosão brilhante de sangue em seguida – e de repente a imagem sumiu, como se uma bolha estourasse, e Salomé estava olhando para uma bola de cristal vazia, que refletia apenas o seu próprio rosto furioso.

Ela ficou perfeitamente imóvel por alguns instantes, ereta e olhando para o espaço. Em seguida, ela bateu palmas e entrou outro sacerdote de rosto de caveira, tão silencioso e imóvel quanto o primeiro.

- Constantius está derrotado – disse ela rapidamente. – Estamos condenados.

“Conan estará às nossas portas dentro de uma hora. Se ele me pegar, não tenho ilusões sobre que destino me aguarda. Mas primeiro, eu vou me certificar de que minha amaldiçoada irmã nunca mais subirá ao trono novamente. Siga-me! Aconteça o que acontecer, vamos dar um banquete para Thaug.”

Enquanto descia as escadas e galerias do palácio, ela ouviu um eco fraco que ia aumentando, vindo das muralhas distantes. As pessoas lá posicionadas começaram a perceber que a batalha estava pendendo contra Constantius. Através das nuvens de poeira, massas de cavaleiros eram visíveis, correndo em direção à cidade.

O palácio e a prisão eram ligados por uma longa galeria fechada, cujo teto abobadado se erguia em arcos sombrios. Apressando-se ao longo desta, a falsa rainha e seu escravo passaram por uma pesada porta na outra extremidade da galeria, que os deixou nos recessos mal-iluminados da prisão. Eles emergiram num amplo corredor arcado, num ponto perto de onde uma escada de pedra descia para a escuridão. Salomé recuou de repente, praguejando. Na penumbra daquele salão, jazia uma forma imóvel – um carcereiro shemita, com sua barba curta apontando para o telhado, pois sua cabeça estava pendurada no pescoço meio cortado. Quando vozes ofegantes, vindas de baixo, chegaram aos ouvidos da jovem, ela recuou para a sombra negra de um arco, empurrando o sacerdote atrás dela, enquanto sua mão tateava em sua cintura.


6) As Asas Do Abutre

Foi a luz fumegante de uma tocha que despertou Taramis, Rainha da Khauran, do sono em que ela procurava o esquecimento. Erguendo-se sobre suas mãos, ela penteou para trás seu cabelo emaranhado e piscou para o alto, esperando encontrar o rosto zombeteiro de Salomé, maligna com novos tormentos. Em vez disso, um grito de piedade e horror chegou aos seus ouvidos.

- Taramis! Oh, minha Rainha!

O som era tão estranho aos seus ouvidos, que ela pensou que ainda estivesse sonhando. Atrás da tocha, ela agora podia distinguir figuras e o brilho do aço; e, em seguida, cinco rostos se inclinavam sobre ela – não faces morenas e de nariz adunco, mas magras e de feitio aquilino, bronzeadas pelo sol. Ela se agachou em seus farrapos, arregalando desvairadamente os olhos.

Uma das figuras saltou para a frente e caiu sobre um dos joelhos diante dela, os braços esticados suplicantemente para ela.

- Oh, Taramis! Graças a Ishtar, nós encontramos você! Você se lembra de mim... Valerius? Uma vez, com seus próprios lábios, que você me elogiou, depois da batalha de Korveka!

- Valerius! – ela gaguejou. De repente, lágrimas brotaram em seus olhos. – Oh, estou sonhando! É um pouco da magia negra de Salomé, para me atormentar!

- Não! – O grito soou com exultação. – São seus próprios e verdadeiros vassalos que vêm para salvá-la! Mas devemos nos apressar. Constantius luta agora na planície contra Conan, que trouxe os zuagires do outro lado do rio, mas trezentos shemitas ainda permanecem na cidade. Matamos o carcereiro e tomamos suas chaves, e não vimos outros guardas. Mas temos de ir embora. Venha!

As pernas da rainha cederam, não de fraqueza, mas devido à reação. Valerius a ergueu como se fosse uma criança e, com o portador da tocha correndo à frente deles, deixaram o calabouço e subiram uma escada de pedra escorregadia. Ela parecia se estender infinitamente, mas finalmente eles saíram num corredor.

Estavam passando por um arco escuro, quando a tocha foi subitamente derrubada, e seu portador gritou em breve e feroz agonia. Uma explosão de fogo azul relampejou no corredor escuro; o rosto furioso de Salomé foi delineado momentaneamente, assim como o uma figura bestial agachada ao lado dela – então, os olhos dos fugitivos foram cegados por aquele brilho.

Valerius tentou escapar ao longo do corredor com a rainha; confusamente, ele ouviu o som de golpes assassinos se cravando na carne, acompanhado por ofegos de morte e um grunhido bestial. Em seguida, a rainha foi brutalmente arrancada de seus braços, e um golpe selvagem em seu capacete derrubou-lhe no chão.

Sombriamente, ele se ergueu, balançando a cabeça num esforço para livrar-se da chama azul, que parecia ainda dançar diabolicamente diante dele. Quando sua visão ofuscada clareou, ele se viu sozinho no corredor, exceto pelos mortos. Seus quatro companheiros estavam caídos no próprio sangue, com cortes e fissuras nas cabeças e peitos. Cegos e aturdidos por aquele brilho saído do inferno, haviam morrido sem a oportunidade de se defender. A rainha sumira.

Com uma imprecação amarga, Valerius pegou sua espada, tirando seu capacete fendido e lançando-o no chão de pedras, enquanto o sangue escorria pelo rosto de um corte no couro cabeludo.

Cambaleando e tentando raciocinar, ele ouviu uma voz chamando seu nome com urgência desesperada: – Valerius! Valerius!

Ele cambaleou na direção da voz, e virou uma esquina do corredor, bem na hora de ter os braços cheios por uma figura macia e flexível, que se atirou freneticamente sobre ele.

- Ivga! Você está louca?

- Eu tinha que vir! – soluçou. – Segui-o, escondida em um arco do pátio exterior. Um momento atrás, eu a vi sair com um bruto, que carregava uma mulher em seus braços. Eu sabia que era Taramis, e que você tinha falhado! Oh, você está ferido!

- Um arranhão! – Ele colocou de lado suas mãos que o agarravam. – Rápido, Ivga, diga-me para que lado eles foram!

- Eles fugiram, atravessando a praça em direção ao templo.

Ele empalideceu: – Ishtar! Oh, o demônio! Ela pretende dar Taramis ao diabo que ela adora! Rápido, Ivga! Corra para a muralha sul, onde as pessoas assistem a batalha! Diga a todos que a sua verdadeira rainha foi encontrada, e que a impostora a arrastou até o templo! !

Soluçando, a jovem adiantou-se, suas sandálias leves tamborilando sobre os paralelepípedos, e Valerius correu pelo pátio, mergulhou na rua, correu para a praça em que esta desembocava, e então para a grande estrutura que se erguia no lado oposto.

Seus pés velozes mal tocavam o mármore, enquanto ele subia correndo a grande escada e atravessava o pórtico de pilares. Evidentemente, a prisioneira tinha criado dificuldades aos seus captores. Taramis, pressentindo o castigo destinado a ela, estava lutando contra o mesmo, com toda a força de seu esplêndido corpo jovem, enquanto desciam uma escadaria. Por um momento ela conseguiu escapar do sacerdote brutal, apenas para ser arrastada para baixo novamente.

O grupo estava a meio caminho do grande templo, na outra extremidade do qual ficava o altar sombrio e, além deste, a grande porta de metal, obscenamente entalhada, pela qual muitos tinham entrado, mas da qual só Salomé havia saído. A respiração de Taramis veio em suspiros ofegantes, seu vestuário esfarrapado tinha sido arrancado de seu corpo na luta. Ela se contorcia no aperto de seu captor simiesco, como uma branca ninfa nua nos braços de um sátiro. Salomé observava cinicamente, embora impaciente, movendo-se em direção à porta entalhada; e, da escuridão que se ocultava ao longo daquelas paredes altas, os deuses obscenos e gárgulas de pedra esculpidas olhavam de soslaio para baixo, como se imbuídos de vida lasciva.

Engasgado de fúria, Valerius correu para o grande salão, de espada na mão. Diante de um grito agudo de Salomé, o sacerdote com cara de caveira olhou para cima, soltando Taramis, e sacou uma faca pesada, já manchada de sangue, correndo na direção do khaurani que se aproximava.

Mas cortar homens cegados pela chama demoníaca liberada por Salomé era bem diferente de lutar contra um jovem, esguio e forte guerreiro hiboriano, incendiado com ódio e fúria.

A faca pingando sangue foi erguida, mas, antes que ela pudesse descer, a lâmina estreita de Valerius cortou o ar, e o punho que segurava a faca saltou para fora do pulso, num jorrar de sangue. Valerius, furioso, cortou de novo e mais uma vez, até que a figura simiesca caiu. A lâmina correu, atravessando carne e osso. A cabeça encovada caiu para um lado, o torso fendido para o outro.

Valerius girou na ponta dos pés, rápido e feroz como um gato selvagem, olhando em busca de Salomé. Ela devia ter esgotado seu pó de fogo na prisão. Estava debruçada sobre Taramis, agarrando os cachos negros de sua irmã numa mão, e na outra erguendo uma adaga. Em seguida, com um grito, a espada do feroz Valerius afundou no peito da feiticeira, com tanta fúria que a ponta saiu por entre seus ombros. Com um grito terrível, a bruxa desabou, contorcendo-se em convulsões, agarrando a lâmina nua enquanto esta era retirada, soltando fumaça e pingando sangue. Seus olhos eram desumanos; com uma vitalidade sobre-humana, ela se agarrava à vida que fluía através do ferimento que dividia o crescente vermelho em seu peito de marfim. Ela rastejava no chão, arranhando e mordendo as pedras nuas em sua derradeira agonia.

Enojado com a visão, Valerius inclinou-se e levantou a rainha meio desfalecida. Virando as costas para a figura que se retorcia no chão, ele correu até a porta, tropeçando na sua pressa. Ele cambaleou para fora do pórtico, detendo-se no topo da escadaria. A praça estava repleta de pessoas. Alguns tinham respondido aos apelos incoerentes de Ivga; outros tinham abandonado as muralhas, com medo das hordas ferozes que se estendiam no deserto, fugindo irracionalmente em direção ao centro da cidade. A muda resignação havia desaparecido. A multidão fervia e se convulsionava, gritando e guinchando. Sobre o caminho, ressoou de algum lugar o som da fragmentação de pedra e vigas.

Um bando de shemitas sombrios rompeu a multidão – os guardas dos portões norte, correndo em direção ao portão sul, para reforçar os seus companheiros lá. Eles refrearam-se subitamente, ao verem o jovem sobre os degraus, carregando a figura nua e desmaiada nos braços. As cabeças da multidão se voltaram em direção ao templo; a multidão ficou boquiaberta, um novo pasmo adicionado ao outro naquele turbilhão de confusões.

- Aqui está sua rainha! – gritou Valerius, esforçando-se para se fazer entender acima do clamor. O povo recuou, com um grito pasmado. Eles não o entendiam, e Valerius procurava, em vão, levantar a voz acima do tumulto. Os shemitas avançaram em direção aos degraus do templo, abrindo caminho através da multidão com suas lanças.

Em seguida, um novo e pavoroso elemento introduziu-se no frenesi. Saindo da escuridão do templo atrás de Valerius, cambaleou uma branca figura esguia, manchada de vermelho. O povo gritou, pois nos braços de Valerius pendia uma mulher que parecia ser a rainha, e lá na porta do templo cambaleava outra figura idêntica, como se fosse um reflexo desta. Todos estavam confusos. Valerius sentiu o sangue congelar, enquanto olhava para a jovem bruxa cambaleante. Sua espada a tinha atravessado, separando-lhe coração. Ela deveria estar morta; por todas as leis da natureza, ela devia estar morta. No entanto, lá estava ela trôpega, de pé, agarrando-se horrivelmente à vida.

- Thaug! – ela gritou, cambaleando na porta. – Thaug!

Como em resposta a essa invocação terrível, lá na escuridão explodiu um coaxar estrondoso de dentro do templo, e o estalar de madeira e metal se quebrando.

- Aquela é a rainha! – rugiu o capitão dos shemitas, erguendo seu arco. – Abatam o homem e a outra mulher!

Mas o rugido de uma alcatéia de caça irrompeu do povo; eles tinham adivinhado a verdade finalmente, entendendo os apelos frenéticos de Valerius, e já sabiam que a garota que pendia inerte em seus braços era a sua verdadeira rainha. Com um grito de sacudir a alma, eles se voltaram contra os shemitas, rasgando e ferindo com dentes e as mãos e unhas nuas, no desespero da fúria, duramente reprimida até então, e finalmente deflagrada. Acima deles, Salomé balançou e caiu pelas escadas de mármore, finalmente morta.

Flechas caíram ao redor de Valerius, enquanto ele corria de volta para o templo, por entre os pilares do pórtico, protegendo o corpo da rainha com o seu próprio. Atirando e cortando impiedosamente, os shemitas montados resistiam à multidão enlouquecida. Valerius se lançava para o interior do templo – e, já com um pé no limiar da porta, subitamente recuou, gritando de horror e desespero.

Para fora da escuridão, do outro lado do grande salão, uma grande forma escura se ergueu, vindo correndo em direção a ele em gigantescos saltos como os de um sapo. Ele viu o brilho de grandes olhos sobrenaturais e o tremeluzir de presas ou garras. Ele caiu para trás da porta, e então o zumbido de uma seta passando rente à sua orelha o lembrou que a morte também estava atrás dele. Virou-se, desesperado. Quatro ou cinco shemitas tinham aberto seu caminho através da multidão, e estavam esporeando seus cavalos degraus acima, com os seus arcos já levantados para matá-lo. Ele pulou para trás de um pilar, no qual as setas se estilhaçaram. Taramis havia desmaiado novamente. Ela pendia como uma morta em seus braços.

Antes dos shemitas poderem atirar novamente, a porta estava bloqueada por uma figura gigantesca. Com gritos atemorizados, os mercenários se voltaram para trás e começaram a se enfiar de maneira frenética por entre a multidão, que os esmagava de volta, num horror galvanizado, atropelando uns aos outros em sua debandada histérica.

Mas o monstro parecia estar perseguindo Valerius e a moça em seus braços. Espremendo seu vasto, instável corpo através da porta, ele saltou na direção deles, enquanto Valerius descia correndo os degraus. Ele sentiu a criatura se aproximando por trás dele, uma coisa gigante e sombria, como uma caricatura da natureza talhada do coração da noite; uma deformidade negra, na qual apenas os olhos arregalados e as presas brilhantes eram distinguidos.

Houve um trovejar repentino de cascos; uma torrente confusa de shemitas, sangrentos e maltratados, surgiu no sul da praça, mergulhando cegamente através da multidão embaralhada. Atrás deles, perseguiam-nos uma horda de cavaleiros, gritando numa língua familiar e brandindo espadas vermelhas de sangue – os exilados voltaram! Com eles, cavalgavam cinqüenta montadores de barbas negras do deserto, e à frente deles uma figura gigante em cota de malha negra.

- Conan! – gritou Valerius. – Conan!

O gigante gritou um comando. Sem diminuir sua velocidade, os homens do deserto levantaram os seus arcos, puxaram e soltaram suas flechas. Uma nuvem de setas cantou de um lado a outro da praça, por cima das cabeças furiosas das multidões, e se enterraram profundamente no monstro negro. Ele parou, vacilou e cambaleou, uma mancha negra contra os pilares de mármore. Mais uma vez, a nuvem afiada cantou, e mais uma vez, até que o horror caiu e rolou escada abaixo, tão morto quanto a bruxa que tinha o convocado da noite das eras.

Conan puxou as rédeas de seu cavalo ao lado do pórtico, e saltou da montaria. Valerius havia colocado a rainha sobre o mármore, afundando-se ao lado dela em exaustão total. As pessoas subiram as escadas, aglomerando-se ao redor deles. O cimério os despachou dali com um grito, levantando a moça, com a cabeça morena dela apoiada contra seu ombro encouraçado.

- Por Crom, o que é isso? A verdadeira Taramis! Mas quem é aquela lá?

- O demônio que usava sua forma – arquejou Valerius.

Conan xingou de todo coração. Rasgando uma capa dos ombros de um soldado, ele envolveu-a na rainha nua. Seus longos cílios escuros tremeram em suas bochechas, seus olhos se abriram, olhando incrédula para o rosto cicatrizado do cimério.

- Conan! Seus dedos macios o agarraram. – Estou sonhando? Ela me disse que você estava morto.

- Dificilmente! – Ele abriu um sorriso largo e duro. – Você não sonha. Você é a Rainha de Khauran novamente. Eu derrotei Constantius, lá fora, perto do rio. A maioria de seus cães nunca viverá para alcançar as muralhas, pois dei ordens para que não se façam prisioneiros... exceto Constantius. A guarda da cidade fechou o portão na nossa cara, mas o abrimos com aríetes que giravam de nossas selas. Deixei todos os meus lobos do lado de fora, exceto por esses cinqüenta. Eu não confio neles aqui dentro, e estes khauranis foram suficientes para lutar contra os guardas do portão.

- Foi um pesadelo! – ela choramingou. – Oh, meu pobre povo! Você deve me ajudar a tentar recompensá-los por tudo o que sofreram; Conan, de hoje em diante serás conselheiro, além de capitão!

Conan riu, mas balançou a cabeça. Levantando-se, pôs a rainha de pé, e acenou para um número de seus cavaleiros khauranis que não haviam continuado a perseguição dos shemitas em fuga. Eles saltaram de seus cavalos, ansiosos para atenderem às ordens de sua recém-encontrada rainha.

- Não, moça; esse tempo passou. Eu sou chefe dos zuagires agora, e devo levá-los para saquear o turanianos, como prometi. Este rapaz, Valerius, será para você um melhor capitão do que eu... não fui feito para morar entre paredes de mármore, de qualquer maneira. Mas eu tenho que deixá-los agora, e completar o que comecei. Shemitas ainda vivem em Khauran.

Enquanto Valerius começava a seguir Taramis até o outro lado da praça, em direção ao palácio, através de um caminho aberto pela multidão que aclamava loucamente, ele sentiu uma mão macia escorregando timidamente por entre seus dedos vigorosos e voltou-se para receber o corpo esbelto de Ivga em seus braços. Ele apertou-a contra si e bebeu de seus beijos, com a gratidão de um lutador cansado que finalmente alcançou o descanso, através da tribulação e tempestade.

Mas nem todos os homens procuram descanso e paz; alguns nascem com o espírito da tempestade no seu sangue, arautos inquietos de violência e derramamento de sangue, sem conhecerem outro caminho...


O sol estava nascendo. A antiga estrada das caravanas estava repleta de cavaleiros vestidos em túnicas brancas, numa linha ondulante que se estendia desde as paredes de Khauran, até algum lugar distante, na planície. Conan, o cimério se sentava à frente dessa coluna, perto da extremidade irregular de uma viga de madeira que se destacava para fora do chão. Próxima dali, erguia-se uma pesada cruz e, naquela cruz, um homem estava pendurado por pregos cravados em suas mãos e pés.

- Sete meses atrás, Constantius – disse Conan –, era eu que estava pendurado aí, e você que se sentava aqui.

Constantius não respondeu; ele lambeu os lábios acinzentados; seus olhos estavam vidrados de dor e medo. Os músculos se contorciam como cordas ao longo de seu corpo magro.

- Você é mais apto para infligir tortura do que para suportá-la – disse Conan tranqüilamente. – Eu estive pendurado numa cruz, como você está agora, e sobrevivi, graças às circunstâncias e a uma resistência peculiar dos bárbaros. Mas vocês, homens civilizados, são suaves; suas vidas não são pregadas às suas espinhas, como são as nossas. Sua fortaleza consiste principalmente em infligir tormento, não em suportá-lo. Você vai estar morto antes do pôr-do-sol. E assim, Falcão do deserto, deixo-lhe na companhia de outro pássaro do deserto.

Ele gesticulou em direção aos abutres, cujas sombras varriam as areias enquanto eles giravam no alto. Dos lábios de Constantius, veio um grito desumano de desespero e horror.

Conan ergueu as rédeas e seguiu em direção ao rio, que brilhava como prata ao sol da manhã. Atrás dele, os cavaleiros vestidos de branco bateram em trote; o olhar de cada um, quando passava por esse determinado ponto, virava-se de forma impessoal e com a falta de compaixão do homem do deserto em direção à cruz, e à figura magra que estava pendurada lá, negra contra o nascer do sol. Os cascos dos seus cavalos batiam com força uma sentença de morte na poeira. E, mais e mais, desciam as asas dos abutres famintos.


FIM





A seguir: Sabatea, A Maldita.




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