(por Robert E. Howard)
Originalmente
publicado em Weird Tales, dezembro de 1934.
1) O Crescente Vermelho-Sangue
Taramis, rainha de Khauran, despertou de um pesadelo
assombrado, para um silêncio que mais parecia o silêncio das catacumbas anoitecidas
do que a quietude normal de um local de dormir. Ela olhava para a escuridão, perguntando-se
por que as velas em seus candelabros de ouro tinham se apagado. Um salpicar de
estrelas marcava um batente com barras de ouro, não emprestando nenhuma
iluminação ao interior da câmara. Mas, enquanto Taramis estava deitada ali, ela
se deu conta de um ponto radiante brilhando na escuridão à sua frente. Ela observou
perplexa. A mancha cresceu, e sua intensidade aumentou enquanto ela se expandia,
um disco que se ampliava de luz sinistra pairando contra as cortinas de veludo
escuro da parede oposta. Taramis prendeu a respiração, sentando-se. Um objeto
escuro era visível naquele círculo de luz – uma cabeça humana.
Subitamente em pânico, a rainha abriu os lábios para
gritar por suas criadas; mas se conteve. O brilho estava ficando mais lúgubre,
a cabeça foi ficando mais vividamente delineada. Era uma cabeça de mulher –
pequena, delicadamente moldada e soberbamente equilibrada, com uma massa abundante
de lustrosos cabelos negros. O rosto foi ficando mais nítido, enquanto ela
encarava – e foi a visão dessa face que congelou o grito na garganta de Taramis.
Era o seu próprio rosto! Ela poderia estar olhando para um espelho que
sutilmente alterava seu reflexo, dando-lhe um brilho felino no olhar e uma curva
vingativa nos lábios.
- Ishtar! – ofegou Taramis. – Estou enfeitiçada!
Espantosamente, a aparição falou, e sua voz era como veneno
adoçado:
- Enfeitiçada? Não, doce irmã! Isso não é feitiçaria.
- Irmã? – gaguejou a garota confusa. – Eu não tenho irmã.
- Você nunca teve uma irmã? – disse a doce e
venenosamente zombeteira voz. – Nunca teve uma irmã gêmea, cuja carne era tão
suave como a sua para acariciar ou ferir?
- Ora, uma vez eu tive uma irmã – respondeu Taramis,
ainda convencida de que ela estava nas garras de algum tipo de pesadelo. – Mas ela
morreu.
O belo rosto no disco convulsionou-se, assumindo o
aspecto de uma fúria; tão infernal se tornou sua expressão, que Taramis,
encolhendo-se para trás, meio que esperava ver cachos em forma de serpentes se
contorcerem sibilando ao redor da fronte de marfim.
- Você mente! – A acusação foi cuspida por entre os
lábios vermelhos que rosnavam. – Ela não morreu! Idiota! Oh, chega dessa
palhaçada! Olhe, e maldita seja sua visão!
A luz correu de repente ao longo das cortinas, como
serpentes de fogo, e incrivelmente as velas nas varas de ouro brilharam
novamente. Taramis estava encolhida em seu sofá de veludo, com as pernas macias
flexionadas debaixo de si, mirando com os olhos arregalados a figura de pantera
que se colocava escarnecedoramente diante dela. Era como se ela contemplasse
outra Taramis, idêntica a si mesma em cada contorno de rosto e membros, porém
animada por uma personalidade estranha e maligna. O rosto dessa estranha
refletia o oposto de todas as características da rainha assustada. Luxúria e
mistério brilhavam em seus olhos cintilantes, e crueldade espreitava na
curvatura dos cheios lábios vermelhos. Cada movimento de seu corpo flexível era
sutilmente sugestivo. Seu penteado imitava o da rainha, e em seus pés brilhavam
as mesmas sandálias que Taramis usava em seu boudoir. A túnica de seda decotada com mangas, presa à cintura com
uma faixa dourada, era uma perfeita duplicata da roupa noturna da rainha.
- Quem é você? – ofegou Taramis, um arrepio gelado e
inexplicável rastejando ao longo de sua coluna vertebral. – Explique sua
presença, antes que eu chame minhas damas de companhia para convocar a guarda!
- Grite até que as vigas do telhado quebrem –
respondeu friamente a estranha. – Suas vadias não vão acordar até o amanhecer, mesmo
que o palácio irrompa em chamas sobre elas. Seus guardas não vão ouvir seus
gritos agudos; eles foram enviados para fora desta ala do palácio.
- O quê? – exclamou Taramis, endurecendo com sua
majestade ultrajada. – Quem ousou dar aos meus guardas tal comando?
- Eu, querida irmã – zombou a outra garota. – Há pouco
tempo atrás, antes de entrar aqui. Eles pensaram que eu era a sua querida e
adorada rainha. Há! Como interpretei belamente seus trejeitos! Com que
dignidade imperiosa, suavizada pela doçura feminina, eu abordei os grandes brutos
que se ajoelharam, com suas armaduras e capacetes emplumados!
Taramis sentiu como se uma rede sufocante de
perplexidade estivesse sendo jogada sobre ela.
- Quem é você? – ela gritou desesperadamente. – Que loucura
é essa? Por que você vem aqui?
- Quem sou eu? – Havia o rancor do silvo de uma cobra
na resposta suave. A garota foi até a beira do sofá, agarrou os ombros brancos
da rainha com dedos ferozes, e inclinou-se para olhar em cheio nos olhos
assustados de Taramis. E sob o feitiço de tal brilho hipnótico, a rainha
esqueceu a indignação sem precedentes de mãos estranhas a tocarem na carne
real.
- Idiota! – rangeu a garota entre dentes. – Você pode
perguntar? Você pode imaginar? Eu sou Salomé!
- Salomé! – Taramis soprou a palavra, e os cabelos
arrepiaram-se em seu couro cabeludo, ao perceber a incrível verdade
entorpecente da declaração. – Eu pensei que você havia morrido, uma hora após
seu nascimento! – disse ela debilmente.
- Assim pensaram muitos – respondeu a mulher que chamou
a si mesma de Salomé. – Levaram-me para o deserto para morrer, malditos! Eu, um
mirrado bebê choroso, cuja vida era tão jovem que era menos que o brilho de uma
vela. E você sabe por que eles me deixaram para trás para morrer?
- Eu... eu ouvi a história – vacilou Taramis.
Salomé riu ferozmente, e bateu as mãos ao peito. A
túnica decotada caiu, deixando as partes superiores de seus alvos seios firmes
nua, e entre eles brilhava uma curiosa marca: um crescente, vermelho como o
sangue.
- A marca da bruxa! – gritou Taramis, recuando.
- Sim! – O riso de Salomé era uma adaga afiada com
ódio. – A maldição dos reis de Khauran! Sim, a lenda sussurrada pelo povo nos
mercados, com as barbas abanando e os olhos revirados, aqueles tolos religiosos!
Eles contam como a primeira rainha da nossa linhagem se ofereceu a um demônio
das trevas, e de tal união nasceu uma filha, a qual vive em lendas repugnantes
até hoje. E posteriormente, a cada século, nasce um bebê menina na dinastia auskhariana,
com uma meia-lua escarlate entre os seios, a qual indica o seu destino.
“‘A cada século nascerá uma bruxa’. Assim professava
a antiga maldição. E assim tem transcorrido. Algumas foram mortas ao nascer,
assim como eles tentaram me matar. Outras caminharam sobre a Terra como bruxas,
filhas orgulhosas de Khauran, com a lua do inferno queimando em seus seios de marfim.
Cada uma delas foi chamada Salomé. Eu também sou Salomé. Sempre houve Salomé, a
bruxa. Haverá sempre Salomé, a bruxa, mesmo quando as montanhas de gelo descerem
dos pólos e transformarem a civilização em ruínas, e um novo mundo surgir das
cinzas e poeira – mesmo então, haverá Salomés para andar na terra, para
capturar os corações dos homens com seus feitiços, para dançar diante dos reis
do mundo, para ver as cabeças dos homens sábios caírem a seu bel-prazer”.
- Mas... mas você... – gaguejou Taramis.
- Quanto a mim? – Os olhos cintilantes queimavam como
fogos escuros de mistério. – Levaram-me para o deserto longe da cidade, e me
deitaram nua na areia quente, sob o sol flamejante. E então partiram, me
deixando para os chacais, abutres e lobos do deserto.
“Mas a vida em mim era mais forte do que a vida das
pessoas comuns, pois participa da essência das forças que fervem nos golfos
negros, além do conhecimento dos mortais. As horas se passaram, e o sol
queimava como as chamas derretidas do inferno, mas eu não morri; ainda me lembro
de algo desse tormento, vagamente e bem distante, como quem se lembra de um
fraco sonho sem forma. Em seguida, houve camelos, e homens de pele amarela que
usavam robes de seda e falavam em uma língua estranha. Desviados do caminho de
sua caravana, passaram por perto, e seu líder me viu e reconheceu a crescente
escarlate no meu peito. Ele me pegou e proporcionou a vida”.
“Ele era um mago da distante Khitai, retornando para
o seu reino natal, depois de uma viagem à Stygia. Ele me levou consigo para as
torres púrpuras de Paikang, com seus minaretes subindo em meio às selvas de
bambu enfeitados por vinhas, e eu cresci até a vida adulta sob o seu ensino. A
idade havia mergulhado-o profundamente na sabedoria negra, sem enfraquecer seus
poderes do mal. Muitas coisas ele me ensinou...”.
Ela fez uma pausa, sorrindo enigmaticamente, com um
mistério perverso brilhando em seus olhos escuros. Em seguida, jogou a cabeça
para trás:
- Ele finalmente me expulsou, dizendo que eu era uma
bruxa vulgar, apesar de seus ensinamentos, e não-apta para comandar a poderosa feitiçaria
que havia me ensinado. Ele queria me fazer rainha do mundo e governar as nações
através de mim... ele disse... mas eu era apenas uma prostituta das trevas. Mas
e daí? Eu nunca poderia suportar me isolar numa torre dourada, e passar longas
horas olhando para um globo de cristal, murmurando sobre encantamentos escritos
em pele de serpente com o sangue de virgens, estudando debruçada sobre volumes
mofados em línguas esquecidas.
“Ele disse que eu era como um duende terreno, nada
sabendo dos golfos mais profundos da feitiçaria cósmica. Bem, este mundo contém
tudo o que eu desejo: poder e pompa, luxo reluzente, homens bonitos e mulheres
suaves para serem meus amantes e escravos. Ele havia me dito também quem eu era,
da minha maldição e minha herança. Voltei para tomar o que eu tenho tanto
direito quanto você. Agora é meu por direito de posse”.
- O que você quer dizer? – Taramis levantou-se e
enfrentou sua irmã, saindo de sua perplexidade e medo. – Você imagina que,
drogando algumas das minhas empregadas e enganando alguns dos meus guardas,
poderá ter estabelecido uma reivindicação válida ao trono de Khauran? Não se
esqueça que eu sou a Rainha de Khauran! Vou dar-lhe um lugar de honra, como a
minha irmã, mas...
Salomé riu com ódio:
- Quão generoso de sua parte, querida e doce irmã!
Mas, antes de começar a me colocar no meu lugar... talvez você possa me dizer
de quem são os soldados, acampados na planície do lado de fora dos muros da
cidade?
- Eles são os mercenários shemitas de Constantius, o voivode kothiano das Companhias
Livres.
- E o que eles fazem em Khauran? – murmurou Salomé.
Taramis sentiu que estava sendo sutilmente escarnecida,
mas respondeu com um pressuposto de dignidade que ela quase não sentia.
- Constantius pediu permissão para passar ao longo
das fronteiras de Khauran a caminho de Turan. Ele mesmo se colocou como meu
refém, como prova do bom comportamento de seus homens, enquanto estiverem
dentro dos meus domínios.
- E Constantius... – continuou Salomé – Ele não pediu
a sua mão em casamento hoje?
Taramis lançou-lhe um olhar nublado de suspeita:
- Como você soube disso?
Um encolher insolente dos esguios ombros nus foi a
única resposta:
- Você recusou, querida irmã?
- Certamente eu recusei! – Taramis exclamou furiosamente.
– Você, uma legítima princesa auskhariana, acha mesmo que a Rainha da Khauran
poderia tratar dessa proposta com qualquer outra coisa, senão o desdém? Casar-se
com um aventureiro sanguinário, um homem exilado de seu próprio reino por causa
de seus crimes, e líder de saqueadores e assassinos contratados?
“Eu nunca deveria ter permitido a ele que trouxesse
os seus assassinos de barba negra a Khauran. Mas ele é praticamente um
prisioneiro na torre sul, guardado pelos meus soldados. Amanhã, vou pedir a ele
que ordene às suas tropas para deixarem o reino. Ele próprio deverá ser mantido
em cativeiro até que elas estejam na fronteira. Enquanto isso, meus soldados
estarão a postos nas muralhas da cidade, e já o avisei que ele vai responder
por quaisquer atrocidades perpetradas sobre os aldeões ou pastores pelos seus
mercenários”.
- Ele está confinado na torre sul? – perguntou Salomé.
- Isso é o que eu já disse. Por que pergunta?
Em resposta, Salomé bateu palmas e, levantando a voz
com um borbulhar de alegria cruel, chamou:
- A rainha concede-lhe uma audiência, Falcão.
Uma porta de ouro com arabescos se abriu, e uma forma
alta entrou na câmara – uma visão que fez Taramis gritar de espanto e raiva.
- Constantius! Você ousa entrar na minha câmara?
- Como você pode ver, Majestade! – Ele inclinou a
escura cabeça de falcão numa humildade fingida.
Constantius, a quem os homens chamavam Falcão, era
alto, de ombros largos e cintura fina, flexível e forte como aço maleável. Ele
era bonito, de uma forma aquilina e cruel. A pele de seu rosto estava crestada
pelo sol, e seu cabelo, que crescia muito para trás de sua testa alta e
estreita, era negro como um corvo. Seus olhos escuros eram penetrantes e alertas,
com a dureza de seus lábios finos não-suavizada por seu fino bigode preto. Suas
botas eram de couro kordavano; seus calções e gibão eram de lisa seda escura,
manchada com o desgaste dos acampamentos, e as manchas de ferrugem de
armaduras.
Torcendo o bigode, ele deixou seu olhar percorrer o
corpo da rainha encolhida, com uma ousadia que a fez recuar.
- Por Ishtar, Taramis – disse ele suavemente –; eu acho
você mais atraente em sua túnica de noite do que em suas vestes reais. Na
verdade, esta é uma noite auspiciosa!
O medo cresceu nos olhos escuros da rainha. Ela não
era boba; sabia que Constantius nunca se atreveria a este ultraje, a menos que
ele estivesse seguro de si.
- Você está louco! – ela disse. – Se eu estou em seu
poder neste quarto, você não está menos ao alcance dos meus súditos, que vão
dilacerá-lo em pedaços, se você me tocar. Vá de uma vez, se você quer viver.
Ambos riram zombeteiramente, e Salomé fez um gesto de
impaciência.
- Chega de farsa; vamos para o próximo ato da
comédia. Ouça, querida irmã: fui eu quem enviou Constantius aqui. Quando decidi
tomar o trono de Khauran, procurei um homem forte para me ajudar e escolhi o
Falcão, por causa de sua absoluta falta de todas as características tidas como
boas pelos homens.
- Estou lisonjeado, princesa – murmurou Constantius sardonicamente,
com uma inclinação profunda.
- Eu o mandei para Khauran e, uma vez que os seus
homens estavam acampados na planície do lado de fora, e ele estava dentro do
palácio, entrei na cidade por uma pequena porta na muralha oeste... os tolos
que a guardavam pensaram que eu fosse você, retornando de alguma aventura
noturna...
- Sua demônia! – As bochechas de Taramis se
inflamaram, e seu ressentimento levou a melhor sobre a reserva real.
Salomé sorriu malignamente.
- Eles pareciam devidamente surpresos e chocados, mas
me permitiram entrar, sem questionarem. Entrei no palácio da mesma maneira, e
dei a ordem aos guardas surpresos, para que marchassem para longe daqui, assim
como também a dei para os homens que guardavam Constantius na torre sul. Então
eu vim para cá, atendendo as suas damas de companhia no caminho.
Os dedos de Taramis se crisparam e ela empalideceu.
- Bem, o que vem a seguir? – ela perguntou, com a voz
trêmula.
- Ouça! – Salomé inclinou a cabeça. Fracamente
através da janela, veio o barulho da marcha de homens blindados; vozes rudes
gritavam numa língua estrangeira, e sons de alarme se misturavam com os gritos.
- O povo despertou e está aterrorizado – disse Constantius
com ironia. – É melhor ir até eles e tranqüilizá-los, Salomé!
- Meu nome é Taramis – respondeu Salomé. – Devemos
habituar-nos a ele.
- O que você fez? – gritou Taramis. – O que você fez?
- Eu fui aos portões da cidade e ordenei aos soldados
que os abrissem – respondeu Salomé. – Eles ficaram pasmados, mas obedeceram.
Esse é o exército do Falcão que está a ouvir, marchando para dentro da cidade.
- Seu diabo! – gritou Taramis. – Você traiu o nosso
povo, usando da minha aparência! Você me fez parecer uma traidora! Oh, eu irei
até eles...
Com uma risada cruel, Salomé a pegou pelo pulso e a
puxou de volta. A magnífica maleabilidade da rainha era impotente contra a
força vingativa, que corria nos membros delgados de Salomé.
- Você sabe como chegar até as masmorras do palácio, Constantius?
– disse a jovem bruxa. – Bom. Pegue esta pestinha e tranque-a na cela mais
profunda. Os carcereiros dormem o sono dos drogados. Eu providenciei isso.
Envie um homem para cortar suas gargantas, antes que eles possam despertar.
Ninguém deve saber o que ocorreu esta noite. De agora em diante eu sou Taramis,
e essa outra é uma prisioneira sem nome, em um calabouço desconhecido.
Constantius sorriu com um brilho de dentes brancos e
fortes sob seu bigode fino:
- Muito bom; mas, antes, você não iria me negar um
breve momento de diversão, iria?
- Eu não! Dome essa vadia desprezível como você
quiser. – Com um sorriso perverso Salomé jogou sua irmã nos braços do kothiano,
e afastou-se através de uma porta que dava para o corredor externo.
Os lindos olhos de Taramis se arregalaram de medo, e
sua flexível figura ficou rígida, ao lutar contra o abraço de Constantius. Ela se
esqueceu dos homens marchando nas ruas, esqueceu-se do ultraje à sua realeza,
em face da ameaça à sua feminilidade. Ela se esqueceu de todas as sensações, exceto
o terror e a vergonha, diante do cinismo completo dos olhos ardentes e zombeteiros
de Constantius, e sentiu os braços fortes esmagando seu corpo que se contorcia.
Salomé, seguindo ao longo do corredor do lado de
fora, sorriu perversamente, enquanto um grito de desespero e agonia vibrava,
estremecendo todo o palácio.
2) A
Árvore Da Morte
Os calções e a camisa do jovem soldado estavam
manchados com sangue seco e uma mistura de suor, cinza e poeira. O sangue
escorria de um corte profundo na coxa, e a partir das lacerações no peito e no
ombro. A transpiração brilhava em seu rosto lívido, e seus dedos dobravam-se
sobre o cobertor do divã em que ele estava. No entanto, suas palavras refletiam
um sofrimento mental, o qual superava a dor física que devia estar sentindo.
- Ela deve estar louca! – ele repetiu várias e várias
vezes, como se ainda atordoado por algum acontecimento monstruoso e incrível. –
É como um pesadelo! Taramis, a quem todos em Khauran amam, traindo seu povo com
esse diabo de Koth! Oh, Ishtar, por que eu não morro? Melhor morrer do que
viver para ver a nossa rainha transformada em traidora e prostituta!
- Fique quieto, Valerius – implorou a garota, que
estava lavando e enfaixando suas feridas com as mãos trêmulas. – Oh, por favor,
fique quieto, querido! Você vai agravar os seus ferimentos. Não me atrevi a
chamar um sanguessuga.
- Não – murmurou o jovem ferido. – Os demônios de
barbas azuis de Constantius vão procurar nos bairros por khauranis feridos;
eles vão enforcar cada homem que tenha ferimentos que mostrem que ele lutou
contra eles. Oh, Taramis, como você pode trair o povo que lhe adorava? – Em sua
agonia feroz, ele se contorcia, chorando de raiva e vergonha, e a garota apavorada
pegou-o nos braços, colocando a cabeça dele contra seu peito, implorando para
ele ficar quieto.
- É melhor a morte do que a vergonha negra que se
abateu sobre Khauran neste dia – ele gemeu. – Você viu isso, Ivga?
- Não, Valerius. – Seus suaves dedos ágeis estavam
novamente no trabalho, suavemente limpando e fechando as extremidades abertas
de suas feridas cruas. – Fui despertada pelo barulho de luta nas ruas... olhei
para fora de uma janela, e vi os shemitas cortando as pessoas; então,
subitamente, eu ouvi você me chamando baixinho na porta do beco.
- Eu tinha alcançado os limites da minha força – ele murmurou.
– Eu caí no beco e não podia mais me levantar. Eu sabia que eles iam me
encontrar em breve, se eu ficasse ali, pois eu matei três daqueles animais
barbudos, por Ishtar! Eles nunca mais andarão com arrogância pelas ruas de
Khauran, pelos deuses! Os demônios estão agora rasgando seus corações no
inferno!
A moça trêmula cantarolou suavemente para ele, como
para uma criança que se machucou, e fechou os lábios ofegantes dele com a sua
própria boca doce e refrescante. Mas o fogo que se alastrou na alma dele não
lhe permitiria ficar em silêncio.
- Eu não estava na muralha, quando os shemitas
entraram – ele explodiu. – Eu estava dormindo no quartel, com os outros que não
estavam de plantão. Foi um pouco antes do amanhecer que o nosso capitão entrou
na caserna, e seu rosto estava pálido sob o capacete. "Os shemitas estão
na cidade", disse ele. "A rainha veio até o portão sul, e deu ordens
para que eles fossem admitidos. Ela fez os homens descerem das muralhas, onde
estiveram em guarda desde que Constantius entrou no reino. Eu não entendo isso,
e nem ninguém, mas a ouvi dar a ordem, e nós obedecemos como sempre fazemos.
Fomos obrigados a nos reunir na praça diante do palácio, formar fileiras do
lado de fora do quartel e marchar, deixando nossas armas e armaduras aqui.
Ishtar sabe o que isso significava, mas é ordem da rainha".
"Bem, quando chegamos à praça, os shemitas
estavam de pé em frente ao palácio, dez mil daqueles demônios barbudos, totalmente
armados, e as cabeças das pessoas fora de todas as janelas e portas da praça.
As ruas que levam à praça estavam repletas de gente confusa. Taramis estava de
pé nos degraus do palácio, sozinha, com exceção de Constantius, que estava
acariciando o bigode como um grande gato magro que acabara de devorar um
pardal. Mas cinqüenta shemitas, com arcos em suas mãos, estavam posicionados
abaixo deles.
"É onde a guarda da rainha deveria estar, mas
eles foram postos ao pé da escada do palácio, tão confusos quanto o resto de
nós, embora ainda estivessem totalmente armados, apesar da ordem da rainha.
“Taramis falou conosco, então, e nos disse que ela
tinha reconsiderado a proposta feita a ela por Constantius – por que, se ontem
mesmo ela o recusou abertamente defronte toda a corte? –, e que ela tinha
decidido torná-lo seu consorte real. Ela não explicou por que havia trazido os
shemitas para a cidade, de forma tão traiçoeira. Mas ela disse que, como Constantius
já detinha o controle de um corpo de profissionais da guerra, o exército de
Khauran não seria mais necessário, e, portanto, ela estava se desfazendo dele,
e mandou-nos ir tranqüilamente para nossas casas.
"Ora, a obediência à nossa rainha é uma segunda
natureza para nós, mas estávamos mudos e não encontramos palavras para
responder. Desfizemos as fileiras quase antes que soubéssemos o que estávamos
fazendo, como homens em transe.
“Mas, quando a guarda do palácio recebeu ordens para se
desarmar e debandar, o capitão da guarda, Conan, interrompeu o desarmamento.
Homens disseram que ele havia estado de folga na noite anterior, e tinha estado
bebendo. Mas ele parecia bem acordado agora. Ele gritou aos guardas para que ficassem
onde estavam, até receberem uma ordem dele – e, tal é o seu domínio sobre seus
homens, que eles o obedeceram, apesar da rainha. Ele subiu a passos largos os
degraus do palácio, olhou bem para Taramis e então gritou: ‘Esta não é a rainha!
Esta não é Taramis! É algum diabo mascarado!’.
"Então, o inferno irrompeu! Eu não sei
exatamente o que aconteceu. Eu acho que um shemita atacou Conan, e Conan o
matou. No instante seguinte, a praça era um campo de batalha. Os shemitas
caíram sobre os guardas, e as suas lanças e flechas derrubaram muitos soldados
que já haviam se dispersado.
"Alguns de nós agarramos as armas que
conseguimos alcançar, e revidamos. Nós mal sabíamos contra quem estávamos
lutando, mas foi contra Constantius e seus demônios – não contra Taramis, eu
juro! Constantius gritou para seus soldados matarem os traidores. Nós não éramos
traidores!". Desespero e confusão balançaram a voz. A garota murmurou com
pena, não entendendo tudo, mas por solidariedade com o sofrimento do seu amante.
- As pessoas não sabiam que lado tomar. Foi uma
loucura de confusão e perplexidade. Nós, que lutamos, não tivemos chance, sem formação,
sem armaduras e apenas armados pela metade. Os guardas estavam totalmente
armados e formavam um quadrado de batalha, mas havia apenas quinhentos deles.
Eles cobraram um pesado pedágio antes de serem derrubados, mas só poderia haver
uma conclusão para tal batalha. E enquanto seu povo estava sendo massacrado
diante dela, Taramis estava na escadaria do palácio, com o braço de Constantius
ao redor de sua cintura, e ria como um desalmado e belo demônio! Deuses, é tudo
louco, louco!
“Eu nunca vi um homem lutar como Conan lutou. Ele se
colocou de costas para a parede do pátio e, antes que o dominassem, os mortos
estavam espalhados em pilhas ao seu redor, à altura da sua coxa. Mas,
finalmente, eles conseguiram derrubá-lo, arrastando-o para baixo – cem contra um.
Quando eu o vi cair, me arrastei dali, sentindo como se o mundo tivesse estourado
por entre meus próprios dedos. Ouvi Constantius ordenar para seus cães levarem
o capitão da guarda vivo – acariciando o bigode, com aquele sorriso odioso em
seus lábios!”.
Aquele sorriso estava nos lábios de Constantius
naquele exato momento. Ele montava seu cavalo, defronte a um pelotão de seus
shemitas – homens de corpo robusto, com barbas encaracoladas e preto-azuladas,
e narizes em forma de gancho –, enquanto o sol baixo lançava reflexos em seus
capacetes pontiagudos e nas escamas prateadas de seus coletes metálicos. A um
quilômetro e meio atrás, os muros e as torres de Khauran se erguiam das pradarias.
Ao lado da estrada, uma pesada cruz de madeira havia
sido erguida, e sobre esta árvore sombria, estava pendurado um homem, preso ao
lugar por pregos de ferro martelados através de suas mãos e pés. Vestido apenas
com uma tanga, o homem era quase um gigante em estatura, e seus músculos se
destacavam em saliências espessas nos membros e por todo o corpo, que o sol já
há muito tempo havia bronzeado. O suor da agonia brotava em seu rosto e no seu
poderoso peito; mas, debaixo da juba preta e emaranhada que caía sobre sua testa
baixa e larga, seus olhos azuis brilhavam com um fogo inextinguível. O sangue
escorria lentamente das lacerações nas mãos e nos pés.
Constantius o saudou ironicamente.
- Sinto muito, capitão – disse ele –, que eu não possa
ficar para aliviar as suas últimas horas, mas tenho deveres a cumprir na cidade...
não devo manter nossa rainha deliciosa esperando! – Ele riu suavemente. –
Então, deixo-lhe aos seus próprios meios aqui no deserto... e na companhia
dessas belezas! – Ele apontou significativamente para as sombras negras que
varriam o céu incessantemente, em círculos abertos, lá no alto.
"Se não fosse por eles, eu imagino que um bruto
poderoso como você viveria na cruz durante dias. Não alimente ilusões de
resgate, só porque eu estou deixando-o totalmente desprotegido. Eu proclamei
que, quem quer que tire o seu corpo da cruz, seja vivo ou morto, será esfolado
vivo, juntamente com todos os membros da sua família, em praça pública. Estou
tão firmemente estabelecido em Khauran, que meu pedido vale tanto quanto um regimento
de guardas. Não estou deixando nenhum guarda aqui, porque os abutres não se aproximarão
enquanto alguém estiver por perto, e eu não quero que eles se sintam constrangidos.
É também por isso que eu trouxe você para longe da cidade. Estes abutres do
deserto só se aproximam das muralhas a essa distância mínima.
“E assim, valente capitão, adeus! Eu vou me lembrar
de você quando, dentro de uma hora, Taramis estiver em meus braços”.
O sangue começou novamente a fluir das palmas das
mãos furadas, com os punhos cerrados convulsivamente nas cabeças dos pregos.
Nós e cachos de músculos surgiram nos braços enormes, Conan impulsionou a
cabeça para a frente e cuspiu selvagemente no rosto de Constantius. O voivode
riu friamente, limpou a saliva de seu gorjal e fez seu cavalo girar.
- Lembre-se de mim, quando os abutres estiverem
rasgando sua carne viva – ele gritou zombeteiramente. – Os carniceiros do
deserto são uma raça particularmente voraz. Já vi homens pendurados por horas
numa cruz, sem olhos, nem orelhas nem escalpo, antes dos bicos afiados terem
finalmente comido o seu caminho até seus órgãos vitais.
Sem olhar para trás, ele cavalgou em direção à cidade
– uma figura flexível e ereta, brilhando em sua armadura polida, com seus
impassíveis capangas barbudos correndo ao seu lado. Um leve aumento do volume
de pó, na trilha desgastada, marcou sua passagem.
O homem pendurado na cruz era o único toque de vida sensível,
numa paisagem que estava completamente desolada e deserta enquanto chegava a noite.
Khauran, a menos de uma milha de distância, bem poderia estar do outro lado do
mundo, e existindo numa outra época.
Sacudindo o suor de seus olhos, Conan olhou fixamente
para o terreno familiar. Em ambos os lados da cidade, e para além dela,
estiravam-se as campinas férteis, com gado pastando à distância, onde começavam
os campos e plantações de videiras da planície. Os horizontes oeste e norte
eram pontilhados com aldeias, pequenas à distância. A uma distância menor, para
o sudeste, um brilho prateado marcava o curso de um rio, e além desse rio, o
deserto de areia começava abruptamente a se esticar para longe e para longe,
além do horizonte. Conan olhou para aquela imensidão de ermo vazio, brilhando marrom-claro
à luz do sol da tarde, como um falcão preso olha para o céu aberto. A repulsa o
balançou quando ele olhou para as torres reluzentes de Khauran. A cidade o havia
traído – aprisionado-o a circunstâncias que o deixaram pendurado e morrendo
numa cruz de madeira, como uma lebre pregada a uma árvore.
Um desejo vermelho por vingança lhe varreu o
pensamento. Maldições fluíram espasmodicamente dos lábios do homem. Todo o seu
universo se contraiu, focou-se e tornou-se incorporado nas quatro pontas de
ferro que prendiam sua vida e liberdade. Seus grandes músculos tremeram, como
cabos de ferro atados. Com o suor brotando em sua pele empalidecida, ele
procurou ganhar força, para arrancar os pregos da madeira. Foi inútil. Eles tinham
sido fincados profundamente. Em seguida, ele tentou arrancar as mãos para fora
das cabeças dos pregos, e não foi o esfaqueamento de dor, nem a agonia abismal,
que finalmente o fizeram cessar seus esforços, mas a futilidade destes. As cabeças
dos pregos eram largas e grossas; ele não podia passá-las através dos ferimentos.
Uma onda de impotência abalou o gigante, pela primeira vez em sua vida. Ele
prostrou-se, imóvel, a cabeça apoiada no peito, fechando os olhos contra o
brilho doloroso do sol.
Um bater de asas fez com que ele olhasse acima, no
exato momento em que uma sombra de penas desceu do céu. Um bico afiado, visando
seus olhos, cortou seu rosto, e ele sacudiu a cabeça para o lado, fechando os
olhos involuntariamente. Ele gritou, um grito coaxante e desesperado de ameaça,
e os abutres se desviaram e recuaram, assustados com o som. Eles retornaram a circular,
cautelosos, acima de sua cabeça. O sangue escorria na boca de Conan, e ele
lambeu os lábios involuntariamente, cuspindo fora o líquido salgado.
A sede o assaltou brutalmente. Ele tinha bebido muito
vinho na noite anterior, e nenhuma água havia tocado seus lábios desde antes da
batalha na praça, naquela manhã. E assassinato dava sede, esse trabalho suado.
Ele olhou para o rio distante, como um homem no inferno olha, através da grade aberta
de uma prisão demoníaca. Pensou em fontes que jorraram água branca no seu peito,
banhando-lhe até a altura dos seus ombros numa torrente de jade líquido.
Lembrou-se de grandes chifres de cerveja espumante; taças de vinho brilhante,
engolidas descuidadamente ou derramadas pelo chão das tavernas. Ele mordeu o
lábio para não gritar de angústia intolerável, como um animal torturado.
O sol se pôs – uma bola sinistra em um mar ardente cor-de-sangue.
Contra uma muralha escarlate que enfaixava o horizonte, as torres da cidade
flutuavam irreais como um sonho. O próprio céu estava tingido de sangue para
seu olhar embaçado. Ele lambeu os lábios enegrecidos e mirou, com os olhos
injetados de sangue, o rio distante. Ele também parecia vermelho como o sangue,
e as sombras subindo do leste pareciam negras como o ébano.
Em seus ouvidos entorpecidos, soou o bater mais alto
de asas. Erguendo a cabeça, ele observou, com o olhar ardente de um lobo, as
sombras dardejando acima dele. Sabia que seus gritos não iriam mais assustá-los.
Um deles mergulhava cada vez mais. Conan puxou sua cabeça para trás, tanto
quanto pôde, aguardando com uma paciência terrível. O abutre surgiu sobre ele,
com um rápido rugir de asas. Seu bico afiado piscou para baixo, rasgando a pele
do queixo de Conan, enquanto ele virava a cabeça para um lado; então, como um
relâmpago, antes que o pássaro pudesse planar para longe, a cabeça de Conan
avançou impulsionada pelos músculos do pescoço forte, e seus dentes, vorazes
como os de um lobo, se cravaram no pescoço nu e enrugado da ave.
Instantaneamente, o abutre explodiu em berros
histéricos. Suas asas debatendo cegaram momentaneamente o homem, e suas garras
rasgaram seu peito. Mas ele sombriamente não largou, os músculos se
sobressaindo em suas mandíbulas. E os ossos do pescoço da ave carniceira
ficaram triturados entre os poderosos dentes. Com uma última vibração espasmódica,
o pássaro pendurado morreu. Conan o largou, cuspindo sangue de sua boca. Os
outros abutres, aterrorizados pelo destino de seu companheiro, voaram todos para
uma árvore distante, onde ficaram empoleirados como demônios negros em conclave.
Uma sensação de triunfo feroz percorreu o cérebro
entorpecido de Conan. A vida ainda batia forte e selvagemente em suas veias.
Ele ainda podia matar; ele ainda vivia. Cada pontada de sensação, mesmo de
agonia, era uma negação da morte.
- Por Mitra! – Ou uma voz falou, ou ele sofria de
alucinação. – Em toda a minha vida, eu nunca vi uma coisa dessas!
Sacudindo o suor e o sangue de seus olhos, Conan viu
quatro cavaleiros, sentados em seus corcéis no crepúsculo e olhando para ele.
Três eram magros gaviões vestidos em robes brancos – homens tribais zuagires,
nômades vindos do outro lado do rio. O outro estava vestido como eles, em um
branco e cingido khalat, e um
turbante esvoaçante, adornado nas têmporas com faixas de um trançado triplo de
pêlo de camelo, que lhe caíam sobre os ombros. Mas ele não era um shemita. A
poeira no ar não era tão grossa, nem os olhos de falcão de Conan estavam tão
nublados, que ele não pudesse perceber as características faciais do homem.
Ele era tão alto quanto Conan, embora de membros não
tão pesados. Seus ombros eram largos, e sua figura flexível era dura como aço e
ossos de baleia. Uma barba preta e curta não disfarçava completamente a
saliência agressiva de seu queixo magro, e olhos cinzentos, frios e penetrantes
como uma espada, brilhavam por sob a sombra do turbante. Acalmando seu cavalo
inquieto com uma mão rápida e segura, este homem falou:
- Por Mitra, eu conheço este homem!
- Sim! – Era o sotaque gutural de um zuagir. – É o
cimério, que era capitão da guarda da rainha!
- Ela deve estar rejeitando todos os seus velhos
favoritos – resmungou o nômade. – Quem imaginaria tal atitude da Rainha Taramis?
Eu preferiria ter uma longa e sangrenta guerra. Ela teria dado a nós, povo do
deserto, a oportunidade de saquear Khauran. Como é que chegamos tão perto das
muralhas e encontramos apenas este cavalo velho – ele olhou para um belo cavalo
castrado, guiado por um dos nômades – e este cão moribundo?
Conan levantou a cabeça ensangüentada.
- Se eu pudesse descer desta viga, faria de você um
cachorro moribundo, seu ladrão zaporoskano! – ele respondeu asperamente com os
lábios enegrecidos.
- Mitra, o canalha me conhece! – exclamou o outro. – Como,
miserável, você me conhece?
- Há apenas um de sua raça nessas paragens – murmurou
Conan. – Você é Olgerd Vladislav, o chefe foragido.
- Sim! E outrora líder dos kozakis do Rio
Zaporoska, como você já deve ter adivinhado. Você gostaria de viver?
- Só um tolo faria essa pergunta – ofegou Conan.
- Eu sou um homem duro – disse Olgerd –, e resistência
é a única qualidade que respeito em um homem. Julgarei se você é um homem, ou
apenas um cão que, afinal, só serve para ficar aqui e morrer.
- Se o descermos, possa ser que sejamos vistos das
muralhas – objetou um dos nômades.
Olgerd balançou a cabeça:
- O crepúsculo é profundo. Aqui, tome esse machado,
Djebal, e corte a base da cruz.
- Se a cruz cair para a frente, irá esmagá-lo –
objetou Djebal. – Eu posso cortá-la de forma que caia para trás; mas, então, o
choque da queda pode quebrar seu crânio e expelir todas as suas entranhas.
- Se ele for digno de ir comigo, vai sobreviver a
isso – respondeu Olgerd imperturbável. – Se não, então ele não merece viver.
Corte!
No primeiro impacto do machado de batalha contra a
madeira, as vibrações que o acompanharam enviaram lançadas de pura agonia
através dos pés e mãos inchados de Conan. Outra e outra vez, a lâmina caiu
sobre a madeira, com cada golpe reverberando em seu cérebro machucado, colocando
seus nervos torturados para tremer. Mas ele cerrou os dentes e não fez nenhum
som. O machado acabou de cortar, a cruz cambaleou em sua base despedaçada e
caiu para trás. Conan fez de todo o seu corpo um nó sólido de músculos sólidos
como ferro, apoiou a cabeça para trás com força, contra a madeira, e manteve-a
rígida lá. A cruz atingiu o solo pesadamente e ricocheteou de leve. O impacto
rasgou as suas feridas e o atordoou por um instante. Ele lutou contra a maré
corrente de escuridão, náuseas e tontura, mas percebeu que os músculos de
ferro, que embainhavam seus órgãos vitais, o tinham salvado de uma lesão
permanente.
Ele não fez nenhum som, embora o sangue escorresse de
seu nariz, e os músculos de sua barriga tremessem com fortes náuseas. Com um
grunhido de aprovação, Djebal inclinou-se sobre ele com um par de pinças usadas
para soltar pregos de ferradura, e agarrou a cabeça do prego na mão direita de
Conan, rasgando a pele para obter uma melhor pegada sobre a cabeça
profundamente enraizada. As pinças eram pequenas para esse trabalho. Djebal
suou e puxou, xingando e lutando com o ferro teimoso, trabalhando-o para a
frente e para trás – tanto na carne inchada quanto na madeira. O sangue
apareceu, escorrendo sobre os dedos do cimério. Ele estava tão quieto que
poderia estar morto, exceto pelo subir e descer espasmódico de seu grande
peito. O prego cedeu, e Djebal levantou a coisa manchada de sangue com um
grunhido de satisfação. Em seguida, atirou-o para longe e inclinou-se sobre o
outro.
O processo foi repetido e, em seguida, Djebal voltou
sua atenção para os pés espetados de Conan. Mas o cimério, esforçando-se para
uma postura sentada, arrancou o alicate de seus dedos e o fez cambalear para
trás, com um violento empurrão. As mãos de Conan estavam inchadas até quase o
dobro de seu tamanho normal. Seus dedos pareciam polegares deformados, e fechar
suas mãos era uma agonia tal, que trouxe um fluxo de sangue por sob seus dentes
que rangiam. Mas, de alguma forma, apertando as pinças desajeitadamente com
ambas as mãos, ele conseguiu arrancar o primeiro prego, e depois o outro. Eles
não foram enfiados tão profundamente na madeira quanto os outros haviam sido.
Levantou-se com alguma firmeza, e ficou de pé sobre
seus pés inchados e dilacerados, oscilando como um bêbado, o suor gelado lhe
pingando do rosto e do corpo. Cãibras o assaltaram e ele apertou os maxilares contra
a vontade de vomitar.
Olgerd, observando-o de forma impessoal, fez um gesto
em direção ao cavalo roubado. Conan cambaleou em direção a ele, e cada passo
era uma facada, pulsando como o inferno que salpicava seus lábios com uma
espuma sangrenta. Uma disforme mão tateante caiu desajeitadamente na sela, um
pé ensangüentado de alguma forma encontrou o estribo. Rangendo os dentes, ele içou-se,
quase desmaiando no ar, mas, de alguma forma, conseguiu montar na sela; assim
que fez isso, Olgerd atingiu o cavalo bruscamente com seu chicote. O animal
assustado empinou, e o homem na sela balançou e quase despencou como um saco de
areia, quase caindo da sela. Conan havia enrolado uma rédea em cada mão,
segurando-as no lugar com os polegares que apertavam. Entorpecido, fez força
com seus poderosos bíceps, empurrando o cavalo para baixo, o qual relinchou,
pois sua mandíbula quase havia sido deslocada.
Um dos shemitas levantou um cantil de água
interrogativamente.
Olgerd balançou a cabeça:
- Deixe-o esperar até chegarmos ao acampamento. São
apenas 16 quilômetros .
Se ele estiver apto para viver no deserto, vai sobreviver esse tempo sem beber.
O grupo cavalgou como fantasmas rápidos em direção ao
rio; entre eles, Conan balouçava como um bêbado na sela, os olhos injetados de
sangue e vitrificados, com espuma sangrenta secando em seus lábios enegrecidos.
A Seguir: Interlúdio – Os Canibais de Zamboula (sinopse), por
Robert E. Howard