(por Robert E. Howard e Fernando Neeser de Aragão)
1)
Amboola
acordou lentamente, com seus sentidos ainda entorpecidos pelo vinho que bebera
excessivamente na noite anterior. Por um instante confuso, ele não conseguiu se
lembrar onde estava: o luar, atravessando a janela gradeada, brilhava em
arredores pouco conhecidos. Então, ele se lembrou que estava estendido na cela
mais alta da torre, onde a cólera de Tananda, irmã do rei de Kush, o havia
mandado. Não era uma cela comum, pois nem mesmo Tananda ousaria ir tão longe em
sua punição ao comandante dos lanceiros negros, que eram o poder do exército de
Kush. Havia carpetes, tapeçarias, leitos forrados com seda, e jarros de vinho.
Ele se lembrou que havia sido acordado, e se perguntou por quê.
Seu olhar
perambulou para o luar quadrado com barras, que era a janela, e viu algo que o
deixou parcialmente sóbrio e clareou-lhe a visão turva. As grades daquela
janela estavam dobradas, entortadas e torcidas para trás. Deve ter sido o
barulho do dilaceramento delas que o acordara. Mas, o que poderia torcê-las? E
onde estava o que quer que as havia dobrado? De repente, ele ficou totalmente
sóbrio e uma sensação gelada lhe subiu pela espinha. Alguma coisa havia entrado por aquela janela; alguma coisa estava na sala com ele.
Com uma
exclamação baixa, ele se ergueu em seu leito e olhou ao redor; e ele gelou, ao
ver a figura, imóvel como uma estátua, que se erguia junto à cabeceira de sua
cama. O coração de Amboola, que nunca conhecera o medo, sentiu um aperto
gelado. Aquela forma silenciosa e acinzentada não se mexia nem falava:
permanecia lá, no luar sombrio, desfigurada e disforme, com seu contorno além
dos limites da sanidade. Arregalando selvagemente os olhos, Amboola contemplou
uma cabeça de porco com focinho, coberta por cerdas ásperas – mas a coisa
estava ereta, e seus grossos braços peludos terminavam em mãos rudimentares.
Amboola gritou e deu um pulo pra cima – e então, a coisa imóvel se mexeu, com a
velocidade paralisante de um monstro num pesadelo. O negro teve uma visão
desesperada de mandíbulas triturando e espumando, de presas em forma de cinzel
reluzindo ao luar... logo, o luar caiu sobre um vulto negro, esparramado entre
os cobertores salpicados do leito sobre o chão. Uma forma acinzentada e
cambaleante se movia silenciosamente pelo quarto, em direção à janela, cujas
grades quebradas se inclinavam para o alto, em direção às estrelas.
2)
- Tuthmes! – A
voz era insistente; tão insistente quanto o punho que batia na porta de teca do
aposento onde dormia o nobre mais ambicioso de Shumballa. – Tuthmes! Deixe-me
entrar! O demônio está solto em Shumballa!
A porta foi
aberta, e o mensageiro irrompeu sala adentro. Era um homem magro e nervoso,
vestido com um djebber branco; sua
pele era escura e o branco de seus olhos brilhava. Ele foi recebido por
Tuthmes, um homem alto, esguio, de pele escura e com os traços retilíneos de
sua classe social.
- O que está
dizendo, Afari?
Afari fechou a
porta antes de responder. Estava ofegante, como se tivesse corrido muito. Ele
era mais baixo que Tuthmes, e os traços negróides lhe eram mais predominantes.
- Amboola! Ele
está morto! Na Torre Vermelha!
- O quê? –
exclamou Tuthmes. – Tananda ousou executá-lo?
- Não! Não,
não! Ela certamente não seria tão tola. Ele não foi executado, mas assassinado.
Alguma coisa quebrou as grades da sua cela, dilacerou sua garganta, esmagou
suas costelas e quebrou seu crânio. Por Set, eu já vi muitos homens mortos, mas
nenhum tão impiedosamente quanto Amboola! Tuthmes, isso é trabalho de algum demônio!
Sua garganta foi mordida, e as marcas dos dentes não eram como as de um leão ou
um macaco. Parecia que elas foram feitas por cinzéis, tão afiados quanto
navalhas!
- Quando foi
que isso aconteceu?
- Algo em
torno de meia-noite. Os guardas na parte mais baixa da torre, que estavam
vigiando a escada que leva para a cela onde ele estava preso, ouviram-no gritar
e, subindo rapidamente os degraus, arrombaram a cela e o encontraram no chão,
da forma como eu disse. Eu estava dormindo na parte mais baixa da torre, como
você me ordenou, e ao ver aquilo, vim diretamente pra cá, mandando os guardas
não contarem nada a ninguém.
Tuthmes
sorriu, e seu sorriso não era agradável de se ver.
- Deuses e
demônios trabalham para um homem audacioso – ele disse. – Eu não acho que
Tananda fosse tola a ponto de ter assassinado Amboola, embora ela muito desejasse.
Os negros ficaram aborrecidos, depois que ela o jogou na prisão. Ela não
poderia mantê-lo preso por muito mais tempo.
“Mas este
assunto põe uma nova arma em nossas mãos. Se os gallahs pensarem que ela o fez,
tanto melhor. Cada ressentimento contra a dinastia é uma arma para nós. Agora
vá, e aja antes que o rei fique sabendo. Primeiro, leve um destacamento de
lanceiros negros para a Torre Vermelha e execute os guardas por dormirem em serviço. Não esqueça
de deixar claro que você cuidou de fazê-lo sob minhas ordens. Isso irá mostrar
aos gallahs que eu vinguei o comandante deles, além de remover uma arma das
mãos de Tananda. Mate-os, antes que ela o faça.
“Então, vá
para Punt e encontre o velho Ageera, o identificador de bruxas. Não diga a ele
exatamente que Tananda praticou esta ação, mas sugira”.
Afari
estremeceu visivelmente.
- Como pode um
homem comum mentir para aquele demônio negro? Seus olhos são como brasas de
fogo vermelho, que olham para dentro de profundezas inomináveis. Eu já o vi
fazer cadáveres se erguerem e caminharem, e caveiras rangerem suas mandíbulas
nuas.
- Não minta –
respondeu Tuthmes. – Simplesmente insinue para ele suas próprias suspeitas. Afinal
de contas, se um demônio realmente matou Amboola, é porque algum humano o
invocou dentro da noite. Talvez Tananda esteja por trás disso, afinal!
Quando Afari
partiu, refletindo intensamente sobre o que seu patrão dissera, Tuthmes puxou
um manto de seda ao redor dos membros nus e, subindo uma larga e curta escada
de mogno polido, ele chegou ao alto do teto plano de seu palácio.
Olhando por
sobre o parapeito, ele viu lá embaixo as ruas silenciosas da cidade interna de
Shumballa, os palácios, jardins e a grande praça para a qual mil cavaleiros negros
poderiam convergir num instante, vindos dos pátios dos quartéis vizinhos.
Olhando mais
além, ele viu os grandes portões de bronze, e além deles, a cidade externa que
os homens chamavam de Punt, para diferenciá-la de El Shebbeh, a cidade interna.
Shumballa estava localizada no meio de uma grande planície, de capim ondulante,
que se estendia até o horizonte, interrompida apenas por pequenas colinas
ocasionais. Um rio estreito e profundo, que serpenteava pela grama, tocava as
bordas irregulares da cidade. El Shebbeh estava separada de Punt por um muro
alto e maciço, que cercava os palácios da classe dominante, descendente
daqueles stígios que, séculos antes, chegaram ao sul para entalhar um império
negro, e misturar seu orgulhoso sangue com o de seus súditos negros. El Shebbeh
era bem traçada, com ruas e praças regulares, construções de pedra e jardins;
Punt era uma confusão de cabanas de lama, e as ruas se espalhavam em praças que
só eram praças no nome. O povo negro de Kush, os gallahs, habitantes originais
do país, vivia em Punt; ninguém, a não ser a classe dominante, os chagas,
morava em El Shebbeh ,
com exceção de seus criados e dos cavaleiros negros que os serviam como
guardas.
Tuthmes olhou
para a vasta expansão de cabanas. Fogueiras ardiam nas praças irregulares, e
tochas oscilavam pra lá e pra cá nas ruas sinuosas; e, de vez em quando, ele
ouvia um breve trecho de música: um canto bárbaro e monótono, que soava com um
meio-tom de ira e sede de sangue. Tuthmes puxou o manto pra mais perto de si e
tremeu.
Avançando pelo
teto, ele parou diante de uma figura que dormia à sombra de uma palmeira no
jardim artificial. Ao ser cutucado pelo dedão de Tuthmes, este homem acordou e
se ergueu em um pulo.
- Não precisa
falar – avisou Tuthmes. – Está feito. Amboola está morto e, antes do amanhecer,
toda Punt saberá que ele foi assassinado por Tananda.
- E o... o
demônio? – sussurrou o homem, tremendo.
- Shhh! Voltou
para a escuridão de onde foi invocado. Preste atenção, Shubba, é hora de você
partir. Procure entre os shemitas, até encontrar uma mulher adequada, uma
mulher branca. Traga-a imediatamente para cá. Se você voltar nesta lua, lhe
darei seu peso em prata. Se
falhar, pendurarei sua cabeça naquela palmeira.
Shubba se prostrou,
encostando a cabeça na terra. Então, ele se levantou e saiu apressadamente do
telhado. Tuthmes olhou novamente para Punt. As fogueiras, de alguma forma,
ardiam mais ferozmente e um tambor havia começado a tocar de forma monótona e
sinistra. Um súbito clamor de gritos brutais se ergueu até as estrelas.
- Eles já
souberam que Amboola está morto – ele murmurou, e mais uma vez foi sacudido por
um forte estremecimento.
3)
A vida seguia
seu curso habitual nas ruas sujas de Punt. Negros gigantescos se acocoravam nas
entradas de suas cabanas cobertas de palha, ou se deitavam sobre o chão em suas
sombras. Mulheres negras subiam e desciam as ruas, com cabaças de água ou
cestas de comida nas cabeças. As crianças brincavam ou lutavam na poeira, rindo
ou gritando de forma estridente. Nas praças, o povo negro zombava e negociava
sobre cerveja, bananas e ornamentos de latão batido. Ferreiros se curvavam
sobre pequenos carvões em brasa, batendo as lâminas das lanças. O sol quente
ardia em tudo: no suor, na alegria, na raiva, nudez e miséria do povo negro.
De repente,
veio uma mudança no padrão, uma nova nota no timbre. Com um barulho de cascos,
um grupo de cavaleiros passeava – doze homens e uma mulher. Era a mulher quem
dominava o grupo. Sua pele era escura e seu cabelo, uma espessa massa negra
presa na nuca e amarrada por uma faixa dourada. Sua única roupa, além das sandálias
nos pés, era uma curta saia de seda ao redor da cintura. Placas de ouro,
incrustadas de jóias, lhe cobriam parcialmente os seios escuros. Seus traços
eram retilíneos e seus ousados olhos cintilantes, cheios de desafio e
convicção. Ela montava e manobrava seu cavalo, com facilidade e segurança – o
magro cavalo kushita, com o freio enfeitado de jóias, e as rédeas, de couro
escarlate, tão largas quanto a palma de uma mão humana e trabalhadas a ouro –,
e seus pés, calçados em sandálias, dentro dos largos estribos de prata.
Enquanto ela
passeava, o trabalho e as conversas pararam subitamente. Os rostos negros
ficaram sombrios, e os olhos negros ganharam um brilho vermelho. Os negros
viravam suas cabeças para sussurrarem nos ouvidos uns dos outros, e os
sussurros se transformavam num murmúrio sombrio e audível.
O jovem, que
cavalgava ao lado da mulher, ficou nervoso. Ele olhou para a frente, ao longo
da rua sinuosa, medindo a distância até os portões de bronze, que ainda não
estavam à vista por entre as casas de tetos planos, e sussurrou:
- O povo está
ficando perigoso, Tananda. Foi tolice cavalgar em Punt.
- Nem mesmo
todos os cães negros de Kush me impedirão de caçar. – respondeu a mulher – Se
algum deles parecer ameaçador, atropele-o.
- É mais fácil
falar do que fazer. – murmurou o jovem, olhando atentamente para a multidão
silenciosa – Eles estão vindo de suas casas e se aglomerando ao longo da rua...
Olhe pra lá!
Eles estavam
entrando numa larga praça irregular, onde o povo negro se aglomerava. Em um
lado desta praça, se erguia uma casa de lama, com vigas toscamente entalhadas,
maior que suas vizinhas, e com um cacho de caveiras sobre a porta larga. Este
era o Templo de Jullah, o deus a quem o povo negro cultuava em oposição a Set,
o Deus-Serpente cultuado pelos chagas em imitação a seus ancestrais stígios. Os
negros estavam apinhados nesta praça, olhando sombriamente para os cavaleiros.
Havia uma clara ameaça na atitude deles, e Tananda, pela primeira vez sentindo
um leve nervosismo, não percebeu outro cavaleiro se aproximar da praça através
de outra rua. Este cavaleiro chamaria a atenção em circunstâncias normais, pois
não era chaga nem gallah, mas um homem branco, uma figura poderosa usando
cota-de-malha e capacete, com um manto escarlate cujas dobras batiam-lhe ao
redor do corpo.
- Estes cães
negros têm más intenções – sussurrou o jovem ao lado de Tananda, meio
desembainhando sua espada curva.
Os outros
guardas, homens negros como o povo ao redor deles, formaram um círculo mais
próximo dela, mas não puxaram suas lâminas. Um murmúrio baixo e sombrio ficou
mais alto, embora nenhum movimento tenha sido feito.
- Cavalgue no
meio deles – ordenou Tananda, conduzindo seu cavalo para a frente.
Os negros
viraram as costas sombriamente, antes dela avançar; e subitamente, da casa do
demônio, saiu uma figura magra e negra. Era o velho Ageera, vestido apenas com
uma tanga. Apontando o dedo para Tananda, ele gritou:
- Lá está ela,
cavalgando: ela, cujas mãos estão mergulhadas em sangue! Aquela que assassinou
Amboola!
Seu grito foi
a faísca que causou a explosão. Um enorme rugido se ergueu da turba, e eles
rolaram para a frente, gritando “Morte a Tananda!”. Num instante, uma centena
de mãos negras estava arranhando as pernas dos cavaleiros. O jovem colocou seu
cavalo entre Tananda e a turba, mas uma pedra, arremessada por uma mão negra,
arrebentou-lhe o crânio. Os guardas, retalhando e cortando, foram violentamente
arrancados de seus cavalos e espancados, pisados e apunhalados até a morte.
Tananda, atacada por todos os lados e finalmente aterrorizada, gritou enquanto
seu cavalo empinava. Um grupo de selvagens figuras negras – homens e mulheres –
estava agarrando-a.
Um gigante
agarrou-lhe a coxa e arrancou a mulher da sela, colocando-a nas mãos furiosas
que a esperavam ansiosamente. Sua saia foi arrancada do corpo e voou acima
dela, enquanto um berro de risada primitiva se erguia da multidão. Uma mulher
cuspiu-lhe no rosto e arrancou-lhe as placas do peito, arranhando seus seios
com as unhas enegrecidas. Uma pedra, atirada nela, arranhou sua cabeça. Ela
gritou, num medo frenético; um grupo de mãos brutais estava puxando-a
violentamente, ameaçando desmembrá-la. Ela viu uma pedra segura por uma mão
negra, enquanto o dono tentava alcançá-la na multidão para arrebentar-lhe os
miolos. Punhais reluziam. Somente a embaraçadora quantidade de pessoas daquela
massa esmagadora os impediu de matá-la instantaneamente.
- Para a casa
do demônio! – rugiu uma voz, respondida por um clamor, e Tananda se sentiu meio
carregada, meio arrastada pela turba em movimento, agarrada pelo cabelo,
braços, pernas e por onde quer que uma mão negra pudesse pegar.
Golpes
dirigidos a ela na multidão foram detidos ou desviados pela massa. E então,
veio um impacto sob o qual toda a multidão cambaleou, enquanto um cavaleiro num
poderoso corcel se movia violentamente para dentro da turba.
Homens caíram,
com gritos agudos, para serem pisados por cascos esmagadores; Tanada teve um
vislumbre atordoado de uma figura se erguendo acima da multidão, de um escuro
rosto cicatrizado sob um elmo de aço, de um manto escarlate desfraldando-se de
poderosos ombros cobertos por cota-de-malha, e uma grande espada subindo e descendo,
salpicando borrifos escarlates. Mas, de algum lugar da turba, uma lança golpeou
para o alto, estripando o cavalo. Este relinchou, cambaleou e caiu, mas o
cavaleiro caiu de pé, golpeando à esquerda e à direita. Lanças e punhais
atirados a esmo resvalaram-lhe no capacete, ou no escudo em seu braço esquerdo,
enquanto sua larga espada fendia carne e ossos, espalhava miolos e derramava
entranhas na poeira sangrenta.
Carne e ossos
não conseguiam lhe opor resistência. Deixando um espaço livre, ele parou, alcançou
a aterrorizada garota e, cobrindo-a com o escudo, recuou, abrindo caminho
impiedosamente. Ele retrocedeu para o canto de uma parede e, colocando a jovem
atrás, ficou à sua frente, espumando e gritando num ataque furioso.
Então, houve
um barulho de cascos, e um regimento de guardas adentrou a praça, rechaçando os
manifestantes à frente deles. O capitão se aproximou: um enorme negro,
resplandecente em seda vermelha e armadura trabalhada a ouro.
- Você demorou
a chegar – disse Tananda, que havia se levantado e readquirido muito de seu
porte.
O capitão
ficou pálido, mas antes que pudesse voltar, Tananda havia feito um sinal que
foi percebido pelos homens dele, atrás. Um deles agarrou sua lança com ambas as
mãos e dirigiu-a entre os ombros do capitão, com tal força que a ponta lhe saiu
pelo peito. O capitão caiu de joelhos, e as estocadas de meia-dúzia de outras
lanças completaram o trabalho.
Tananda jogou
para trás o longo e desalinhado cabelo negro, e encarou Conan. Ela sangrava de
vários arranhões em seus seios e coxas; suas madeixas caíam, desarrumadas, por
suas costas, e ela estava tão nua quanto no dia em que nascera. Mas ela olhava
para ele sem hesitação e sem se deixar perturbar, e ele devolveu-lhe o olhar,
em sincera admiração à sua frieza e à perfeição de seus membros marrons.
- Quem é você?
– ela indagou.
- Conan, um
cimério. – ele respondeu.
- O que está
fazendo em Shumballa?
- Vim para cá
em busca de dinheiro. Eu era anteriormente um corsário.
- Ah! – Um
novo interesse brilhou nos olhos escuros dela; ela juntou os cabelos atrás com
as mãos – Nós ouvíamos histórias sobre você, a quem os homens chamam de Amra, o
Leão. Mas, se não é mais um corsário, o que você é agora?
- Um viajante
sem dinheiro.
Ela sacudiu a
cabeça:
- Não, por
Set! Você agora é capitão da guarda real.
Ele olhou
casualmente para a figura estendida, vestida de seda e aço, e a visão não
alterou o prazer de seu súbito sorriso.
Pouco depois,
ele conteve uma rebelião de negros, e passou a ser muito estimado pelo rei.
4)
Shubba retornou
a Shumballa e, se dirigindo aos aposentos de Tuthmes onde peles de leopardo
cobriam o piso de mármore, ele disse:
- Encontrei a
mulher que você desejava. Uma garota nemédia, capturada de um navio comercial
de Argos. Eu paguei, ao shemita vendedor de escravos, muitas peças gordas de
ouro.
- Deixe-me
vê-la – ordenou Tuthmes, e Shubba saiu da sala e retornou um instante depois,
trazendo uma garota pelo pulso. Ela era delicada, e sua pele branca quase ofuscante,
em contraste com os corpos marrons e negros aos quais Tuthmes estava acostumado.
O cabelo dela caía como uma onda fluvial cacheada, de mechas douradas, sobre os
ombros brancos. Ela estava vestida apenas com uma roupa esfarrapada. Shubba removeu-a,
deixando a moça encolhida em completa nudez.
Tuthmes acenou
a cabeça de forma impessoal.
- Ela é uma
bela mercadoria. Se eu não estivesse apostando por um trono, eu talvez cedesse
à tentação de guardá-la comigo mesmo. Você ensinou a ela o idioma Kushita, como
mandei?
- Sim; na
cidade dos shemitas e, nos últimos dias, na estrada da caravana. E infundi nela
a necessidade de aprender através de chineladas, à moda shemita. Seu nome é Diana.
Tuthmes
sentou-se num leito e gesticulou para que a garota se sentasse de pernas
cruzadas, aos pés dele, e ela o fez.
- Vou lhe dar
de presente ao rei de Kush – disse ele. – Você será nominalmente a escrava
dele, mas na verdade pertencerá a mim. Você receberá suas ordens regularmente,
e não deixará de cumpri-las. O rei é degenerado, indolente e desregrado. Não
será difícil para você alcançar total domínio sobre ele. Mas, para que você não
possa ser tentada a desobedecer, quando se imaginar além do meu alcance no
palácio do rei, vou lhe demonstrar meu poder.
Ele pegou-a
pela mão e a levou através de um corredor, descendo um lance de escadas com
degraus de pedra e adentrando uma sala longa e pouco iluminada. A sala estava
dividida em duas partes iguais por uma parede de cristal, transparente como
água, embora com uns 90
centímetros de espessura e forte o bastante para
resistir ao impacto de um elefante macho. Ele levou-a a esta parede, e a fez
ficar de pé, olhando-a, enquanto ele dava um passo para trás. De repente, a luz
se apagou.
Ela ficou ali,
na escuridão, com os membros esguios tremendo com um pânico irracional; então,
a luz começou a pairar na escuridão. Ela viu uma hedionda cabeça disforme
brotar das trevas; viu um focinho bestial, dentes em forma de cinzel, pêlos ásperos...
Quando aquele horror se moveu em sua direção, ela gritou, se virou e correu, desvairada
de medo e esquecida da camada de vidro que mantinha a fera afastada dela. Ela
correu direto para os braços de Tuthmes na escuridão, e o ouviu sussurrar-lhe
no ouvido:
- Você viu meu
criado; não me falhe, pois se você o fizer, ele irá procurá-la onde quer que
esteja, e você não conseguirá se esconder dele.
E, quando ele
sussurrou mais alguma coisa em seu ouvido, ela imediatamente desmaiou.
Tuthmes
carregou-a escada acima e deixou-a nas mãos de uma criada negra, com instruções
para reanimá-la, cuidar para que ela tivesse comida e vinho, fosse banhada,
penteada, perfumada e vestida para ser apresentada ao rei.
5)
Enquanto era
levada, através de corredores com portas de ébano, à presença do Rei Ra-Khamani
de Kush e sua irmã Tananda, Diana se lembrava de um dia, que parecia ter sido
muito tempo antes, quando, após a dor de perder o marido, um par de mãos rudes
lhe havia rasgado as outras roupas que vestia, e ela chorara de medo e vergonha.
Agora, parecia estranho que um episódio daqueles tivesse sido motivo de tanta
desgraça – afinal de contas, a magnitude da dor, do ultraje e da indignidade
que a nemédia sentira era apenas relativa, como tudo o mais.
Ra-Khamani
tinha a aparência do homem degenerado, indolente e desregrado que Tuthmes
descrevera a Diana. Embora agigantado, era gordo devido à sua indolência; mas
seus olhos de tição, a brilharem de desejo à visão daquela exuberante beldade
de pele branca e cabeleira dourada, tinham uma vitalidade que não parecia
condizer com sua aparência preguiçosa, além de um brilho que não era de todo
sadio. Ra-Khamani era um rei pouco respeitado. Ele tinha medo de conflitos e
discórdias, o que o fazia tolerar situações ao invés de se comprometer na
solução ativa de problemas. Era cruel com os gallahs e sua irmã o dominava
completamente, governando Kush através dele. Sobre sua cabeça raspada, ele
usava uma coroa de estilo stígio e um enfeite em forma de caveira. Sua roupa
consistia num saiote de linho branco, com acabamento dourado; um manto de seda
e sandálias. E sua coroa havia sido ganha depois que Tananda lhe envenenara o
irmão, o Rei Hotep, ao qual ela não conseguia controlar.
Tananda, por
sua vez, estava novamente com a espessa cabeleira negra presa à nuca e amarrada
com faixa dourada; as sandálias douradas nos pés, a curta saia de seda ao redor
da cintura, e as placas de ouro com jóias lhe cobrindo os seios grandes e
firmes. Ao contrário do olhar de desejo e cobiça do irmão, a princesa de Kush
fitava a loira com desconfiança. Diana ficou constrangida e estremeceu de medo.
Tananda era desdenhosa com quem estivesse socialmente abaixo dela, julgava os
outros através dos critérios dela própria, era levemente paranóica e não
confiava em ninguém.
Ao lado de
ambos os tronos, havia leopardos acorrentados por coleiras em seus pescoços;
formavam um sinistro par de guardas, com seus rabos a balançarem lentamente e
os olhos desinteressados vagueando preguiçosamente na direção de Diana. Diante
dos tronos, o conselheiro fez uma profunda reverência ao rei e disse:
- Majestade,
esta jovem escrava de pele branca e cabelos dourados, a partir de hoje,
pertence a Vossa Alteza. Ela é um presente de lorde Tuthmes.
- Leve-a para
meu serralho – Ra-Khamani disse brevemente, com um sorriso libidinoso nos
lábios.
Horas depois, Diana
acordou percebendo que havia alguém acordado e se esgueirando no harém onde
dormia, mas, na total escuridão daquela enorme sala perfumada, ela não
conseguia ver ninguém. Mas a mulher de passos furtivos conseguia enxergar como
um gato no escuro. Diana sentiu uma mão lhe estalar subitamente na boca e, ao
erguer instintivamente as mãos para se desviar daquele ataque, seus pulsos
foram presos um ao outro.
- Fique
quieta, cadela branca – sibilou uma voz feminina no escuro – Se gritar, morre.
A mão foi
tirada de seus lábios, e Diana sentiu as próprias mãos serem amarradas; em
seguida, uma mordaça lhe foi colocada na boca.
Logo, sombras
criaram vida, revelando serem homens negros com as feições murchas de mudos.
Quando seus dedos agarraram a pele dela, Diana desmaiou pela segunda vez em sua
vida.
*
* *
Tuthmes
passeava pelas ruas noturnas de El Shebbeh, pensando em seus próximos passos.
Ele já havia usado a criatura para matar inimigos políticos do rei e da
princesa – e acusá-los pelos assassinatos, a fim de conseguir o apoio de Ageera
e dos gallahs. Agora, o chaga se dirigia a Punt, onde pretendia conversar
secretamente com o farejador de bruxas, quando, chegando próximo às muralhas,
se deparou com uma figura magra e negra, vestida com uma simples tanga e
acompanhada por dois gigantescos guerreiros musculosos, da mesma cor e com a
mesma veste sumária. Era o velho Ageera, com um sinistro sorriso de múmia no
rosto enrugado.
- Jullah, o
verdadeiro deus de Kush, me revelou a verdade – disse Ageera; e apontou um dedo
acusador para Tuthmes, acrescentando: – Você foi o mandante do assassinato do Comandante
Amboola, cão de pele marrom!
Sem perder
tempo tentando entender como aquele homem adentrou a cidade interna, e
frustrado em ver que um de seus planos fracassou, Tuthmes deu um pulo para trás
e desembainhou a espada, quando os dois enormes guerreiros a acompanharem
Ageera investiram em sua direção. Antes que os gigantes de ébano pudessem ferir
o nobre chaga, este gritou pelos guardas. A resposta foi automática e os dois
negros altos caíram com lanças arremessadas nas costas.
Enquanto um
grupo de esbaforidos soldados negros corria até Tuthmes, este agarrava Ageera
pelo pulso e lhe apertava o pescoço, cuspindo-lhe no rosto.
- Está tudo
bem, Lorde Tuthmes? – perguntou um dos kushitas, enquanto arrancava a lança de
um dos mortos.
- Está –
respondeu o nobre – Só não posso dizer o mesmo deste cão caluniador, ao qual
terei prazer em
torturar... Levem-no até minha casa! – ordenou o chaga.
*
* *
Foi com os
pulsos amarrados acima da própria cabeça a uma viga no teto, que Diana
recuperou a consciência. Ela olhou atordoada ao redor, e logo, com uma
exclamação baixa, a hiboriana arregalou desvairadamente os olhos ao redor, em
busca de sua captora. A nemédia se encolheu ao vê-la de pé sobre ela, vestida
apenas com dois véus presos à cintura, usando braceletes de prata e
tornozeleiras de ouro; a cabeleira negra estava solta como uma cascata de ébano
sobre as costas nuas, e os escuros olhos furiosos queimavam dentro da alma da
jovem branca.
- Princesa
Tananda?! – exclamou a nemédia.
- Sim, cadela
branca! – respondeu a irmã do rei; naquele momento, a loira percebeu que
Tananda segurava um chicote de couro na mão. – Sei que Tuthmes lhe enviou como
presente ao meu irmão, porque ele trama contra mim. Exijo que me conte todos os
detalhes do que aquele cão conspira, se não quiser sangrar até morrer sob meu
chicote!
- E-eu não sei
do que você está falando! – gaguejou a hiboriana, trêmula e aterrorizada ao se
lembrar das ameaças nada vãs de Tuthmes.
- Ah, você
sabe sim, sua vadia de cabelos amarelos! – disse Tananda, mal contendo seu ódio.
– E você vai ter que me contar, nem que seja em carne viva!
Então, com os
olhos negros a cintilarem de fúria, a princesa rasgou, de um só golpe, o curto vestido
luxuoso da jovem loira; recuou um passo, ergueu o chicote e o desceu com
violência nas costas de Diana. A primeira chibatada estalou nas costas da
nemédia, abrindo um vergão vermelho nas mesmas. A hiboriana gritou. Duas, três,
quatro chibatadas. Tananda começou a suar. A loira apertava os dentes por causa
da dor. Mas qualquer dor física era, para Diana, menos terrível que o horror
que Tuthmes lhe mostrara – e que quase a enlouquecera, fazendo-a desmaiar,
quando vira aquela criatura diabólica.
Cinco
chibatadas. Seis. Sete. A cabeça suada da nemédia semi-desmaiada ficou
pendurada, o suor lhe escorrendo pelo rosto e cabelo; e o sangue pelas costas,
nádegas e parte posterior das coxas.
- Conte-me o
que Tuthmes trama contra mim! – exigiu a princesa de Kush. – Quero saber os
detalhes do plano daquele cão!
- Não sei...
de plano... nenhum! – balbuciou Diana.
Com os
desnudos e volumosos seios firmes subindo e descendo enquanto ofegava, e a pele
marrom suada, a irmã do rei pareceria a encarnação da paixão e desejo, se não
fosse o ódio a lhe brilhar nos olhos e a lhe contorcer o belo rosto.
- Largue-a,
Tananda! – gritou uma voz em tom de comando.
Antes de dar
meia-volta, ultrajada, a princesa havia reconhecido a voz que falava o Kushita
com um sotaque inconfundível.
Diante dela se
erguia um homem alto, de físico avantajado, vestido com armadura negra de malha
metálica, longas botas polidas e um elmo de aço escuro muito brilhante,
decorado com chifres de touro. A longa capa escarlate lhe descia dos ombros
protegidos pela armadura. Um cinturão largo, de couro cru, com uma enorme
fivela dourada, prendia a bainha da espada em seu quadril. Debaixo do elmo
aesir, a cabeleira negra, em corte reto, contrastava com os vulcânicos olhos
azuis, e estes com o rosto moreno e cicatrizado do capitão da guarda real.
Naquele rosto barbeado, havia algo da melancolia das montanhas escuras e,
sobretudo, da de um grande amor recém-perdido às margens do Rio Zarkheba, ao
sul – apesar do êxtase que aquele homem sentia nos braços da princesa, à qual
ele dava prazer no leito.
- Capitão
Conan! – exclamou a princesa de Kush – O que diabos veio fazer aqui?
- Por Crom, já
salvei duas vezes a nobreza chaga da ira dos gallahs... Mas torturar o filho do
velho bruxo Ageera, com uma multidão de negros aqui em El Shebbeh e os portões
abertos, como você planeja, me parece loucura... Eu talvez não consiga dar conta!
– ele alertou, apesar do desdém que Tananda sentia pela população negra. – A propósito
– prosseguiu Conan, se voltando para a loira que estava amarrada pelos pulsos
–, Ra-Khamani me contou que Tuthmes lhes mandou esta escrava nemédia... Mas, como
ele não sabia do paradeiro da jovem, deduzi que ela estivesse com você – ele
concluiu, sem disfarçar o grande interesse que a jovem loira lhe despertara ao
vê-la.
A dedução de
Conan era mais do que correta, pois ele sabia que o Rei de Kush tinha medo de
conflitos e discórdias, o que fazia Ra-Khamani tolerar certas situações e fazer
coisas pelos outros, só porque queria ser querido. O rei errava no lado da
benevolência em quase todas as situações, exceto no que dizia respeito aos
negros, pois temia perder o apoio dos chagas caso fosse bondoso com o povo
gallah. Ra-Khamani quase não tinha força de vontade para dizer “não” a alguém
de quem quisesse ser amigo – e Tananda tirava proveito disso em vantagem
própria.
- Já reforcei
a guarda contra a ralé negra! – exclamou a princesa. – Agora, suma daqui, e me
deixe cuidar desta cadela branca!
- De jeito
nenhum – respondeu calmamente o cimério. – Esta jovem está amedrontada demais
para contar qualquer coisa. De qualquer modo, princesa, estarei lá hoje à noite,
na Praça de Set, para vigiar os negros.
- O que pensa
que está fazendo, seu cão branco? – Tananda gritou, furiosa. – Largue esta
vadia branca, senão eu te mato!!
- Me matar? –
riu Conan. – Quem vai lhe proteger da fúria dos negros na praça, se eu morrer?
– ele acrescentou, gargalhando da princesa, enquanto desamarrava e tomava Diana
nos braços, cobrindo-a com o manto escarlate que usava.
Com um sorriso
lupino e bárbaro – um sorriso de corsário, a evocar cintilações de tesouros e
areias de praias perdidas em mares remotos –, e carregando Diana nos bronzeados
braços musculosos, ele se afastou a passos largos daquele recinto, ainda gargalhando
indiferente às ameaças cuspidas pela Princesa Tananda. Então, saindo do Palácio
Real, Conan foi para casa.
A princesa
orgulhosa, por sua vez, que nos últimos poucos minutos se sentira ultrajada pela
primeira vez em sua vida, girou como uma pantera furiosa e saiu daquele recinto
com uma fúria meditativa, a qual prometia poucos benefícios a quem lidasse com
ela.
Enquanto
percorria as ruas ensolaradas de Shumballa, carregando a forma branca e trêmula
– porém viva e aliviada – de Diana para sua casa, o cimério foi avistado por um
homem magro e alto, de cabeça raspada e lábios meio grossos, mas com o nariz
afilado e aquilino de um stígio, e vestido em longas roupas de seda. Era
Khufre, um autoconfiante aventureiro pardo de Kordafan, o qual servia a
Tuthmes, e que, através das ordens do lorde chaga, havia mandado a criatura
monstruosa – última sobrevivente de uma era esquecida – matar Amboola na Torre
Vermelha.
Apressando
seus passos, Khufre se dirigiu à casa de Lorde Tuthmes, para lhe contar o que
vira.
*
* *
- Mestre –
disse Khufre a Tuthmes –; é melhor mandarmos nosso monstro para acabar com
Conan. Do contrário, você nunca conseguirá depor o rei de Kush.
Tuthmes
dirigiu um olhar interrogativo àquele kordafano de modos diretos no falar e
agir:
- Mas por que,
Khufre?
- Eu vi o
capitão branco sair do Palácio Real com Diana nos braços. Se a criatura não der
cabo dele...
- Eu sei –
completou o nobre chaga. – Diana certamente contará tudo o que sabe a Conan, e
ele notificará o rei e a princesa. Por Set, seria o fim dos nossos planos – ele
acrescentou, engolindo em seco, e, em seguida, se recompôs, falando em tom de comando:
– Khufre, mande a criatura trazida da sua Kordafan natal dar cabo do bárbaro
branco. O destino de Diana, ela mesma saberá, depois que Conan for morto, pois
eu avisei àquela cadela branca... – ele concluiu, com um sorriso diabólico.
Sem perder
tempo, o kordafano se apressou para cumprir as ordens de Tuthmes. Mas antes, o
chaga acrescentou, num sorriso mais alegre:
- Quando eu
for o rei de Kush, você será meu conselheiro-chefe, meu amigo!
6)
- Tudo começou quando meu marido, um rico mercador nemédio, foi enviado, pelo rei da Nemédia, à corte real de Messantia, em Argos – disse Diana a Conan, já na casa deste. – De lá, o Rei Pontius de Argos nos enviou num navio mercante em direção a Zingara, onde integraríamos uma missão diplomática ao rei daquele país. Mas meu esposo, que era o capitão, resolveu sair do curso e se dirigiu ao sul, para comercializar alguns artigos argoseanos na costa de Shem, antes de irmos para Zingara. Quando desembarcamos, porém, um comerciante de escravos naquela costa conseguiu, sabe Mitra como, colocar todo o exército shemita ali presente contra nós, afirmando que éramos uma ameaça. Meu marido e toda a tripulação foram exterminados pelos imbatíveis arqueiros de Shem, antes que conseguíssemos içar âncora e zarpar, mas eu não tive a mesma sorte. Enquanto o navio era saqueado, fui escravizada por aquele comerciante shemita, o qual me vendeu a Shubba, servo de Tuthmes. Tuthmes, por sua vez, me deu de presente ao Rei Ra-Khamani... e foi quando conheci você.
Enquanto estava
falando, Diana observou atentamente o bárbaro à sua frente, o qual lhe passava
anti-sépticos e ungüentos na leitosa pele ferida. Definitivamente, era o homem
mais impressionante que ela já havia visto. Era de uma raça desconhecida para
ela, só ouvida em histórias aterradoras de destruição e morte, de ataques à
noite com ferro e fogo, as quais a hiboriana ouvira mercenários e eruditos de
sua terra natal contarem ao seu pai. Mas aquele cimério à sua frente tinha uma
presença impactante, mas não grotesca ou sanguinária. Não obstante, transmitia
uma primitiva e, ao mesmo tempo, emocionante sensação de perigo, de batalha, de
rapina e selvageria. Ainda que os calmos olhos azuis deixassem transparecer uma
segurança para a garota, seus movimentos bruscos e felinos a deixavam tensa,
como que em guarda, como um cervo que abaixa a cabeça para beber da água do
riacho e, subitamente, a levanta pressentindo o leopardo que espreita entre as
moitas.
Por um
momento, os olhos do bárbaro branco foram nublados por algo que Diana
interpretou como uma expressão de pena. Mas, após curar os ferimentos da
nemédia, tudo o que o cimério conseguia ver diante de si eram aqueles seios
alvos e redondos, de mamilos rosados, e o enlouquecedor corpo nu da bela
hiboriana. Ele parou de raciocinar, e instintos mais antigos que a humanidade
tomaram conta do corpo dele, submergindo a entidade consciente que era Conan,
da tribo ciméria do Grande Lago.
Ele arfou de
desejo ao apertá-la nos braços, encostando aquela linda forma nua contra seu
musculoso tronco, agora despido da cota-de-malha. Uma de suas mãos deslizou
ansiosa sobre os contornos generosos dos quadris palpitantes de Diana. Seus
dedos amassaram um belo punhado de carne firme e macia – felizmente, uma das
partes não-açoitadas das nádegas da loira. Por um instante, ela se sobressaltou
e debateu, recuando a cabeça dourada enquanto o medo lhe crescia nos lindos
olhos. Então, quando Conan lhe encontrou, com a boca, os lábios entreabertos, e
suas mãos a procuraram e ficaram ainda mais insistentes, os olhos da nemédia
brilharam com uma expressão também mais antiga que a humanidade. Os braços da
hiboriana pararam de forçar o cimério para trás, e ela, pela primeira vez
excitada em meses, abraçou convulsivamente o bárbaro.
Pegando a
outra mão de Conan, Diana a colocou entre os seios que subiam e desciam
enquanto o peito da hiboriana arfava, pressionando-a fortemente e tremendo de êxtase.
Um gemido baixo de deliciosa tortura irrompeu dos lábios vermelhos da loira,
meio sufocada pelos beijos ardentes do cimério em seus olhos, bochechas,
lábios, pescoço e seios.
Arrebatado por
uma onda irresistível de paixão, Conan a deitou em sua cama. O tempo e o
pensamento consciente já haviam cessado para ambos, afogados numa onda
elementar que se erguia várias e várias vezes sobre eles, até terminarem
deitados no leito, arfando e gemendo nos braços um do outro.
Embora Tananda
fosse bela e sensual, ela não tinha a mesma beleza delicada da ex-escrava
branca. A preferência de Conan sempre fora mais por mulheres como Diana do que
como a princesa.
Após algum
tempo – e mais uma relação sexual –, o sol já havia se posto e o satisfeito
cimério começou a se vestir para ir à praça principal de Shumballa, onde
montaria guarda. Já havia vestido a parte superior de sua cota-de-malha,
calçado as botas, posto seu elmo com chifres de touro e afivelado o cinto da
espada para prender a tanga de pele, quando sentiu, subitamente, um arrepio
gelado nos pêlos da parte posterior do pescoço. Conan automaticamente percebeu
que ele e Diana não estavam sós no quarto, e desembainhou a espada. Então, ele
viu algo disforme na penumbra do anoitecer: um focinho bestial, dentes em forma
de cinzel, pêlos ásperos – uma coisa
que, embora ereta, era hedionda e disforme, com braços peludos que terminavam
em mãos rudimentares. Diana soltou um guincho histérico de puro terror, ao
reconhecer a criatura.
Enquanto isso,
na Grande Praça de Set, na cidade interna de El Shebbeh, havia regimentos de
lanceiros negros formando um quadrado. O fogo iluminava as esquinas do lugar, e
sua luz dourada refletia-se nos escudos ovalados de pele de elefante, nas lâminas
de aço das lanças e nas penas de avestruz de seus enfeites. Os olhos dos homens
cintilavam, e suas brancas dentaduras faiscavam em seus rostos escuros. No
centro do quadrado formado pelas tropas, um feiticeiro estava sendo esfolado
vivo e se contorcia diante das facas esfoladoras de seus executores, enquanto
uma multidão observava, fazia gracejos, guinchava e escarnecia. Grandes fogos
brilhavam no local e silhuetas de homens, curiosamente destacadas, iam e
vinham. Estavam se ocupando ao redor da figura no centro da praça. Era o jovem
Agara, filho de Ageera. Aquele jovem feiticeiro havia incitado os gallahs numa
segunda rebelião contra os chagas, pouco depois de Conan ter salvado a vida de
Tananda. Encontrado no Templo de Jullah, onde seu pai trabalhava, o jovem bruxo
estava agora sendo executado lenta e dolorosamente, para deleite dos chagas e
crescente ódio dos gallahs ali presentes.
Além do poste,
de um lado do quadrilátero, erguiam-se dois tronos sobre um estrado, ao qual se
chegava subindo alguns degraus. Naqueles dois tronos, estavam sentados o Rei
Ra-Khamani de Kush, e sua irmã Tananda.
Ao mesmo
tempo, Conan, atacado em sua casa pelo monstro, colocou-se entre a criatura e
Diana; mas a coisa já estava sobre o cimério com velocidade assustadora e,
antes que ele pudesse girar sua espada, suas garras disformes já haviam
arrebentado, num só golpe, o elmo aesir que Conan há muito usava e lhe
envolviam o pescoço, o asfixiando e estrangulando. Quase encostado em seu
rosto, estava aquele semblante bestial, disforme e medonho. Suas narinas foram
preenchidas por um fedor animal.
Aquela criatura, que se assemelhava a um
gorila disforme de algum fosso infernal, aproximava lenta e inexoravelmente suas
presas amarelas e pontiagudas da cabeça do bárbaro branco, com o focinho aberto
a ponto de abocanhar e estraçalhar o crânio do cimério, como uma raposa faria
com o ovo de uma galinha.
O cimério suava,
arfava e agonizava no aperto daquelas garras em seu poderoso pescoço. Sabia que
apenas a estrutura maciça de seus músculos havia impedido sua morte imediata;
mas o monstro tinha a força de um elefante enlouquecido, e a escuridão começava
a nublar a visão de Conan.
Diana gritava,
histérica, enlouquecida pela dantesca visão do demônio que lhe assombrava os
pensamentos, massacrando e esmagando o seu bárbaro protetor.
Mas seus gritos
trouxeram Conan de volta à sua desesperadora situação.
Pegando um dos
pulsos peludos, Conan conseguiu mover o cabo de sua espada e, com todos os
membros trêmulos, feriu-o mortalmente com uma estocada no coração. A criatura
caiu para trás. Desesperada, Diana abraçou o cimério.
- Oh, Conan! –
ofegou a nemédia aos prantos. – Tuthmes me ameaçou com esta criatura, e ainda me
sussurrou que esta coisa me
violentaria antes de me matar, se eu traísse aquele cão de pele marrom.
De repente,
Conan viu que a criatura, apesar de estar com o coração sangrando, se erguia
cambaleante e saía da casa. Erguendo e carregando a seminua Diana nos braços –
pois a loira só havia tido tempo de enrolar o manto do bárbaro branco ao redor
da cintura, e o cimério não pretendia deixar a hiboriana sozinha em casa –,
Conan perseguiu o monstro até a praça, onde ele correu até seu senhor, Khufre, e
caiu morto. A multidão frenética, finalmente vendo quem havia mandado o monstro
matar Amboola, agarrou o kordafano pelo tronco, braços, pernas e pescoço.
Então, os negros de Punt, que formavam aquela multidão, pegaram qualquer objeto
que lhes servisse como arma e os usaram contra o mandante do monstro
recém-morto.
Ao verem
Khufre ser agarrado e despedaçado pelos furiosos gallahs, Ra-Khamani e Tananda
deram ordens para que a multidão fosse detida, enquanto Tuthmes, Shubba e Afari
tentavam, em vão, deter os negros puros, os quais esquartejavam vivo o
kordafano com as próprias mãos e armas improvisadas. O rei de Kush até disparou
algumas de suas flechas – certeiras, porém ineficazes contra tantos gallahs. Súbito,
um grito terrível surgiu dos lábios de Ra-Khamani, cujos olhos pareciam
saltar-lhe das órbitas. Pôs-se em pé e cambaleou, apertando a própria garganta.
- Estou
queimando! Estou queimando! Ajudem-me!
No corpo de
Ra-Khamani estava se produzindo um terrível fenômeno. Embora não se visse fogo
em nenhum lado, nem exalasse calor dele, era evidente que o homem ardia como se
lhe houvessem atado a uma pira acesa. Sua pele se partiu, se abriu e logo se
chamuscou, enchendo o ar com cheiro de carne queimada. O rei marrom gritava
desesperadamente. Alguém derramou sobre ele um balde cheio de água. Houve uma nuvem
de vapor, mas os gritos de dor continuaram. Os gritos pararam pouco a pouco. Os
restos do rei – uma coisa escura, disforme, em nada parecida com o que havia
sido Ra-Khamani – jaziam sobre a superfície do estrado em meio a uma escura
poça de gordura humana. Alguns oficiais emplumados saíram correndo, tomados
pelo pânico; todos ficaram apavorados.
Então, em meio ao pasmo causado pela morte do Rei
de Kush, o jovem Agara, caído ao chão e aparentemente morto, se ergueu
lentamente e logo ficou com aparência disposta, como se os ferimentos e
queimaduras em seu corpo não fossem nada, ao mesmo tempo em que aparecia
subitamente na grande praça um negro idoso, magro, quase nu e também cheio de
ferimentos e marcas de tortura. Ao avistá-lo, Tuthmes se amaldiçoou por não
tê-lo decapitado, para se certificar de que estava morto. Era o velho Ageera,
que, apesar de ter sido brutalmente torturado por Tuthmes na noite anterior,
não cambaleava nem sentia dor. Ao contrário: em seus olhos de tição brilhava
uma intensa vitalidade e ódio, quando ele esticou o braço para o surpreso lorde
chaga:
- Pensa que eu
e meu filho morremos, verme de pele marrom? O grande Jullah, não só salvou nossas
vidas, como também tem muito mais a revelar!
No momento
seguinte, para assombro ainda maior de todos ali presentes, apareceu o cadáver
ambulante de um negro alto e musculoso, em início de decomposição. Sua garganta
estava dilacerada, as costelas pisoteadas e o crânio quebrado, mas todos o reconheceram:
Amboola! Apesar da garganta mordida e aberta, ele se dirigiu a todos em voz
cavernosa:
- Breve, você
estará no Inferno comigo, Tuthmes... Pois foi você quem mandou o kordafano
enviar o monstro dele para me matar...
Naquele
momento, todo o pavor dos negros se transformou e explodiu em fúria! Fúria
contra Tuthmes! Contra Tanada! Contra todos os chagas! Contra séculos de ferocidade,
intriga e opressão à população negra! Após receber uma paulada na cabeça, Tuthmes
também foi morto e esquartejado pela multidão, da mesma maneira que Khufre,
minutos antes, e os negros se revoltaram. A um comando desesperado de Tananda,
mil cavaleiros negros saíram imediatamente dos pátios dos quartéis vizinhos da
praça, pisoteando os revoltosos gallahs com seus cascos. Suas lanças cintilavam
ao luar, seus capacetes de plumas de avestruz esvoaçavam na brisa. Ao redor do
cimério e da nemédia, gritava uma multidão desordenada e turbulenta, berrando e
bradando.
Na grande
praça de El Shebbeh, as tochas arremessadas brilhavam sobre um turbilhão de
figuras que se esforçavam e saltavam, cavalos que relinchavam e lâminas cortantes.
Homens morenos e negros lutavam, ofegando, praguejando, matando e morrendo. Os
enlouquecidos negros destruíam e pilhavam as casas e palácios dos chagas, arrastando
mulheres uivantes para fora; o brilho das construções em chamas fazia a praça
nadar num oceano de fogo. E mais fogo surgia repentinamente em cem lugares. De
todos os lugares da cidade externa, saíam abundantemente figuras negras, nuas,
selvagens e desvairadas – uma torrente uivante de mil galhos, todos convergindo
para a grande praça e engolfando, com sua superioridade numérica, os mil
cavaleiros que haviam chegado lá.
Nem mesmo o
casal de leopardos, trazido da sala do trono para a praça, conseguiu deter a
turba enfurecida. Embora matando alguns gallahs, os felinos foram mortos a
golpes de lanças, de espadas pegas de chagas mortos, e até com pedradas na cabeça.
Em meio ao caos, Conan parecia ter sido o único, com seus olhos de águia, a ver
o cadáver ambulante de Amboola desabar ao chão da praça, tão morto quanto na
Torre Vermelha, dias atrás. Enquanto isso, as cabeças de Shubba e Afari rolavam
ao chão, tão ensangüentadas quanto os pedaços de Khufre de Kordafan e Tuthmes.
Logo, um cheiro insuportável de carne queimada infestou o ar, quando os negros
atearam fogo no cadáver da criatura que matara Amboola. Em seguida, as cabeças
de Khufre, Tuthmes, Afari e Shubba foram fincadas em pontas de lanças, para
terror ainda maior dos nobres mestiços.
Um gallah
correu em direção a Conan, erguendo uma espada chaga. Mas, antes que pudesse
atacar, a lâmina do cimério lhe abriu o crânio. Protegendo Diana com um escudo
chaga que encontrara caído ao chão, o bárbaro branco cortou à direita e
esquerda com sua espada de dois gumes, extremamente ágil para seu tamanho, como
um felino dando o bote, e permanecia em movimento constante, oferecendo sempre
um alvo móvel, de modo que estocadas e pancadas só acertavam o vazio. Quando
atacava, estava em perfeito equilíbrio, e seus golpes eram devastadores. De quatro
negros que haviam atacado Conan, três estavam caídos, morrendo afogados no
próprio sangue; e o quarto, sangrando de meia-dúzia de ferimentos, bateu em
retirada aos tropeços, em busca de alvos mais fáceis.
Desnudas camponesas
negras de Punt, com suas suadas peles de ébano brilhando à luz das tochas e
incêndios, agarravam e imobilizavam nobres de pele marrom, cortando-lhes as
gargantas com facas ou arrebentando-lhes os miolos com pedras. Os jardins da
cidade interna começavam a pegar fogo. Em meio ao caos vermelho, Conan avistou
Ageera coberto de sangue, em gargalhada exultante e segurando, pela cacheada
cabeleira negra, a cabeça decepada da Princesa Tananda!
- Desgraçado! –
praguejou o cimério entre dentes, sentindo no coração um ódio ainda mais
vermelho que todo o sangue ali derramado e agarrando uma azagaia caída. Então,
com um forte impulso do braço e de seu enorme torso, ele lançou a arma certeira
no coração do farejador de bruxas, vingando a morte da cruel, porém bela e
sensual, princesa com a qual passara longas e tórridas noites na cama, antes de
conhecer Diana. No instante seguinte, se aproveitando da confusão provocada
pela morte de Ageera, o bárbaro da Ciméria montou num magro cavalo kushita
abandonado, colocando Diana à frente de si na sela, e se juntou aos
sobreviventes chagas na fuga de Shumballa.
Como uma
torrente escarlate, espumante e facetada de fogo, as marés negras de Punt –
agora sob a liderança de Agara, filho de Ageera – inundavam os bairros e jorravam
através do portão da cidade interna, manchando as ruas de El Shebbeh. No grande
Palácio Real, os chagas fizeram sua resistência final, e lá morreram,
encurralados por gallahs furiosos, os quais, após massacrarem seus ex-lordes
marrons, invadiram o palácio, o saqueando e incendiando, enquanto escravas
reais gritavam nos braços de seus violadores. Pouco depois, outros palácios
desmoronaram sob o fogo ateado pela revoltosa população negra. Conan e Diana
escaparam, o cimério abrindo, com sua espada, um caminho sangrento por entre os
negros corpos dos puntianos que tentavam atacá-los, até alcançar os desmoronados
e turbulentos portões de bronze pelos quais milhares de gallahs haviam invadido
El Shebbeh.
Ao alcançarem
Punt, o cimério, a nemédia e os chagas ficaram aliviados em ver que, devido à
enorme quantidade de negros que invadiram a agora moribunda cidade interna, a
maioria das cabanas de barro da cidade externa estavam vazias, exceto por algumas
mulheres negras – em sua maioria idosas –, que ficaram cuidando das crianças.
Sem perderem tempo, os fugitivos apressaram suas montarias para longe dali.
O ar puro da gramada
planície aberta nunca pareceu tão agradável a Conan e Diana – principalmente
para esta última. A nemédia, agora com sua semi-nudez coberta pelo manto de um
chaga morto, se deixou embriagar naquele frescor noturno, enquanto Conan,
acompanhando os poucos chagas sobreviventes, esporeava o cavalo deles para o
leste, em direção a Kordafan.
Embora a loira
ainda estivesse muito distante de sua terra natal e família, ela estava feliz em
saber que estava mais distante ainda da escravidão e de todos os horrores que
presenciara em Shumballa. Assim, Diana da Nemédia se deixou levar pelo sono e,
com um sorriso nos lábios vermelhos, adormeceu com a bela cabeça encostada no
peito musculoso de Conan.
FIM
Agradecimentos especiais: Aos
howardmaníacos e amigos Osvaldo Magalhães, de Brasília (DF); Vincent Darlage,
dos EUA, e Miguel Martins (26/09/1973 – 04/04/2014), de Paris.