(por Fernando Neeser de Aragão)
Amanhece na
fronteira sudeste de Kush. Quarenta e cinco nobres chagas cavalgam, com
duzentos cavaleiros gallahs perseguindo-os pela savana: estes últimos são
homens rústicos em cavalos magros, fortes e semi-selvagens; guerreiros cor de
ébano, esguios, ágeis, cavalgando nus e sem sela ou rédeas, sob a liderança do
bruxo Agara, filho do falecido Ageera. Todos usam lanças com lâminas de aço,
escudos ovalados de pele de elefante e cocares com plumas de avestruz.
Os perseguidos
são ex-nobres de pele marrom, com esfarrapadas roupas de seda e liderados por
um gigante de cota-de-malha negra, olhos azuis, pele bronzeada e desgrenhada
juba negra – acompanhado, por sua vez, por uma jovem loira na sela de seu cavalo
–; todos a caminho de Kordafan.
Aquele pequeno
reino, para o qual se dirigem Conan, Diana e os chagas que fogem de Kush, era
originalmente parte deste último reino, quando tinha quase três vezes o tamanho
atual, se estendendo de Darfar até Abombi, e rodeando o Deserto Meridional.
Quando a Stygia foi atacada pelos hiborianos, há 3000 anos, Kush viu uma
oportunidade de adquirir algum território stígio. Embora enfraquecida pelos
hiborianos, a Stygia repeliu Kush, mas falhou na retaliação: o deserto do leste
caiu em anarquia, e as tribos se rebelaram. A última gota d’água foi a invasão
aphaki, a qual se instalou na cidade de Tombalku: Kush encolheu até o tamanho
atual, e Kordafan estava entre as recém-emancipadas cidades-satélite.
O jovem Agara,
o qual recentemente se tornara Rei de Kush, apesar de usar a mesma coroa que o
falecido Ra-Khamani e de ser o único kushita que monta um cavalo com rédeas,
veste roupas de pele de leopardo sobre o esguio e ágil corpo de ébano. Seu pai,
o farejador de bruxas Ageera, fora sepultado numa pirâmide de dez metros de
altura, a qual o novo rei mandara construir em Shumballa, antes de se lançar em
vingativa perseguição ao cimério que lhe havia matado o pai.
- Você tinha
que vingar aquela vadia da Princesa Tananda, Conan? – reclama Diana, montada à
frente do cimério, na sela do cavalo kushita. – Agora o maldito Agara e toda
Kush estão atrás de nós!
Conan sorri,
apesar da situação perigosa.
- Demônios de
Crom! – ele exclama rindo. – Mesmo depois de os oceanos terem afogado o mundo,
as mulheres vão continuar tendo tempo para sentir ciúmes. Que o diabo carregue
esta vaidade! Eu e Tananda éramos amantes, antes de eu lhe conhecer – o cimério
acrescenta, gargalhando. Mas, apesar do que disse, Conan não é menos ciumento
com suas parceiras do que Diana acaba de ser com ele.
*
* *
Khari-Amon,
Rei de Kordafan, tem o corpo forte e ágil de um guerreiro, parecendo talhado em
bronze escuro. Seu olhar, sereno e penetrante, às vezes seduz; diante dos
inimigos, porém, ele sabe como ninguém endurecer a expressão, quando seu olhar
se torna terrível. Naquele momento, ele se encontra nas ameias de Kharatu,
capital de seu reino, quando avista a nuvem de poeira sobre a savana.
“Por Set!”,
pensa Khari-Amon, “São chagas! E perseguidos por kushitas negros”. Ele, que
visitara Kush em anos anteriores, os reconhece e, embora sem saber o que está
acontecendo, sabe que aquele momento exige ação.
E o Rei de Kordafan age, deixando Conan, Diana e os chagas adentrarem
os portões abertos da cidade e fechando-os para os kushitas negros. Após algum
tempo, durante o qual os negros são mantidos à distância por flechas
kordafanas, o chão subitamente estremece com a saída de dezenas de cavaleiros
chagas, com arqueiros montados em elefantes à sua frente – sendo um dos elefantes
montado por ninguém menos que Conan! Alguns dos cavalos kushitas empinam de
medo, ao verem aqueles paquidermes investindo contra eles, e derrubam seus
montadores, os quais, caindo ao chão, têm suas cabeças e troncos esmagados
pelas enormes patas dos elefantes.
Os demais são atingidos mortalmente por flechas, lançadas do alto dos
elefantes por guerreiros kordafanos. Eles não usam armaduras, mas carregam
escudos de feitio stígio e espadas de feitio kushita. O exército kordafano
também conta com nobres montados em cavalos stígios, armados com machados
também stígios, de excelente qualidade, longas lanças e escudos, e vestidos com
exuberantes armaduras de escamas douradas.
Um lanceiro negro erra o alvo, ao arremessar sua lança contra um dos
kordafanos – um dos membros da guarda, armado com lança e escudo de formato
único, e usando uma espécie de armadura de escamas de couro, com pele de
leopardo e uma grande quantidade de plumas –, e não vê quando a espada de um
chaga lhe corta a garganta, fazendo-lhe o sangue esguichar como um chafariz.
O próprio Rei de Kordafan se junta à luta, montado em seu cavalo stígio
puro-sangue. Ao ver um gallah investir contra um chaga, Khari-Amon desfecha,
com seu khopeshe, um golpe além do
ombro do nobre e, com um grito estridente, um guerreiro de cabelos crespos
perde o olho direito e, em seguida, a vida. O cavalo do rei avança pisoteando,
e Khari-Amon sente os ossos da face do negro morto se partirem sob sua montaria.
Enquanto isso, após acertar todas as suas flechas – bem como sua única
lança – nos gallahs, Conan desce de seu elefante e, cansado de lutar à
distância, monta num cavalo kordafano e empunha sua grande espada aquiloniana,
talhando peitos, decepando cabeças e cortando corpos negros ao meio em giros
sangrentos a derramarem tripas sobre o solo. Um gigante de ébano se precipita
entre Conan e um chaga; seu khopeshe
atravessa carne e ossos do ex-nobre, e este tomba com um grito. Conan esporeia
para o lado, inclina-se da sela para pegar o khopeshe do nobre morto e endireita o corpo, largando as rédeas e balançando
as duas espadas. Seu grito de guerra explode com a marca da loucura da batalha.
O gigante negro perde os órgãos vitais e metade do rosto, com os golpes das
duas lâminas agora empunhadas pelo cimério, e tomba no chão sobre o corpo do
nobre marrom ao qual matara.
Outro gallah mata um kordafano, mas o khopeshe empunhado pela mão esquerda do bárbaro branco lhe
atravessa a coluna e fica lá – o punho da espada em forma de foice vibrando nas
costas de ébano e a ponta se lhe sobressaindo no desnudo peito musculoso.
Protegida no alto das ameias da cidade, Diana assiste a tudo tensa, preocupada
com a vida do seu cimério. O sangue escorre como água de corpos negros e
marrons, durante aquela luta, mas a vantagem pende para o lado dos kordafanos e
de seus aliados chagas – pelo menos, os chagas que não estão cansados demais
para lutar.
Percebendo isso, e vendo aquele gigante branco em cota-de-malha negra
investir em sua direção, Agara se concentra, e o cimério começa a sentir o
corpo arder e queimar, como acontecera dias antes com o agora falecido Rei
Ra-Khamani de Kush. Mas a feitiçaria de Agara não é tão forte quanto a de seu
finado pai, e a velocidade da montaria de Conan é maior, de modo que, antes que
seu hediondo e mortífero feitiço surta efeito no bárbaro, o recém-coroado
rei-feiticeiro de Kush desaba de seu cavalo, com o rosto e crânio reduzidos a
uma massa amorfa de ossos estilhaçados, sangue e miolos pelo golpe descendente
da larga espada azulada do cimério.
A morte de seu rei-feiticeiro faz todos os kushitas negros restantes debandarem
de volta à sua terra natal, onde Nuri, primo de Agara e regente provisório das
ruínas de El Shebbeh, e Candance, esposa de Nuri, serão notificados da morte do
sucessor de Ra-Khamani e coroados novos reis de Kush. Alguns dos fugitivos gallahs,
no entanto, nunca alcançarão Kush, pois morrem com lanças e flechas kordafanas
em suas costas, ou pisoteados por cavalos e elefantes.
Embora 15 chagas e 20 kordafanos tenham morrido naquela luta, quase
todos os invasores gallahs foram exterminados – exceto, é claro, os que
conseguiram fugir de volta a Kush. Khari-Amon sorri e, despojado do orgulho
exagerado da maioria dos monarcas de sangue stígio, abraça alguns dos chagas –
todos eles, velhos amigos e conhecidos seus; e fica feliz quando os homens de
pele marrom apontam sorridentes para o gigante de olhos azuis, pele bronzeada e
cota-de-malha negra, contando-lhe que, graças à liderança daquele bárbaro
branco, ex-capitão da guarda do finado Rei de Kush, eles conseguiram fugir da
rebelião dos gallahs de Punt que invadiram El Shebbeh, matando Ra-Khamani e sua
irmã Tananda, e destruindo quase toda a cidade interna.
O Rei de Kordafan fica sentido com o destino de Shumballa e as mortes
do rei e da princesa de Kush, ao mesmo tempo em que se alegra em saber que
aquele branco havia salvado muitos dos seus amigos. Então, ele dá ordens para
que os portões de Kharatu sejam abertos. Os chagas entram lentamente na cidade,
ao mesmo tempo em que a bela Diana sai correndo da cidade-capital, com um
sorriso de alívio estampado no rosto, abraçando o torso poderoso de Conan e lhe
beijando os finos lábios fortes.
Sendo bem menor que Kush, o exército de Kordafan precisa trabalhar mais
duro, para se defender de incursões do reino maior e das tribos ao redor.
Kordafan é um reino isolado, mas poderoso, com seu poder concentrado numa pequena área. Este reino é uma importante região no comércio internacional de escravos, sendo uma das encruzilhadas entre os Reinos Negros e Kush, e, portanto, os reinos hiborianos e a Stygia: pessoas de todos os aspectos e tamanhos são transportadas pela rota de caravanas de Kordafan.
Como uma miniatura da Stygia, Kordafan se encontra quieta ao sul, satisfeita em explorar sua religião e meios obscuros.
Nos dias seguintes, outros chagas adentram o pequeno reino e são bem-acolhidos lá. Enquanto isso, honrado e agradecido, o Rei Khari-Amon oferece o cargo de capitão da Guarda Real de Kordafan e uma armadura kordafana para o cimério, mas este prefere voltar às terras hiborianas, às quais não vê há mais de três anos, e continuar usando sua cota-de-malha negra, devido às semelhanças entre as armaduras de Kordafan e Stygia, e à abominação que os hiborianos sentem pelos stígios. Sem contar que, apesar das feições e roupas ocidentais de Conan, o salvo-conduto que o Rei de Kordafan lhe consegue pouco depois, graças às mensagens trocadas, via pombos-correios, entre ele e o Rei Ctesphon da Stygia, garantirá a passagem do bárbaro e de sua companheira loira, por um extenso país, onde estrangeiros só são bem-vindos como comerciantes durante o dia.
* *
*
Após
atravessarem a Stygia, Shem, Koth e Ophir, Conan e Diana finalmente chegam à
Nemédia e aos portões de sua capital Belverus. Acostumada às noites de prazer
nos braços fortes daquele cimério de gargalhada tão alegre e elementar quanto
os ventos das terras por onde passaram, Diana não consegue conter uma lágrima
de saudade. O bárbaro sorri e a consola, dizendo-lhe que ela estará mais segura
com a família do que com ele. Mas o fato é que a perda de Bêlit – seu primeiro
grande amor – ainda é muito recente para que Conan tenha, no momento, qualquer
tipo de interesse em relações duradoras com mulheres. Assim, enquanto Diana
adentra sua cidade natal, Conan dirige seus passos rumo ao sul, em busca de
novas aventuras.
Léguas ao sul
de Belverus, às margens de um rio, mercenários estão acampados à noite, polindo
suas armaduras e jantando. No dia seguinte, eles seguirão para o sul, rumo à
Coríntia. Antes, porém, um novo visitante aparece ali. Sua roupa, agora escassa,
consiste apenas num manto escarlate ao redor dos ombros, um par de sandálias e
uma tanga.
- Olá,
mercenários – diz o forasteiro, falando o Nemédio com forte sotaque bárbaro. –
Sinto cheiro de pão e carne. Há espaço, junto a esta fogueira, para um viajante
faminto?
Quase tão
inesperadamente quanto o bárbaro que aparecera, um homem abre caminho por entre
aqueles mercenários, caminhando a passos largos em direção ao gigante moreno
que ali chegara. É um homem tão alto e musculoso quanto o bárbaro, mas cuja
cabeleira leonina é de cor tão clara quanto o bigode – e usa armadura, apesar
de ter olhos azuis como o forasteiro.
- Não se mova,
estrangeiro! Eu sou Amalric, e comando este exército. Como passou pelos meus
vigias?
- Não é nenhuma
proeza ludibriar citadinos – responde o bárbaro. – Se puder me oferecer um
pouco de carne assada e cerveja, aceito de bom grado.
- Escolheu uma
péssima noite para nos espreitar. Eu deveria lhe enforcar agora mesmo. Quem é
você?
- Sou Conan,
um cimério... Um viajante com o estômago e bolso vazios, e a garganta seca; e
disposto a entrar no serviço mercenário de vocês.
Olhando para aquele cimério de cima a baixo, Amalric, sondando as cenas
de uma vida turbulenta, se lembra de uma batalha desesperada na fronteira
norte, e de figuras selvagens correndo para dentro do combate – mulheres altas
e flexíveis, completamente nuas, os olhos azuis e cinzentos resplandecendo, os
cabelos escuros ondulando, as gotejantes espadas manchadas de vermelho em suas
mãos. Ele sacode a cabeça. Se lhe contassem que Conan já havia sido líder
pirata e capitão de exércitos hiborianos – bem como de exércitos kushitas há
pouco tempo atrás –, aquele nemédio não acreditaria. Ele seria capaz de comer o
próprio chapéu, se lhe provassem que aquele bárbaro seminu um dia liderou mais
do que um bando de criminosos.
- Muito bem – sorri o gigante nemédio. – Um homem como você me será bem
útil... se não me der nenhum motivo para enrolar uma corda em seu pescoço. Dêem
uma armadura para ele! – acrescenta o líder a um de seus comandados.
- O senhor vai deixá-lo entrar nas nossas fileiras, lorde Amalric? –
pergunta um dos soldados.
- Um homem que passou furtivamente pelos meus vigias? Claro que vou!
Esses cimérios já nascem de espada na mão. Agora, com licença. Tenho algumas
sentinelas para açoitar – diz Amalric, afastando-se do bárbaro que agora devora
pão e carne, e engole vinho.
FIM
Agradecimentos
especiais: Aos howardmaníacos e amigos Al Harron, da Escócia, e Ricardo
Medeiros, de Brasília – DF.
A seguir:
Colosso Negro (por Robert E. Howard).