(por Robert E. Howard)
2) A Lótus Negra
Naquela cidadela morta de pedra desmoronada,
Os olhos dela foram laçados por aquele brilho
profano.
E uma estranha loucura agarrou-me a garganta
Como se ameaçada por um amante rival.
- A canção de Bêlit
O Tigresa
percorria o mar, e as aldeias negras estremeciam. O som dos tambores ecoava
pela noite, contando que a mulher-demônio dos mares tinha encontrado um parceiro,
um homem de ferro cuja ira era pior que a de um leão ferido. E os sobreviventes
dos chacinados navios stígios amaldiçoavam o nome de Bêlit, e de um guerreiro
branco de ferozes olhos azuis. Assim, os príncipes da Stygia lembrar-se-iam desse
homem por muito e muito tempo, e suas lembranças eram uma árvore amarga, a qual
gerou frutos escarlates nos anos seguintes.
Mas, despreocupado como um vento errante, o Tigresa singrava as costas do sul, até
ancorar no delta de um rio largo e sombrio, cujas margens eram paredes de
mistério cobertas por selvas.
— Este é o rio Zarkheba, que é a Morte — disse Bêlit.
— Suas águas estão envenenadas. Está vendo como elas são escuras? Apenas os répteis
venenosos vivem neste rio. O povo negro o evita. Uma vez, um navio stígio, que
fugia de mim, subiu correndo o rio e desapareceu. Eu ancorei aqui mesmo onde
estamos e, dias depois, a galera veio flutuando pelas águas escuras, com o
convés todo manchado de sangue e abandonado. Só havia um homem a bordo, mas
tinha enlouquecido e morreu dizendo coisas sem sentido. A carga estava intacta,
mas toda a tripulação desaparecera em silêncio e mistério.
“Meu amor, eu acredito que existe uma cidade em algum
lugar neste rio. Já ouvi lendas sobre torres e muralhas gigantes, que teriam
sido vistas de longe por marinheiros que se arriscaram a entrar um pouco pelo
rio. Nós não temos medo de coisa alguma. Conan, vamos entrar e saquear essa
cidade!”.
Conan concordou. De um modo geral, aceitava todos os
seus planos. Era a mente dela que dirigia os ataques que faziam, e seu braço
forte executava as idéias dela. Pouco lhe importava para onde navegavam ou
contra quem lutavam, desde que navegassem e lutassem. Ele gostava daquela vida.
Batalhas e ataques haviam reduzido a tripulação do navio
pirata. Agora restavam apenas uns oitenta lanceiros, número suficiente apenas
para manter em operação o longo barco. Mas Bêlit não queria perder o tempo
necessário para a longa viagem em direção ao sul, para os reinos insulares onde
costumava recrutar seus bucaneiros. Ela ardia de vontade de partir para aquela
aventura. Assim, o Tigresa entrou
pelo delta do rio, com os remadores puxando forte para vencer a larga
correnteza.
Passaram pela misteriosa curva, que escondia o
restante do rio da vista de quem se encontrava no mar, e o crepúsculo os
encontrou navegando firme contra a correnteza lenta, evitando bancos de areia
onde estranhos répteis se aninhavam. Não viram sequer um crocodilo, nem animais
quadrúpedes, nem pássaros velozes bebendo à beira daquele rio. Continuaram
adiante pela escuridão que precedia o surgimento da lua no céu, passando entre
as margens que pareciam sólidas muralhas de escuridão, de onde vinham estranhos
murmúrios, passos furtivos, e o brilho de olhos sombrios. E ouviu-se o grito de
uma voz inumana, em terrível zombaria.
— O grito de um macaco! — Bêlit informou, acrescentando
que as almas dos homens maus eram aprisionadas nesses animais de forma quase humana,
como castigo por seus crimes do passado. Mas Conan duvidou, porque uma vez,
numa cidade hirkaniana, ele vira o olhar triste de um animal aprisionado em uma
jaula de barras douradas, que lhe disseram ser um macaco, e que não transmitia,
nem parecia ter, a mesma malevolência que vibrava na gargalhada estridente que
ecoava daquela floresta escura.
Então, a lua surgiu como um salpicar de sangue no
céu, e toda a floresta acordou em terrível confusão para saudá-la. Urros, uivos
e gritos fizeram os guerreiros negros tremerem, mas Conan notou que todo o
barulho vinha de algum lugar mais para dentro da floresta, como se os animais,
assim como os homens, também evitassem as águas escuras do Zarkheba.
Erguendo-se sobre a densa negrura das árvores e acima
das folhagens ondulantes, a lua prateou o rio, e seu despertar se tornou uma
cintilação ondulante de bolhas fosforescentes que se alargavam como uma estrada
brilhante de jóias que explodiam. Os remos mergulhavam nas águas brilhantes e
tornavam a subir, refletindo o frio luar prateado. As plumas, que enfeitavam os
cocares nas cabeças dos guerreiros, balançavam ao vento, e as jóias dos cabos de
suas espadas reluziam friamente.
A luz fria do luar arrancou reflexos gelados das
jóias das mechas negras e cacheadas dos cabelos de Bêlit, enquanto ela deitava seu
corpo macio numa pele de leopardo esticada sobre o convés. Com o delicado corpo
apoiado sobre os cotovelos e o queixo seguro pelas mãos esguias, ela olhava
para o rosto de Conan, que descansava ao seu lado com a cabeleira negra soprada
pela brisa leve. Os olhos de Bêlit pareciam duas jóias escuras ardendo ao luar.
— Estamos cercados de terror e mistério, Conan, e deslizamos
em direção ao reino do horror e da morte — disse ela. — Você tem medo?
A única resposta dele foi um movimento dos ombros.
— Não temo coisa alguma — ela disse meditativamente. —
Jamais senti medo. Já olhei para as presas nuas da Morte muitas vezes. Conan,
você teme os deuses?
— Eu não pisaria na sombra deles, — respondeu o
bárbaro, em tom conservador. — Alguns deuses são fortes para ferir, outros para
ajudar; pelo menos é o que dizem os sacerdotes. Mitra, dos hiborianos, deve ser
um deus forte, porque seu povo construiu cidades pelo mundo inteiro. Mas, mesmo
os hiborianos temem Set. E Bel, deus dos ladrões, é um bom deus. Ouvi falar
dele quando eu era ladrão, em Zamora.
— E quanto aos seus próprios deuses? Jamais lhe ouvi invocar
um deles.
— O chefe deles é Crom. Ele mora numa grande
montanha. Que adianta invocá-lo? Ele pouco se importa se os homens vivem ou
morrem. É melhor ficar em silêncio do que atrair sua atenção para você; ele só
manda destruição, e não boa sorte. É sombrio e sem amor, mas, no momento do nascimento,
sopra o poder de lutar e de matar, na alma de um homem. O que mais poderiam os
homens querer dos deuses?
— Mas, e os mundos além do rio da morte? — insistiu
ela.
— Não existe esperança, aqui ou no além, no culto do
meu povo — respondeu Conan. — Neste mundo, os homens lutam e sofrem por nada, encontrando
prazer apenas na ofuscante loucura da batalha. Ao morrerem, suas almas entram
em um reino cinzento e enevoado, coberto de nuvens e ventos gelados, para
ficarem vagando melancolicamente por toda a eternidade.
Bêlit estremeceu:
— A vida, por pior que seja, é muito melhor do que um
destino desses. Em que você acredita, Conan?
Ele encolheu os ombros:
— Já conheci muitos deuses. Aquele que nega a sua
existência é um cego, assim como todo aquele que confia demais neles. Não me
importo com o que existe além da morte. Tanto pode ser a escuridão afirmada pelos
céticos nemédios, como o reino de gelo e nuvens de Crom, ou as planícies geladas
e os corredores abobadados do Valhalla em que acredita o povo de Nordheim. Eu
não sei, nem me importo. Só quero viver intensamente enquanto posso; quero
experimentar os ricos sucos da carne vermelha e o vinho picante no meu paladar,
o aperto quente de braços brancos, a louca exultação da batalha, quando as
lâminas azuladas ardem e são tingidas de vermelho. Isso é o suficiente para eu
me alegrar. Que os mestres, os sacerdotes e os filósofos meditem sobre as questões
de realidade e ilusão. Uma coisa eu sei: se a vida é ilusão, eu também sou uma
ilusão e, sendo assim, a ilusão é real para mim. Eu vivo, estou cheio de vida,
eu amo, eu mato, e sou feliz assim.
— Mas os deuses são reais — disse ela, continuando em
sua própria linha de raciocínio. — E, acima de todos, são reais os deuses dos
shemitas: Ishtar, Ashtoreth, Derketo e Adônis. Bel também é shemita, pois
nasceu na primitiva terra de Shumir, há muito, muito tempo, e viveu rindo, com
a barba encaracolada e olhos travessos e inocentes, roubando as jóias dos reis
dos tempos antigos.
“Existe vida depois da morte, isso também eu sei, e
também sei disso, Conan da Ciméria — com flexibilidade, ela se apoiou nos
joelhos e o agarrou num abraço de pantera —: meu amor é mais forte do que
qualquer tipo de morte! Eu me coloquei nos seus braços, ofegando com a
violência do seu amor. Você me agarrou, me apertou e me conquistou, puxando
minha alma para os seus lábios com a ferocidade de seus beijos ardentes. Meu
coração está colado ao seu coração, minha alma é parte de sua alma! Se eu
estivesse imóvel na morte e você lutando pela vida, eu voltaria do abismo para
ajudá-lo. Sim, mesmo que meu espírito flutuasse com as velas purpúreas no mar
de cristal do paraíso, ou se debatesse nas chamas derretidas do Inferno! Eu sou
sua, e nem todos os deuses e todas as suas eternidades serão capazes de nos separar!”.
Um grito partiu do posto da sentinela, na proa.
Empurrando Bêlit para o lado, Conan levantou-se de um salto, com a espada
brilhando como prata ao luar e os cabelos eriçados diante do que via. O
guerreiro negro balançava sobre o convés, sustentado pelo que parecia ser um
escuro e flexível tronco de árvore, curvado sobre o parapeito. Então ele
percebeu que se tratava de uma gigantesca serpente, que havia contorcido seu
corpo cintilante para cima, até a lateral do barco, e agarrado o infeliz guerreiro
em suas mandíbulas. Suas escamas gotejantes brilhavam leprosamente ao luar, no
momento em que levantou o corpo bem acima do convés, segurando a vítima que
gritava e se debatia como um rato nas presas de um píton. Conan correu para a proa
e, brandindo sua grande espada no ar, quase conseguiu separar em dois pedaços o
gigantesco tronco, cujo diâmetro era maior que o do corpo de um homem. O
parapeito do barco encheu-se de sangue, quando o moribundo monstro balançou
para longe, ainda segurando sua vítima, para mergulhar no rio, uma espiral após
a outra, formando uma espuma ensangüentada sobre a água, na qual homem e réptil
desapareceram juntos.
A partir desse momento, Conan decidiu ficar ele
próprio como sentinela, mas nenhum outro monstro saiu rastejando das profundezas
escuras do rio. Quando a alvorada clareou a selva, ele avistou as pontas
brancas de torres que se projetavam acima das árvores. Chamou Bêlit, que dormia
no convés, enrolada na capa escarlate dele. Ela correu para seu lado, com os
olhos resplandecendo. A primeira coisa que fez foi gritar um par de ordens a
seus guerreiros, no sentido de prepararem seus arcos e lanças. Então, os seus
olhos amáveis se arregalaram.
Foi apenas o fantasma de uma cidade que eles viram,
quando passaram adiante de uma saliência do terreno, coberta por selva espessa,
e seu navio dirigiu-se para a pequena baía que se formava na praia.
Ervas-daninhas e uma luxuriante grama do rio cresciam por entre as pedras dos
pilares quebrados e das calçadas arrebentadas que, no passado, tinham sido
ruas, praças espaçosas e amplos pátios. A floresta vinha de todos os lados,
menos da direção do rio, escondendo colunas caídas e pilhas desintegradas com
um verde venenoso. Aqui e ali, torres salientes cambaleavam inseguras contra o
céu brilhante da manhã, e pilares quebrados se sobressaíam entre as paredes decaídas.
No espaço central, uma pirâmide de mármore tinha no seu ápice uma fina coluna,
em cujo ponto mais alto estava sentada ou agachada alguma coisa que Conan imaginou
ser uma imagem, até que seus olhos aguçados perceberem que ela tinha vida.
— É um grande pássaro — disse um dos guerreiros, em
pé na proa.
— É um monstruoso morcego — insistiu outro.
— Parece ser um macaco — afirmou Bêlit.
Nesse instante, a criatura abriu suas grandes asas e
voou para o meio da floresta.
— Um macaco com asas — disse nervoso o velho N’Yaga.
— Teria sido melhor se tivéssemos cortado nossas próprias gargantas, ao invés
de vir a este lugar. É assombrado.
Bêlit zombou de suas superstições, e ordenou que a
galé fosse levada para a praia e amarrada ao cais em ruínas. Ela foi a primeira
a saltar à praia, seguida de perto por Conan. Depois deles, vieram em fila os
piratas de pele negra, com seus enfeites de penas brancas ondulando sob a brisa
da manhã, as lanças prontas e os olhos examinando cuidadosamente a floresta ao
redor.
Em todo aquele cenário, predominava um silêncio tão
sinistro quanto o de uma serpente adormecida. Bêlit posou pitorescamente no
meio das ruínas, a vida vibrante de sua figura macia formando um estranho
contraste com a desolação e a decadência ao seu redor. O sol ardia devagar e
mal-humorado sobre a floresta, inundando as torres com uma luz dourada e fraca
que projetava sombras ao lado das paredes vacilantes. Bêlit apontou para uma
torre redonda e estreita, que parecia cambalear sobre sua base apodrecida. Um
amplo caminho de pedras rachadas, quase cobertas pela grama, levava até essa
torre, ladeada por colunas caídas. Na frente, destacava-se um enorme altar.
Bêlit correu por aquele caminho primitivo e parou diante do altar.
— Este era o templo dos antigos — disse ela. — Veja:
existem canais para o sangue ao longo das laterais do altar, e nem as chuvas de
dez mil anos conseguiram lavar as manchas escuras deles. Todas as paredes tombaram,
mas este bloco de pedra ainda desafia o tempo e os elementos da natureza.
— Mas, quem eram esses antigos? — indagou Conan.
Ela abriu as mãos, indicando não saber explicar:
— Nem mesmo as lendas mencionam esta cidade. Mas
observe as alças, dos dois lados do altar! Os sacerdotes freqüentemente escondiam
seus tesouros debaixo de seus altares. Quatro de vocês agarrem a pedra, e vejam
se conseguem levantá-la.
Ela se afastou para lhes dar passagem, observando a
torre que parecia cambalear acima do grupo. Três dos negros mais fortes haviam agarrado
as alças escavadas na pedra – curiosamente inadequadas para mãos humanas –,
quando Bêlit saltou para trás, com um grito agudo. Eles ficaram congelados nos
seus lugares e Conan, que se curvara para ajudá-los, virou-se praguejando.
— Há uma cobra na grama — disse ela, afastando-se. —
Venha matá-la. Os outros continuem tentando erguer a pedra.
Conan veio depressa para junto dela, e outro tomou o
seu lugar. Enquanto ele procurava impacientemente pela serpente na grama, os gigantescos
negros apoiaram seus pés, gemeram e fizeram força para cima, com seus tensos
músculos de aço se contraindo e esticando sob a pele cor de ébano. O altar não
saiu do chão, mas girou de repente para um dos lados. Ao mesmo tempo, ouviu-se
no alto o barulho de pedra moendo, e a torre se espatifou, cobrindo os quatro
negros com alvenaria quebrada.
Um grito de horror levantou-se de seus camaradas. Os
dedos finos de Bêlit afundaram nos músculos do braço de Conan.
— Não vi serpente alguma — ela sussurrou. — Foi um
truque para lhe afastar dali. Eu fiquei com medo. Os antigos guardavam muito
bem os seus tesouros. Vamos remover as pedras.
Trabalhando de forma hercúlea, eles o fizeram e
tiraram dali os corpos mutilados dos quatro homens. Por baixo deles, manchada
com o seu sangue, os piratas encontraram uma cripta entalhada na rocha sólida.
O altar, apoiado por um dos lados com hastes de pedra e encaixes, tinha sido
usado como tampa. E, à primeira vista, a cripta parecia estar cheia até a boca
com fogo líquido, refletindo a luz pálida do sol nascente com um milhão de
facetas reluzentes. Uma riqueza incalculável surgia aos olhos dos boquiabertos
piratas: diamantes, rubis, jaspes, safiras, turquesas, pedras-da-lua, opalas,
esmeraldas, ametistas, e pedras desconhecidas que brilhavam como os olhos de
mulheres malignas. A cripta estava transbordante de reluzentes pedras preciosas,
às quais o brilho do sol da manhã parecia transformar em chamas ardentes.
Com um grito, Bêlit caiu de joelhos no meio do
entulho manchado de sangue sobre a beirada da cripta, e enfiou os braços
brancos até os ombros naquele poço de esplendor. Retirou-os logo depois, agarrando
alguma coisa que provocou outro grito de sua boca: uma longa carreira de pedras
vermelhas que mais pareciam gotas de sangue congelado, enfileiradas em um
grosso fio de ouro. Ao refletir a luz dourada do sol, seu brilho ficou ainda
mais semelhante ao do sangue.
Os olhos de Bêlit eram como os de uma mulher em
transe. A alma shemita se inebria alegremente com riquezas e com o esplendor
material, e a visão daquele tesouro era capaz de sacudir a alma do mais rico imperador
de Shushan.
— Retirem as jóias da cripta, cães! — sua voz era
aguda, por causa de suas emoções.
— Olhem! — Um musculoso braço negro apontou na
direção do Tigresa e Bêlit virou-se,
com os lábios rubros a ponto de rosnar, como se esperasse ver algum corsário rival
atacando para saquear o que ela estava pilhando. Mas uma criatura negra
levantou-se de cima da lateral do casco do navio, voando sobre a floresta.
— O macaco-demônio estava investigando nosso navio —
resmungaram os negros, assustados.
— E o que importa isso? — respondeu Bêlit, praguejando
e puxando para trás uma mecha rebelde dos cabelos, com a mão impaciente. —
Façam uma liteira com lanças e capotes para carregar estas pedras... onde é que
você vai?
— Vou examinar o navio — respondeu Conan. — Preciso
verificar se aquele macaco voador não fez nenhum buraco no fundo do barco.
Ele desceu rapidamente o cais quebrado e saltou para
dentro da galera. Depois de um rápido exame da parte interna do casco ele
praguejou com violência, lançando um olhar sombrio na direção pela qual desaparecera
a criatura com aparência de morcego. Voltou depressa para o lado de Bêlit, que
supervisionava a pilhagem da cripta. Ela colocara o colar ao redor do pescoço,
e aquelas gotas vermelhas brilhavam obscuramente sobre o seu desnudo peito
branco. Um enorme negro nu estava enterrado até a genitália dentro da cripta
cheia de jóias, arrastando montes de pedras brilhantes, para passá-las para as
mãos ansiosas acima. Fileiras de arco-íris congelados pendiam entre seus dedos
escuros; pingos de fogo vermelho pendiam de suas mãos, cheias de reluzentes
pedras que pareciam luzes de estrelas e arco-íris. Era como se um titã negro
estivesse de pernas abertas, enterrado no fosso brilhante do inferno, com as
mãos erguidas e cheias de estrelas.
— Aquele demônio voador arrebentou os nossos barris
de água potável — disse Conan. Se não estivéssemos tão hipnotizados por essas
pedras, nós teríamos ouvido o barulho. Foi tolice de nossa parte não deixar
pelo menos uma sentinela a bordo. Não vamos poder beber da água do rio. Vou
escolher vinte homens e procurar água fresca na floresta.
Ela o olhou casualmente, refletindo na expressão o brilho
vago de sua estranha paixão pela riqueza, e esfregando com as pontas dos dedos
as jóias em seu peito.
— Está bem — ela disse distraída, dando pouca atenção
a ele. — Levarei o tesouro a bordo.
* * *
A floresta fechou-se depressa sobre eles, mudando a
luz do sol, de dourada para cinzenta. Nos verdes galhos curvados, trepadeiras pendiam
como pítons. Os guerreiros formaram fila única, rastejando pelo crepúsculo primordial
como fantasmas negros acompanhando um fantasma branco.
A mata rasteira não era tão densa quanto Conan havia previsto.
O solo era esponjoso, mas não estava encharcado. Longe do rio, a terra se
inclinava gradualmente para cima. Eles mergulhavam cada vez mais nas verdes profundezas
ondulantes, e ainda não havia sinal de água, em forma de regato ou de poça
estagnada. De repente, Conan parou e seus guerreiros ficaram imóveis como
estátuas de basalto. No tenso silêncio que se seguiu, o cimério balançou a
cabeça com irritação.
— Vá à frente — ele grunhiu a N’Gora, um dos
subchefes. — Caminhe em linha reta, até que não possa me ver mais; depois pare
e espere por mim. Acho que estamos sendo seguidos. Ouvi alguma coisa.
Os negros balançaram os pés, demonstrando nervosismo,
mas obedeceram a ordem. Quando marcharam adiante, Conan escondeu-se depressa
atrás do tronco de uma árvore enorme, com os olhos fixos no caminho por onde
haviam passado. Daquela fortaleza verde, qualquer coisa poderia aparecer. Nada
aconteceu; os sons distantes dos lanceiros, marchando pela mata, logo
desapareceram na distância. Conan percebeu então que o ar da floresta estava
impregnado com um cheiro estranho e exótico. Alguma coisa roçou de leve em sua
têmpora. Ele virou rápido. De um cacho de talos com folhas curiosamente verdes,
grandes flores negras se curvavam para ele. Uma delas o havia tocado. Pareciam
acenar para ele, curvando as hastes flexíveis em sua direção. Abriam-se e sussurravam,
embora não houvesse vento.
Ele recuou, reconhecendo a lótus negra, cuja seiva
era mortal e cujo aroma levava ao sono povoado de pesadelos. Mas já sentia uma
sutil letargia apossando-se dos seus sentidos. Tentou erguer a espada, para
cortar aquelas hastes serpentinas, mas seu braço lhe pendia adormecido ao lado.
Abriu a boca para gritar aos seus guerreiros, mas só saiu um sussurro. No instante
seguinte, de um modo pavorosamente inesperado, a floresta balançou e escureceu
diante dos seus olhos; ele nem ouviu os gritos que explodiram horrivelmente ali
perto, quando os seus joelhos se dobraram, deixando-o cair mole no chão. Acima
de seu corpo inerte, as grandes flores negras balançavam no ar sem vento.
3) Horror na Floresta
Era um sonho o que a lótus
negra causou?
Então, maldito o sonho que
tornou minha vida indolente,
E maldita cada hora
preguiçosa que não vê
O sangue a pingar sombrio da
faca vermelha
- A Canção de Bêlit
A princípio, manifestara-se a escuridão do mais
absoluto vazio, com os ventos gelados do espaço cósmico soprando sobre ela.
Depois, formas vagas, monstruosas e fugidias, envoltas num panorama obscuro no
meio da vastidão do nada, como se a escuridão estivesse assumindo forma material.
Os ventos sopraram e formaram um remoinho, uma pirâmide giratória de escuridão urrante.
Do meio dela, cresceram a Forma e a Dimensão. De repente, como nuvens que se dispersam,
a escuridão se afastou para os lados e uma enorme cidade de pedra verde-escura apareceu
à margem de um rio largo, que fluía por uma planície ilimitada. Através desta
cidade, moviam-se seres de estranha aparência.
Forjados no molde da humanidade, eles claramente não
eram homens. Eram alados e de proporções heróicas; não eram um ramo da misteriosa
haste da evolução que havia culminado no homem, mas a flor madura de uma árvore
alienígena, separada e distante do ramo humano. Além de terem asas, sua única
semelhança física com o homem poderia ser comparada com a semelhança entre o
homem, plenamente desenvolvido, e os grandes macacos. Em seu desenvolvimento
espiritual, estético e intelectual, eram superiores ao homem, do mesmo modo que
o homem é superior aos gorilas. Mas, no momento em que haviam construído sua
colossal cidade, os ancestrais primitivos do homem ainda não tinham emergido do
lodo dos mares primordiais.
Eram criaturas mortais, como todas as coisas feitas
de carne e ossos. Viviam, amavam e morriam, embora a média de duração da vida
individual fosse enorme. Então, depois de incontáveis milhões de anos, a Mudança
começou. Todo o quadro tremia e oscilava, como um retrato atirado ao vento. Sobre
a cidade e a terra, as eras fluíam como ondas sobre uma praia, e cada onda trazia
alterações. Em algum ponto do planeta, os centros magnéticos foram deslocados.
As grandes geleiras e os campos nevados foram retirando-se para os novos pólos.
O curso do grande rio foi alterado. Planícies se
transformaram em pântanos que fediam a vida réptil. Nos pontos onde haviam se formado
férteis campinas, florestas se ergueram, transformando-se em selvas úmidas. As
eras de mutação também tinham afetado os habitantes das cidades. Eles não
migraram para terras virgens. Razões inexplicáveis para a humanidade os haviam mantido
nas primitivas cidades, e no seu destino final. E, enquanto aquela terra antes
rica e poderosa afundava cada vez mais na lama negra da selva sem sol, o povo
da cidade também mergulhava no caos da vida desordeira da floresta. Convulsões
terríveis sacudiram a terra; as noites foram avermelhadas por vulcões em
erupção que formavam, nos horizontes, rubros pilares de lava incandescente.
Depois de um terremoto que derrubou as muralhas
externas e as torres mais altas da cidade, fazendo o rio correr negro durante
vários dias, com uma substância letal escapando das profundezas subterrâneas,
uma pavorosa mudança química se tornou aparente nas águas que as pessoas haviam
bebido durante incontáveis milênios.
Muitos que beberam dela haviam encontrado a morte; e,
naqueles que sobreviveram, a bebida causou mudanças sutis, graduais e horrendas.
Ao se adaptarem às novas condições, eles haviam afundado muito do seu nível
original. Mas as águas letais os transformaram ainda mais horrivelmente, de uma
geração para outra geração ainda mais bestial. Aqueles que tinham sido deuses
alados, haviam se tornado demônios com asas, com tudo o que restava dos vastos
conhecimentos dos seus ancestrais sendo distorcido e pervertido para caminhos
horríveis. Assim como haviam alcançado um nível muito mais elevado do que a
humanidade poderia sonhar, também acabaram mergulhando mais fundo do que jamais
poderia ser visto nos mais loucos pesadelos humanos. Morriam depressa, por
causa do canibalismo e de horríveis batalhas, travadas na escuridão da selva à
meia-noite. E por fim, em meio às ruínas cobertas de líquen de sua cidade, uma
única criatura se ocultava: uma decadente e horrível perversão da natureza.
Então, pela primeira vez, apareceram seres humanos: de
pele escura e rostos aquilinos, usando armaduras de cobre e de couro, e carregando
arcos – os guerreiros da Stygia pré-histórica. Só havia cinqüenta deles, e
estavam magros e cansados por causa da fome e do esforço prolongado, arranhados
e machucados por terem vagado pela floresta, o corpo coberto de bandagens ensangüentadas
que davam testemunho de sua participação em lutas ferozes. Em suas mentes,
traziam histórias de guerras e derrotas, da fuga frente a uma tribo mais forte
que os tinha forçado a ir cada vez mais para o sul, até que se haviam perdido
no oceano verde da selva e do rio.
Exaustos, eles se deitaram entre as ruínas, onde
botões vermelhos que apareciam apenas uma vez a cada século ondulavam sob a luz
da lua cheia, e foram tomados pelo sono. Enquanto dormiam, uma forma medonha
rastejou das sombras, com os olhos muito vermelhos, e celebrou estranhos e
horrorosos rituais ao redor de cada um dos que dormiam. A lua pendia no céu
sombreado, pintando a selva de vermelho e preto; por cima dos homens
adormecidos, os botões vermelhos brilhavam como borrifos de sangue. Aí a lua desceu,
e os olhos do feiticeiro ficaram parecidos com jóias vermelhas, incrustadas na
escuridão de ébano da noite.
Quando a aurora espalhou o seu véu branco sobre o
rio, já não haviam homens à vista: apenas um peludo horror alado, agachado no centro
de um círculo de cinqüenta grandes hienas pintadas, que apontavam os focinhos trêmulos
para o céu e uivavam como almas no inferno.
Então, uma cena seguiu-se à outra, com tamanha
rapidez que cada uma parecia tropeçar nos calcanhares da anterior. Houve uma confusão
de movimentos, um retorcer e mesclar de luz e sombras, contra um fundo de selva
negra, ruínas de pedras verdes e rio de águas escuras e sujas. Homens negros subiam
o rio, em longos barcos enfeitados com caveiras sorridentes na proa, ou andavam
furtivamente, agachados, no meio das árvores, de lança na mão. Fugiram gritando,
de um par de olhos vermelhos e presas babantes. Os uivos dos homens moribundos
sacudiram as sombras; pés furtivos caminharam pelas trevas, e olhos de vampiro arderam
vermelhos. Houve horríveis banquetes à luz da lua, através de cujo disco
vermelho uma sombra, semelhante à de um morcego, girava sem cessar.
Então, abruptamente, destacada em claro contraste com
esses vislumbres impressionistas, ao redor da colina coberta pela selva, à luz embranquecida
da aurora, surgiu uma longa galera, apinhada por brilhantes figuras de ébano, e,
em pé na proa, havia um fantasma em aço azul.
Foi nesse instante que Conan percebeu, pela primeira
vez, que estava sonhando. Até aquele momento, não tinha tido consciência de sua
existência como indivíduo. Mas, ao ver a si mesmo caminhando sobre o convés do Tigresa, ele reconheceu tanto a existência
quanto o sonho que vivia, embora não tivesse ainda despertado.
Ainda durante o sonho, a cena mudou rapidamente para
uma clareira na selva, onde N’Gora e dezenove lanceiros negros estavam parados,
como se esperassem por alguém. Ao dar-se conta de que era por ele que
esperavam, um horror desceu do céu, e a impassibilidade deles foi rompida por
gritos de medo. Como homens enlouquecidos de terror, eles atiraram para longe
as suas armas e correram desesperados pela floresta, seguidos de perto pela monstruosidade
voadora que batia suas asas sobre eles.
O caos e a confusão seguiram-se a essa visão, durante
a qual Conan se esforçou fracamente para despertar. Vagamente, ele parecia ver
a imagem de seu próprio corpo deitado sobre um cacho inclinado de flores
negras, enquanto uma figura medonha vinha do meio dos arbustos, arrastando-se
em sua direção. Com um esforço selvagem ele rompeu os invisíveis laços que o
mantinham preso ao seu sonho, e levantou-se de um salto.
Ele lançou um olhar desnorteado ao redor. Ao seu lado
balançavam os ramos da lótus negra, que ele imediatamente afastou do rosto.
No solo esponjoso próximo a ele, viu uma pegada, como
se um animal tivesse colocado a pata para fora dos arbustos para sair dali,
recuando de novo para o esconderijo. Parecia a marca da pata de uma hiena
incrivelmente grande.
Ele gritou o nome de N’Gora. Um silêncio primordial reinava
sobre a floresta, fazendo seus gritos parecerem vazios e inseguros, como uma
espécie de zombaria. Ele não conseguia ver o sol, mas seus instintos treinados
na selva indicavam que o dia estava chegando ao fim. Um pânico tomou conta dele,
ao pensar que havia ficado inconsciente durante horas. Ele seguiu rapidamente a
trilha deixada pelos lanceiros, que era bastante clara na terra úmida à sua
frente. Os rastros seguiam em fila única, e ele logo emergiu numa clareira. Ali
ele parou de repente, sentindo um calafrio na espinha ao reconhecer naquele
lugar a clareira que tinha visto no pesadelo provocado pela lótus negra.
Escudos e lanças estavam espalhados por toda parte, como se tivessem caído ao
chão numa fuga repentina.
E, pelos rastros que levavam para fora da clareira,
cada vez mais profundamente na floresta, Conan percebeu que os lanceiros tinham
fugido como loucos. As pegadas se sobrepunham umas às outras; entrelaçavam-se cegamente
entre as árvores. De maneira súbita, o cimério que corria saiu do meio da floresta
e se viu diante de uma enorme rocha parecida com uma colina, bastante inclinada,
que acabava de repente num precipício de quinze metros de altura. E havia
alguma coisa agachada na beirada.
A princípio, Conan pensou que fosse um enorme gorila
negro. Observou então que era um gigantesco homem negro, agachado como um
macaco, os longos braços pendurados, espumando pelos lábios frouxos. Foi apenas
quando a criatura levantou as grandes mãos, deu um grito que mais parecia um
soluço e correu na direção dele, que Conan reconheceu a figura de N’Gora. O
negro não deu atenção ao grito de Conan quando avançou com os olhos revirados
para cima, os dentes arreganhados, o rosto semelhante a uma máscara inumana.
Com a pele arrepiada pelo horror que a loucura sempre
inspira nas pessoas de mente sadia, Conan enfiou sua espada no corpo do negro;
então, evitando as mãos em forma de gancho que tentavam agarrá-lo quando N’Gora
tombou, ele foi até a beira do precipício.
Durante alguns instantes, ficou olhando para as
pedras denteadas lá embaixo, onde jaziam os homens de N’Gora, com posições
flácidas e contorcidas, indicando terem morrido com os membros arrebentados e
os ossos quebrados. Ninguém se movia. Uma nuvem de enormes moscas pretas zumbia
alto sobre as pedras molhadas de sangue. As formigas já haviam começado a roer
os cadáveres. Sobre as árvores amontoavam-se as aves de rapina, e um chacal,
olhando para cima e vendo o homem sobre a rocha, afastou-se furtivamente dali.
Por um curto espaço de tempo, Conan ficou imóvel. Então,
deu meia-volta e correu de volta pelo caminho de onde viera, lançando-se com
pressa temerária por entre o capim alto e os arbustos, e saltando as
trepadeiras – espalhadas pelo seu caminho como serpentes. Brandia a espada na
mão direita e seu rosto moreno estampava uma palidez incomum.
O silêncio que reinava na floresta permanecia
inviolado. O sol havia se posto, e grandes sombras negras surgiam do lodo da
terra escura. Entre as fantasmagóricas imagens de morte e sombria desolação
daquele lugar, Conan parecia um relâmpago de escarlate e aço azul. Nenhum som
se ouvia na solidão da floresta, a não ser a sua própria respiração ofegante,
quando ele saiu das sombras da mata para o fraco clarão do crepúsculo à beira
do rio.
Ele viu a galera ao lado do ancoradouro destruído,
assim como as ruínas que pareciam cambalear como homens bêbados no lusco-fusco
cinzento.
Aqui e ali, entre as pedras, havia manchas de cores
mais vivas, como se uma mão descuidada tivesse espalhado a tinta de um pincel mergulhado
em escarlate.
Mais uma vez, Conan punha os olhos sobre morte e destruição.
Diante dele, jaziam os lanceiros, nenhum dos quais se levantou para saudá-lo.
Havia corpos caídos desde a margem da selva até a beira do rio, entre os
pilares apodrecidos e ao longo do píer quebrado – dilacerados, mutilados e semi-devorados...
meras lembranças mastigadas de homens.
Ao redor dos corpos e dos pedaços de corpos, havia
aglomerados de enormes rastros, como os de hienas.
Conan chegou silenciosamente até o cais,
aproximando-se da galera sobre cujo convés parecia estar dependurada uma coisa
que, à luz fraca do crepúsculo, tinha a brancura do marfim. O cimério perdeu a
fala, quando ergueu os olhos para a Rainha da Costa Negra, enforcada no mastro
principal de seu próprio navio. Entre o mastro e sua garganta branca, estava
esticada uma linha de coágulos vermelhos, que brilhavam como sangue à luz cinza.
4) O Ataque Vindo do Ar
As sombras eram negras ao
redor dele,
As mandíbulas gotejantes se
escancaravam,
Mais espessas que a chuva,
gotas rubras caíam;
Mas meu amor era mais feroz
que o feitiço negro da Morte,
Nem todos os muros de ferro
do inferno
Impediriam que eu ficasse ao
seu lado.
- A Canção de Bêlit
A floresta parecia um colosso negro que apertava a
clareira, alastrada de ruínas, em seus braços de ébano. A lua não aparecera no
céu. As estrelas não passavam de manchas de âmbar quente num céu sem vento, que
tinha o desagradável cheiro da morte. Sobre a pirâmide, entre as torres caídas,
estava sentado Conan, o cimério, como uma estátua de ferro, o queixo apoiado
sobre os punhos fortes. Lá nas sombras negras, patas furtivas caminhavam, e
olhos vermelhos reluziam. Os mortos jaziam onde haviam tombado. Mas, sobre o
convés do Tigresa, numa pira feita
com bancos quebrados, cabos de lanças e peles de leopardo, jazia o corpo da Rainha
da Costa Negra em seu derradeiro sono, envolto na capa escarlate de Conan.
Jazia como uma verdadeira rainha, com sua pilhagem amontoada ao seu redor:
sedas, bordados de ouro, tranças de prata, barris de jóias e de moedas de ouro,
lingotes de prata, punhais cravejados de jóias e pequeninas pirâmides de quinas
douradas.
Mas apenas as águas sombrias do Zarkheba sabiam onde
Conan havia atirado, com uma blasfêmia pagã, o tesouro pilhado daquela cidade
maldita. Agora ele se sentava sombrio sobre a pirâmide, esperando por seus inimigos
invisíveis. A fúria negra em sua alma não deixava lugar para o medo. Ele não
sabia que tipo de forma poderia surgir da escuridão, e tampouco se importava.
Já não duvidava mais das visões proporcionadas pela
lótus negra. Tinha entendido que, enquanto esperavam por ele na clareira,
N’Gora e seus companheiros tinham sido aterrorizados pelo monstro alado que os
atacara das alturas, e que, ao fugir dele em pânico cego, haviam caído no
precipício – todos, exceto o líder do grupo que, de alguma forma, conseguira
escapar do mesmo destino, embora não tivesse escapado da loucura. Enquanto
isso, ou logo depois, ou talvez mesmo antes, havia sido realizada a destruição daqueles
que se encontravam às margens do rio. Conan não duvidava que a morte desse
segundo grupo tivesse sido mais um massacre que uma batalha. Dominados por seus
próprios medos supersticiosos, os negros provavelmente tinham morrido sem desfechar
um golpe sequer em sua própria defesa, quando atacados por seus inimigos inumanos.
Ele não entendia por que tinha sido poupado por tanto
tempo, a menos que a maligna criatura que dominava o rio quisesse mantê-lo vivo
para torturá-lo com a tristeza e o medo. Tudo apontava para uma inteligência
humana ou sobre-humana: o quebrar dos barris de água, para dividir as forças, a
perseguição aos negros até o precipício e, por último, a atitude repugnante de
amarrar o colar vermelho, como o laço de um carrasco, ao redor do pescoço
branco de Bêlit.
Como se tivesse aparentemente guardado o cimério para
o final, na categoria de vítima principal, e tendo extraído dele a última gota
de intensa tortura mental, era provável que o inimigo desconhecido concluiria o
drama, matando-o após as demais vítimas. Nenhum sorriso apareceu nos lábios sombrios
de Conan quando ele teve esse pensamento, mas seus olhos se acenderam numa
gargalhada implacável.
A lua apareceu no céu, fazendo brilhar o capacete com
chifres de Conan. Nenhum barulho provocou eco; mas, de repente, a noite ficou
tensa e toda a floresta pareceu prender a respiração. Instintivamente, Conan
soltou o cordão de couro que prendia sua espada na bainha. A pirâmide sobre a
qual estava era de quatro lados, e um desses lados, o que dava de frente para a
floresta, tinha degraus lapidados na rocha. Nas mãos, ele tinha um arco
shemita, como aqueles que Bêlit ensinara seus piratas a usar. A seus pés, havia
um monte de flechas, com a parte das penas voltada para o seu lado, quando ele
se apoiou sobre um dos joelhos.
Alguma coisa se moveu na escuridão sob as árvores.
Desenhada abruptamente à luz do luar, Conan viu uma cabeça e um par de ombros
indefinidos, com um contorno brutal. Então, do meio das sombras, foram surgindo
outras figuras escuras, rápidas, correndo junto ao solo: vinte grandes hienas pintadas.
Suas presas babantes brilhavam ao luar, os olhos ardiam mais que o de qualquer
outro animal já visto.
Vinte: então as lanças dos piratas haviam provocado
perdas na matilha, afinal de contas. Enquanto este pensamento lhe passava pela
cabeça, Conan puxou a corda do arco até a orelha e, ao zunir daquela mesma
corda, uma sombra de olhos ardentes saltou para o alto e tombou retorcida. O
restante não hesitou, mas continuou avançando e, como uma chuva de morte, as
flechas de Conan caíram entre eles, lançadas com toda a força e precisão dos
seus nervos de aço, alimentados por um ódio tão quente quanto os vulcões do inferno.
Em sua fúria berserk,
ele não errava o alvo; o ar estava impregnado por destruição emplumada. A
confusão, gerada entre a matilha que avançava, era intensa. Menos da metade das
estranhas criaturas chegou aos pés da pirâmide. Outras tombaram diante dos
largos degraus. De olhar fixo naqueles brilhantes pares de olhos ardentes,
Conan sabia que as criaturas não eram animais selvagens; não era apenas no seu
tamanho extraordinário que ele percebia existir uma diferença blasfema. Elas
projetavam uma aura tão visível quanto a névoa escura que subia de um pântano
forrado de cadáveres. Ele não conseguia adivinhar que tipo de alquimia ímpia teria
trazido aquelas criaturas à existência; mas sabia que estava diante de algum
diabolismo mais negro que o Poço de Skelos.
Erguendo-se de um pulo, ele curvou com toda força o
arco e disparou sua última flecha, apontando para uma enorme criatura negra e
peluda que voava por cima dele. A flecha parecia um raio de luar que lampejava
como um relâmpago com apenas um borrão em seu curso, mas a besta selvagem
mergulhou convulsivamente no meio do ar e se espatifou com tudo, atravessada
pela seta.
Então as outras criaturas caíram sobre ele, num
violento pesadelo de olhos ardentes e presas gotejantes. Sua espada implacável ceifou
a primeira, lançando-a para longe; então, o impacto desesperado das outras
feras o derrubou. Ele arrebentou o pequeno crânio de uma delas com o cabo da espada,
sentindo o osso quebrar, e o sangue e os miolos escorrerem por sua mão; então, deixando
cair sua espada, inútil numa luta mortal a tão curta distância, agarrou as
gargantas de dois horrores, que mordiam e dilaceravam implacavelmente sua pele,
com uma fúria silenciosa. Um fedor azedo quase o sufocou, e o próprio suor o
deixou cego. Só a malha metálica impediu que seu corpo fosse cortado em tiras
num instante. Em seguida, sua mão nua apertou uma garganta peluda e a abriu ao
meio. Sua mão esquerda, ao errar o bote sobre o outro pescoço, agarrou e quebrou
uma das patas dianteiras da outra fera. Um latido curto, dado pela criatura de
pata quebrada, foi o único ganido ouvido naquela batalha selvagem, e era
horrivelmente humano. Sentindo horror doentio ao ouvir o ganido produzido pela
garganta selvagem, Conan involuntariamente afrouxou o aperto dos seus dedos.
Uma das bestas, com o sangue jorrando de sua jugular
cortada, investiu contra ele, num derradeiro espasmo de ferocidade, e fincou as
presas em sua garganta – para cair morta no mesmo instante em que Conan sentia a
dor do corte provocado pela mordida.
A outra besta, saltando em três patas apenas, retalhava
sua barriga como um lobo feroz, literalmente rasgando a malha metálica de sua
armadura. Lançando o animal agonizante para o lado, Conan agarrou aquele horror
aleijado e, com um esforço muscular tão grande que provocou um gemido de seus
lábios manchados de sangue, ele se levantou com aquele demônio contorcido e
desorientado nos braços. Por um instante em que ficou desequilibrado, a
criatura lançou seu hálito fétido e quente sobre suas narinas, e suas presas
quase lhe alcançaram a garganta. Então, juntando todas as suas forças, arremessou
a fera contra os degraus de mármore, e com tamanha violência que chegou a ouvir
o barulho dos ossos ao se arrebentarem.
Quando cambaleou sobre as pernas abertas, tentando
recuperar o fôlego, a selva e a lua boiando vermelhas como sangue diante de
seus olhos, Conan ouviu as batidas altas de asas de morcego em seus ouvidos.
Abaixando-se, ele tateou em busca da espada e, erguendo-se vacilante, firmou os
pés como um bêbado e ergueu a grande lâmina acima da cabeça com as duas mãos,
sacudindo o sangue dos olhos e procurando no ar por seu inimigo.
Ao invés do ataque pelo ar, a pirâmide balançou súbita
e terrivelmente debaixo de seus pés. Ele ouviu um estrondo e crepitar, e viu a alta
coluna acima dele balançar como um bastão. Com a vontade de viver renovada,
saltou para bem longe; seus pés atingiram um dos degraus, a meio caminho entre
o cume e a base da pirâmide, o qual cedeu sob o seu peso, e o próximo salto
desesperado o lançou para longe dali. No mesmo instante em que seus calcanhares
alcançaram o solo, a pirâmide desmoronou com um estrondo ensurdecedor, como uma
montanha se quebrando, e a coluna de pedra que havia sobre ela tombou em inúmeros
pedaços. Por um cego instante cataclísmico, o céu parecia fazer chover pequenos
pedaços de mármore. Logo, um entulho de pedras despedaçadas jazia branco sob o luar.
Conan sacudiu o corpo, livrando-se dos estilhaços que
o cobriam parcialmente. Um golpe oblíquo derrubara seu capacete e o deixara momentaneamente
aturdido. Sobre suas pernas havia um grande pedaço da coluna, impedindo-o de se
mover. Ele suspeitou que pudesse estar com as pernas quebradas. Suas mechas
negras estavam empastadas de suor. O sangue escorria dos ferimentos em seu
pescoço e mãos. Puxou o corpo com um dos braços, lutando contra os escombros
que o prendiam ao solo.
Nesse instante, alguma coisa desceu dentre as
estrelas e atingiu a relva perto dele. Torcendo o corpo, ele viu: a criatura
alada!
Com uma velocidade assustadora, a coisa se lançava
sobre ele e, naquele momento, Conan só teve uma confusa impressão de uma gigantesca
figura de aparência humana, avançando violentamente sobre pernas curvadas e curtas;
de enormes braços peludos, estirando patas disformes com unhas negras; de uma
cabeça disforme, em cujo rosto largo só conseguia ver um par de olhos vermelhos
como sangue. Aquela coisa não era homem, nem animal e nem demônio, mas
demonstrava ser dotada de características sub-humanas, assim como sobre-humanas.
Mas Conan não tinha tempo para raciocinar de maneira
consciente. Atirou o corpo na direção da espada caída, e faltaram uns poucos
centímetros para que os dedos alcançassem a arma. Desesperado, ele agarrou o
fragmento de rocha que lhe prendia as pernas, e as veias incharam em suas
têmporas, com o esforço que fez para se livrar. A pedra cedia devagar, mas ele
sabia que, antes de poder se libertar, o monstro o alcançaria; e também sabia
que aquelas garras afiadas traziam a morte.
A corrida do monstro alado não diminuiu. Já se erguia
sobre o prostrado cimério como uma sombra negra, com os braços abertos... e um
fraco raio branco se interpôs entre a criatura e sua vítima.
Num louco instante, ela estava lá: uma figura branca
e tensa, vibrante com uma paixão tão feroz quanto a de uma pantera. O aturdido
cimério a viu entre ele e a morte que avançava, sua imagem esbelta e tremeluzindo
como marfim sob o luar; viu o resplandecer dos seus olhos escuros, e os cachos
abundantes dos seus cabelos polidos; seu peito arfava, e seus lábios vermelhos
estavam entreabertos, e ela soltava gritos estridentes que ressoavam como o aço
enquanto ela estocava o peito do monstro alado.
— Bêlit! — gritou Conan. Ela lançou um rápido olhar
na sua direção, e ele viu o amor intenso que ardia nos seus olhos escuros...
uma sensação elementar de fogo puro e lava derretida. Então ela desapareceu, e
o cimério só viu o demônio alado que cambaleava para trás, dominado por um medo
fora do comum, com os braços erguidos como se para desviar um ataque. Ele sabia
que o corpo de Bêlit jazia em sua pira, no convés do Tigresa. Nos seus ouvidos, ecoava a promessa apaixonada: “Se eu
estivesse imóvel na morte e você lutando pela vida, eu voltaria do abismo...”.
Com um grito terrível, ele se levantou, arremessando
a pedra para o lado. O monstro alado atacou novamente, e Conan saltou para
enfrentá-lo, com as veias ardendo de loucura. Os músculos retesaram-se como
cordões em seus antebraços, quando ele girou a grande espada, rodando nos
calcanhares com a força do movimento. A espada atingiu o monstro na altura da cintura,
cortando-o em dois pedaços: as pernas nodosas tombaram para um lado, enquanto o
tronco peludo caía para o outro.
Conan ficou parado em meio ao silêncio iluminado pelo
luar, com a espada gotejante pendurada em sua mão e olhando para o que restava
de seu inimigo. Os olhos vermelhos se arregalavam para ele com vida medonha;
depois, vitrificaram e pararam de se mover; as grandes mãos se retorceram
espasmodicamente e enrijeceram. E a mais antiga raça do mundo estava extinta.
Conan ergueu a cabeça, procurando mecanicamente pelas
coisas bestiais que haviam sido escravos e carrascos daquele monstro. Não
encontrou uma sequer. Os corpos, que ele viu alastrados sobre a grama enluarada,
eram de homens, não de animais: homens de rosto aquilino e pele escura,
trespassados por flechas ou dilacerados por golpes de espada. E estavam se
transformando em pó, diante dos seus olhos.
Por que não teria o mestre alado vindo ajudar seus
escravos quando Conan lutara contra eles? Teria ficado com medo do ataque das
presas que poderiam atingi-lo? A destreza e o cuidado que se ocultavam naquela
cabeça disforme não haviam adiantado muito no final.
Virando as costas, Conan caminhou em direção às
ruínas do cais e subiu a bordo do navio. Com alguns golpes de espada, ele cortou
as amarras, deixou-o à deriva e foi para o leme. O Tigresa balançou devagar na água sombria, escorregando lentamente
na direção do meio do rio, até que a larga correnteza o alcançou. Conan segurou
firme no leme, com o olhar sombrio fixo na forma envolta em capa escarlate, que
jazia pomposamente sobre a pira, e cuja riqueza era semelhante ao resgate de
uma imperatriz.
5) A Pira Funerária
Agora já não mais vagamos mais;
Não remamos nem ouvimos o cantar
agudo do vento;
Nem a bandeira escarlate
assusta mais a praia escura
Faixa azul do mundo, receba
de volta
Aquela que tu me deste.
- A Canção de Bêlit
A aurora tingiu de novo o oceano. Um brilho mais
avermelhado iluminava a foz do rio. Conan da Ciméria se apoiava sobre sua
grande espada, na praia de areias brancas, observando o Tigresa partir em sua derradeira viagem. Não havia brilho nos seus olhos,
que contemplavam as ondas vítreas. Toda glória e maravilha desapareceram
daquela vastidão azul que encapelava. Uma feroz revolta o sacudiu, quando ele olhou
para as ondas verdes, que se transformavam em névoas purpúreas de mistério.
Bêlit tinha pertencido ao mar. Ela emprestara
esplendor e fascínio ao oceano. Sem ela, as águas nada mais eram do que uma
vastidão estéril, lúgubre e desolada, de um pólo ao outro. Ela pertencia ao mar;
e ele a devolvia aos seus mistérios eternos. Nada mais poderia fazer. Para ele,
aquele cintilante esplendor azul era agora mais repelente do que as árvores
frondosas que sussurravam e murmuravam lá atrás, falando das vastidões misteriosas
e selvagens atrás de si, e nas quais ele teria de entrar.
Ninguém segurava o leme do Tigresa; nenhum remo impulsionava o
barco pelas águas verdes. Mas uma brisa forte enchia sua vela de seda; e, assim
como um gigantesco cisne que corta os céus em direção ao seu ninho, a galera alcançava
o mar alto, com as chamas erguendo-se cada vez mais do convés, lambendo o
mastro e envolvendo a figura que jazia enrolada na capa escarlate sobre a pira brilhante.
E assim se foi a Rainha da Costa Negra; e, com o
corpo apoiado sobre sua espada manchada de vermelho, Conan ali ficou em
silêncio, até o clarão vermelho desaparecer no meio das névoas azuladas e a
aurora trazer de volta o seu brilho rosa e dourado sobre o oceano.
FIM
Tradução:
Silvio Alexandre.
Revisão:
Fernando Neeser de Aragão.
Fontes: Conan – Espada e Magia #4, https://docs.com/YXWI e http://gutenberg.net.au/ebooks06/0600961h.html
A seguir: Um Demônio em Shumballa (desenvolvido a partir de um fragmento/sinopse de Robert E. Howard).