Um Novo Recomeço... A Cidade Negra


Introdução:

No conto a seguir – um fragmento de Kull, iniciado por Robert E. Howard e completado por mim –, dou início a uma nova série de contos neste blog. As aventuras que sucederão o pasticho abaixo visam preencher o máximo possível de lacunas, deixadas por Howard, na vida de sua mais famosa criação literária: Conan, o Cimério.

Sobre ele, serão publicadas diversas aventuras da minha autoria, intercaladas por sinopses de Howard – e até por contos completos dele, retraduzidos e nunca dantes publicados no Crônicas! Nos meus pastichos, procurei expandir o universo howardiano acerca do Cimério, mostrando (sem adicionar conceitos de outros autores que já escreveram contos do personagem – exceto os meus próprios conceitos e personagens) a vida do bárbaro, do nascimento até a velhice e um pouco mais além, e evitando ao máximo contradizer a obra do criador de Conan.

Os leitores leigos verão contos que irão introduzi-los e familiarizá-los com a Era Hiboriana, enquanto os veteranos terão a chance de ler aventuras que, desprovidas de personagens e conceitos de L. Sprague DeCamp, Marvel, Dark Horse e outros, estarão (eu espero) fiéis à concepção de Robert E. Howard.

Espero que todos possam apreciar este... novo recomeço!





A Cidade Negra
(por Robert E. Howard e Fernando N. de Aragão)


Os olhos frios de Kull, rei da Valúsia, se nublaram de perplexidade ao pousarem no homem que tão abruptamente se dirigira à presença real, e que agora se encontrava diante do rei, trêmulo de ira. Kull suspirou; ele conhecia os bárbaros que o serviam, afinal não era ele próprio um atlante de nascença? Brule, o Lanceiro, irrompendo rudemente na câmara do rei, havia arrancado de sua armadura quaisquer emblemas que lhe foram dados pela Valúsia, e agora estava despido de qualquer sinal que o mostrasse como aliado do império. E Kull sabia o significado deste gesto.

- Kull! – vociferou o picto, pálido de fúria. – Quero justiça!

Kull suspirou novamente. Havia ocasiões em que paz e tranqüilidade eram coisas a serem desejadas, e em Kamula, ele achou que as tivesse encontrado. Kamula, a sonhadora... mesmo enquanto ele esperava o furioso picto continuar suas injúrias, os pensamentos de Kull vagavam de volta aos dias lânguidos e preguiçosos que haviam passado desde sua chegada a esta cidade montanhosa, cujos palácios de mármore e lápis-lazúli foram construídos, camada sobre camada, ao redor da colina em forma de cúpula que formava o centro da cidade.

- Meu povo tem sido aliado do império por mil anos! – o picto fez um gesto rápido e furioso com o punho fechado. – Agora, um de meus guerreiros pode ser arrebatado debaixo do meu nariz, no próprio palácio do rei?

Kull se empertigou, sobressaltado:

- Que loucura é esta? Que guerreiro? Quem o capturou?

- Você precisa descobrir – rosnou o picto. – Num momento, ele estava lá, recostado contra uma coluna de mármore... no seguinte... záz! Havia desaparecido, deixando apenas um repugnante mau cheiro e um grito assustador como rastros.

- Talvez um marido ciumento... – ponderou Kull.

Brule interrompeu rudemente:

- Grogar nunca olhou para mulher alguma... nem mesmo as de sua própria raça. Estes kamulianos odeiam a nós, pictos. Eu vejo isto no olhar deles.

Kull sorriu:

- Você está sonhando, Brule; este povo é muito indolente e amante do prazer para odiar a alguém. Eles amam, cantam, compõem poemas... Suponho que você pensa que Grogar foi arrebatado pelo poeta Talígaro, a cantora Zareta ou o príncipe Mandara?

- Não me importo! – rosnou Brule. – Mas isto eu lhe digo, Kull: Grogar derramou seu sangue feito água pelo império, e ele é o meu melhor chefe dos arqueiros montados. Vou achá-lo, vivo ou morto, mesmo que eu tenha de rasgar Kamula, pedra por pedra! Por Valka, darei esta cidade de alimento para as chamas, e apagarei as chamas com sangue...

Kull se ergueu de sua cadeira.

- Leve-me até o local onde viu Grogar pela última vez – ele disse, e Brule cessou suas injúrias e, mal-humorado, mostrou o caminho.

Saíram da câmara, através de uma porta interna, e desceram um corredor sinuoso, lado a lado, tão diferentes no aspecto quanto dois homens poderiam ser, embora iguais na flexibilidade do movimento, na rapidez do olhar e na intangível selvageria que indicava o bárbaro.

Kull era alto, de ombros largos e peito profundo – volumoso, porém flexível. Seu rosto era marrom, devido ao sol e ao vento; seu negro cabelo, de corte reto, era como a juba de um leão; seus olhos cinzas, frios como uma espada lampejando através de braças de gelo.

Brule era típico de sua raça: de estatura média, constituído com a economia selvagem de uma pantera, e com a pele bem mais escura que a do rei.

- Estávamos no Salão das Jóias – grunhiu o picto. – Grogar, Manaro e eu. Grogar estava recostado contra uma coluna que havia dentro da parede, quando deslocou todo o peso contra a parede... e desapareceu diante de nossos olhos! Um painel virou para dentro, e ele sumiu... e tivemos apenas um vislumbre de negra loucura lá dentro, e uma cena repugnante fluiu momentaneamente para fora. Mas Manaro, que estava ao lado de Grogar, sacou a espada naquele momento, e enfiou a boa lâmina na abertura, de modo que o painel não se fechou completamente. Nós nos arremetemos contra ele, mas não cedeu e eu corri atrás de você, deixando Manaro segurar a espada dele na fenda.

- E por que você arrancou seus emblemas valusianos? – perguntou Kull.

- Eu estava furioso – resmungou o lanceiro, mal-humorado e evitando os olhos de Kull. O rei acenou com a cabeça, sem responder. Era a atitude natural e irracional de um selvagem enfurecido, para o qual não aparece nenhum inimigo natural para ser cortado e dilacerado.

Adentraram o Salão das Jóias, cuja parede mais afastada ficava dentro da pedra natural da colina onde Kamula foi construída.

- Manaro jurou ter ouvido um sussurro como o de uma música – grunhiu Brule. – Lá está ele, inclinado e com o ouvido na rachadura. Olá, Manaro!

Kull franziu a sobrancelha, ao ver que o valusiano alto não mudou de posição nem deu atenção ao chamado. Estava realmente inclinado contra o painel, uma das mãos agarrando a espada que segurava a entrada secreta, e um dos ouvidos grudado na estreita fenda. Kull percebia a escuridão quase material daquela fina faixa de negrume – parecia-lhe que, além daquela abertura desconhecida, a escuridão se escondia como uma coisa viva e sensível.

Ele caminhou impaciente para diante, e deu uma pesada palmada no ombro do soldado. E Manaro estremeceu e se afastou da parede, indo cair duro aos pés de Kull, com os olhos vitrificados de horror, mirando inexpressivos para o alto.

- Valka! – praguejou Brule. – Ele foi apunhalado... fui um tolo em deixá-lo sozinho aqui...

O rei sacudiu a cabeça leonina:

- Não há sangue nele... olhe para seu rosto.

Brule olhou e praguejou. As feições do valusiano morto estavam paralisadas numa máscara de horror... e a impressão era claramente a de um ouvinte.

Kull se aproximou cautelosamente da fenda na parede, e logo chamou Brule com um aceno. De algum lugar além daquele portal misterioso, saía um tênue e lastimoso som, semelhante ao de uma fantasmagórica música de flauta. Era tão fraco que mal se ouvia, mas trazia em sua música todo o ódio e veneno de mil demônios. Kull encolheu os gigantescos ombros. Então, concentrando toda a força leonina de seus magníficos músculos na espada que segurava a porta, o rei da Valúsia a abriu lenta e inexoravelmente, com a quase desnecessária ajuda do lanceiro, e com gotas de suor lhe brotando da face, devido ao esforço hercúleo. Logo, os dois bárbaros acenderam, cada um uma tocha, e começaram a descer uma escadaria de pedra, a qual ficava logo após a porta. Em seguida, eles também ouviram, juntamente com aquela música estranha, um fraco matraquear – como os cascos de um bode sobre um chão de mármore.

Passaram por colunas simples e sem qualquer tipo de ornamentação, e se viram dentro de um enorme salão, flanqueado por pilares atarracados de pedra negra – e estes eram de fato entalhados. Uma figura atarracada se acocorava no alto de cada um, como se sobre um pedestal, mas, à luz fraca das tochas que eles levavam, era impossível distinguir que tipo de criaturas estas figuras representavam, embora houvesse uma odiosa insinuação de anormalidade em cada forma.

À medida que Kull e Brule avançavam, o som ia ficando cada vez mais alto. À frente deles, as sombras empalideceram, e eles chegaram a uma larga câmara circular, com um teto abobadado. Ao redor desta câmara, havia mais pilares, espaçados regularmente, e, à luz que, de alguma forma, fluía através da cúpula, os guerreiros viram a natureza daqueles pilares e as formas que os coroavam. Kull praguejou entre dentes, e Brule cuspiu. As figuras eram humanas, e nem mesmo o gênio degenerado do menestrel Ridondo – se este fosse escultor – conseguiria conceber tais obscenidades, nem soprar na pedra torturada tal vida repugnante. Kull carranqueou. Aqui e ali, nas esculturas, os artistas desconhecidos haviam dado um toque de irrealidade – uma sugestão de anormalidade além de qualquer deformidade humana.

Aparentemente, não havia entrada entre os pilares meditativos e malignos. Mas o barulho, cada vez mais alto – e o mau cheiro, cada vez maior –, indicou aos dois bárbaros por onde seguirem. Com suas tochas no alto e lâminas em punho, o picto e o atlante adentraram a passagem. Súbito, da escuridão daquele corredor onde eles já se encontravam, algo veio saltando e dando cabriolas. A criatura pulava e piruetava como um bode, mas corria ereta... e, à luz fraca, não era diferente de um homem. E quase agarrou o Rei da Valúsia, antes que ele tivesse a percepção de golpear com a lâmina, molhando de vermelho o piso de ladrilho e pondo fim àquela forma profana de vida que os atacara.

Kull e Brule se abaixaram e, à luz das tochas, puderam distinguir as feições da criatura. Tinha forma de bode, apesar de ter corrido ereta, as mãos eram humanas, e o rosto compartilhava assustadoramente feições tanto de bodes quanto de humanos.

- Foi esta a cena de loucura que vislumbrei – disse Brule. – Mas havia mais outros, além deste.

Minutos depois, emergindo em outra sala, Kull e Brule viram mais esculturas como as anteriores – as quais eles agora sabiam ser representações daquela coisa, à qual Kull matara pouco antes. Súbito, um gemido – que, apesar de fraco, se sobressaiu em meio ao barulho – chamou a atenção dos dois guerreiros.

Amarrada à parede entre as esculturas repugnantes, pendia uma forma nua. Era um homem de cabelos castanhos, pendurado nas correntes que o mantinham semi-ereto. A princípio, Kull pensou que estivesse morto – e, olhando fixamente para as pavorosas mutilações que haviam sido lavradas sobre ele, decidiu que seria melhor se ele estivesse assim. Então, a cabeça se ergueu lentamente, e um gemido baixo foi suspirado através dos lábios amassados.

- Por Valka! – praguejou Brule assombrado. – É o poeta Talígaro!

Kull se aproximou, curvou e examinou as correntes que o prendiam. Então, com um grunhido, ele ergueu sua espada e deu um breve e poderoso golpe. Os elos se partiram sob a lâmina afiada, e o homem despencou para a frente nos braços de Brule, livre da parede, mas com as pesadas algemas ainda em seus pulsos e tornozelos; estas, Kull viu, afundaram na carne à qual o metal rude e enferrujado havia envenenado.

- Kull... Brule... – ofegou o jovem, tossindo sangue. – Estou além de qualquer ajuda... Mas vocês ainda podem... salvar Grogar, Mandara e Zareta... antes que seja tarde demais... Lá! Desçam por aquela abertura, à minha esquerda... Sigam o som da flauta. – E, com um tremor convulsivo em todo o seu corpo, uma golfada de sangue lhe saiu pela boca e os olhos do poeta se vitrificaram. Estava morto.

Descendo mais um lance de escadas, após a abertura mencionada por Talígaro, o picto e o atlante se depararam com uma cena de pesadelo e loucura. À luz de tochas, encaixadas nas colunas e paredes, inúmeras crias-bodes dançavam, saltavam e piruetavam ao som profano e infernal daquela música de flauta, tocada por uma daquelas criaturas.

O picto Grogar e o kamuliano Mandara estavam amarrados em duas das colunas nos subterrâneos da cidade, tão mortos e mutilados quanto o poeta Talígaro. A visão de Grogar morto encheu de ódio o coração de Brule. A coisa-bode que tocava a flauta usava também um punhal – o mesmo com o qual matara Grogar, Mandara e Manaro. Mas, amarrada e despida numa coluna próxima ao cadáver do picto e do thuriano, estava Zareta, ainda viva, com lágrimas escorrendo de seus lindos olhos escuros, e seus alvos seios nus subindo, descendo e tremendo à medida que ela arfava de medo.

Com ânsia de vingarem Grogar e os dois thurianos mortos, bem como de salvar Zareta, Kull e Brule saíram uivando para o meio daquela sala de horror. O infernal som da flauta parou abruptamente e, numa inundação de loucura negra e horror vermelho, as criaturas-bode ali presentes deram a volta e caíram de assalto sobre eles. O homem-bode tocador de flauta tentou arremessar seu punhal na jovem cantora, mas teve o crânio rachado pela espada de Brule, antes que pudesse fazer qualquer mal à moça. Logo, com suas espadas de prontidão, e o picto agarrando, na mão esquerda, a adaga que caíra das mãos sem vida do tocador de flauta, os dois guerreiros se posicionaram, um a cada lado de Zareta. Tudo o que a bela cantora podia fazer era gritar de horror, enquanto os dois bárbaros defendiam sua vida. As criaturas estavam desarmadas, mas tinham chifres, presas e garras. Elas lutavam como as bestas lutam, mas com menos astúcia e habilidade que as bestas. E o picto e o atlante, com os olhos ardentes pelo desejo de batalha, giravam suas espadas em poderosos golpes mortais.

- Por Valka e pelo sangue de Valka – praguejou Brule, partindo uma cria-bode ao meio com um único golpe de sua espada ensangüentada –; talvez vocês achem mais difícil matar homens armados do que torturarem civilizados nus, crias do Inferno!

Chifres curvos, garras retalhadoras e presas mastigadoras haviam encontrado carne e arrancado torrentes de sangue de Grogar, Talígaro e Mandara, mas, protegidos somente por suas espadas e cotas-de-malha, Kull e Brule sofreram relativamente pouco, enquanto suas lâminas sibilantes e perfuradoras cobravam uma taxa medonha entre seus desprotegidos atacantes, decepando cabeças e membros, e derramando miolos e intestinos em jatos rubros.

Diante daquela chuva de aço cortante, os poucos sobreviventes daquela horda infernal recuaram e fugiram corredor adentro, deixando vários dos seus jazendo em pilhas altas aos pés de seus matadores.

Enquanto soltava Zareta, Kull pensava na dor que o Rei de Kamula sentiria, ao saber da morte do filho. Pelo menos, o rei não os culparia, após ver os corpos dos homens-bode junto ao cadáver do príncipe. Após ser desamarrada da coluna, Zareta – talvez não sabendo que o poderoso atlante era assexuado –, impulsivamente, abraçou o torso musculoso de Kull e beijou de forma convulsiva os finos lábios fortes do rei da Valúsia.


FIM




Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Karoly Mazak, da Hungria, e Ricardo Tavares Medeiros, de Brasília – DF.



A seguir: Filho da Batalha! (minha versão do nascimento de Conan).
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